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Aspectos da República Americana que, para Condorcet, deveriam influenciar a Europa e a humanidade

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0 UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO

DO RIO GRANDE DO SUL - UNIJUÍ

DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO - DHE

BACHARELADO EM FILOSOFIA

ASPECTOS DA REPÚBLICA AMERICANA QUE, PARA CONDORCET,

DEVERIAM INFLUENCIAR A EUROPA E A HUMANIDADE

Tiago Anderson Brutti

Orientador: Claudio Boeira Garcia

IJUÍ, RS 2013

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1 UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO

DO RIO GRANDE DO SUL - UNIJUÍ

DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO - DHE

BACHARELADO EM FILOSOFIA

ASPECTOS DA REPÚBLICA AMERICANA QUE, PARA CONDORCET,

DEVERIAM INFLUENCIAR A EUROPA E A HUMANIDADE

Tiago Anderson Brutti

Orientador: Claudio Boeira Garcia

Trabalho de Conclusão apresentado ao Curso de Filosofia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, como exigência parcial para a obtenção do título de bacharel em Filosofia.

IJUÍ, RS 2013

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2 UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO

DO RIO GRANDE DO SUL - UNIJUÍ

DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO - DHE

BACHARELADO EM FILOSOFIA

A Banca, abaixo assinada, aprova o Trabalho de Conclusão

ASPECTOS DA REPÚBLICA AMERICANA QUE, PARA CONDORCET,

DEVERIAM INFLUENCIAR A EUROPA E A HUMANIDADE

elaborado por

TIAGO ANDERSON BRUTTI

como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Filosofia

Banca de Qualificação:

Claudio Boeira Garcia Valdir Graniel Kinn

(Orientador – UNIJUÍ) (Professor – UNIJUÍ)

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RESUMO

Esta monografia apresenta argumentos publicizados por Condorcet no que respeita às configurações políticas e econômicas instituídas pela Revolução Americana; articula suas apostas com relação aos temas dos direitos naturais, dos princípios racionais, da conservação da paz, da liberdade de imprensa e do comércio internacional; examina, para tanto, entre outras obras, o texto “De l’influence de la révolution d’Amérique sur l’Europe” (1786); enfatiza, enfim, o estilo de abordar filosoficamente a política à luz dos acontecimentos históricos que de diferentes modos reavivaram as apostas republicanas tanto nos Estados Unidos da América quanto na Europa.

Palavras-chave: republicanismo; direitos naturais; princípios racionais; liberdade de imprensa; conservação da paz; comércio internacional.

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ABSTRACT

This monograph presents arguments publicized by Condorcet with regard to political and economic settings established by the American Revolution; it articulates their bets on the issues of natural rights of rational principles, the preservation of peace, freedom of press and of international trade; it examines for that, among other works, the text "De l'influence de la révolution d'Amérique sur l'Europe" (1786); it emphasizes the style philosophically address the policy in the light of historical events in different ways revived bets republicans in both the United States and in Europe.

Keywords: republicanism; natural rights; rational principles, freedom of the press; maintenance of peace; international trade.

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SUMÁRIO

Resumo/Abstract... 03

Sumário... 05

Introdução... 06

1 Direitos, Princípios e Revoluções Sociais... 11

2 Conservação da Paz, Liberdade de Imprensa e Comércio Internacional... 21

Considerações Finais... 29

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INTRODUÇÃO

Esta monografia apresenta argumentos de Condorcet no que respeita às configurações políticas e econômicas instituídas pela Revolução Americana. Articula, sobretudo, as apostas republicanas por ele advogadas com relação aos temas dos direitos naturais, dos princípios racionais, da conservação da paz, da liberdade de imprensa e do comércio internacional. Examina, para tanto, entre outras obras, o texto “De l’influence de la révolution d’Amérique sur l’Europe” (1786), publicado antes dos eventos inaugurais da Revolução Francesa.

Condorcet esposa nesse texto suas opiniões mais caras relativas à organização das sociedades, à liberdade de expressão, ao exercício do poder público, à instrução do povo e aos modos de representação e de participação política. Ele argumenta em favor da razoabilidade do propósito de se instituir sociedades organizadas politicamente de tal modo que os indivíduos destas e das sucessivas gerações pudessem gozar de condições de bem-estar comum.

O filósofo relaciona a Revolução Americana com a humanidade, de modo geral, e com a Europa, em particular, analisando os princípios em torno dos quais ele próprio imaginava ser possível constituir um método para medir os diferentes graus de felicidade pública. Distingue, para tanto, duas maneiras de apurar a felicidade de um país, coletivamente considerado: primeiro, como uma espécie de valor médio ou resultado da felicidade ou infelicidade dos indivíduos; ou, segundo, como uma soma geral do bem-estar que o solo, as leis, as indústrias e as relações com as nações estrangeiras poderiam oferecer à maioria dos cidadãos. Condorcet se atém ao último significado, isso porque, para ele, a outra maneira implicaria adotar a máxima, demasiadamente estendida entre os republicanos antigos e modernos, segundo a qual a minoria poderia ser legitimamente sacrificada à maioria. Essa máxima só seria compatível com uma sociedade em perpétuo estado de guerra e submetida ao império da força (1945, p. 25-26).

A declaração de independência dos Estados Unidos da América já havia despertado nos políticos franceses a impressão de que, como consequência, testemunhariam a ruína da Inglaterra e a prosperidade da França, atesta Condorcet. Essa independência, que já havia sido reconhecida pela França, ainda era, de modo geral, apreciada com indiferença na Europa. O

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7 filósofo considera de grande utilidade discutir com serenidade as consequências desse acontecimento exemplar, mesmo que para tanto corresse o risco de se apresentar como um profeta (1945, p. 25-26).

Condorcet distingue em duas classes os meios gerais de felicidade para o homem em sociedade. A primeira compreenderia tudo o que assegura e amplia o livro gozo dos direitos naturais. A segunda encerraria os meios de: diminuir o número de males aos quais a humanidade estaria sujeita pela natureza; prover nossas primeiras necessidades com maior segurança e menos trabalho; e procurar um maior número de gozos pelo emprego das nossas forças e o uso legítimo de nossas indústrias. Os meios de aumentar essa força e essa indústria também deveriam ser alocados nessa última classe (1945, p. 26-27).

Essa é a tonalidade do utilitarismo imaginado por Condorcet para o “cálculo” da felicidade pública. Ao usar expressões tais como felicidade pública e bem-estar comum, o filósofo indica sua crítica ao liberalismo e aos republicanos formalistas, ou aos simpatizantes de uma ditadura da maioria. Ele reivindica como direitos naturais ou inegociáveis entre os homens: I - A segurança de cada pessoa, abrangendo a confiança de não ser turbado por nenhuma violência, nem no interior da família, nem no emprego das faculdades, das quais deve conservar um exercício independente e livre para tudo o que não seja contrário aos direitos dos outros; II - A segurança e o gozo da propriedade de bens; III - Não ser submetido senão a leis gerais que abarquem a universalidade dos cidadãos e cuja interpretação não seja arbitrária. Determinadas ações humanas, no estado de sociedade, devem estar sujeitas a regras comuns. Além disso, certas penas devem ser aplicadas individualmente nos casos de atentados executados, mediante violência ou fraude, contra os direitos dos outros; e IV - O direito de contribuir, seja imediatamente, seja por representação, no sentido de sancionar as leis gerais e a todos os atos consumados em nome da sociedade. Os princípios das leis civis, criminais, administrativas, comerciais e policiais dependem, argumenta Condorcet, da obrigação de respeitar os direitos compreendidos nas três primeiras divisões (1945, p. 26-28).

Condorcet articula esses direitos - dos quais se poderiam deduzir, de modo geral, os outros direitos humanos - com os princípios racionais da igualdade, da liberdade e do bem-estar comum, considerados critérios e propósitos instituidores da República. O filósofo advoga que esses direitos e princípios constituíam boas razões para desafiar a superstição, a ignorância, a mentira, a miséria, os preconceitos, a dependência servil, a violência, a desigualdade social e a intolerância injustificada de uns para com os outros.

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8 segurança, à propriedade, ao gozo de regras comuns e à democracia. O bem-estar de uma sociedade seria tanto maior quanto maior fosse a extensão com que esses direitos pertencessem aos membros do Estado. Porém, o gozo de cada um deles não seria igualmente importante para o bem-estar comum. Daí que o filósofo os apresentou seguindo a ordem na qual acreditava que contribuíssem para esse bem-estar: em primeiro lugar, a vida e a segurança; em segundo, a boa sobrevivência; em terceiro, o governo das leis; e, em quarto, a participação política. Se muitos republicanos zelosos avaliavam que a participação política (democracia) constituía o mais importante de todos os direitos, o fato é que, para o filósofo, numa sociedade muito numerosa deveria suceder que esse direito resultasse quase nulo para o maior número dos habitantes. Com efeito, o direito à democracia, em uma nação ilustrada e desimpedida da superstição, poderia assegurar todos os outros direitos, mas caso a ignorância e os preconceitos lograssem afastar aos que devessem exercer a democracia do caminho estreito que a justiça lhes traçou, as vantagens mais preciosas da participação política se perderiam. No que ao bem público respeita, uma república que instituísse leis tirânicas poderia ser ainda mais injusta que uma monarquia (1945, p. 28).

Preocupado com a possibilidade de violação dos direitos, Condorcet ressalta que a frequência ou excessiva violação de um dos direitos menos essenciais poderia danar mais o bem-estar comum que a infração leve ou muito rara de um direito mais importante. Assim, por exemplo, uma forma, na jurisprudência criminal, que expusesse inocentes a serem condenados por juízes ignorantes ou parciais, poderia causar maiores males a um país do que uma lei que condenasse à morte um cidadão por um delito imaginário, muito raro, para o qual se houvesse estabelecido uma pena. Esses princípios poderiam até ser considerados simples, porém seria mais difícil, acentua o filósofo, a maneira de avaliar o grau de prejuízo que poderiam produzir essas diferentes lesões dos direitos naturais e o modo de reprimir os abusos contrários aos princípios (1945, p. 29).

Os meios de felicidade dependem, assevera Condorcet, do gozo dos direitos. No que respeita à segunda classe de meios de felicidade - aquela que encerra os meios de diminuir o número de males aos quais a humanidade está sujeita pela natureza; prover nossas primeiras necessidades com maior segurança e menos trabalho; e procurar um maior número de gozos pelo emprego de nossas forças e o uso legítimo de nossas indústrias - o filósofo considera fácil admitir que ela depende, em grande parte, do exercício mais extenso e livre dos direitos naturais, e se limita, em princípio, ao gozo de uma paz durável e segura com as potências estrangeiras. Com isso, supostamente se poderiam aumentar os meios de procurar mais gozo

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9 com um trabalho igual: seja pela maior difusão da ilustração e da indústria; seja pelo melhoramento das relações com os demais povos; e, finalmente, seja por uma igualdade maior na distribuição desses meios entre os membros da sociedade. O bem-estar comum deveria ser buscado em uma distribuição mais igual do gozo dos direitos, advoga Condorcet. Nesse sentido, as leis civis e comerciais deveriam estar limitadas à pretensão de manter ou restabelecer a igualdade. Todas as leis civis e as que tivessem o comércio por objeto deveriam tender a manter ou a restabelecer essa igualdade entre os membros de uma nação, sem lesionar o direito de propriedade e sem limitar o exercício legítimo da liberdade (1945, p. 29-30).

Por outro lado, a felicidade de um povo não aumentaria com a desgraça ou a debilidade de seus vizinhos. Ela, pelo contrário, cresceria com a prosperidade dos outros povos, com o exemplo das boas leis, da repressão dos abusos, dos novos meios de indústria, enfim, de todas as vantagens que poderiam nascer da comunicação das luzes. E seria compreensível que a massa dos gozos comuns e a facilidade de reparti-los com mais igualdade fosse, para todos os povos, o efeito necessário do progresso de cada um deles. A exceção a essa regra, atenta Condorcet, poderia ser ilustrada pelo caso de um povo que, extraviado por uma falsa política, fatigasse seus vizinhos com sua ambição e buscasse - por meio da guerra, dos monopólios ou das leis proibitivas do comércio - dar-lhe, a suas próprias expensas, um poder perigoso e uma prosperidade inútil (1945, p. 30).

Para o comentador Charles Coutel (2004, p. 76-77), o esforço de Condorcet estaria concentrado em encontrar as mediações entre o amor de si (ou estima de si), o amor familiar, o amor à pátria, o amor à república e o amor à humanidade. Os direitos humanos e o exercício dos direitos políticos deveriam, nesse sentido, ter a humanidade como horizonte e não somente a pátria.

O cultivo de um sentimento moral poderia, por essa mesma compreensão cosmopolita, ser estendido de cada homem e de cada povo à humanidade, não estando restrito ou resultando simplesmente de boas relações contratuais. Condorcet descreve o sentimento de amor à humanidade como:

[...] celui d’une compassion tendre, active pour tous les maux qui affligent l’espèce humaine, d’une invencible horreur pour tout ce qui dans les institutions publiques, dans les actes du gouvernement, dans les actions privées, ajoutait des douleurs nouvelles aux douleurs inévitables de la nature; ce sentiment d’humanité était une conséquence naturelle de ces principes, il

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10 respirait dans tous les écrits dans tous les discours, et déjà son heureuse influence s’était manifestée (2004, p. 391)1.

Pensando assim, o filósofo não só confronta as desigualdades instituídas entre as nações, mas elogia os progressos da igualdade no âmbito de um só povo ou da comunidade de todos os povos. É no horizonte dessa compreensão que as noções de civilização e de humanidade são ampliadas a tal ponto que sobrelevam grande parte das diferenças entre os povos e se impõem como sentimento, razão e moral perfectíveis, sempre à beira do fracasso e, por isso mesmo, carentes de permanente rediscussão e reafirmação.

Ordenada em dois capítulos, esta monografia examina, inicialmente, os direitos declarados naturais para os homens e os princípios racionais que, na avaliação de Condorcet, inspiraram tanto a Revolução Americana quanto a Revolução Francesa; em seguida, enfatiza a influência desses eventos e opiniões sobre a Europa e a humanidade, sobretudo no que respeita aos temas da conservação da paz, da liberdade de imprensa e do comércio internacional.

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Tradução: “[...] aquele de uma compaixão terna, ativa, por todos os males que afligem a espécie humana, aquele de um horror por tudo aquilo que, nas instituições públicas, nos atos do governo, nas ações privadas, acrescenta novas dores às dores inevitáveis da natureza; este sentimento de humanidade era uma conseqüência natural desses princípios; ele transpirava em todos os escritos, em todos os discursos, e sua influência feliz já tinha se manifestado” (1993, p. 147).

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11 Capítulo I

DIREITOS, PRINCÍPIOS E REVOLUÇÕES SOCIAIS

Os Estados Unidos ofereceram aos europeus e à humanidade um grande exemplo, elogia Condorcet. O ato que proclamou a independência desse país já continha uma exposição simples dos princípios racionais mediante os quais se estabeleceriam os direitos dos homens. O filósofo julga que em nenhuma outra nação esses mesmos princípios foram conhecidos com tanta integridade (1945, p. 32).

O simples bom senso teria sido suficiente, alega Condorcet, para que os ingleses percebessem que não gozavam de mais direitos que os outros ingleses nascidos nos territórios sob sua soberania na América. Essa desigualdade, característica de um regime colonial, contribuiu para que os povos norte-americanos renunciassem à condição de nação subjugada e proclamassem a independência:

On vit alors pour la première fois un grand peuple délivré de toutes ses chaînes, se donner paisiblement à lui même la constitution et les loix qu’il croiait les plus propres à faire son bonheur, et comme sa position géographique, son ancien état politique l’obligeaient à former une republique fédérative, on vit se préparer à la fois dans son sein treize constitutions républicaines, ayant pour base une reconnaissance solemnelle des droits naturelles, et pour premier objet la conservation de ces droits (2004, p. 396).2 Condorcet atenta que os propósitos de independência e liberdade se estenderam dos Estados Unidos por toda a Europa. O povo francês, por mais que houvesse oferecido ao mundo os mais célebres filósofos preocupados em justificar condições políticas e sociais de igualdade e liberdade, permanecia àquela época subjugado por um governo organizado de forma autoritária e despótica. Comparados aos outros povos europeus, os franceses eram os mais esclarecidos, mas, no entanto, vinham sendo sistematicamente obrigados a conviver nas mais reduzidas condições de bem-estar. Em outros termos, se no meio do povo francês os

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Tradução: “Viu-se então, pela primeira vez, um grande povo liberto de seus grilhões dar-se pacificamente sua Constituição e as leis que ele acreditava as mais apropriadas para fazer sua felicidade; e como sua posição geográfica, seu antigo estado político o obrigavam a formar uma república federativa, viu-se preparar, ao mesmo tempo, treze constituições republicanas, tendo por base o reconhecimento solene dos direitos naturais do homem e, por primeiro objeto, a conservação destes direitos” (1993, p. 150-51).

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12 filósofos irradiavam luzes, o governo, por sua vez, permanecia na mais obscura e insolente ignorância (1993, p. 151).

A França das últimas décadas do século XVIII só poderia comportar uma revolução social emanada de duas fontes, sugere Condorcet: ou o próprio povo estabeleceria os princípios razoáveis que a filosofia lhe havia ensinado a admirar; ou os governos se apressariam a fazer o que requeria a opinião pública. Se a revolução eclodisse a partir dos movimentos populares, seria mais fácil e integral, porém mais violenta: a felicidade seria comprada ao preço de males transitórios. A segunda forma implicaria movimentos mais lentos e incompletos, porém mais tranquilos. Nesse cenário, o filósofo narra que a ignorância e a corrupção dos governos propiciaram que a insurreição partisse das forças populares: “et le triomphe rapide de la raison et de la liberté a vengé le genre humain” (2004, p. 395)3.

Os efeitos da Revolução Francesa foram ainda maiores que aqueles da Revolução Americana, assegura Condorcet, porquanto atingiram toda a nação francesa modificando significativamente as relações sociais. Esse movimento atingiu a um só tempo o despotismo dos reis e a desigualdade política, o orgulho da nobreza e as riquezas do clero, a dominação e a intolerância, bem como os abusos do feudalismo. No auge desses acontecimentos, o filósofo não se alinhou, simplesmente, aos interesses dos partidos predominantes e às suas respectivas ideologias políticas, nem ofereceu apoio integral aos atos revolucionários: contrapôs-se, por exemplo, à condenação do rei Luís XVI de Bourbon à pena de morte, aos massacres de setembro de 1792 e às políticas autoritárias que se seguiram (1993, p. 152).

Condorcet opina que tanto a instauração quanto a continuidade de um regime político republicano e democrático dependiam em grande medida de que as sociedades em questão não descuidassem dos assuntos educacionais. Daí que a república democrática preconizada pelo filósofo deveria prevenir contra as formas de dominação entre os homens, tarefa que implicaria, entre outras tantas, instruir o cidadão nos elementos das ciências e das artes e quanto aos benefícios do regime republicano, se comparados aos outros já experimentados pelos diversos povos no percurso da história humana.

O filósofo denuncia à sua época o que lhe parecia constituir uma flagrante injustiça e perversidade: o direito de propriedade sobre os negros e sua descendência, e a indiferença social frente aos maus tratos a que eles eram submetidos. Desgraçadamente, esse direito e hábito repulsivos, herdados do passado, ainda encontravam ampla aceitação nas sociedades “civilizadas”. Em suas “Réflexions sur l’esclavage des Négres” (1781), Condorcet convida os

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13 cidadãos a perceberem os sofrimentos de milhares de homens e mulheres, equiparados socialmente à condição de animais domésticos, entregues à escravidão mediante traição e violência.

Com efeito, a escravidão dos negros não lhe parecia compatível com o ideário iluminista da modernidade. Ela constituía um ultraje frente aos direitos que se declaravam naturais, por não admitirem negociação, e aos princípios racionais, entendidos como razoáveis e úteis para a perfectibilidade da humanidade. A interpretação desses direitos e princípios, que conferiam organicidade moral à versão moderna das tradições políticas republicana e democrática, não deveria simplesmente dobrar-se à coercibilidade social e ao poder político envolvido na contradição escravocrata, embora esses mesmos direitos e princípios fossem compreendidos como indissociáveis da contingência da condição dos homens e das sociedades que eles instituíam, bem como da falibilidade da filosofia e da ciência. Em outros termos, mais significativo que proclamar direitos e princípios seria efetivá-los a fim de que as realidades narradas não mais se apresentassem em contradição com o imaginário republicano. O trabalho escravo admitido em alguns dos Estados confederados dos Estados Unidos envergonhava os homens ilustrados daquele país, atesta Condorcet. Eles já haviam compreendido essa injustiça perigosa, razão pela qual essa situação não deveria permanecer por muito tempo maculando, por assim dizer, a pureza das leis americanas (1945, p. 32).

Condorcet avalia, por outro lado, que muitos republicanos norte-americanos ainda se apoiavam nos preconceitos ingleses, não compreendendo que as leis proibitivas, os regulamentos de comércio e os impostos indiretos constituíam um atentado ao direito de propriedade. Contudo, em nenhuma outra nação a tolerância havia sido mais amplamente aceita, mesmo que nessa nação ainda se consentisse em certas limitações exigidas pelo povo, contrárias, não já ao exercício da liberdade pessoal, mas sim ao direito de não ser submetido a nenhuma privação por crer no que a razão indica. Comparando os Estados Unidos com as nações antigas, que tanto se admiravam e tão pouco se conheciam, Condorcet considera que sua opinião a respeito da legislação norte-americana não era o fruto de um entusiasmo exagerado por essa nação ou por seu século. O povo americano seria o único, àquela época, cujos líderes e princípios políticos não mais coadunavam que não fosse possível aperfeiçoar a ordem social conciliando-se a prosperidade pública com a justiça (1945, p. 33).

Em que pesem as diferenças de clima, de costumes e de Constituição, o espetáculo de um grande povo – o norte-americano, entre o qual os direitos humanos haviam sido declarados e eram, de modo geral, respeitados - seria útil a todos os povos da humanidade.

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14 Esse exemplo ensinaria que os direitos deveriam ser os mesmos em todas as partes. Essa experiência faria compreender a influência que o gozo desses direitos irradiava sobre a prosperidade comum. O homem que não temia atentados contra a sua pessoa e que só dependia das leis demonstrava, desse modo, mais patriotismo e coragem. Aqueles cujo direito de gozar da propriedade estivesse assegurado encontrariam mais facilmente a probidade no curso de suas vidas. Condorcet refuta a opinião segundo a qual as leis não poderiam ter sobre os povos mais que um império passageiro e, também, a de que os corpos políticos estariam condenados a dissolver-se depois de alguns instantes de vida mais ou menos brilhantes (1945, p. 34).

Os ingleses haviam experimentado a sorte de todas as repúblicas que cessaram de ser livres por governar súditos ao invés de representar cidadãos, assente o filósofo. Ocorre que até mesmo as repúblicas poderiam não ser consideradas livres quando inscrevessem súditos ao invés de cidadãos. Poderia suceder que em uma monarquia pacífica um legislador sábio respeitasse os direitos dos homens o suficiente para provocar inveja ao orgulho republicano, com a sorte de seus afortunados súditos. Essa verdade, importante para a tranquilidade dessas Constituições, teria sido provada por filósofos franceses precisamente ao mesmo tempo em que eram acusados de apregoar a sedição, ou seja, a perturbação da ordem pública, a revolta, o crime contra a segurança do Estado etc., seja em diários, mandamentos ou requisições (1945, p. 34-35).

Somente a violência poderia sujeitar novamente aqueles que já haviam gozado da liberdade, assevera Condorcet. Em outras palavras, para que um cidadão consentisse em deixar de ser livre, seria necessário, para retirar-lhe essa dignidade, o uso da violência. Felizmente, todo homem, qualquer que fosse sua religião, opinião e princípios, estaria seguro de encontrar asilo político nos Estados Unidos, comemora Condorcet. Se na Inglaterra a indústria de seus habitantes não deixava recursos aos estrangeiros, de tal modo que sua riqueza rechaçava a pobreza, nos Estados Unidos, de modo distinto, a indústria apresentava aos estrangeiros esperanças sedutoras, oferecendo ao pobre a oportunidade de, ali, encontrar uma subsistência mais fácil, uma prosperidade mais segura e suficiente para saciar seus desejos, como prêmio por seu trabalho (1945, p. 35).

A emigração de europeus para a América implicava outros motivos que não o simples desejo de bem-estar. Unicamente o oprimido, imagina Condorcet, poderia ter vontade de transpor o longo obstáculo do oceano e do desconhecido. A Europa, sem ter que temer grandes emigrações, encontraria na América um freio para os ministros que experimentavam

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15 a tentação de governar demasiadamente mal. A opressão, desse modo, chegaria a ser necessariamente menos intensa se restasse um asilo ao que ela marcou como vítima (1945, p. 35-36).

Condorcet sugere que, diferente do que ocorria na França, a igualdade social era um fato entre os cidadãos estadunidenses. Era justamente esse espetáculo da igualdade que lhes assegurava a paz e a prosperidade, podendo resultar também útil, como exemplo, a toda a Europa (1945, p. 39).

No que respeita à possibilidade de violação dos direitos e princípios, o filósofo indica que o hábito, sem a necessária mediação dos sentimentos e da racionalidade, poderia tornar tão familiar essas violações que alguém, mesmo privado desses direitos e princípios, talvez sequer pensasse em reclamá-los, ou mesmo sequer cresse que estivesse sofrendo uma injustiça. Na ocasião em que a condição de súdito deixou de corresponder à ordem política, e quando a condição de cidadão de direitos passou a ser reconhecida juridicamente na França, ao menos entre os homens do gênero masculino, Condorcet advogou suas ideias e opiniões políticas em uma linguagem notadamente comprometida com os repertórios argumentativos dos movimentos sociais igualitários em favor da libertação dos negros, da cidadania das mulheres e da liberdade religiosa.

Com efeito, o filósofo repudia no manifesto “Sur l’admission des femmes au droit de cité” (1790), publicado no “Journal de la Societé de 1789”, o fato de que direitos e princípios que justificavam a igualdade política e de fato entre mulheres e homens estavam sendo tradicionalmente violados na medida em que as mulheres, “la moitié du genre humain”, eram privadas do direito inegociável de contribuir com a discussão e formação das leis que elas próprias eram estimuladas pelos homens a cumprir. Algumas das violações de direitos e princípios teriam passado inadvertidas até mesmo entre filósofos e legisladores, ainda que a eles competisse estabelecer zelosamente “les droits comuns des individus de l’espèce humaine” e, dessa maneira, fundamentar as instituições políticas.

Condorcet, ao advogar a igualdade política das mulheres em seus textos jornalísticos, quer, também, estimular a organização feminina para a conquista de direitos. Os direitos humanos resultariam unicamente de que tanto mulheres quanto homens são seres sensíveis, suscetíveis a adquirir ideias morais e a raciocinar sobre elas. Por essa compreensão, ou nenhum indivíduo da espécie humana teria direitos, ou todos teriam os mesmos. Dito de outro modo, abjurariam aos próprios direitos aqueles que votassem contra os direitos dos outros, quaisquer que fossem sua religião, etnia ou sexo.

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16 Pensando desse modo, somente quando às mulheres fossem assegurados os mesmos direitos que já haviam alcançado os homens é que a liberdade e a igualdade poderiam, de fato, ser proclamadas como estendidas ao gênero humano. O tema da igualdade de gênero é, também, assunto do “Tableau historique des progrès de l’esprit humain” (1793):

Parmi les progrès de l’esprit humain les plus importants pour le bonheur général, nous devons compter l’entière destruction des préjugés qui ont établi entre les deux sexes une inégalité de droits funeste à celui même qu’elle favorise. On chercherait en vain des motifs de la justifier par les différences de leur organisation phisique, par celle qu’on voudrait trouver dans la force de leur intelligence, dans leur sensibilité morale. Cette inégalité n’a eu d’autre origine que l’abus de la force, et c’est vainement qu’on a essaié depuis de l’excuser par des sophismes (2004, p. 450).4

No que respeita à normatividade das leis, Condorcet considera que o povo americano vinha se submetendo tranquilamente a leis cujos princípios e efeitos antes havia atacado calorosamente, obedecendo com respeito aos depositários do poder público, mas sem renunciar ao direito de intentar iluminá-los e denunciar à nação seus defeitos e erros. Para o filósofo, naquela nação tanto era devido respeito e obediência ao ordenamento jurídico como era permitido criticar os termos das legislações (1945, p. 36).

O direito de conhecer e criticar as leis e decisões políticas deveria ser assegurado a todos os cidadãos, advoga Condorcet. Esse direito seria uma condição para a liberdade e a igualdade, pois somente conhecendo as leis e suas motivações é que um cidadão poderia livremente exercer um julgamento crítico. O filósofo conjetura, inclusive, se o ensino dos preceitos constitucionais do país não deveria ser incluído na instrução nacional. Admite esse ensino se a Constituição fosse considerada um fato estabelecido pelo Estado, a que todos os cidadãos deveriam se submeter. Todavia, caso fosse ensinada como uma doutrina conforme os princípios da razão universal ou se suscitasse em seu favor um entusiasmo cego - que tornasse os cidadãos incapazes de julgá-la - então seria extremamente desnecessária essa abordagem pela instrução pública. Com efeito, o objetivo da instrução não seria fazer admirar aos homens uma legislação terminada, mas de fazê-los capazes de apreciá-la e, eventualmente, de corrigi-la (2001, p. 107-08).

4 Tradução: “Entre os progressos do espírito humano mais importantes para a felicidade geral, devemos contar a

destruição integral dos prejuízos que estabeleceram, entre os dois sexos, uma desigualdade de direitos funesta àquele mesmo que ela favorece. Em vão procurar-se-iam motivos para justificá-la pelas diferenças da organização física dos sexos, por aquela que se desejaria encontrar na força de sua inteligência ou em sua sensibilidade moral. Essa desigualdade só teve por origem o abuso da força, e foi em vão que depois se tentou desculpá-la por sofismas” (1993, p. 195).

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17 A escola republicana preconizada por Condorcet deveria ser compreendida, comenta Coutel, no sentido de:

[...] una escuela del juicio: se trata de confrontar los hechos y las situaciones con leyes universales, de situar los objetos en la naturaleza, los enunciados en las teorias y los acontecimientos en los procesos históricos. Sin embargo, esta opinión pública que emana de la razón común de los ciudadanos no debe herir a los indivíduos (2004, p. 60-61).

As leis não deveriam descansar em bases inflexíveis, atenta Condorcet, tanto que o Estado deveria, inclusive, permitir discussões que se opusessem às leis, justamente porque o propósito das instituições políticas seria aperfeiçoar essas leis de modo contínuo através da confrontação de opiniões:

Las buenas leyes, decía Platón, son aquéllas que los ciudadanos aman más que la vida. Efectivamente. ¿Cómo han de ser buenas las leyes que necesitan para su cumplimiento fuerzas extrañas a las de la voluntad del pueblo y prestan a la justicia el apoyo de la tirania? Mas para que los ciudadanos amen las leyes sin dejar de ser verdaderamente libres, para que conserven esa independencia de la razón, sin la cual el ardor por la libertad no es más que una pasión y no una virtud, es necesario que conozcan estos principios de la justicia natural, esos derechos esenciales del hombre, cuyas leyes no son otra cosa que su desarrollo o sua aplicación [...] Es necesario que al amar las leyes se las sepa juzgar (1990, p. 61-62).

As mudanças sociais e compreensivas indicadas pelo filósofo para a instituição da República Francesa não deveriam estar fundadas na dogmática da lei:

Ni la Constitución francesa, ni siquiera la Declaración de los derechos se presentarán a ninguna clase de ciudadanos como si fueran tablas descendidas del cielo a las que es necesario adorar y creer. Su entusiasmo no deberá fundarse en los prejuicios, en los hábitos de la infancia, y podrá decírseles: Esta Declaración de derechos que os enseña a la vez lo que debéis a la sociedad y lo que tenéis derecho a exigir de ella, esa Constitución que debéis sostener a costa de vuestra vida no son más que el desarollo de esos simples principios dictados por la naturaleza y por la razón que habéis aprendido a reconocer, en vuestros primeros años, como verdad eterna. En tanto que haya hombres que no obedezcan solamente a su razón, sino que reciban sus opiniones de las opiniones ajenas, se habrán roto en vano todas las cadenas, y estas opiniones impuestas serán verdades útiles; de este modo el gênero humano seguiría estando dividido siempre en dos clases: la de los hombres que razonan y la de los hombres que creen, la de los amos y la de los esclavos (1990, p. 47).

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18 Nenhuma legislação que admitisse a desigualdade étnica, de gênero, religiosa e política deveria ser admitida pela sociedade civilizada. Por essa via, Condorcet equipara a redução do homem à escravidão ao crime de roubo, porque não seria razoável e admissível que a alguém fosse reconhecido o direito de dispor de sua própria liberdade, muito menos o de se apropriar da liberdade dos outros. A liberdade, declarada um direito natural, não deveria, pois, ser considerada objeto de negócio.

Para que as dignidades humanas fossem asseguradas, não bastaria que elas estivessem inscritas nos livros ou no coração dos homens virtuosos, assevera Condorcet. Felizmente, o homem ignorante ou débil poderia encontrar o exemplo dessas dignidades nos empreendimentos de um grande povo. O bom exemplo havia sido dado pelo povo norte-americano, cujo ato de independência já continha uma exposição simples dos direitos individuais e públicos (1945, p. 32).

Outro exemplo oferecido pelos norte-americanos aos europeus poderia ser encontrado na administração e nos costumes militares. Os Estados Unidos haviam mostrado à humanidade como seria possível dispor - mesmo sem recorrer à dureza da administração militar de muitas das nações européias - igualmente de guerreiros bravos, soldados obedientes e tropas disciplinadas. Na Europa, muitas vezes os subalternos eram julgados pelas indicações secretas de seus chefes, condenados sem haver sido ouvidos e castigados sem deixar-lhes defender-se. Aliás, por essas mesmas legislações perniciosas o ato de solicitar a oportunidade de provar a própria inocência poderia resultar em um novo crime, mais grave ainda quando se fizesse publicar que não se era culpável. Esse sistema militar opressivo, que violava gravemente os direitos dos cidadãos e das nações, não decorria, simplesmente, da corrupção, de uma injustiça consciente ou de uma dureza tirânica, menos ainda da necessidade, porquanto esses costumes poderiam ser considerados tanto injustos como inúteis à disciplina e à seguridade do Estado. Essa cultura europeia de violação dos direitos naturais poderia, contudo, encontrar progressivamente sua cura, sobretudo a partir do exemplo de um povo livre (1945, p. 39).

Condorcet aposta que o espírito humano seria dotado de uma capacidade indefinida de progredir ou se aperfeiçoar. A história da humanidade, além de mostrar como esses progressos transcorreram os séculos, nos autorizaria a prever sua continuidade nos domínios do futuro. Essa possibilidade de aperfeiçoamento era afirmada à luz de uma teoria da probabilidade e dos motivos de crer. O homem, por esse modo de compreender, foi afastando de si ao longo do tempo costumes mais rudes e preconceitos e, com isso, logrou recuar, por

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19 assim dizer, os limites de sua própria inteligência.

Rousseau já considerava a perfectibilidade um dado distintivo do homem, assim como a liberdade e as outras capacidades potencialmente recebidas da natureza, como a razão, a imaginação e a consciência. Garcia comenta que o filósofo genebrino considerava essas capacidades como supérfluas ou em repouso no estado de natureza, não podendo se atualizar ou se tornar ativas senão na vida em sociedade. Daí que a sociedade não se opunha necessariamente à natureza. A capacidade da perfectibilidade estaria implicada com a viabilização da escolha e da produção de outras possibilidades para o homem. Por essa compreensão, o homem normalmente tomaria consciência de sua liberdade e de sua espiritualidade, isto é, de sua qualidade de agente livre, podendo se aperfeiçoar em meio às circunstâncias e desenvolver outras capacidades e paixões (1999, p. 57-77).

Condorcet, de modo similar, entende a perfectibilidade como caracterizadora da condição humana e das indefinidas possibilidades de sua ação no mundo. Sem embargo, as narrativas do filósofo, temperadas com suas esperanças num devir de maiores felicidades ao homem e às sociedades políticas, o diferenciam sutilmente de Rousseau, sobretudo se levarmos em consideração o modo enfático com que Condorcet expõe a convicção segundo a qual as luzes contribuíram para o aperfeiçoamento do espírito humano:

Nous montrerons comment la liberté, les arts, les lumières ont contribué à l’adoucissement, à l’amélioration des mœurs, nous ferons voir que ces vices si souvent attribués aux progrès mêmes de la civilisation étaient ceux des siècles plus grossiers que les lumières que la culture des arts ont tempérés quand elles n’ont pu les détruire. Nous montrerons que ces eloquente déclamations contre les sciences et les arts sont fondées sur une fausse application de l’histoire et qu’au contraire les progrès de la vertu ont toujours accompagné ceux des lumières, comme ceux de la corruption en ont toujours suivi ou annoncé la décadence (2004, p. 292).5

A perfectibilidade também reflete a aposta do filósofo na possibilidade de cultivar sentimentos morais e de aperfeiçoar indefinidamente a arte social. Os progressos do espírito humano - seja nas relações de reciprocidade entre os homens, seja na descrição ou transformação da natureza – seriam incompatíveis com uma postura de mera submissão à tradição ou aos hábitos culturais submersos nas superstições e nos preconceitos. Se, para um

5 Tradução: “Mostraremos como a liberdade, as artes, as luzes, contribuíram para a suavização e a melhora dos

costumes; mostraremos que esses vícios tão frequentemente atribuídos aos próprios progressos da civilização eram aqueles dos séculos mais grosseiros; que as luzes, a cultura das artes, os abrandaram quando não puderam destruí-los; provaremos que estas eloquentes declamações contra as ciências e as artes estão fundadas em uma falsa aplicação da história; e que, ao contrário, os progressos da virtude sempre acompanharam aqueles das luzes, assim como os progressos da corrupção sempre seguiram ou anunciaram sua decadência” (1993, p. 67).

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20 pensamento mais conservador, as coisas de interesse público deveriam permanecer tal como estão, de acordo com a tradição, não se admitindo facilmente outras possibilidades que desacomodassem esse “status quo”, um espírito revolucionário ou progressista, pelo contrário, se moveria com as capacidades de indignação e de esperança em mudar as configurações do mundo social, no sentido de concretizar os direitos e os princípios.

O capítulo seguinte destaca a influência da Revolução Americana sobre a Europa e a humanidade, sobretudo no que respeita aos temas da conservação da paz, da liberdade de imprensa e do comércio internacional.

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21 Capítulo II

CONSERVAÇÃO DA PAZ, LIBERDADE DE IMPRENSA

E COMÉRCIO INTERNACIONAL

Condorcet conjetura no texto “De l’influence de la révolution d’Amérique sur l’Europe” (1786) sobre que experiências e argumentos essa revolução acrescentaria aos temas da conservação da paz, da liberdade de imprensa e do comércio internacional. Ao criticar a barbárie das guerras, o filósofo menciona o abade de Saint-Pierre, para quem as nações poderiam ser esclarecidas ao ponto de renunciarem, de comum acordo, ao direito da guerra, submetendo ao juízo de árbitros pacíficos a discussão de suas pretensões, interesses e agravos. Condorcet sugere, entretanto, que talvez fosse mais útil se o abade de Saint-Pierre, em lugar de propor aos soberanos - monarcas, senados e povos - a renúncia ao direito de fazer guerra, tivesse proposto conservar esse direito estabelecendo um Tribunal que julgasse em nome de todas as nações (1945, p. 42).

Seriam da jurisdição desse Tribunal as diferenças que pudessem surgir entre as nações a respeito da remissão de criminosos, da execução das leis de comércio, da violação de territórios, da interpretação dos tratados, das sucessões etc. Os diferentes Estados se reservariam o direito de executar as sentenças desse Tribunal ou, eventualmente, de apelar à força. O filósofo sugere que os integrantes desse Tribunal poderiam se encarregar de redatar um código de direito público e que as nações confederadas poderiam se comprometer a observar esse código durante os períodos cada vez mais duradouros de paz. Também se faria necessário outro código destinado a exigir regras de utilidade geral a serem observadas no período de guerra, seja entre os beligerantes, seja entre eles e os neutros. Um Tribunal desse gênero sufocaria, argumenta Condorcet, os germens da guerra, consolidando durante a paz a união dos povos e destruindo esse ódio e essa animosidade de um povo contra outro, situação que os predispunha à guerra sob qualquer pretexto (1945, p. 43).

O filósofo aposta que a Revolução dos Estados Unidos poderia influenciar as guerras na Europa, por conta de seu exemplo, tornando-as mais raras. Contudo, ainda estaríamos longe de haver concedido à justiça e à humanidade toda a preeminência que mereceriam no caso da guerra, sem atentar contra o êxito militar. As tropas regulares haviam permitido, pelo menos, um grande progresso, a saber, o de converter os povos em estranhos à guerra que se realiza em seu nome. Assim entendida a guerra, não haveria nenhuma razão para que o

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22 inimigo não tratasse os habitantes das zonas conquistadas do mesmo modo que aos cidadãos de seu país (1945, p. 43).

Se no Velho Mundo alguns filósofos eloquentes, sobretudo Voltaire, levantaram a voz contra o absurdo e a injustiça da guerra, sua prédica, porém, apenas produziu em certos aspectos um apaziguamento do furor nacional, reconhece Condorcet. Desgraçadamente, existia uma multidão de homens que não esperavam a glória e a fortuna senão por matança e que insultavam o zelo dos filósofos repetindo nos livros, disseminando por toda a Europa que já não havia patriotismo nem virtude desde que uma abominável filosofia havia querido evitar o sangue humano (1945, p. 47-48).

Condorcet compara que as mesmas opiniões pacíficas dos filósofos franceses seriam, também, as de um bravo povo que, na América, soube defender seus interesses e romper a submissão a que se via constrangido. A ideia de uma guerra motivada por ambição ou pelo desejo de conquistas seria repudiada pelo juízo tranquilo dessa nação pacífica. Ali, a linguagem da humanidade e da justiça não seria objeto de escárnio dos cortesãos guerreiros ou dos chefes ambiciosos de alguma república. A honra de defender a pátria, nesse caso feliz, seria superior a todos os demais, sem que por isso o orgulho dos militares estivesse por cima dos interesses de cada um e da generalidade dos cidadãos (1945, p. 48).

Os Estados Unidos constituíram um país de vasta extensão, habitado por milhões de cidadãos cuja educação os preservou do preconceito, dispondo-os ao estudo e à reflexão, qualifica Condorcet. Daí a utilidade do exemplo da América para a destruição dos preconceitos ainda reinantes na Europa e para a discussão dos assuntos relativos à felicidade do homem (1945, p. 49).

Para o filósofo, os Estados Unidos já haviam estabelecido a liberdade de imprensa como um direito fundamental. Em outras palavras, essa liberdade, de dizer e ouvir as verdades que se creiam úteis, teria sido reconhecida pelos norte-americanos como um dos direitos mais sagrados da humanidade. A liberdade de imprensa, longe de favorecer a intriga, poderia dissolver as associações particulares, impedindo a consolidação dos projetos conduzidos por motivações de caráter particular ou menos afetas ao interesse público. Concorcet conclui que as declamações e libelos da imprensa não entranhariam perigo senão quando a severidade das leis os obrigasse a circular nas trevas. A liberdade de imprensa favoreceria, inclusive, a dissolução das facções prejudiciais à República (1945, p. 36-37).

É no horizonte dessa compreensão que uma opinião estendida pelo mais extenso país, mediante a imprensa, ofereceria a um governo, que se encontrasse em circunstâncias difíceis,

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23 uma arma mais poderosa que a lei. Condorcet preceitua, dessa maneira, que a imprensa não constituiria uma ameaça para um bom governo (1945, p. 37).

Ao criticar o modo como os ingleses tratavam a questão da liberdade de imprensa, o filósofo aponta que ainda subsistiam entre eles leis contra essa liberdade sob o pretexto de um falso patriotismo. Os direitos humanos seriam mais respeitados na Inglaterra em função da imprensa do que da Constituição. Os Estados Unidos, por sua vez, haviam provado que um país poderia ser feliz ainda que não houvesse nele perseguidores nem hipócritas. Os políticos que ainda não haviam se convencido disso, ao ouvi-lo pela boca dos sábios talvez pudessem vir a crer nessa verdade por conta da autoridade desse exemplo (1945, p. 38).

Os Estados Unidos, avalia Condorcet, não reproduziam a modelagem política habitual dos países nos quais se admitia que uma parte da espécie humana fosse lançada numa abjeção que a tornava estúpida e miserável. Seria possível esperar que com o passar das gerações os Estados Unidos, com tantos homens consagrados a enriquecer a massa dos conhecimentos, assim como já ocorria em toda a Europa, dobrasse seus progressos tanto nas artes como nas ciências especulativas (1945, p. 49-50).

A França, na opinião do filósofo, obteria mais utilidade que nenhum outro povo da Europa das ideias mais sadias dos norte-americanos a respeito dos direitos de propriedade e liberdade. A nação francesa necessitava muito mais dessas ideias do que a nação inglesa. Condorcet aposta que o povo francês já estaria ilustrado o suficiente para que aproveitasse essas ideias e para que viesse a gozar de uma Constituição na qual as reformas úteis não encontrassem senão obstáculos pequenos, em todo caso menores que os da Inglaterra (1945, p. 52).

Com a independência dos Estados Unidos, o povo francês ainda poderia encontrar, de acordo com o filósofo, as vantagens de adquirir os produtos que considerasse necessários, e que agora estivessem em falta, procurando um melhor preço e viabilizando que se tivesse a máxima segurança de não se sentir sua falta; de aumentar a venda de produtos nacionais manufaturados, aproveitando o interesse dos cultivadores em multiplicar a produção; e, além disso, de aumentar ao mesmo tempo a indústria e a atividade dos que realizam a elaboração (1945, p. 53).

Essas duas vantagens, a saber, a da importação mais conveniente ou mais segura de produtos e a da exportação mais ampla, quem sabe aparecessem confundidas, reconhece Condorcet, uma vez que uma praticamente não subsistia sem a outra. No entanto, seria possível distingui-las, isso porque a primeira teria por objeto o aumento do bem-estar e a

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24 segunda o aumento da riqueza. Para o filósofo, ademais, a produção não poderia aumentar num país pelo comércio de exportação sem que resultasse dela sobre-abundância de produtos e um menor perigo de escassez, de sorte que seria possível contar, entre as vantagens do comércio exterior, as que uma nação adquirisse de suas indústrias e de suas próprias habilidades em negociar (1945, p. 53).

O comércio internacional, atenta Condorcet, seria efetivado pelo câmbio e pela troca de mercadorias que se renovavam a cada ano. De outro modo, não poderia esse comércio ser durável. Nesse sentido, caso um povo que trocasse todos os anos seus produtos por outros dos quais necessita não renovasse seus produtos periodicamente, estaria ao fim de um tempo na impossibilidade de realizar essa troca da qual necessitava (1945, p. 54).

O filósofo imagina, no contexto do comércio internacional ao final do século XVIII, que seria mais vantajoso para um país exportar os produtos que exigissem maior trabalho, proporcionalmente ao produto bruto, e cuja produção fosse mais regular, menos exposta a acidentes ou a intempérie das estações. O comércio estrangeiro era considerado um meio de assegurar o crédito nos anos de abundância, fazendo menos precária a situação dos empresários da indústria. Condorcet, por essa via, deduz que, por exemplo, resultava mais vantajosa a exportação de vinhos que a de trigo, madeiras etc. (1945, p. 54-55).

Toda a extensão de um comércio livre significaria, para Condorcet, em princípio, um bem, uma vez que incentivaria a produção e, por outro lado, favoreceria um maior gozo por igual preço. O comércio livre favoreceria que cada país chegasse rapidamente a não fabricar senão aquilo que pudesse cultivar ou elaborar com a máxima vantagem. O filósofo avalia que seria incalculável o acréscimo de riqueza e de bem-estar que poderia resultar da instituição dessa ordem livre. Contudo, a espécie de furor com que as nações se dedicavam a cultivar e a fabricar, não por mero experimento, senão em um esforço por não comprar nada do estrangeiro, provaria, desgraçadamente, como se ignorava ainda naqueles dias a utilidade de um comércio intenso e livre (1945, p. 55-56).

Condorcet considera que, independentemente dessas vantagens, outros pontos poderiam ser favoráveis para a Europa no comércio internacional. Enfatiza que os norte-americanos ocupavam um imenso território, do qual uma parte ainda não estava disposta para o cultivo; que, por um tempo, eles não poderiam dedicar-se a outras atividades que não o cultivo; e que, num país livre, todo homem, qualquer que fosse sua ocupação, preferiria, necessariamente, o estado de proprietário a qualquer outro, em tanto que pudesse aspirar a isso sem sacrificar muito de sua comodidade. Desse modo, os Estados Unidos da América não

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25 aportariam para a Europa, durante muito tempo, mais que produtos em bruto; mas, por outro lado, solicitariam da Europa mercadorias manufaturadas. A América, por essa via, disporia de pouco numerário para investir no comércio, já que a maior parte de seus capitais acabaria sendo investida em suas partes menos desenvolvidas para preparar o solo a fim de deixá-lo em condições de cultivo. Para o filósofo, a mercadoria que os Estados Unidos mais demandaria da Europa, por muito tempo, seria o vinho, justamente um dos produtos mais vantajosos para se exportar (1945, p. 56).

A França era, no parecer de Condorcet, a nação europeia para a qual seria de maior importância o comércio com a América. Primeiro, porque estava obrigada a comprar no norte e, por dinheiro, azeite, ferro, cânhamo e madeiras, as quais passaria a obter na América trocando por suas manufaturas. Segundo, porque nos anos de escassez o trigo e o arroz da América seriam um recurso importante para suas províncias situadas sobre o oceano ou que comunicam com este por canais e rios navegáveis. Terceiro, porque a França poderia estabelecer com a América um vasto comércio de vinhos. Tendo exclusivamente esse comércio e podendo nas demais manufaturas competir com a Inglaterra, sucederia que com o incremento do comércio de vinhos a França passasse a Inglaterra no volume de comércio com os Estados Unidos. O filósofo destaca que não lhe parecia duvidoso, por outro lado, que a França fosse também a parceira preferida dos Estados Unidos, comparada aos outros países, isso ao menos enquanto as indústrias de Portugal e da Espanha não progredissem o suficiente para lhes fazer uma maior concorrência (1945, p. 56-57).

Condorcet reconhece que, por uma análise menos extensa, se poderia supor que a Inglaterra, em igualdade de condições, gozaria dessa superioridade. E reconhece que, de fato, inicialmente a Inglaterra poderia tomar proveito da grande influência que exerceria sobre os Estados Unidos devido à igualdade de muitas coisas, à uniformidade da linguagem, dos meios de vida e de religião, unidos ao costume ainda arraigado na América de servir-se das manufaturas inglesas. No entanto, o filósofo aposta que essas influências não exerceriam seu influxo senão num primeiro momento, já que a guerra poderia diminuir radicalmente o efeito desses motivos dando espaço a uma bem fundada indignação (1945, p. 57).

A França, argumenta Condorcet, teria tempo de empregar os meios que dela dependessem para equilibrar as vantagens iniciais dos ingleses. Encontrar-se-ia um modo de comerciar com os Estados Unidos produtos ao ponto do gosto dos norte-americanos, gosto que os produtores aprenderiam a conhecer e prever. A comunicação das duas línguas seria facilitada pelo estabelecimento de colégios em algumas cidades francesas. O filósofo imagina

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26 que os americanos poderiam enviar em grande número seus filhos se o ensino religioso fosse excluído do sistema educacional (1945, p. 57-58).

Aliás, a religião, para o filósofo, não deveria constituir por muito tempo um obstáculo. Enquanto que o dogma mais caro aos norte-americanos, aquele ao qual eles se sentiam mais apegados, era o da tolerância, ou melhor, da liberdade religiosa, a voz unânime dos homens ilustrados da França pertencentes ao clero, à nobreza, à magistratura ou ao comércio, ainda solicitava, com força e sem descanso, essa mesma revolução. Condorcet duvida que fossem inúteis as reivindicações francesas à tolerância. Para ele, era de se esperar que o governo cederia aos motivos fundados na justiça e na utilidade, e que a tolerância se estabeleceria na França segundo uma ordem mais regular, conforme a justiça. Nesse sentido, os franceses reparariam com ela as desgraças e talvez a vergonha de haverem demorado tanto em seguir o exemplo de outros povos (1945, p. 58).

As vantagens do comércio com a América aos poucos diminuiriam, antecipa Condorcet. Somente ficariam na Europa essas vantagens nascidas de um comércio ativo e intenso entre nações industriosas e ricas. Porém, essa mudança seria a obra dos séculos e, desse modo, os novos progressos do gênero humano não deixariam nada que deplorar entre as nações ilustradas de ambos os mundos. O filósofo imagina que, ao agregar-se uma nação mais ao pequeno número das que já desenvolviam o comércio com inteligência e atividade, não aumentaria entre elas essa concorrência cujo efeito consistiria em diminuir os gastos de transporte, resultando um bem para todos os países que não dispunham de outro interesse real senão o de procurar com abundância e ao mais baixo preço possível os produtos que requeria seu povo por necessidade ou hábito (1945, p. 58-59).

No que respeita às exportações dos Estados Unidos para a Europa, o filósofo aposta que não se limitariam às mercadorias da época. Imagina quantas inovações não ofereceria esse imenso país, agora ignoradas por seus habitantes, mas de cuja utilidade em breve o comércio notabilizaria. Ainda que semelhante conjetura não estivesse apoiada pelo conhecimento das produções que seguramente algum dia se transformariam em objeto de comércio, essa esperança não deveria ser considerada quimérica. Para Condorcet, o vasto continente americano não ofereceria à Europa somente produções inúteis ou comuns (1945, p. 59).

Alguns moralistas austeros observariam, especula Condorcet, que um proveito limitado a nos criar necessidades novas devesse ser considerado indesejável. Independentemente disso, considera que os homens se habituavam com necessidades fictícias

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27 e que, aos poucos, com a redução da grande desigualdade de fortunas, essas necessidades também poderiam ser experimentadas por aqueles a quem a pobreza ainda impedia de satisfazer (1945, p. 59).

A ampliação dos meios de satisfazer essas necessidades fictícias implicaria, argumenta Condorcet, tornar os efeitos da desigualdade de fortunas menos sensíveis e menos perigosos para a tranquilidade comum. Se alguma vez, por hipótese, a influência lenta, porém segura, de uma boa legislação, destruísse de vez as desigualdades na Europa, então desapareceriam as necessidades fictícias que as fizeram nascer, ou, melhor dito, não ficariam senão as indispensáveis para conservar a espécie humana (1945, p. 59-60).

Se a história da administração dos Estados Unidos fosse recorrida, desde a declaração da independência, não se encontrariam em todos os Estados membros Constituições igualmente bem redatadas, atenta o filósofo. As leis que haviam sido estabelecidas na Ata de independência não eram igualmente justas e sábias. Entretanto, nenhuma parte da legislação política ou penal oferecia erros grosseiros, princípios opressores ou arruinadores. Pelo contrário, nas questões de finanças e de comércio, quase tudo parecia demonstrar uma luta constante entre os velhos preconceitos da Europa e os princípios de justiça tão caros a essa respeitável nação, com o agravante de que os preconceitos às vezes obtinham a vitória (1945, p. 61).

Não obstante, reconhecidos esses defeitos, Condorcet aposta que o amor dos norte-americanos pela igualdade e que seu respeito pela liberdade e pela propriedade, acrescidos da forma de suas Constituições, impediriam de se estabelecer entre eles proibições absolutas, obtidas indiretamente pelo estabelecimento de direitos abusivos ou excessivos, seja por privilégios de comércio exclusivo seja por inspeções aduaneiras ultrajantes e contrárias aos direitos do cidadão. O espírito mercantilista unido ao afã de regulamentá-lo ainda causava vexações absurdas na Europa, aponta o filósofo. O exemplo dos Estados Unidos da América ensinaria aos europeus reconhecer sua inutilidade e injustiça (1945, p. 62).

A economia social mais razoável, para Condorcet, é aquela segundo a qual a prosperidade do comércio e a riqueza nacional deveriam ser equilibradas com a justiça. Desse modo, um grupo de homens reunidos não deveria ter para si o direito de fazer o que de cada homem em particular pudesse configurar uma injustiça. Nesse sentido, os interesses de poder e de riqueza de uma nação se fragilizariam ante o direito inegociável de um só homem:

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28 [...] autrement il n’y a plus de différence entre une société réglée et une horde de voleurs. Si dix mille, cent mille hommes ont le droit de tenir un homme dans l’esclavage, parce que leur intérêt le demande, pourquoi un homme fort comme Hercule n’auroit-il pas le droit d’assujettir un homme foible à sa volonté? Tels sont les principes de justice qui doivent guider dans l’examen des moyens qui peuvent être employés pour détruire l’esclavage (2009, p. 73).6

Seria de utilidade pública, advoga Condorcet, garantir mais liberdade em matéria de comércio. Essa liberdade seria igualmente útil aos proprietários, aos cultivadores, aos consumidores e aos assalariados. Se os princípios da liberdade de comércio supunham formalmente que não se podia ceder aos clamores desordenados ou aos preconceitos populares, o fato é que o filósofo defendia, no entanto, que, nos tempos de escassez, o governo ajudasse aos mais necessitados. O que se pretendia era a abolição de um grande número de formalidades que faziam do trabalhador um escravo. No texto “Réflexions sur le commerce des blés” (1776), Condorcet examina a equalização dos preços e os efeitos da liberdade de comércio e das proibições, seja de uma maneira geral, seja em suas relações com o direito de propriedade e com a legislação vigente à época.

Na cultura da livre concorrência, limitada às regras republicanas, o preço poderia ser fixado reciprocamente pelos proprietários e pelos trabalhadores, enquanto que na cultura escravocrata o marco regulatório do preço sempre estaria condicionado à ganância ou à barbárie dos proprietários, assente o filósofo. Junto a essas apostas políticas e econômicas, o filósofo reivindicou que a abolição da escravatura fosse acompanhada de um programa humanitário e político, financiada pelo Estado e o patronato, provendo garantias de cidadania aos negros libertos, inclusive o sustento dos órfãos, enfermos e mais idosos que, ao deixarem seus senhores, poderiam, se essas providências não fossem tomadas, padecer de fome e outras moléstias. Esse programa político-humanitário de libertação dos escravos incluía estratégias de segurança pública frente à previsível ira dos proprietários contrariados em seus interesses econômicos exploratórios.

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Tradução, sob minha responsabilidade: “[...] de outro modo não haveria diferença entre uma sociedade regrada e uma horda de ladrões. Se dez mil, cem mil homens tem o direito de ter um homem como escravo, porque seu interesse o demanda, por que um homem forte como Hércules não poderia ter o direito de sujeitar um homem fraco à sua vontade? Tais são os princípios de justiça que devem guiar o exame dos meios que podem ser

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A monografia examinou os termos segundo os quais, para Condorcet, sobretudo na sua obra “De l’influence de la révolution d’Amerique sur l’Europe”, a Revolução dos Estados Unidos da América poderia ser considerada um bom exemplo para a Europa e a humanidade. Para tal, destacamos cinco dos temas relevantes desse texto, quais sejam, os direitos naturais, os princípios racionais, a conservação da paz, a liberdade de imprensa e o comércio internacional. Essa obra ilustra os princípios, os direitos, as circunstâncias históricas e o grau de complexidade das sociedades daquela época. Essas relações, como se sabe, ainda desencadeiam um vigoroso debate no âmbito da filosofia política.

A perspectiva pela qual o filósofo analisou nesse texto o evento da Revolução Americana se afina com os princípios filosóficos e as apostas políticas sistematizadas em suas obras anteriores e posteriores. Sabe-se que, para Condorcet, uma nação, na qual reinasse a igualdade, sustentaria seu governo se o cresse bom, o mudaria se o considerasse mal e o corrigiria caso encontrasse defeitos. A maioria do povo, dessa maneira, não exerceria a violência, mas entenderia que uma classe de homens privada dos direitos que lhe cabem como cidadãos poderia vir a sentir indiferença ante o sistema político instituído quando não chegasse a ser inimiga dele. Com efeito, o texto, sem hesitar, anuncia que o único meio de ligar o povo à conservação da ordem seria fazer consistir na ordem seu bem-estar e seguridade (1945, p. 69).

O tom dessa obra é de acolhimento e de entusiasmo pelos eventos que ocorreram na América e de afinidade com suas concepções teóricas. Não é incomum que o filósofo, no âmbito de sua obra e no contexto da Ilustração, reivindique fundamentos normativos e iniciativas políticas favoráveis à felicidade pública, ou seja, ao gozo da igualdade, da liberdade e do bem-estar comum.

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30 que o mundo social é tensionado continuamente pela luta daqueles que, vivendo em condições que não consideram reciprocamente dignas, almejam conquistar outros meios e modos de vida mais ajustados aos seus desejos ou às suas necessidades; e, também, com o reconhecimento de que a liberdade de opinião e de iniciativa amplia a efetividade da luta daqueles que fazem da igualdade um propósito político e um critério de avaliação do mundo social.

Condorcet, nesse e em outros textos, usa o pressuposto da igualdade para justificar que a liberdade não seja confundida com a arbitrariedade, e para que a miséria de uma parte do povo não seja percebida como socialmente aceitável. Ele se deixa convencer que a humanidade deve se mover no horizonte de uma condição de bem-estar comum, afeita à pluralidade de interpretações e incompatível com a extrema desigualdade social.

Os direitos naturais, para o filósofo, são critérios e condições para os indivíduos e as sociedades, comportando o sentido de não negociáveis, de imprescritíveis para a humanidade, de parte do conceito de justiça, de direitos com relação aos quais nenhuma lei não poderia infringir sem injustiça.

No que respeita ao princípio republicano da revisibilidade das leis, Condorcet recomenda que as partes justificadamente consideradas defeituosas das leis sejam modificadas pacificamente para que, assim, efetivamente normatizem a sociedade. Recomenda, ainda, que as constituições não sejam pretendidas como eternas ao não prever os meios de mudar aquelas disposições que deixem de se harmonizar com o estado da sociedade, salvo se relacionadas com os direitos naturais alcançados culturalmente através do contínuo exercício da sensibilidade e da razão.

Condorcet não condiciona a humanidade e a cidadania a um povo ou gênero específicos. Antes pelo contrário, cobre os diferentes indivíduos dos direitos naturais constituintes da humanidade e da cidadania. O sequestro de indivíduos nas fronteiras do continente africano e a submissão deles, assim como de sua descendência, a um regime de trabalho escravo, excitavam, isso sim, uma grande antipatia em Condorcet, para quem a escravidão envergonhava profundamente o ideário social iluminista, constituindo um ultraje frente aos direitos declarados naturais e aos princípios racionais que os informavam.

A esperança do filósofo na renúncia das nações ao direito de se declarar guerra é acompanhada de uma proposta para a instituição de um Tribunal que julgasse em nome de todas as nações. Seriam de jurisdição desse Tribunal as diferenças que pudessem surgir entre as nações a respeito da remissão de criminosos, da execução das leis de comércio, da violação de territórios, da interpretação dos tratados, das sucessões etc. Os diferentes Estados se

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