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“É fantástico o que se pode suportar”: a experiência do horror em "Peregrinação", de Giuseppe Ungaretti

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Academic year: 2021

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“É fantástico o que se pode suportar”: a experiência do horror

em "Peregrinação", de Giuseppe Ungaretti, por Lucia

Wataghin

Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363​GIUSEPPE UNGARETTI​LUCIA WATAGHIN​MILLENIUM POETRYem​junho

17, 2020

Pellegrinaggio

​ ​

Peregrinação Giuseppe Ungaretti

Valloncello dell´Albero Isolato, ​Valloncello dell´Albero Isolato,

il 16 agosto 1916 16 de agosto de 1916

In agguato À espreita in queste budella nestas entranhas di macerie de escombros ore e ore horas e horas ho strascicato arrastei la mia carcassa minha carcaça usata dal fango gasta pela lama come una suola como uma sola o come un seme ou uma semente di spinalba de escalheiro Ungaretti Ungaretti uomo di pena homem de pena ti basta un'illusione te basta uma ilusão per farti coraggio para te dar coragem Un riflettore Um refletor

di là lá fora mette un mare põe um mar nella nebbia na neblina

[Trad. Lucia Wataghin]

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Peregrinação ​é um termo da família que compreende viagem, caminhada, deslocamento e busca: é tema central da ​Bíblia à ​Odisseia​, da ​Comédia dantesca aos Cavaleiros da Távola Redonda a Rousseau, Walser, Bernhard e, finalmente, Palazzeschi, come lembrou recentemente Andrea Santurbano nesse blog, em seu comentário a O passeio, ​uma caminhada aguda e irônica do poeta pela Itália de 1910 (o poema data de cinco anos antes da entrada do país na guerra).

Pellegrinaggio ​(Peregrinação) também é uma caminhada, mas é palavra que, em Ungaretti, remete ao nomadismo, à sua própria vida marcada por grandes e decisivos deslocamentos e diferentes pátrias, à busca da ​Terra Prometida​, mito ungarettiano; nesse poema, sua associação com o tema da guerra lhe confere as mais graves conotações.

O horror da vida na trincheira talvez não seja dizível, como escreveu uma vez [2]Apollinaire, combatente, como Ungaretti, na primeira guerra mundial, uma das mais sangrentas da história humana. O número de vítimas desse conflito se conta em dezenas de milhões; foi calculado [3]​, considerando apenas os mortos do exército italiano, que mais de 650mil soldados perderam a vida, ou seja, 39,1 por cento do efetivo mobilizado. Quatro homens em cada dez (lembro aqui o intraduzível, também ungarettiano: ​Soldati // Si sta come / d´autunno / sugli alberi / le foglie​)​[4]​.

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Peregrinação ​oferece fragmentos de representação da experiência do horror, a caminhada de um corpo dobrado, à espreita, que se arrasta na lama das " ​budella​" ​(vísceras, entranhas) na região alpina do Carso. ​Budella ​é termo usado, especialmente na Ligúria, para indicar as ruelas, estreitas e labirínticas, dos centros de pequenas e grandes cidades – e associado aos intestinos, com suas conotações, e ao ventre, à área secreta da origem, o centro; foi usado também para denominar os quilomêtros de trincheiras escavados com enorme dificuldade e sofrimento nas rochas calcárias do Carso, as sendas, corredores, galerias, cavernas assim formadas. Nos poemas ungarettianos da primeira guerra (os da segunda têm articulação muito diferente), tudo remete à frantumação: o massacre, os escombros, a própria natureza do Carso, o corpo exausto ou massacrado dos soldados, o verso esgarçado, até o substrato físico da escrita, traçada, como se sabe, ainda durante a peregrinação nas trincheiras, em papeis esparsos, cartões postais, envelopes, recortes de jornais, e ligada a impressões e fragmentos já fixados em cartas do front do poeta a amigos (até o nome próprio Ungaretti inscrito no corpo do poema já foi comparado, sugestivamente, àqueles sinais que permitem identificar os fragmentos de um lírico grego)[5]​. A presença da guerra, e em especial as rochas frantumadas do Carso, a própria natureza daquela particular zona de guerra onde se encontrou Ungaretti, parecem estruturar a linguagem da ​Alegria​. Retomando uma bela imagem de Jaccottet, essa poesia parece “o produto de uma calcinação ou de uma erosão” [6]​, ou, como conclui Magrelli, “uma concreção calcária, um corpo estalactítico trágico e áspero”[7]​.

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O caráter diarístico de ​Il Porto Sepolto ​(O Porto Sepulto), a coletânea que hospeda

Pellegrinaggio​, é imediatamente evidente: cada poema desse livro (o livro inteiro será depois recolocado como seção da ​Alegria​, em várias outras edições) é seguido por lugar e data de composição (nas edições seguintes​, ​teremos uma sinalização da importância dessas indicações, que passam a preceder os poemas). É possível assim acompanhar o caminho do soldado de infantaria Ungaretti, de trincheira em trincheira, de uma localidade para outra; na memória do leitor se fixam os nomes dos quatro cumes ( ​Cima 4​, ​Valloncello dell´Albero Isolato​, Cotici, Quota 141​) do monte San Michele, onde o regimento de Ungaretti permaneceu no mês de agosto de 1916. Não é esse o sentido do livro, que compreende a guerra entre outras experiências, e significativamente começa e termina com dedicatórias e despedidas (a Moammed Sceab, a Ettore

Serra, ou aos leitores) que marcam uma mais ampla trajetória do poeta. Mas podemos ver que ​Pellegrinaggio traz a mesma indicação de data (16 de agosto de 1916) de outro célebre poema, ​I fiumi, ​que reconta, em torno de quatro rios (o Isonzo, o Serchio, o Nilo, o Sena), toda a peregrinação do poeta.

Pellegrinaggio contém alusões mais secretas às

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França, com o francesismo “ ​usata dal fango​” (gasta pela lama) e uma referência a Baudelaire na última estrofe (“​un mare nella nebbia​”, “​une mer de brouillards​”)​ [8]​; uma “​spinalba​” (pilriteiro, também chamado​escalheiro, estrepeiro, espinha-branca),​lembrança do Egito​; ​da presença dessa

última nos jardins de Alexandria Ungaretti dá notícia na única nota que escreve para esse poema[9]​. ​E é secreto também o processo de maturação da semente, o segundo centro da poesia (exemplos da fascinação de Ungaretti pelo caráter oculto do amadurecimento dos grãos debaixo da terra se encontram nos poemas franceses de La Guerre, de 1919, ​Fin de mars e Hiver​). A passagem do estado de exaustão à alegria do poeta Ungaretti é fulmínea, nos trê versos que comparam seu corpo com a sola de um calçado imerso na lama do poeta/ soldado de infantaria, ou com uma semente de spinalba, do poeta nascido e crescido no Egito. Imediatamente depois, produto da comparação, aparece o sobrenome Ungaretti, em evidência, formando o primeiro verso da segunda estrofe.

O sentido da ​alegria, ​é preciso dizê-lo, é a reação diante da guerra, do medo da morte; a “fonte” da alegria, explicou Ungaretti nas notas ao livro, é “o sentimento da morte a ser esconjurada”[10]​. Os últimos versos de ​Pellegrinaggio​, reelaboração de um breve poema independente (​Rischiaro​), retornam ao momento da guerra; a luz fixa de um refletor vinda do outro lado ("​di là"​), que traz à trincheira a ilusão capaz de devolver a coragem ao homem diante da morte. Não é aqui que a peregrinação deve terminar.

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Esta postagem faz parte do projeto Valerio Magrelli - Millennium Poetry: Viagem sentimental na poesia italiana, iniciativa promovida pelo Istituto Italiano di Cultura di São Paulo durante esta Pandemia de Covid-19.

IICSP não para​:

“Cruzaremos oito séculos de poesia italiana seguindo um percurso autoral. Exclusivamente para o público do IICSP, graças à colaboração da Editora Emons, o poeta Valerio Magrelli apresenta e ilustra em áudio trechos da própria particularíssima antologia de poesia italiana. A

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proposta é enriquecida pelas traduções e comentários (literatura-italiana.blogspot.com) em português dos professores Patricia Peterle e Andrea Santurbano da UFSC e Lucia Wataghin da USP.”

Os trechos serão publicados pelo canalYouTube do IIC nas datas abaixo. Para acessar, é preciso estar inscrito na NewsLetter do IICSP.

[1]

Guillaume Apollinaire, carta da zona de guerra a Madeleine, 30/11/1915, apud Murilo Marcondes de Moura,

“Poesia de vanguarda e guerra moderna: o caso Guillaume Apollinaire”, in Elcio Cornelsen & Tom Burns (org.),

Literatura e Guerra. ​Belo Horizonte: Editora UFMG, 1010, p. 83.

[2]

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[3]

Giorgio Mortara.​La Salute Pubblica in Italia durante e dopo la Guerra.​ Bari: G. Laterza & figli, 1925. [4]

Intraduzível, mas: Soldados // Se está como / no outuno/ nas árvores / as folhas.

[5]​ Niva Lorenzini & Stefano Colangelo, ​Giuseppe Ungaretti, ​Milão: Mondadori Education S.p.A. 2012, p. 94.

[6] Philippe Jaccottet, apud

Valerio Magrelli. ​Millennium Poetry. Viaggio sentimentale nella poesia italiana.

Bologna: Il Mulino, 2015, p. 171.

[7]​ Idem, Ibidem,

[8]

Carlo Ossola, in Giuseppe Ungaretti. ​Il Porto ​Sepolto. Milão: Il Saggiatore, 1981, p. 183.

[9]​ Giuseppe Ungaretti. ​Vita d´un uomo. Tutte le poesie. ​Milão: Mondadori, 1969, p. 524.

[10]

Referências

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