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O ateliê narrativo de Lygia Bojunga : tecer e desfazer a escrita como exercício poético

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

JOÃO MARCOS DA SILVA

O ATELIÊ NARRATIVO DE LYGIA BOJUNGA: TECER E DESFAZER A ESCRITA COMO EXERCÍCIO POÉTICO

DESTERRO - SC 2020

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João Marcos da Silva

O ATELIÊ NARRATIVO DE LYGIA BOJUNGA

TECER E DESFAZER A ESCRITA COMO EXERCÍCIO POÉTICO

Dissertação submetida ao Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de mestre em Literatura. Orientadora: Profa. Dra. Maria Aparecida Barbosa

Desterro - SC 2020

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João Marcos da Silva

O ateliê narrativo de Lygia Bojunga: tecer e desfazer a escrita como exercício poético O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora

composta pelos seguintes membros:

Profa. Dra. Ana Luiza Britto Cezar de Andrade Universidade Federal de Santa Catarina

Profa. Dra. Patricia Peterle Figueiredo Santurbano Universidade Federal de Santa Catarina

Profa. Dra. Dirce Waltrick do Amarante Universidade Federal de Santa Catarina

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de mestre em Literatura.

____________________________ Prof. Dr. Marcio Markendorf

Coordenador do Programa

____________________________ Profa. Dra. Maria Aparecida Barbosa

Orientadora

Florianópolis, 2020.

Documento assinado digitalmente Maria Aparecida Barbosa Data: 09/06/2020 11:14:55-0300 CPF: 350.991.356-68 Documento assinado digitalmente Marcio Markendorf

Data: 09/06/2020 17:35:03-0300 CPF: 915.734.831-68

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AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, pelo apoio financeiro que possibilitou esta pesquisa;

À professora Doutora Maria Aparecida Barbosa, pela orientação sensível e presente;

Aos companheiros do LiLiA – núcleo de estudos de Literatura em Língua Alemã – em especial, Rafael Sens, Thais Tolentino e Cláudia Peterlini, pelas contribuições e partilhas;

À minha família, pelo suporte sem o qual não sou capaz;

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Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos. Sim, faço ideias sobre o mundo, e a planta nenhumas. Mas é que as pedras não são poetas, são pedras; E as plantas são plantas só, e não pensadores. Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto, Como que sou inferior.

Mas não digo isso: digo da pedra, “é uma pedra”, Digo da planta, “é uma planta”,

Digo de mim “sou eu”.

E não digo mais nada. Que mais há a dizer? (Fernando Pessoa, 2007, p. 100)

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RESUMO

Este estudo investiga o processo de escrita na obra da escritora brasileira Lygia Bojunga, buscando refletir sobre a influência do trabalho artesanal na sua produção. Há recorrência de imagens memoriais, histórias fragmentadas e uma escrita metaliterária e autorreferencial. Inserida num contexto pós anos 1970, a ficção de Lygia encerra gesto político. Assim, a escritora desenvolve um trabalho de reminiscência que performa na esfera do esquecimento, considerações desenvolvidas a partir do pensamento de Walter Benjamin (2012a). Desse trabalho, não resta a memória, mas o “tecido de sua rememoração”, constituído por intermitências e vazios. As imagens são entendidas como semelhanças anacrônicas possíveis para acessar a memória, não como ganho, mas como perda, de acordo com a reflexão de Georges Didi-Huberman (2010); o texto, por sua vez, é um rastro que desfigura a memória, as imagens e o sujeito, mas que possibilita a transmissibilidade, conforme o entende Jeanne Marie Gagnebin (2006). As reflexões, influenciadas por perspectiva benjaminiana, apontam para uma obra aberta (GAGNEBIN, 2012), ou seja, em continuação, que figura por meio do gesto. A literatura estudada atribui valor ao processo e ao movimento, criando metáforas que aproximam o fazer artístico e o olhar político.

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ABSTRACT

This study investigates the process of writing in Brazilian writer Lygia Bojunga’s work, seeking to reflect on the influence of handmade work on her production. There are recurrences of memorial images, fragmented stories and meta-literary and self-referential writing. Inserted in a post-1970s context, Lygia's fiction includes a political and aesthetic gesture. Thus, Bojunga develops a work of reminiscence, which performs the scope of oblivion, considerations developed from the thought of Walter Benjamin (2012a). Of that work, it does not restore memory, but the fabric of its remembrance, constituted by intermittences and voids. The images are understood as possible anachronistic similarities to access memory, not as gain, but as loss, according to Georges Didi-Huberman (2010) understanding; text, in turn, is a trace, a track which disfigure memory, such as images and subject, but which allows transmissibility, as indicated by Jeanne Marie Gagnebin (2006). Influenced by Benjamin’s perspective, the results point to an open work (GAGNEBIN, 2012), that is, in continuation, which figures through gesture. The studied literature attributes value to the process and to the movement, creating metaphors that bring together artistic making and political view.

Keywords: Lygia Bojunga. Memory. Image. Gesture. Handmade.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Capa de Livro – um encontro...25

Figura 2 – Capa de Fazendo Ana Paz...26

Figura 3 – Kaiserpanorama...30

Figura 4 – Espiando o passado pelo Panorama...31

Figura 5 – Ruas berlinenses no século XIX...35

Figura 6 – Saturno devorando um filho (1819-1823), de Goya...41

Figura 7 – Foto da família Bojunga...44

Figura 8 – Cena do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain...46

Figura 9 – Ilustração da Pedra Santa, por Robert Streatfield...54

Figura 10 – Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro...55

Figura 11 - Squelette arrêtant masques (1891), Ensor...61

Figura 12 – Guernica (1937), Pablo Picasso...79

Figura 13 – Minotaur (1933), Man Ray...79

Figura 14 – A man walking (1887), Eadweard Muybridge...86

Figura 15 – La Masía (1921), Miró...96

Figura 16 – El pájaro hermoso descifra la desconocida pareja de amantes (1940), Miró...97

Figura 17 – Folha de rosto de Feito à Mão...107

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 11

1 TECITURA E URDIDURA DE PENÉLOPE ... 20

1.1 REME-MORADA ... 24 1.2 ANA-CRONIA ... 36 1.3 ÁLBUM FOTOGRÁFICO ... 42 2 COSTURA DE SAHRAZAD ... 49 2.1 FANTASMA ... 66 2.2 RASTRO ... 77 3 ATELIÊ DE LYGIA ... 84 3.1 NÓ ... 88 3.2 LINHA ... 94 3.3 CORTE ... 100 3.4 ARTESANAL ... 105 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 114 REFERÊNCIAS ... 116

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INTRODUÇÃO

Em Livro – um encontro (1988), a escritora brasileira Lygia Bojunga pondera sobre a atividade de escrita à qual sua vida sempre esteve ligada. Rememora a infância, quando, por meio da caligrafia, desenhava as letras no caderno, em um trabalho perseverante que buscava o primor: “E ficar desenhando e apagando letra, escrevendo e reescrevendo palavras, era bom. Feito ir lá pro quintal mexer na terra.” (BOJUNGA, 2007b, p. 58). O cuidado com que marcava cada letra no papel despertou a afeição pela escrita – não distante, a lembrança da sensação das ferramentas de trabalho na sua pele. O texto associa o aroma da tinta da caneta – a qual lhe era negada, pois criança devia usar lápis! – à vontade de escrever, posto que o anseio de usar o objeto era proporcional ao anseio de desenvolver o ofício. O impulso pela escrita marcou também a adolescência, quando compunha diários: comprava-os aos montes para preencher correndo, uma pressa que se libertava dos escritos caligráficos perfeitos de antes. Agora não mais importava a forma exata das letras: “eu tinha que escrever” (BOJUNGA, 2007b, p. 61). O livro conta que ela preenchia cadernos, escrevendo por horas, em alguns dias, e apenas uma página, em outros – mas tinha que escrever –, com letra que se tornava garrancho atropelado na pressa de descobrir as palavras no papel. A atividade perdurou até a fase adulta: aí, rasgou os diários. “Sempre achei uma pena. Sempre sabendo que, se fosse hoje, eu rasgava tudo de novo outra vez” (BOJUNGA, 2007b, p. 62). O caminho da escrita a levou ao encontro da literatura, onde pôde trabalhar a técnica e a precariedade da mão que escreve. Ela caracteriza a si mesma como “artesã da escrita” (BOJUNGA, 2007b, p. 59), em decorrência do trabalho manual e do prolongamento do processo.

Este estudo investiga o processo de escrita na obra de Lygia Bojunga, buscando refletir sobre a influência do artesanal na sua produção. A escritura-tecitura provoca marcas de descontinuidade em suas ficções, como aberturas (GAGNEBIN, 2012). Os textos evocam vozes de naturezas distintas, caracterizando-se como polifônicos: há pulsões do ficcional, atribuídas à variedade de personagens, que canalizam e representam problemáticas sociais e psicológicas, e da memória, por meio de uma narradora que tece uma rememoração. Muitos dos textos consistem em narrativas explicitamente memoriais. Eles possibilitam que o leitor se aproxime da autora – ou, à princípio, acredite nisso –, por meio de imagens. Os escritos se referenciam, recuperando essas imagens, que soam familiares, como se houvesse semelhanças entre os

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escritos. Contudo, paira a incerteza quanto à classificação do gênero: é possível afirmar que seja autobiográfico?1

Alguns dados podem, de fato, ser confirmados, apesar dos hábitos discretos da escritora. Suas aparições em meios de comunicação ou entrevistas são raras. Prefere se comunicar com os leitores através dos livros. A mais segura referência quanto à vida da artista talvez seja o site de sua editora e instituto social, Casa Lygia Bojunga – CLB. A escritora nasceu em Pelotas, no Rio Grande do Sul, e aos oito anos se mudou com a família para o Rio de Janeiro. Na adolescência, encontrou aquela que seria uma de suas grandes paixões artísticas: o teatro. Estreou no Teatro-laboratório Duse2, em 1952, e logo foi contratada para a companhia Os Artistas Unidos, pela qual contracenou com atrizes como Fernanda Montenegro e Henriette Morineau. O ofício de atriz seria retomado em anos futuros, por meio das apresentações do monólogo autoral Livro, no Brasil, na Colômbia e em Portugal, e do projeto As Mambembadas, com o qual viajou pelo Brasil apresentando contações de histórias, inspirada pelos artistas mambembes. Nesse momento, queria que suas atividades fossem o mais “artesanais” possível: “nada me pareceu tão ‘feito à mão’ quanto mambembar pelo Brasil, levando de bagagem menos de cinco metros de crochê.” (BOJUNGA, 2008b, p. 118).

A necessidade financeira fez com que começasse a escrever para rádio e televisão, trocando o ofício artesanal pelo ofício do escritório, como relata no site e na obra Livro – um

encontro. Somente na década de 1970 iniciou a carreira literária, ao lançar Os Colegas (1972).

1 O percurso da pesquisa remonta aos anos finais da minha graduação, período em que tive a oportunidade de atuar

como bolsista no Programa Institucional de Incentivo à Leitura – PROLER Joinville, onde auxiliei no desenvolvimento de projetos de leitura, contação de histórias e eventos relacionados, e experimentei um contato afetivo com a literatura infantil. Ao lado do PROLER, estava o Programa de Literatura Infantil e Juvenil – PROLIJ, que mantinha relações conosco; era um trabalho colaborativo. No estágio de docência, desenvolvi um projeto que intencionava um exercício de rememoração por meio de objetos: cada um dos indivíduos compartilhava a história de um objeto pessoal pelo qual tinha apreço e desenvolvia uma narrativa no gênero apólogo, em que tal objeto fosse uma personagem. Em 2016, participei como voluntário do projeto Nastácias&Gepetos, do PROLIJ, que consistia na confecção de bonecos de pano para o incentivo à leitura em escolas e projetos sociais. O projeto teve como partida a leitura do livro A Bolsa Amarela, de Lygia Bojunga – escritora que eu já estudara na graduação e que me sensibilizava por meio de seus textos. O exercício de cortar panos, segurar a agulha e a linha nas mãos para juntar os retalhos e criar figuras, aquelas personas imperfeitas, irregulares, com o trabalho artesanal que impunha em cada pedaço um significado, me fazia pensar no próprio tecido de que somos constituídos – o tecido orgânico com suas marcas e junções que a memória e a experiência vão nos costurando. Era com esforço e orgulho que o grupo via nascer a bolsa amarela d’A Bolsa Amarela. Com o trabalho, vinha também a leitura contínua do livro de Bojunga, que embasava o projeto. A cada empreitada que fazia pelos seus textos, identificava elementos constantes que percorriam a obra literária: personagens, crianças ou bichos, que criavam, contavam histórias, faziam arte, ao mesmo tempo que estavam às margens, elas próprias restos excedentes de uma sociedade estruturada, enfrentando a dor e a solidão.

2 Embora o site da CLB não informe a peça em que ela estreou, segundo a Enciclopédia Itaú Cultural, pressuponho

que tenha sido sob o título João Sem Terra, com direção de José Maria Monteiro, uma vez que essa é a primeira peça do Teatro Duse que apresenta o nome da atriz na ficha técnica (Lygia Nunes – seu nome é Lygia Bojunga Nunes, inclusive suas primeiras obras eram assinadas assim; somente mais tarde passou a escrever como Lygia Bojunga, o que explica a variação referencial neste trabalho). Foto da peça in "Brasil, memória das artes”, disponível em: <http://portais.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/imagens/page/39/> Acesso em: 20 jan. 2020.

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Nos anos que seguiram, passou a dividir residência entre Londres e Rio de Janeiro. Em 2002, fundou a editora Casa Lygia Bojunga, no bairro carioca de Santa Teresa, com o intuito de acompanhar o processo de desenvolvimento da sua obra. O primeiro livro lançado pela editora foi Os Retratos de Carolina (2002). Conforme os contratos com outras editoras terminavam, recolheu seus livros precedentes para relançá-los na CLB. Atualmente, todos se encontram sob domínio da editora.3

Lygia Bojunga escreveu obras infantis e juvenis que ocupam um importante lugar na literatura brasileira e mundial. Além de premiações nacionais, como Prêmio INL – Instituto Nacional do Livro, Prêmio Jabuti e Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil - FNLIJ, foi a primeira escritora da América Latina a ganhar o prêmio Hans Christian Andersen, um dos mais importantes para a literatura infantil; além disso, o conjunto de sua obra foi premiado com o ALMA – Astrid Lindgren Memorial Award, prêmio sueco dado à produção para jovens, que possibilitou a criação da Fundação Casa Lygia Bojunga.

As narrativas de Lygia propõem diálogo entre realidade e fantasia, criança e adulto, poder e marginalidade, o que é possível considerar como as primeiras costuras textuais do exercício poético. Lajolo & Zilberman (2007) apontam para o olhar crítico social que sempre caracterizou sua obra, a qual discute relações com o mundo e temas densos, ao mesmo tempo em que se dirige ao público infantil e juvenil, com narrativa distinta e personagens pitorescos: “Mais do que a representação de situações sociais tensas, Lygia Bojunga Nunes traz para suas histórias a interiorização das tensões pela personagem infantil, muitas vezes representada por animais.” (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 156). Sua obra é marcada pela discussão das estruturas sociais e pela forte crítica a assuntos políticos nacionais. A veia social é ressaltada pela escritora em rara entrevista ao programa Entrelinhas, da TV Cultura (2012), onde afirma que sua literatura se metamorfoseia nessas personagens diversas, crianças ou bichos, que representam com mais afinco seus anseios, seus sonhos e a preocupação social com o Brasil. (TV CULTURA, 2012).

Evidentemente, é impossível desassociar a produção de Lygia do momento político em que ela se insere. Durante o governo de João Goulart (1961-1964), influenciados pelo pensamento nacionalista e anti-imperialista, os intelectuais e artistas estavam mobilizados para criar uma “sustentação cultural ideológica necessária para a generalizada mobilização

3 Além de editora, a CLB é uma Fundação Cultural que desenvolve projetos sociais relacionados ao livro. São

sete, no momento: “Paiol de Histórias”, “Mini-bibliotecas básicas/ Apoio a quem apoia o livro”, “Bolsa de estudos”, “A árvore e seus companheiros”, “Um encontro com a Boa Liga”, “Um novo nicho pra Santa” e “Encontros Literários”.

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esquerdizante.” (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 129). Como reação, os setores burgueses mais conservadores se aliaram ao imperialismo internacional: o setor agrário e o capital estrangeiro viram seus interesses atingidos pelas reinvindicações das reformas de base. Juntamente com o exército e apoiados pela classe média, realizaram o golpe militar de Estado no Brasil em 1964. Movimentos semelhantes, aliás, assolavam outros países da América do Sul: 1954, no Paraguai; 1964, na Bolívia; 1966, na Argentina; 1973 no Chile e no Uruguai.

Até os anos 1950, a literatura infantil se dedicava ao “elogio do Brasil rural”. Nas décadas seguintes, ela passa a se reinventar, investindo “na emergência do Brasil urbano.” (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 137). A partir dos anos 1970, se ocupa da “tematização da pobreza, da miséria, da injustiça, da marginalização, do autoritarismo e do preconceito.” São lançadas obras, como Justino, o retirante (1970), de Odette de Barros Mott, O reizinho mandão (1973), de Ruth Rocha, Chapeuzinho Amarelo (1970), de Chico Buarque, Raul da Ferrugem

Azul (1979), de Ana Maria Machado, entre outras, constituídas por uma “crítica mais radical da

sociedade brasileira contemporânea, tematizada principalmente através da miséria e do sofrimento infantil.” (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 126).

É nesse contexto, os anos de chumbo da ditadura, que os textos alegóricos de Lygia são publicados enquanto crítica sutil, mas incisiva, à violência contra o povo brasileiro e, não menos destruidora, contra o artista silenciado pelo aparelho de censura. Seu primeiro livro, Os Colegas (1972), ilustra o ar de insegurança que ocupava as ruas. Um grupo de amigos, formado por animais abandonados, fugitivos, poetas e vadios, encontra conforto uns nos outros, enquanto é perseguido por figuras de autoridade (representadas pela carrocinha ou por donos ricos). A

Bolsa Amarela (1976), por sua vez, narra o medo do artista através da história de Raquel, que

precisa esconder a vontade de ser escritora numa bolsa. A esperança e a fantasia se contrapõem à miséria do abandono infantil e à repressão escolar, no simbólico A casa da madrinha (1978). Findo o governo militar, em 1985, o tema ainda figurou nas páginas de seus livros subsequentes. O suicídio do artista militante e obcecado dá o tom de O meu amigo pintor (1987). A perseguição contra os sindicatos aparece como episódios esquecidos, em Fazendo Ana Paz (1991).

Não obstante, a bibliografia da escritora passa por uma transformação com o lançamento de Livro – um encontro (1988), considerado seu primeiro monólogo. Apesar de performado por Lygia em palcos do Brasil e do exterior, a artista não o classifica, chamando-o simplesmente de “encontro”: um encontro pessoal de uma escritora com os livros. Por meio da costura de fragmentos memoriais, o texto mostra a trilha literária da escritora, que perpassa o seu eu leitora e seu eu escritora, resultando na criadora e artista: “Livro - um encontro é uma criação viva,

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que transmite de um modo altamente inventivo os sentimentos e as emoções íntimas de uma escritora no seu relacionamento com os livros.” (CASA LYGIA BOJUNGA, web). Essa forma de escrever, não apenas problematizando temas sociais por meio da ficção infantil, mas também refletindo o processo da própria criação, o fazer artístico, de modo mais incisivo, subjetivo e explícito, é o que definiria suas publicações seguintes, Fazendo Ana Paz (1991) e Paisagem (1992), que juntos com Livro – um encontro ficariam conhecidas como a Trilogia do Livro. O tom autobiográfico é recorrente em publicações posteriores, como Feito à Mão (1996), O Rio

e eu (1999), Os Retratos de Carolina (2002) e Intramuros (2016).

Ainda que o tema político apareça em Fazendo Ana Paz, o que se sobressai neste livro é a história metaliterária do seu desenvolvimento. Ele é constituído por fragmentos que contam a história da personagem Ana Paz, quando na velhice se lembra de ter feito uma promessa ao pai, e deve voltar à casa da infância para recuperar a memória e entender as circunstâncias do assassinato dele. Contudo, a narrativa se apresenta como páginas rasgadas da história; estes

restos são costurados a outra narrativa: a da escritora que conta os procedimentos e

impedimentos da criação dessa obra. A narrativa primeira, a de Ana Paz, é esmaecida e revela-se o trabalho exaustivo da escritura ao tempo que a faz derevela-senvolver-revela-se. Desrevela-se modo, a história de Ana Paz entrecruza com a história da escritora e seus esforços para fazer o livro.

A obra deixa as marcas do exercício de criação expostas. Como se estivesse em um ateliê, faz o movimento que mostra por vez um pedaço da história que escreve, por outra o trabalho desse fazer. No ateliê, o tecelão vira delicadamente a peça para verificar o acabamento da costura. Se não está do seu agrado, desfaz para que possa refazer. Do mesmo modo, em

Fazendo Ana Paz, as marcas do ofício de escrita estão na trama, explicitamente compondo a

narrativa – o texto parece virado do avesso.

O fazer é especialmente forte no livro Feito à Mão. Trata-se de um livro-objeto desenvolvido artesanalmente, desde as páginas até a datilografia4, e lançado em edição limitada.5 O “feito à mão” do título não se refere apenas ao objeto livro, que, mais do que qualquer outro trabalho de Lygia, foi feito à mão; o texto, em tom memorial, recupera a influência que diversos artesãos – artistas que “fazem à mão” – tiveram sobre a vida e a

4 De fato, a ideia original envolvia trabalho de escrita caligráfica, ideia abandonada devido ao tempo estipulado

para a tarefa e à complexidade da atividade. Foi então substituído pela máquina de escrever que imprimiu as letras página por página. Mas novamente as exigências temporais e editoriais fizeram entrar em cena a impressora que reproduziu as demais cópias do texto. Eis o conflito do trabalho artesanal na contemporaneidade.

5 O livro foi relançado pela CLB no projeto gráfico dos demais livros, mas reproduzindo alguns aspectos do projeto

artesanal inicial, como os títulos feitos à mão e a textura do papel – que fique claro, como reprodução visual, não tátil. Além disso, a nova edição apresenta o retrato de Lygia Bojunga feito em bordado pelo artista gráfico Carlos Scliar – que está incluído no terceiro capítulo desta dissertação.

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produção criativa da escritora. A imagem da mão é recorrente em vários momentos da rememoração, vista nos artesãos de rua do México ou no ofício da mãe costureira, desse modo, alinhavando o texto.

Com efeito, esta imagem também figura noutros escritos: em O Rio e eu, a mão da passadeira de roupas aparece como símbolo prenunciador da relação afetiva da narradora com a cidade do Rio de Janeiro; Seis vezes Lucas, por sua vez, narra o menino transformando o medo em arte por meio das mãos que pressionam a massa de modelar. Desse modo, a imagem da mão se torna uma abertura no presente que evoca o futuro e busca o passado: por meio da abertura, ela olha para o indivíduo que a vê. (DIDI-HUBERMAN, 2010).

A recorrência de imagens, o trabalho de rememoração, a polifonia compõem uma obra que se espessa em camadas narrativas. A composição poética dessa literatura instiga pensar os diferentes impulsos que interferem na criação literária como marcas da/na escrita que tecem e desfazem o texto, o que converge para uma notação: as desfigurações decorrentes do processo de criação do texto não são ocultadas, do contrário, passam a constituir a narrativa, ou seja, o texto evidencia o próprio fazer, mais do que o conteúdo da narrativa.

Assim sendo, esta pesquisa tem como objetivo investigar a escrita como processo na obra de Lygia Bojunga, a partir do trabalho de rememoração enunciado pela voz narradora. Para tanto, faz-se necessário considerar a relação entre imagem e palavra. A fim de desenvolver as discussões propostas, a dissertação estrutura três capítulos.

O primeiro capítulo, “Tecitura e urdidura de Penélope”, inspira-se no ofício da personagem grega para investigar o trabalho de rememoração que acontece ao tempo em que escreve a narrativa. Embora o texto apresente alguns pontos de coincidência entre a literatura e a biografia verificável de Lygia Bojunga, a pesquisa esmorece a questão autobiográfica e volta-se ao trabalho da reminiscência, aos moldes da discussão de Walter Benjamin (2012a) quanto aos escritos de Marcel Proust. Ou seja, não busca a reconstituição da vida, mas o trabalho que recupera e perde a memória. Uma vez que este acontece simultaneamente com a escritura de narrativas, a pesquisa investiga a rememoração por meio das três categorias principais da ficção: espaço, tempo e personagem.

A casa é recorrente na obra bojunguiana: a fotografia do sobrado de infância de Lygia que compõe a capa de Fazendo Ana Paz; a casa feita de livros com apelo erótico, de Livro –

um encontro; o estúdio como isolamento do escritor, de Feito à Mão; a editora, Casa Lygia

Bojunga. Essa imagem é refletida sob a perspectiva da casa estranha e fragmentada que o adulto tenta recuperar em Infância, de Graciliano Ramos (1976); bem como, o jogo performático e lúdico da criança com o espaço, que compõe e desvela o ambiente, ainda que com

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intermitências, como aponta Benjamin (2017) em Infância berlinense: 1900. Há diálogo com Benjamin (2017) para uma reflexão sobre as intermitências da morada, isto é, os espaços adjacentes ou as aberturas para fora, que contrastam a inocência da casa com a profanação do mundo exterior. As reflexões sobre o espaço compõe o subcapítulo “Reme-morada”.

Conforme as imagens da infância são entendidas como fragmentos recuperados anacronicamente, o tempo que se instaura é o do vórtice, movimento sugerido por Giorgio Agamben (2018), a partir de uma leitura benjaminiana. Tal apontamento indica a dissipação da linearidade cronológica, ou seja, o tempo performa em movimento espiral, que perde de vista a origem, ao passo que a memória é recorrente em eterno retorno de fragmentos misturados e confundidos. O movimento é observado, por exemplo, na fragmentação da personagem Ana Paz em três tempos de vida coexistentes. O subcapítulo, intitulado “Ana-cronia”, evidencia o esquecimento, mais do que a lembrança.

O esquecimento também marca o subcapítulo “Álbum fotográfico”, que faz uma análise sobre a categoria da personagem. No âmbito da constituição de uma biografia, o que acontece é justamente a sua ficcionalidade por meio de imagens e lacunas, semelhante ao álbum fotográfico. Esse efeito provoca, antes que uma narrativa da vida, o seu apagamento. As pulsões memoriais são entendidas por Ricoeur (2007) como reconhecimento, o que só é possível a partir do esquecimento. Não obstante, Foucault (2003) afirma a escrita biográfica enquanto apagamento por meio da sua coleta de registros documentais mínimos do hospital psiquiátrico de Paris, em A vida dos homens infames.

Enquanto o primeiro capítulo investe numa reflexão quanto à rememoração, o segundo, denominado “Costura de Sahrazad”, reflete sobre a costura de memória e ficção no ato da narração. A personagem d’As mil e uma noites representa a narrativa aberta, de acordo com os apontamentos de Jeanne Marie Gagnebin (2012). A fragmentação que constitui a obra de Lygia Bojunga, identificada nas intermitências da história, na quebra sintática e nas rupturas pelas quais escapam o real e o ficcional, instiga a pensar sobre outro modo de narrativa, que atua no âmbito do esvaziamento em função de uma continuidade, como uma história aberta. Para entender esse conceito, o capítulo, que tem como principal aporte Benjamin (2018) e Gagnebin (2012), apresenta a figura do contador de histórias tradicional que se transforma frente a diferentes paradigmas da história e da arte. O filósofo desenvolve o conceito de experiência [Erfahrung], que seria a matéria essencial da narrativa, e como ela entrou em decadência, dando lugar para a manifestação da vivência [Erlebnis] isolada dos sujeitos. Ainda que o ensaio “O contador de histórias”, de Benjamin, aponte para o fim da narrativa, outra reflexão, verificada

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em “Experiência e pobreza”, desenha novos caminhos a serem percorridos que possibilitam a sobrevivência da atividade de contar histórias.

A função da experiência e o trabalho artesanal que se encontram em Benjamin (2018), essenciais na obra de Lygia, estão enunciados também na concepção de contadores de histórias de culturas africanas, como é exposto pelo djéli griot Toumani Kouyaté (2015), artista de Burkina Faso e detentor da palavra (conforme caracterização de djéli pelo povo Mandinga). Contudo, para ele, o narrador não é necessariamente um sábio, e sim um pesquisador (KOUYATÉ, 2015, p. 24), o que aponta para o processo de narrar, ao invés de destacar o que é narrado.

O capítulo considera a abertura na obra de Bojunga decorrente do trabalho fragmentado da rememoração; esse aspecto possibilita a sua continuidade, por meio do contínuo fazer poético. A desestrutura da narrativa clássica é pensada a partir do conto “A preocupação do pai de família”, de Kafka, o qual, por meio da figura de Odradek, ilustra o sacrifício da experiência em prol de manter a transmissibilidade, movimento kafkaniano que Benjamin analisou.

Integram, ainda, os subcapítulos “Fantasma” e “Rastro”. O primeiro analisa a imagem – ou “fantasma”, segundo a nomenclatura de Agamben (2007) – nos textos de Bojunga. Têm-se em vista as considerações sobre atualidade de Benjamin: para ele, o tempo é formado por coincidências, semelhanças entre passado, presente e, por conseguinte, futuro, como mostra, por exemplo, seu estudo de Proust. A reflexão está ao longo dos capítulos predecessores. Aqui, no entanto, ela é ampliada a partir da investigação da imagem como potência da memória. Didi-Huberman (2010) e Agamben (2007) contribuem para o diálogo.

O segundo, por sua vez, volta-se para a escrita, que é entendida por Gagnebin (2007), como um rastro, contínuo, mas apagado, de esquecimento. A partir do mito grego do Minotauro, e o fio de Ariadne, o capítulo investiga a manifestação do apagamento na escrita de Bojunga.

Por fim, o terceiro capítulo, “Ateliê de Lygia”, aprofunda a questão do processo de criação, que é evidenciado a partir das marcas de sua escritura, as quais aparecem no texto, como já apontado. Essas marcas são entendidas a partir do conceito de gesto, de Agamben (2008). O exercício de escrita parte de uma ideia de trabalho, de insistência no processo, que sobrepõe a história a ser contada. Como referência para sustentar essa concepção, utiliza-se o ensaio de João Cabral de Melo Neto, “Joan Miró”, o qual analisa o ofício que transparece na obra do pintor espanhol, que transpassou o conteúdo de seus quadros; e o ensaio “Que é o teatro épico?” de Benjamin sobre o teatro gestual de Brecht, ambas formas artísticas que possibilitam a leitura do gesto em Bojunga.

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A discussão aproxima o fazer artesanal, que constitui o texto de Lygia, ao seu próprio caráter poético. Isso é sustentado pelo ensaio de Jean-Luc Nancy (2013), “Fazer, a poesia”, que não considera o texto como acesso à poesia; pelo contrário, ela é associada à ação do próprio fazer, incluindo a dificuldade da criação que transparece nas fraturas e interrupções que marcam o escrito. O capítulo articula os pontos discutidos nos capítulos precedentes, na medida em que a memória e a fragmentação narrativa são costuradas pelo gesto na escrita – gesto político, como se observará.

Compõe a epígrafe desta dissertação um excerto de Fernando Pessoa, um poeta com quem Lygia Bojunga relata ter uma forte relação. Quando Pessoa, sob o heterônimo de Alberto Caeiro, poetiza “digo da pedra, ‘é uma pedra’,/ Digo da planta, ‘é uma planta’,/ Digo de mim ‘sou eu’./ E não digo mais nada. Que mais há a dizer?”, exime as coisas, quer sejam ou não animadas, de qualquer priorização e encontra na desobrigação o seu valor como coisa-essência. “Cada cousa é o que é”, e para o poeta isso basta, pois “Basta existir para se ser completo” (PESSOA, 2007, p. 101). Basta escrever, ou é preciso que se escreva algo? Não estaria a chave da literatura de Bojunga justamente no próprio trabalho de que é fruto? O movimento dos dedos, que seleciona os fios no ato de tecer, antes do trançado do tapete; a mão que umedece a argila, marcando com as digitais singulares do sujeito que molda, antes do vaso pronto; a liberdade do punho que marca com traços desformes a superfície branca, antes de representar uma paisagem. Não é o movimento prévio à obra, o momento anterior à peça, a simples capacidade de se fazer, mais do que fazer algo, não é isso o exercício da poesia?

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1 TECITURA E URDIDURA DE PENÉLOPE

“E então de dia tramava a enorme urdidura,

e à noite desenredava-a com tochas postadas ao lado.” (HOMERO, 2014, p. 106)

Enquanto seu pai e seus pretendentes acreditavam na morte de Ulisses, Penélope mantinha a esperança de que o marido retornaria da sua odisseia. A fim de adiar a escolha de um novo homem para se casar, ela se pôs na tarefa de tecer uma mortalha para cobrir o corpo de seu sogro, Laerte. O manto, que prestava respeito à memória do falecido, ao mesmo tempo mantinha viva a memória do marido, a quem Penélope permanecia fiel. Ela afirmou: “Morto, meus pretendentes, morto o divino Odisseu, esperai, mesmo ávidos, por desposar-me, até o manto eu completar – que meus fios, em vão, não se percam” (HOMERO, 2014, p. 105). Que ironia guarda a fala de Penélope? Enquanto tramar os fios era o artifício para manter a memória de Ulisses, é no desfazimento da mortalha, à noite, que ela conseguia prolongar o trabalho e se guardar da escolha.

Walter Benjamin (2012a), no ensaio “A Imagem em Proust”, recorda o exercício da personagem grega, que de dia trançava o manto e à noite o desfazia, afirmando que “o principal, para o autor que rememora, não é absolutamente o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência” (BENJAMIN, 2012a, p. 38). Assim, o que é apontado por Benjamin não é a escritura de “uma vida como ela de fato foi”, mas o processo da rememoração. Ou ainda: este exercício poético estaria muito mais no âmbito “do esquecimento” (BENJAMIN, 2012a, p. 38), na urdidura dos fios, à noite, em que se prepara para recomeçar o trabalho de tramá-los. Com efeito, observa Benjamin, Proust trocou a noite pelo dia, compondo seu texto de rememoração no mesmo período em que Penélope desfazia o tecido da memória.

Rememorar é um ato que guarda tanto recuperação da memória quanto esquecimento. Os fios perdidos que Penélope retoma são afinados com a imagem da madeleine, o doce cujo aroma desperta a memória involuntária do narrador, que Proust perseguiu em centenas de páginas na busca pelo tempo perdido. E, como a trama do manto se desfaz mais e mais a cada dia que passa, também a busca esquece mais do que recupera no exercício da rememoração. Sendo que, antes que a matéria da vida, o que sobrevive é o próprio trabalho da reminiscência. A escritora Lygia Bojunga associa a atividade de tear e urdir à escrita. Sua literatura é marcada pelo trabalho artesanal, amplamente explorado no livro Feito à Mão (1996); o exercício de composição poética está entre lembrar e esquecer: “Às vezes, numa noite de

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insônia, num embalo de rede, numa viagem de trem, eu gosto de dar linha pra minha memória. Só pra ficar vendo até onde é que ela vai.” (BOJUNGA, 2008b, p. 49). O desenrolar do fio, a urdidura, permite a recuperação, ainda que incerta, de imagens memoriais; como o trabalho perpétuo de Penélope e a busca incansável de Proust, os fios precisam ser desenrolados para que se possam tecer – a memória precisa ser esquecida para ser recuperada.

Apesar de explícito em Feito à Mão, a imagem do fio desenrolado, ou seja, a memória como esquecimento que culmina em um ato de criação, percorre as páginas da obra da escritora. Desde suas produções iniciais, ela explora a problemática através de diferentes metáforas. É irreverente o uso da costura, em A casa da madrinha (1978): a personagem Pavão, um bicho muito inteligente e falante, foi submetido a experimentos escolares de controle do pensamento. Um deles era realizado no Curso Linha, local em que costuravam o pensamento do aluno para ele pensar só o que os mandantes da operação queriam que a vítima pensasse. Como modo de resistência, o Pavão aprendeu a rebentar a costura para manter o pensamento: “Ele fazia assim: (1) deixava o pensamento parado, quieto, sem pensar coisa nenhuma; de repente (dois!) pensava uma coisa com toda força.” (BOJUNGA, 1999, p. 27). Assim, o fluxo do seu pensamento é acessado justamente pelo desfazimento da costura. Semelhantemente, em Corda Bamba (1979), Maria, que presenciara a morte dos pais equilibristas ao caírem da corda, havia recalcado sua memória. Não lembrava de nada. A não ser quando, em sonho, desenrolava a corda, e se equilibrava por ela até uma casa cheia de portas, fechadas, que escondiam as memórias traumáticas.6

No final da década de 1980, houve uma abordagem muito mais incisiva da escritora no que se refere à memória: a partir de Livro – um encontro (1988), os escritos passaram a tender para o gênero autobiográfico. A narradora desses textos, uma performance narrativa7, recupera

6 Como apontado na “Introdução”, há proeminente intenção política específica nos escritos dessa década. O

trabalho apresentará ao longo do seu desenvolvimento apontamentos desse âmbito nos textos estudados, sobretudo no terceiro capítulo. Ainda assim, há complexidade nas metáforas de Lygia, que demandariam estudo mais profundo; por ora, o que prevalece é a questão da rememoração – ainda que se reconheça a tangência de aspectos políticos também nessa problemática.

7 A ideia de performance foi pensada na tese de doutorado “As performances do narrador em Lygia Bojunga”, de

Talita Silveira Coriolano, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. A pesquisadora problematiza a possibilidade de encontro entre as personagens ficcionais e a narradora, a princípio, autobiográfica: "Se esta é uma personagem criada pela imaginação de Lygia, como poderia esta travar um diálogo concreto com a outra?" (CORIOLANO, 2016, p. 109). Ela aprofunda a questão ao pontuar as coincidências biográficas da projeção literária de Lygia com a persona que assina a autoria do livro. Em um dos livros analisados por Coriolano, O Rio e eu, há um diálogo entre a escritora e a cidade: esse diálogo só poderia, portanto se dar por vias da ficção (CORIOLANO, 2016, p. 110). A personagem não é lida "como pessoa biográfica, mas como personagem construído." (CORIOLANO, 2016, p. 111). Ou seja, na medida em que há a construção de uma história, há também a construção da própria persona autoral. A tese apresenta essa manifestação como uma "performance". (CORIOLANO, 2016, p. 132); a disposição fotográfica ou a enunciação autobiográfica, recursos da obra de Bojunga, são gestos que fazem o sujeito autoral, criando um "mito de si". A performance, nesse sentido, pressupõe

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aspectos biográficos ao passo que está inserida no universo ficcional: a própria narradora que conduz a história passa a ser o fio desenrolado. Os textos de Lygia não se abstiveram de apresentar que sua escritura estava no trabalho: o tear entre memória e esquecimento, entre imagem e ficção. Esta notação está contida em alguns títulos de seus livros, como o já citado

Feito à Mão ou Fazendo Ana Paz. Este desenvolve a trama em torno da relação entre

rememoração e a atividade de escrita. De um lado, está a história fictícia da personagem Ana Paz, que vê seu pai sendo assassinado, e, com o curso da vida, esquece uma promessa que lhe fizera de jamais esquecer a “carranca”, a imagem que simbolizava a relação e os ensinamentos do pai para a filha. Do outro, está o trabalho de reminiscência da narradora que quer escrever enquanto busca o passado de Ana Paz. Nesse exercício, se depara com rastros do seu próprio passado.

A sinopse de Fazendo Ana Paz, apresentada no site da CLB, diz:

Em Fazendo Ana Paz, a história surge através de fragmentos dispersos, como fotografias em álbuns antigos. Um autor à procura da personagem... ou será a personagem à procura do autor? Bem diferente de outros personagens de Lygia, Ana Paz tem “um endereço certo” e um compromisso no passado que ela precisa resgatar. A missão de Ana Paz – e da escritora que a compõe – é a de recuperar o passado. Como em Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello, em que as personagens invadem o ensaio de uma trupe buscando um diretor que encene sua história, no livro de Bojunga há personagens que interrompem as atividades da escritora, contando-lhe suas vidas e pedindo que componha suas narrativas: estão em busca de uma autora, e a autora em busca de personagens. E como em Proust, as duas estão atrás de um passado, perdido, que precisam recuperar. Seria, então, o trabalho da escritura também o trabalho da rememoração?

O excerto citado pontua três aspectos relevantes para a discussão: 1. informa que a personagem tem um endereço certo; 2. alude a um compromisso com o passado; 3. evidencia tanto a personagem como a narradora. Nesse sentido, a sinopse concentra as três categorias principais de uma narrativa: espaço, tempo e personagem. Se a construção de uma narrativa se dá pelas categorias pensadas, aqui também o trabalho de rememoração acontece por tais categorias, o que implica no aprofundamento entre escrita e rememoração.

É necessário ressaltar que muitas das memórias recordadas pela narradora coincidem com a vida da escritora Lygia Bojunga, o que pode ser confirmado no site da Casa Lygia

uma construção inacabada, devido às possibilidades performáticas do ato criativo. Para efeito, esta dissertação assume o posicionamento de Coriolano e considera a caracterização da voz narrativa como uma performance.

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Bojunga – CLB, em que tais dados são apresentados para consulta, bem como nos prefácio e posfácio do livro8. As primeiras páginas narram como foi o processo da escrita do livro A Bolsa

Amarela, publicação de fato lançada pela escritora em 1976: “me esqueci que ia escrever um

livro de viagens, deixei para lá um monte de coisas que eu ia fazer, e até o último parágrafo do livro (que ficou se chamando A Bolsa Amarela) a Raquel não saiu de perto de mim.” (BOJUNGA, 2007a, p. 12).

A história ficcional da personagem Ana Paz conta que ela nasceu no Rio Grande do Sul e se mudou ainda jovem para o Rio de Janeiro, retornando à cidade natal na velhice. Esse dado coincide com a trajetória de Lygia, que de fato é gaúcha e se mudou quando criança para o Rio de Janeiro, onde mantém sua casa e instituto social ainda hoje: “Lygia com 1 ano de idade, na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, onde nasceu e viveu sua primeira infância. Ao completar 8 anos, sua família se mudou para o Rio de Janeiro.” (CASA LYGIA BOJUNGA, web), conta a legenda de uma das fotografias da artista incluída no site.

Em outro fragmento da narrativa, a moça-que-se-apaixonou-pelo-Antônio, que corresponde à Ana Paz adolescente, em diálogo com Antônio, declara ter interesse afetivo em arquitetura: “- Porque... arquitetura... faz o meu coração bater forte.” (BOJUNGA, 2007a, p. 21). No posfácio, a escritora relata seu interesse pela memória arquitetônica das cidades: “Minhas andanças por cidades europeias me mostraram, de imediato, a perda incalculável que é, sempre pra todos nós, a destruição do nosso patrimônio arquitetônico.” (BOJUNGA, 2007a, p. 97). Assim como a personagem lamenta a derrubada de uma casa para a construção de um edifício: “- Um prédio que vai subir ali, olha. – Em cima da casa? – Ela vai abaixo. – Ah, que pena, tão simpática!” (BOJUNGA, 2007a, p. 23), Lygia narra sua experiência com a urbanização do Rio de Janeiro: “Passei o resto da minha infância e toda a minha juventude assistindo, dia após semana, semana após mês, mês após ano, um bota-abaixo indiscriminado e contínuo, não só em Copacabana [...], mas em todo o Rio de Janeiro.” (BOJUNGA, 2007a, p. 98).

8 Gérard Genette (2009) apresenta uma pesquisa profunda dos paratextos de uma publicação. Os paratextos são de extrema importância para a leitura de uma obra, pois interferem diretamente na significação textual. “Como leríamos o Ulysses de Joyce se ele não se intitulasse Ulysses?” pergunta Genette (2009, p. 10). O escritor faz um inventário dos diversos componentes que dialogam e modificam o texto: capa, títulos, prefácio e posfácio, diagramação, autoria, notas, entre outros. Para Genette (2009, p. 09), “o paratexto é aquilo por meio do qual um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores”. Enquanto a capa, um componente recente do livro, que remonta ao início do século XIX, pode trazer uma série de componentes textuais, editoriais e iconográficos que predefinem alguns aspectos de leitura do texto, o posfácio não se dirige a um leitor “em potencial, mas efetivo” (GENETTE, 2009, p. 212), ou seja, a leitura é muito menos guiada, e o papel crítico do leitor ganha mais força. Os paratextos da obra de Bojunga aprofundam a problemática autobiográfica, uma vez que por meio deles o leitor tem acesso a alguns dados biográficos da escritora. Estes dados, contudo, são esmaecidos pela própria voz narrativa que se apropria deles para escrever uma história que os esquece em ficção.

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A convergência dessas linhas biográficas apresentadas potencializa o exercício de escrita como esforço de uma reminiscência, uma vez que, mais do que pensar em uma biografia, o texto se apresenta como o tecido resultante da rememoração. As palavras tentam apreender imagens que fazem parte do tecido biográfico, orgânico, em linguagem, que compõe o tecido abstrato, textual. Ecoando Proust – e Homero –, mais do que narrar a vida, o livro narra o trabalho de rememoração, que vez ou outra apresenta dados verídicos – ou apresenta? As costuras aparecem para juntar sussurros ecoados do passado, desmistificando qualquer necessidade de verificabilidade. Essas costuras, que constituem a escrita, remontam à ausência, a esquecimento, e potencializam o exercício criativo, fazendo murmurar o passado como mero suspiro de escrita. Do papel, talvez saltam sentimentos, imagens, memória... mas traduzidos em palavras – em linhas abstratas restadas no papel.

O texto (des/re)constrói a linearidade tanto sintática quanto cronológica ao propor a trama de fragmentos, interrupções e intervenções polivalentes e polifônicas em forma de ecos. Ele se articula na própria insuficiência da rememoração. Tal característica permeia a linguagem – a superfície textual, enquanto matéria, é porosa –, a imagem – que não se constitui como reprodução do referente, mas é posicionada e de-formada pela linguagem – e a memória – que se desenvolve pelo esquecimento.

Como observado, a sinopse sintetiza as três categorias da narrativa, que são entendidas neste trabalho como metáforas da escritura e da rememoração. Assim, os três subcapítulos que seguem estruturam a reflexão da memória na ficção de Bojunga a partir das categorias espaço, tempo e personagem.

1.1 REME-MORADA

O livro Fazendo Ana Paz inicia a trama no paratexto capa, em que há a fotografia de uma casa. Ainda que não haja detalhes quanto à imagem, ela ilustra um dos aspectos fundamentais de uma narrativa, o espaço. Esse prenúncio projeta algumas questões: é nessa casa que se desenvolverá a história? Por ser uma fotografia, a narrativa abordará questões referenciáveis ou históricas? O que o ambiente da foto tem a ver com o conteúdo do livro?

O monólogo de Lygia, Livro – um encontro foi a primeira publicação da escritora a trazer uma foto em que aparecia a escritora na capa (figura 1). Como a peça havia sido performada em palcos nacionais e internacionais, o projeto gráfico utiliza fotografias do próprio monólogo tanto na capa quanto no interior. Embora essa capa seja notável na obra da escritora,

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justamente por ser distinta das demais publicações, não parece destoante a utilização da foto da escritora em um livro-monólogo representado por ela.

Entretanto, Fazendo Ana Paz embaraçou ainda mais a questão com sua imagem na capa (figura 2). A foto consiste em um sobrado de Pelotas – RS, que pertenceu ao avô de Lygia Bojunga, conforme conta o posfácio: “[...] o vô Bojunga comprou o Sobrado com a intenção de fazer dele a morada para toda a família: filhos, netos, bisnetos.” (BOJUNGA, 2007a, p. 94). Segundo o texto, a vida da sua mãe se desenvolveu na casa, mas após o casamento, o pai quis uma casa própria e se mudaram para a construção ao lado, “cujo quintal se ligava ao quintal do Sobrado” (BOJUNGA, 2007a, p. 95).

Figura 1 – Capa de Livro – um encontro.

Fonte: CASA LYGIA BOJUNGA. Disponível em: <http://www.casalygiabojunga.com.br/pt/obras.html> Acesso em: 23 set. 2019.

O texto narra:

Desde que eu me lembro de mim o Sobrado foi um imã pra minha imaginação. Eu queria sempre correr pra lá pra trepar em tudo que é árvore do quintal; e conferir se

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tudo que é peixinho que nadava no chafariz continuava lá nadando; [...] e depois ir jogar sapata nos desenhos que a luz, filtrada nos vitrais, formava no chão.

Só que eu era muito criança: não tinha a menor ideia de que tudo aquilo que me atraía tanto para ir brincar no sobrado estava alicerçando a base onde, muitos anos mais tarde, a minha Memória ia se apoiar. (BOJUNGA, 2007a, p. 95)

A rememoração caracteriza o espaço da infância como a estrutura que deu base para o desenvolvimento criativo. No quintal do sobrado, tudo ganhava vida pelo olhar da criança que subia na árvore, contava peixes e brincava no reflexo ótico dos vitrais. A luz transpassava as janelas formando desenhos no chão, com os quais interagia a criança. Seria paralela à luz que ilumina os objetos e projeta imagens as quais ficam desenhadas na memória do indivíduo, como as sombras disformes resultantes da convergência de luz no vidro? Se a criança interage com as formas no chão, é com as sombras do referente sensível que interage a escritora, imagens que se metamorfoseiam no momento da rememoração.

Figura 2 – Capa de Fazendo Ana Paz.

Fonte: CASA LYGIA BOJUNGA. Disponível em: <http://www.casalygiabojunga.com.br/pt/obras.html> Acesso em: 23 set. 2019.

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Assim como o oleiro faz os tijolos da casa, a escritora constrói uma casa de palavras, que tenta recriar as imagens da morada da infância. Escrever é desfazer e refazer. Desfazer as estruturas da primeira casa habitada, que restam como imagem, para, tortuosamente, refazê-las em palavras, em abstração.

Com efeito, não foi a isso que aludiu Graciliano Ramos, ao narrar Infância? O narrador da história, ao descrever o primeiro objeto que guardou na memória, um vaso, diz a incerteza da memória, quando e onde vira o objeto e como de fato ele era. Se uma lembrança longínqua não levasse a outra, mais substancial, talvez seria um distante sonho disfarçado de realidade. A narração costura os fragmentos dispersos, naturalmente deixando lacunas na memória reavivada: “é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma” (RAMOS, 2003, p. 09). Conforme recorda sua infância, o narrador sente como se estivesse em um longo sono, e a memória fosse coberta por um tecido que a anuvia: “E a hibernação continuou, inércia raramente perturbada por estremecimentos que me aparecem hoje como rasgões num tecido negro. Passam através desses rasgões figuras indecisas.” (RAMOS, 2003, p. 11). O lugar de infância contado pelo narrador é recuperado em pedaços destorcidos, lhe parecem estranhos:

Datam desse tempo as minhas mais antigas recordações de ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal. [...] Começaram pouco a pouco a localizar-se, o que me transtornou. Apareceram lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade. Pontos nebulosos, ilhas esboçando-se no universo vazio. (RAMOS, 2003, p. 12)

A poesia de Graciliano Ramos coloca, de modo anacrônico, homem e menino lado a lado para que juntos percorram a narrativa precária da memória e espiem o passado. O olhar do infante é marcado pelo deslumbre, pelo espanto, identificado por exemplo no medo ao ver uma casa tão alta como um sobrado, como se houvesse uma em cima da outra: “nunca teria podido imaginar uma casa trepada” (RAMOS, 2003, p. 46); nas janelas do andar de cima, via pessoas conversando e, sem entender que havia dois andares, o que permitia a sua elevação, julgava-as enormes, como se suas pernas partissem do andar de baixo. O olhar do narrador adulto é marcado pela criticidade que entende as imagens a partir das relações que faz com o presente: “Divagava imaginando o mundo coberto de homens e mulheres da altura de um polegar de criança. Não me havendo chegado notícia das viagens de Gulliver, penso que a minha gente liliputiana teve origem nas baratas e nas aranhas.” (RAMOS, 2003, p. 99). A leitura de As

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impressões que tinha das pessoas quando criança. A memória é inserida no curso presente, transmitida pela insuficiência de imagens marcantes e pela narração dele e dos que afirmam as lembranças.

Concomitante a isso, em Fazendo Ana Paz, a casa da narradora é a morada da memória. O espaço habitado que abriga a infância, a estrutura fundamental do sujeito. O sobrado não é aquele sobrado de tijolos e cimento que pode ser visto em Pelotas por qualquer um que assim o queira; é o sobrado que existe como resto imagético de uma criança, é o lugar desperto pela memória da escritora.

O sobrado narrado resiste como morada, mas é sempre transformado a cada vez que o seu morador percorre o espaço. A visita que a ele se faz não é uma visita ao passado, pelo contrário, é uma visita que sempre acontece no presente. Por isso, não é a escritora que viaja aos anos de sua infância para adentrar no espaço físico que lhe marcou. É o espaço que invade o presente, agora em frações de imagens, partículas representativas de uma matéria que se confunde, se reestrutura. De modo semelhante, é a criança que visita a escritora. A habitante vive na casa no presente, porém a encontra embaçada, com focos de luz apenas suficientes para iluminar o eterno deslumbre da criança.9

A escolha pela inserção da foto da casa na capa se deu justamente pelo livro tratar de memória: “Memória – a Ana Paz fala muito disso: rastro atrás, vivências passadas; a criança que a gente foi, determinando o adulto que a gente é; o ‘eu era assim e, em volta de mim o mundo era assim, mas agora...’ – Memória.” (BOJUNGA, 2007a, p. 90).

“O mundo em volta de mim”: pensar sobre o espaço não significa pensar apenas sobre a estrutura, mas sobre todo o contexto em que a narrativa se desenvolve. Os cômodos da casa, sim, mas também seus objetos, seu entorno, sua cidade. Ao mesmo tempo que o texto literário de Lygia aborda a construção como morada subjetiva, reflete acerca de um país em desenvolvimento, em que as pequenas casas davam lugar aos prédios. A urbanização entra em conflito com a arquitetura histórica; a casa como fortaleza, como segurança, se contrapõe às aversões das ruas, tomadas por conflitos políticos a partir da década de 196010. O espaço

9 Appelfeld (2019, p. 05) corrige-se quanto ao uso da expressão “volto sempre à casa”, uma vez que, quando se lembra da morada, de fato, não a visita, mas está nela; é a casa que está no presente. O escritor a empresta vida nova toda vez que nela adentra. Assim a relação temporal também é tensionada, pois para ele “todo trabalho criativo necessita do olhar da criança”, então o ontem e o hoje se misturam no narrar da morada. O olhar do presente põe uma “lente de aumento” que destorce a imagem do passado, marcada tão fortemente na criança. Ainda assim, o trabalho do escritor de literatura não é o de escrever memórias, mas de costurar nessas imagens os tecidos de outras experiências. A primeira morada, o lugar em que vive a infância de quem narra, é a base que sustentará o artesão de narrativas – ainda em devir.

10 Lygia Bojunga começa a publicar em 1972, em meio ao momento mais truculento da ditadura militar brasileira.

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psicológico da criação é atormentado pelo espaço repressor da censura. Mas nada disso é recuperado pela foto do sobrado, senão em um eco surdo.

A reminiscência da casa acontece por meio da relação lúdica que a criança entabula com o espaço. Através das brincadeiras, que trazem contidas a liberdade de um certo prazer, e que eroticamente percorrem a derme, o corpo marca o espaço, criando pontos erógenos, de matéria e de poesia. E o que resta do espaço é justamente os fragmentos do jogo inventado pela criança. Uma relação lúdica, ficcional, que deixa traços de ruptura no real.

Jogo similar é pensado por Walter Benjamin (2017, p. 102) quando, em Infância

Berlinense: 1900, lembra-se dos cantos da casa em que se refugiava durante as brincadeiras de

esconde-esconde. O escritor rememora o espaço por meio desses esconderijos, os quais “conhecia todos”. Faz então uma espécie de mapeamento que não simplesmente desnuda fragmentos da casa para o leitor, como também alude ao vínculo da criança com o espaço. Quando adentrava os esconderijos, o mundo material ia se tornando “extremamente nítido”. O escritor vê aquela criança como parte da casa (ou a casa como parte da criança?), uma interfere na existência da outra:

A criança escondida atrás das cortinas torna-se ela própria algo de esvoaçante e branco, um fantasma. A mesa da sala de jantar, debaixo da qual se acocorou, transforma-a em ídolo num templo em que as pernas torneadas são as quatro colunas. E atrás de uma porta ela própria é porta, recoberta por ela, máscara pesada, mago que enfeitiçará todos os que entrarem desprevenidos. (BENJAMIN, 2017, pp. 102-103).

O escritor coloca a brincadeira de sua infância novamente em movimento, ou seja, por meio da narrativa, faz funcionar o Panorama11 (figura 3) com imagens da sua vida, que são

áreas encontraram nesse nicho a possibilidade de criticar o momento político: “como havia muita dificuldade para os intelectuais expressarem-se em função de todo o aparato de cerceamento, deu-se uma migração dos que não lidavam com crianças, escrevendo para crianças, como o historiador Joel Rufino, a atriz Lygia Bojunga, a socióloga Ruth Rocha, o jornalista Ziraldo. Isso fez toda a diferença. Foi o boom da literatura infantil. Através dela, simbolicamente, pode-se falar do momento.” (VARGAS & SANTOS, 2011). E a imagem do espaço, concomitante com a ideia de memória, discute com afinco a violência da ditadura. Os Colegas, sua primeira publicação, mostra a insegurança das ruas da cidade, fazendo com que o grupo de amigos – no caso fugitivos, perseguidos, artistas-vadios (todos representados por animais), tivessem que se esconder. Em A Bolsa Amarela, a casa é simbolizada pela bolsa, em que Raquel esconde suas vontades, inclusive a de escrever. A casa da madrinha, por sua vez, mostra uma casa da imaginação que guarda a esperança de um futuro melhor: Alexandre saiu do morro do Rio de Janeiro, onde vivia, em busca da casa da sua madrinha. De diversos modos, os textos mostram que o espaço pode ser opressor ou protetor. Mais considerações sobre o aspecto político serão feitos no terceiro capítulo deste trabalho.

11 Nessa mesma obra, Benjamin recorda os Panoramas de Berlim [Kaiserpanorama], estruturas circulares, como salas redondas, que tinham ao longo do lado externo visores que permitiam a observação de imagens, como paisagens da natureza ou cidades estrangeiras. As imagens eram exibidas sequencialmente e duravam um instante, sendo substituídas por outra. Não era possível apreendê-las, nem detê-las, nem mesmo recuperá-las uma vez que passavam para a próxima. A única gravação possível era pela mente do observador, que devia registrá-la rapidamente, e, antes que se apercebesse, ela já havia passado.

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inseridas agora, no presente. Não apenas vemos essa rotina, como observamos alguns detalhes da casa: a utilização de reposteiros para substituir algumas portas, as mesas com pernas talhadas, o relógio, o piso.

O sobrado da família Bojunga também é apresentado em fragmentos, seu espaço permeado pelas atividades recreativas da menina Lygia. O leitor não tem acesso aos seus detalhes: quantas árvores havia? qual o tamanho do quintal? de que cor e que desenhos formavam os vitrais? onde ficava o chafariz? quantos quartos havia na casa?

Figura 3 – Kaiserpanorama.

Fonte: VRMaster. Disponível em: <https://www.vrmaster.co/wp-content/uploads/2014/11/vrmaster-Kaiserpanorama.jpg> Acesso em: 20 jan. 2020.

Os únicos registros visuais são a fotografia da capa, que mostra a fachada do sobrado, e a ilustração de um azulejo, inserido ao longo do livro. Assim o leitor visualiza a casa rememorada como quem vê as imagens no Panorama, espiando por meio de um visor (figura 4). A casa aparece em fragmentos, tênues e frágeis, como as sombras projetadas pelos vitrais. E a memória resgata os cantos, os móveis, os cômodos marcados pelo sujeito, e que também o marcam, deixando rastros na memória. Escrever é recuperar esses rastros, dispersos, e abandoná-los para construir uma nova casa, feita de memória – reme-morada.

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Figura 4 – Espiando o passado pelo Panorama.

Fonte: ...THEN WE TAKE BERLIN. Disponível em: <http://thenwetakeberlin.de/kaiserpanorama/> Acesso em: 20 jan. 2020.

A casa é uma imagem importante na escrita de Lygia Bojunga. Em Livro – um encontro, a narradora conta que, na sua infância, construía casas utilizando os livros como tijolos, para, em seguida, ir morar nessas casas: “Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça. Mas fui pegando intimidade com as palavras. E quanto mais íntimas a gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir novas casas.” (BOJUNGA, 2007b, p. 08). A casa é o espaço de acolhimento, é onde comumente enterram-se as raízes da vida – uma representação da própria estrutura do sujeito. Lygia mostra a construção e a destruição das casas-livros. Uma violação da própria vida, desestruturação que não se dá na negatividade, mas no prazer, na troca, “essa troca tão gostosa, que – no meu jeito de ver as coisas – é a troca da própria vida.” (BOJUNGA, 2007b, p. 09). O trabalho da escrita consiste em tentar recuperar as marcas da vida, as marcas de destruição das moradas em zonas de conforto, através da violação, dos rasgos, das demolições que inscrevem cicatrizes. E Lygia representa a morada através do próprio objeto livro. O projeto gráfico se torna, assim, uma arquitetura, que abriga fotos, ilustrações, palavras, iconografia para traduzir e simular a materialidade da vida, todavia a

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proposta é de desarranjo das linearidades, bem aos moldes da memória e suas características configurações.

É análoga a denominação da editora: Casa Lygia Bojunga. A escritora informa que a Casa foi criada para abrigar sua gente, ou seja, seus personagens, que vieram morar ali. Assim, a Casa comporta justamente a ficção, fruto do exercício da escrita. Lygia cria relação entre livro e arquitetura, sendo que um abriga e representa o outro. A Casa atua como Fundação social, que simbolicamente, afirma o caráter político da sua produção ficcional. Do mesmo modo, o livro ganha status de casa, abrigando a abstração do que a própria ideia de espaço implica.

Além disso, seus livros são facilmente reconhecidos pelo seu padrão de diagramação: a capa amarela, a ilustração que ocupa a frente da capa delimitada por uma borda preta, o nome da escritora acima da ilustração, e o título do livro (com o mesmo tamanho de fonte) abaixo, ambos também presentes na lombada, onde o nome Lygia Bojunga aparece destacado em uma caixa; junto está o logotipo da editora Casa Lygia Bojunga; na quarta capa, aparecem, muitas vezes, os símbolos dos prêmios que o livro ganhou, como a medalha Hans Christian Andersen ou o título de altamente recomendado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ. Como os quadros das paredes, a disposição dos móveis ou o conteúdo da despensa deixam transparecer a identidade do habitante da moradia, os livros de Lygia são adornados com elementos evidentes e redundantes. A editoração, que assume formato de “coleção”, conforme desejo da escritora (CASA LYGIA BOJUNGA, web), alinha os livros em uma obra extensa, como se cada um assumisse um cômodo da casa, ou uma porta de passagem. Cada um é um tijolo de uma estrutura que dialoga com os restantes, por vezes se transformando, seus espaços preenchidos por outras vozes, outras marcas: dos leitores, da própria ficção.

O espaço habitado não serve exclusivamente de abrigo, mas de suporte para a criação. É o que ressalta o livro Feito à Mão, conferindo importância a um espaço que esteja isolado, separado, para realizar o trabalho de escrever:

Sempre levei muito tempo pra “esquentar”, pra sintonizar numa mesma faixa a minha imaginação, a minha disciplina e o meu raciocínio. Qualquer interferência – a conversa do lado, o telefone tocando, um barulho de televisão – faz logo minha faixa sair do ar. Então o estúdio (e eu traduzo estúdio por um espaço assim: pode até ser mínimo, mas, durante o tempo em que a gente é guardiã dele, ele é só da gente e pronto; e também: um espaço onde a gente tenha ao alcance da mão as ferramentas que tenha prazer em usar no trabalho que quer realizar), então, pra mim, o estúdio se tornou tão essencial quanto o ato de escrever. (BOJUNGA, 2008b, p. 59).

Evidencia-se a relação intrínseca entre o trabalho e o espaço em que ele acontece, o estúdio. O lugar provê as ferramentas para exercer o ofício, o silêncio para a escuta, a

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