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Academic year: 2021

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A EPIDEMIA DO CRACK E AS “FAMÍLIAS ESFARELADAS”: UMA ANÁLISE DA MÍDIA ESCRITA 1

Romanini, M.2; Roso, A.3 1 Trabalho de Pesquisa _UFSM

2 Acadêmico do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil 3 Professora Adjunta do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil E-mail:moisesromanini@yahoo.com.br;psicologia.ufsm@gmail.com.

RESUMO

Esse trabalho tem como objetivo identificar e analisar estratégias ideológicas referentes à noção de família dentro do contexto da midiatização da “epidemia do crack”. A análise ideológica aqui proposta foi realizada com uma amostra de 8 reportagens coletadas no Jornal Zero Hora, no período de 06 a 13 de julho de 2008, que constituíram uma série especial denominada “A Epidemia do Crack”. O referencial metodológico adotado para tal análise foi a Hermenêutica de Profundidade, que é composta por três fases mutuamente interdependentes e complementares: a análise sócio-histórica, a análise discursiva e a interpretação/reinterpretação. Várias estratégias ideológicas foram identificadas: universalização, expurgo do outro, racionalização, diferenciação e naturalização. Essas estratégias podem servir para estabelecer ou manter relações de dominação, o que gera processos de exclusão, que prejudicam o acesso aos direitos das pessoas ou grupos excluídos, em função de sua posição e trajetória traçadas em um campo social.

Palavras-chave: Família; Ideologia; Mídia escrita. 1. INTRODUÇÃO

A família contemporânea sofre transformações em muitos aspectos, principalmente nas relações intergeracionais e de intimidade, caracterizada pela maior expressão dos afetos e busca de autonomia dos seus membros, visando a construção subjetiva individual. François de Singly (2007) fala da família contemporânea como uma instância caracterizada por três elementos: uma grande dependência em relação ao Estado; uma grande independência em relação aos grupos de parentesco; e uma grande independência de homens e mulheres em relação a esta família. Observa-se que à medida que há um crescimento do peso do fator afetivo na regulação das relações intrafamiliares, ocorre também uma separação progressiva do espaço público e do espaço privado. Aqui situa-se o paradoxo da família moderna: cada vez mais “privada” e cada vez mais “pública”. “A privatização incontestável da família moderna é, de alguma forma, uma ilusão porque é acompanhada de uma grande intervenção do Estado e das instituições.” (SINGLY, 2007, p.33)

A família caracteriza-se, também, pelo modo específico de viver a diferença de gênero que implica as relações entre as gerações e o parentesco. A partir do movimento de individualização da vida familiar, as relações entre pais e filhos ganham respeito e flexibilidade e há uma maior atenção e investimento de recursos em relação à saúde e à educação dos membros da família. Em meio a mudanças culturais e sociais, a família empenha-se em reorganizar aspectos de sua realidade que o meio sócio-cultural-histórico vai alterando. Nesse movimento de reorganização a família, por um lado, apresenta uma grande gama de mudanças e, por outro lado, ela tem estado em evidência por ser um espaço privilegiado do desenvolvimento e estabelecimento da vida emocional de seus componentes (REIS, 2007).

O que não pode ser negado, portanto, “é a importância da família tanto ao nível das relações sociais, nas quais ela se inscreve, quanto ao nível da vida emocional de seus membros. É na família, mediadora entre o indivíduo e a sociedade, que aprendemos a perceber o mundo e a nos situarmos nele. É a formadora da nossa primeira identidade social.” (REIS, 2007, p.99). Destacada a inegável importância da família na constituição dos sujeitos e os processos de transformação que esta vem

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passando, alguns autores falam em “crise da família”, “morte da família” ou ainda “desinstitucionalização da família”. Essa “crise” da instituição familiar a coloca em evidência não apenas nos estudos de grandes pesquisadores, mas também nos meios de comunicação. A “midiação da família” torna público aquilo que era privado, o que coloca a família numa posição mais passiva em relação às intervenções do Estado e das instituições, como a própria mídia.

A família, ultimamente, tem sido foco de reportagens e matérias associadas ao tema drogas. Com o fenômeno denominado pela mídia de “a epidemia do crack”, o papel da família é questionado e posto em pauta de discussão. Especialistas ensinam como detectar precocemente o uso de drogas entre os membros, principalmente dos filhos, como a família deve comportar-se diante da descoberta e como ela pode ajudar na prevenção e tratamento de membros usuários de drogas. E não é somente o papel da família que é questionado, mas a sua estrutura. Fala-se muito em famílias desestruturadas sem deixar explícito o significado dessa categorização Por isso, torna-se fundamental analisar a relação entre mídia, drogas e família e buscar uma compreensão crítica sobre como esses processos podem construir ou modificar a nossa percepção sobre esses fenômenos tão complexos.

Thompson (2007) acredita que a midiação da cultura é uma característica fundamentalmente constitutiva das sociedades modernas, ou seja, as sociedades em que vivemos hoje são “modernas” em função do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa. Esse processo provoca mudanças não apenas na forma como as pessoas se relacionam, mas também no conteúdo e na maneira como as mensagens são transmitidas pela mídia. Dessa forma, o conhecimento que nós temos dos fatos que acontecem além do nosso meio social imediato é, muitas vezes, derivado da recepção das formas simbólicas veiculadas pelos meios de comunicação (ibid).

O desenvolvimento dos meios de comunicação de massa possibilitou que esses meios se transformassem em um aspecto fundamental, senão central, na produção e transmissão de formas simbólicas. Isso porque, através dos meios de comunicação, as formas simbólicas produzidas são capazes de circular numa escala sem precedentes, atingindo milhões de pessoas em todo o mundo. A ampla circulação de mensagens veiculadas pela mídia fez com que a comunicação de massa se tornasse num fator importante de transmissão da ideologia nas sociedades modernas. Assim, os fenômenos ideológicos podem tornar-se fenômenos de massa, isto é, fenômenos que podem atingir um número cada vez maior de receptores. A mídia, então, pode colaborar com a criação, estabelecimento e manutenção de relações de dominação (THOMPSON, 2007),que são relações sistematicamente injustas de poder.

Ideologia refere-se às “maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer, querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de dominação; sustentar, querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas” (THOMPSON, 2007, p.79).

A reformulação do conceito de ideologia proposta por Thompson emprega a noção de sentido. Ao analisar as formas como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação, o interesse centra-se no sentido das formas simbólicas que estão inseridas em contextos sociais estruturados e circulando pelo mundo social. Por “formas simbólicas”, entende-se um “amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como construtos significativos.” (THOMPSON, 2007, p.79).

Sendo que a midiação da cultura moderna é uma característica constitutiva fundamental das sociedades modernas (THOMPSON, 2007), os conhecimentos que temos dos fatos que acontecem além do nosso contexto social imediato é, na maioria das vezes, derivado da recepção das formas simbólicas veiculadas pelos meios de comunicação, inclusive aquilo que conhecemos da epidemia do crack. Ao ler, escutar e/ou assistir reportagens sobre a epidemia do crack, os sujeitos que recebem essas mensagens não estão apenas se informando sobre o assunto, mas estão sendo inseridos nos mais variados fenômenos ideológicos. As formas simbólicas que constituem as mensagens podem

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estar reproduzindo relações de dominação, bem como uma defesa implícita de um modelo de família “saudável”, em detrimento de um modelo de família “desestruturada”. Então, é preciso estar atento a esses fenômenos e ter instrumentos para exercer o direito de crítica, pois sabe-se que a recepção de formas simbólicas não é uma atividade passiva, e sim ativa.

Por esse motivo, torna-se fundamental investigar como as formas simbólicas veiculadas pela mídia servem, em circunstâncias específicas, para estabelecer e sustentar relações de dominação em relação à “epidemia do crack”, visto que a veiculação de mensagens sobre esse tema pode estar criando e mantendo estereótipos que dificultam a reinserção social dos usuários de drogas. Esse trabalho tem, então, como objetivo identificar e analisar estratégias ideológicas referentes à noção de família dentro do contexto da midiatização da “epidemia do crack”.

3. METODOLOGIA

A análise ideológica aqui proposta foi realizada com uma amostra de 8 reportagens coletadas no Jornal Zero Hora, no período de 06 a 13 de julho de 2008, que constituíram uma série especial denominada “A Epidemia do Crack”. O referencial metodológico adotado para tal análise foi a Hermenêutica de Profundidade (THOMPSON, 2007). O enfoque da Hermenêutica de Profundidade é composto por três fases mutuamente interdependentes e complementares: a análise sócio-histórica, a análise formal ou discursiva e a interpretação/reinterpretação. A interpretação da ideologia dá uma inflexão crítica a essas fases, pois ela é “uma interpretação das formas simbólicas que procura mostrar como, em circunstâncias específicas, o sentido mobilizado pelas formas simbólicas serve para alimentar e sustentar a posse e o exercício do poder.” (THOMPSON, 2007, p.378).

A análise discursiva tem como finalidade básica analisar a organização interna das formas simbólicas, com suas características estruturais, seus padrões e relações. O tipo de análise adotada nesse estudo será a análise temática, classificando as significações do discurso em categorias, nas quais os critérios são orientados pela dimensão da análise em questão (BARDIN, 1977). A amostra de reportagens é dividida em unidades de significado, unidades que expressam um sentido em si mesmo e em relação ao contexto. Uma unidade de significado pode ser uma palavra, uma frase ou parágrafo, o que importa é que seja um conjunto de proposições que expressem um determinado tema. Identificadas as unidades de significado, categorias temáticas serão eleitas, englobando e expressando o conteúdo e as mensagens implícitas contidas no texto.

Após a codificação e caracterização dessas categorias temáticas, inicia-se a terceira fase da Hermenêutica de Profundidade, a interpretação/reinterpretação. Enquanto a análise discursiva procede através de análise – quebra, desconstrução de padrões e efeitos que operam dentro das formas simbólicas - a interpretação/reinterpretação procede por síntese, ou seja, ela se propõe a construir criativamente possíveis significados. No processo de interpretação procura-se compreender o “aspecto referencial” das formas simbólicas (elas se referem a algo, dizem alguma coisa sobre algo). Portanto, “interpretar a ideologia é explicitar a conexão entre o sentido mobilizado pelas formas simbólicas e as relações de dominação que este sentido ajuda a estabelecer e sustentar” (THOMPSON, 2007, p. 379). A interpretação da ideologia assume, então, uma dupla tarefa: a explicação criativa do significado e a demonstração sintética de como esse significado serve para estabelecer e sustentar relações de dominação.

4. RESULTADOS

A análise formal preliminar indica um discurso consoante com a concepção defendida pela Organização Mundial de Saúde de que a dependência química é considerada uma doença, e que hoje há consenso sobre a predisposição genética ao vício e os problemas psiquiátricos que podem estar associados. Além disso, muitos fatores podem se somar no caminho que leva às drogas, inclusive o

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ambiente familiar. Logo no início da série especial de reportagens fica clara uma estratégia ideológica denominada de universalização. Através dessa estratégia, “acordos institucionais que servem aos insteresses de alguns indivíduos são apresentados como servindo aos interesses de

todos, e esses acordos são vistos como estando abertos, em princípio, a qualquer um que tenha a habilidade e a tendência de ser neles bem sucedido” (THOMPSON, 2007, p.83). A série “A epidemia do crack” pretende mostrar como a fúria com que a pedra atingiu o Estado espalha sinais

devastadores por toda a parte, sem escolher idade, sexo ou condição social, e afeta a vida de todos os gaúchos. Ou seja, todos estão expostos à epidemia, ocorre uma universalização do problema.

Porém, no decorrer das reportagens, nota-se um movimento sutil da universalização à questão da vulnerabilidade. Há grupos de indivíduos mais vulneráveis que outros.

É importante ressaltar que a universalização possibilita a utilização de outra estratégia ideológica: o expurgo do outro. Essa estratégia envolve “a construção de um inimigo, seja ele interno ou externo, que é retratado como mau, perigoso e ameaçador e contra o qual os indivíduos são chamados a resistir coletivamente ou a expurgá-lo” (THOMPSON, 2007, p.87). Ao apresentar o crack como “um ser”, com vida própria que ‘contamina’ as pessoas e as famílias, cria-se um inimigo. Esse inimigo é comum a todos à medida que a epidemia seja considerada um problema de toda a população. Com o inimigo em destaque, a mídia convoca a família para assumir a sua posição no combate a esse mal. A convocação é feita também em termos universalizantes, chamando as famílias e o povo a combater a epidemia do crack..

Em uma das matérias a família ocupa lugar de destaque. Essa matéria inicia com o “teste da prevenção”. Você colabora decisivamente para evitar que seu filho ou familiar se torne dependente

químico?. A pergunta convoca o familiar a responder as perguntas e a “conferir seu desempenho”. O

teste consiste em quatro perguntas: se a pessoa se sente à vontade para fumar, consumir bebida alcoólica ou recorrer à automedicação quando está em casa com a família; se ela sabe os efeitos e os danos causados pelas drogas e se ela se mostra aberta para discutir o tema com o filho; se a pessoa sabe o nome da paquera do filho no colégio ou o nome de alguém com quem o filho teve alguma desavença; e se a pessoa sabe onde o filho está, com quem e o que está fazendo. Indiretamente as perguntas já indicam qual a resposta “correta”. Se a pessoa está de acordo com as respostas, o desempenho é bom. Será que é possível medir o desempenho dos pais? Baseado em que essas perguntas foram formuladas? Em qual modelo de família? Nos parece que esse tipo de testagem serve mais para acirrar a culpabilização materna ou paterna, muito comum na contemporaneidade. Nesse sentido, Fonseca (2005) alerta que a relação indivíduo-família não pode ser pensada da mesma forma em todo lugar, pois a própria noção de família varia conforme a categoria social com a qual estamos lidando.

Logo abaixo desse teste há um quadro de dicas: dê o exemplo, informe-se e promova o

diálogo, esteja próximo e dê limites – ou seja, as respostas das perguntas do teste acima. Embora as

dicas sejam bem gerais, está escrito “confira como agir em cada caso”. A receita é passada sem a preocupação de que os ingredientes estejam disponíveis. Da mesma forma ocorre com o quadro intitulado “Papel de familiares na recuperação”: atenção aos sinais, buscar o diagnóstico, admitir o

problema, incentivar a busca de tratamento, promover mudanças e superar as culpas. Insere-se aqui,

através do “teste da prevenção” e das dicas aos pais, uma estratégia ideológica denominada racionalização. Através da racionalização “o produtor de uma forma simbólica constrói uma cadeia de raciocínio que procura defender, ou justificar, um conjunto de relações, ou instituições sociais, e com isso persuadir uma audiência de que isso é digno de apoio” (THOMPSON, 2007, p.83). Com essa cadeia de raciocínio estabelecida, a família deve tomar somente para si a responsabilidade de prevenir o uso da droga, como se ela fosse um sistema isolado, desconectado do meio sócio-histórico.

Além disso, a racionalização pode servir a propósitos que são desconhecidos pela maior parte da população: alguns políticos sugerem que as insuficiências do serviço de saúde pública não devem

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ser resolvidos com mais investimentos no setor, mas com políticas sociais que “fortaleçam” a família (FONSECA, 2005).

A lógica que apresenta essas duas políticas – investimento nas famílias e investimento no serviço de saúde pública -, como mutuamente excludentes, é obviamente absurda. Mas o pior é que muitas vezes a noção de que a família é o principal responsável pela saúde de seus membros vem antes de qualquer política efetiva de “fortalecimento” familiar. Desse jeito, o acento na família arrisca ficar como nada mais do que uma máxima moralista, um álibi, que desculpa a falta de empenho político num programa realmente integral de saúde. (FONSECA, 2005, p.58)

A epidemia do crack, primeiramente concebida como algo universal, passa a sofrer um processo de fragmentação. Através da fragmentação e/ou diferenciação, relações de dominação podem ser mantidas não unificando as pessoas numa coletividade, mas segmentando os indivíduos e grupos através da ênfase dada às dinstinções, diferenças e divisões entre eles (THOMPSON, 2007). Agora que o inimigo comum já está posto, não se fala mais em famílias de um modo geral – surge a categoria família de risco. As famílias de risco estão associadas principalmente àquelas em que há uma ausência da função paterna. Associados à ausência da função paterna, há outros comportamentos de risco, tais como pais superprotetores e/ou hiperprovedores, inversão de papéis e

vício de pais para filho. Há aqui, uma dinâmica da ausência, pois só é problema enquanto ausente.

Em entrevista a Zero Hora, uma terapeuta de uma clínica da Capital gaúcha observa que a dependência química é uma doença com múltiplas causas (inclusive predisposição genética e transtornos psiquiátricos associados, como bipolaridade, transtorno de ansiedade e depressão) que afeta não apenas o viciado, mas todos ao redor. “Mas assim como uma família saudável adoece com a droga, famílias desestruturadas podem levar às drogas, principalmente os jovens”. Aqui encontra-se o argumento principal relacionado às famílias: há dois tipos básicos de família – a saudável e a desestruturada. A normal e a patológica. Os autores da matéria não definem e não dão os limites entre um tipo e outro. Levando em consideração as análises realizadas, pode-se pensar em alguns indicadores: a família saudável é aquela família tradicional, com pai, mãe e filhos, estabilizada emocional e economicamente; a família desestruturada comporta vários outros ‘subtipos’ – monoparentais (geralmente só a mãe é a cuidadora), recompostas, etc.

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Encontra-se aqui um detalhe que deixa de ser um detalhe. Nas matérias lidas e analisadas, as famílias pertencentes às classes média e alta são famílias compostas por pai, mãe e filhos – é a família saudável. E as que pertencem às classes baixas ou populares, geralmente são compostas apenas pela mãe e filhos (monoparentais) ou por mãe, padrasto e filhos (recompostas) – é a família desestruturada. Vendo por esse ângulo, chega-se a uma conclusão muito séria: as famílias de classe alta adoecem em função do familiar usuário de drogas (crack), elas são as vítimas do crack; enquanto que as famílias de classe baixa, por serem desestruturadas, levam seus filhos ao uso de drogas. Ou seja, nas famílias de classe mais favorecida não há maiores justificativas para o uso – predisposição genética, transtornos psiquiátricos associados e a curiosidade pela droga –, enquanto que nas famílias de classes desfavorecidas todas essas causas valem, mas ainda tem o ambiente desfavorável e a família que ‘induz’ ao uso – usa porque é pobre mesmo!). A matéria ainda traz um terceiro tipo de família, as chamadas famílias ‘codependentes’. Nessas famílias as mudanças de

humor, a agressividade e os dramas cotidianos de um viciado acabam levando os familiares a uma dependência emocional. Eles ficam permanentemente alertas, preocupados mais com o dependente químico do que com eles mesmos, resignando-se a condicionar seu estado de espírito ao do viciado. Esse superenvolvimento mascara uma disfunção estrutural da família ou de um dos membros.

Conforme François de Singly (2007), há uma falta de rigor na definição de desagregação familiar ou, como foi denominado nas matérias, família desestruturada. Essa definição flutua conforme a época e a cultura. Geralmente, a desagregação familiar está associada à ausência da mãe e/ou do pai. Mas não é simples estabelecer a definição exata dessa ausência. Deve-se incluir ou não a duração dessa ausência? Em que momento ela apareceu na história da criança? Foi disponibilizada ou não a substituição do papel paterno ou materno? O autor destaca que, com o crescimento das famílias recompostas, a abordagem da socialização familiar torna-se ainda mais complexa. A

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desagregação familiar “pode ser bem maior em certos meios sociais do que em outros. A relação entre desagregação e problema infantil pode esconder outra relação.” (SINGLY, 2007, p.74).

Quando não se trata de uma família conjugal nuclear, pode-se falar em família desestruturada? A partir dessa questão, Claudia Fonseca (2005) faz uma reflexão interessante. Seguindo um enfoque “legalista”, percebe-se que certas pessoas se aproximam mais do ideal da família conjugal nuclear, e outras menos. É assim, que, durante os primeiros estudos sobre a família, os pobres eram vistos como a “massa amorfa” dos “sem-família”. O modelo, antes de nos ajudar, “agiria como camisa de força, impondo-nos um tipo de viseira que impedisse uma melhor visão da realidade.” (FONSECA, 2005, p.55). A autora vai além, ela afirma que “desestruturada” é um termo usado para descrever a família dos outros. Não simplesmente outros, mas dos outros pobres. É como se uma pessoa bem-sucedida não pudesse, por definição, vir de uma família desestruturada. Pensando nesse filtro classista, Fonseca (ibid) aponta o uso de termos diferentes, carregados de avaliações opostas para descrever comportamentos muito semelhantes, respectivamente para ricos e para pobres: ricos “escolhem” sua família X pobres “submetem-se” à biologia; maternidade assistida X controle de natalidade; produção independente X mãe solteira; família recomposta X família desestruturada.

Essas diferenças são apresentadas na mídia como fenômenos naturais. A estratégia de naturalização, subjacente a todas já citadas, consiste em transformar um estado de coisas que é um criação social e histórica em um acontecimento natural, como se fosse um resultado inevitável de características naturais (THOMPSON, 2007). A relação pais e filhos, o papel e a estrutura da família, a dependência química, a relação da sociedade com as drogas, as relações de classe e gênero são apresentados como coisas naturais, desligadas de seu contexto sócio-histórico. Apresentar esses fatos de forma naturalizada aos leitores é o mesmo que ocultar informações, oferecendo uma visão acrítica do mundo e de suas relações.

A matéria “A pedra avança sobre a infância” evidencia os danos neurológicos em um organismo em formação, os roubos, os crimes, as “famílias esfareladas”. As famílias estão esfareladas como a pedra fica depois do uso: o usuário, na fissura, procura pelos farelos da pedra, na tentativa de aproveitá-la um pouco mais. As famílias esfareladas são representadas por uma mãe que oferecia crack ao filho quando o filho reclamava de fome até uma família na qual a mãe é papeleira e o pai está preso por tentar estuprar uma das filhas. O que faz com que uma família fique esfarelada? Se pensarmos em uma comparação com o crack, a pedra se esfarela após ser queimada. Então, a pedra, antes uma unidade consistente, precisa de um cachimbo, de fogo e de uma pessoa que faça uso dela para que fique esfarelada. Porém, com uma família, não é tão fácil perceber esse processo. A matéria aponta alguns indícios: a mãe que oferece crack ao filho como alimento (“o crack alimenta o crime”), a pobreza (pais papeleiros), a ausência paterna (quando citada na matéria ou mesmo quando a figura paterna nem é citada) ou a própria presença paterna (o pai que tentou estuprar a filha). Sabe o que um usuário esperava de seus pais quando saísse da clínica em estava internado? Ele queria

cuidado, companhia e limites. Parece ser algo simples, mas não é! 5. CONCLUSÃO

As estratégias ideológicas identificadas na série “A epidemia do crack”, em relação à noção de família, nos alerta para o perigo de pensar na família como algo estático ou como algo separado de um contexto sócio-histórico. Pensar a família através de um modelo hegemônico pode nos levar à criação de estereótipos e preconceitos, principalmente quando se trata do uso de drogas e de outras epidemias. A cristalização desses conceitos e dessas relações contribui para a criação e manutenção de relações de dominação, dificultando ainda mais a inserção social de usuários de droga, especialmente de crack.

Precisamos pensar, como alerta Fonseca (2005), na relação dialética entre práticas e valores, evitando abordagens analíticas focadas exclusivamente nos ideais – as representações normativas de uma sociedade. Através dessa visão dialética, podemos ver “a atitude criativa dos atores – como

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alguns deles burlam ou brincam com a norma oficial, como criam normas alternativas, enfim, como, por meio de suas práticas cotidianas, estão constantemente renegociando e transformando valores.” (FONSECA, p.55). Essa é uma reflexão fundamental para todos os profissionais, não apenas da saúde, que trabalham com intervenções no campo da família.

Ao estudar ideologia, então, pode-se pensar nas maneiras como o sentido mantém relações de dominação entre ricos e pobres, entre homens e mulheres, entre um grupo étnico e outro, entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, entre outras. Uma relação de dominação pode ser

estabelecida de diversos modos (gênero, classe, raça, etc.), mas nenhum tipo é mais grave que outro. A conseqüência de qualquer forma de relação de dominação é o estabelecimento e/ou manutenção de processos de exclusão, que prejudicam o acesso aos direitos das pessoas ou grupos excluídos, em função de sua posição e trajetória traçadas em um campo social.

REFERÊNCIAS

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

FONSECA, C. Concepções de família e práticas de intervenção: uma contribuição antropológica.

Saúde e Sociedade, v.14, n.2, p.50-59, maio-ago 2005.

REIS, J. R. T. Família, emoção e ideologia. In: LANE, S.T.M. & CODO, W. (orgs.). Psicologia Social – o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 2007, 13ª Ed.

SINGLY, F. de. Sociologia da Família Contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna – teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 2007, 7ª Ed.

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