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Artigo Entre as chagas de Maria e as tentações do demônio

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Academic year: 2021

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ENTRE AS CHAGAS DE MARIA E AS TENTAÇÕES DO DEMÔNIO: LEITURAS DE SI E IMAGINÁRIO DE UMA BENZEDEIRA SERGIPANA

Magno Francisco de Jesus Santos1

Resumo: Uma mulher atormentada por seus pensamentos. Noites de delírio, aflição e

orações. Tardes de Altruísmo e cura. Um passado de silêncios e dúvidas. Essas são algumas das múltiplas facetas de uma mulher plural, de uma benzedeira do agreste sergipano. Marietinha destaca-se como uma porta-voz das tradições de sua localidade, repetindo narrativas de sua trajetória de vida, como também variantes populares dos templos bíblicos e auxiliando as parturientes. O propósito dessa análise é compreender a trajetória de vida de uma das principais rezadeiras da zona rural de Itabaiana, conhecida como dona Marietinha, expondo aspectos de suas crenças e práticas, além do imaginário local permeado de seres míticos. A pesquisa foi desenvolvida a partir da realização de entrevistas e observação do ritual da rezadeira estudada. Com isso, podemos dizer que a pesquisa baseou-se nos pressupostos dos cânones das oralidades, que permitem ao historiador desvendar frestas antes ignoradas.

Palavras-chave: Imaginário, História Oral, Análise do sicurso.

Abstract: A woman tormented by his thoughts. Nights of delirium, grief and prayers.

Afternoons of Altruism and healing. A history of silences and doubts. These are some of the multiple facets of a plural wife, a healer of Sergipe. Marietinha stands out as a spokesperson of the traditions of your locale, repeating his career life narratives, but also popular variants of the biblical temples and assisting the women in labour. The purpose of this analysis is to understand the trajectory of life of one of the leading mourners from the countryside of Brazil, known as dona Marietinha, exposing aspects of their beliefs and practices, as well as the imaginary mythical beings pervaded location. The survey was developed from conducting interviews and observation of the ritual of praying studied. With this, we can say that the research was based on assumptions of the canons of the oral expressions, which allow the historian unveil cracks before ignored.

Keywords: imaginary, oral expressions, reading from you.

“Jesus nasceu, Jesus ressuscitou, quando Jesus andou pelo mundo, espinhela caída alevantou”. Com essas palavras mágicas uma das principais rezadeiras do agreste sergipano inicia seu ritual, com o balanço de galhos, balbuciando palavras inaudíveis, expurgando males. É um encontro de forças místicas. Ao longo de sua vida, a rezadeira Marietinha sofreu

1 Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), sob a orientação de Martha Abreu.

Bolsista CAPES. Professor da Faculdade Pio Décimo e membro da Diretoria do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Email: magnohistoria@gmail.com

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infortúnios. Teve visões de santos e demônios. Recebeu enfermidades de seus rezados. Atormentou-se com suas crenças.

O cerne deste estudo é a trajetória de dona Marietinha enquanto rezadeira. O propósito é compreender o processo de legitimação dessa rezadeira no campo religioso, enfatizando as diferentes nuanças do meio social ao qual estava inserida. Portanto, essa reflexão tenta entender uma comunidade a partir de um sujeito que nela viveu.

O ritual dos rezadores constitui uma relevante manifestação de fé no povoado Cajaíba. Localizado no extremo sul do município de Itabaiana, cercado por serras, o povoado possui treze rezadores, dentre os quais as mulheres desempenham papel preponderante. O número significativo de pessoas que exercem esta prática religiosa demonstra a relevância da tradição na localidade. A prova disso é que as rezadeiras continuam sendo procuradas pelos enfermos antes mesmo da consulta aos médicos convencionais. É uma leitura dos pormenores do objeto estudado. Trata-se de uma interpretação histórica sob os auspícios da nova historiografia cultural, que logra pela leitura social por ângulos diferenciados.

Compreender o imaginário do agreste sergipano por meio do olhar de uma mulher benzedeira representa uma tentativa de analisar a sociedade vista por baixo. A partir da análise das entrevistas que conseguimos compreender alguns aspectos da trajetória de dona Marietinha como difusora das rezas. No povoado rezar enfermos é visto como um ritual masculino, pois no imaginário local os homens são detentores das rezas mais ‘fortes’. Mesmo assim, dona Marietinha conseguiu se legitimar na condição de benzedeira, sendo tão procurada quanto os melhores rezadores da localidade.

Além disso, a benzedeira se tornou nos últimos decênios do século XX uma importante transmissora dos saberes, das narrativas míticas locais. As suas falas antes dos rituais exerciam a função de tentar construir um elo entre o seu entorno social e o tempo mítico bíblico. Trata-se de uma mulher que conseguiu extrapolar a sua função aceita socialmente: além de parteira, ela também restabelecia a saúde da população. Foi através desta prática religiosa que dona Marietinha, com seu balançar de galhos e murmúrios de palavras mágicas conseguiu legitimar-se no povoado, mesmo sendo mulher, pobre, negra e mãe solteira.

Essa pesquisa teve início com um exercício etnográfico que buscou fazer um levantamento dos rezadores do povoado Cajaíba, localizado no sul do município de Itabaiana, Sergipe. Neste levantamento preliminar foram encontrados treze rezadores, sendo seis

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homens e sete mulheres. A partir desse exercício etnográfico buscamos nos aprofundar na reflexão do fenômeno dos rezadores de Cajaíba.

Trata-se de facetas ocultadas para os olhares desatentos. O imperceptível, o indubitável, o pouco observável mudou os rumos da pesquisa. Foi assim que passamos a observar o fenômeno dos rezadores não apenas como um conjunto de crenças populares, mas como um campo imbricado por intensas disputas, impasses visando o acúmulo de capital simbólico (BOURDIEU, 1989).

Para descortinar as diferentes nuanças da trajetória da rezadeira foi necessário buscar os elementos muitas vezes desprezados e que estão inseridos intrinsecamente na entrevistas. Partinho desta acepção buscamos focalizar a hesitação, o não-dito, a seqüência de lapsos, as repetições. Na oralidade o gestual e os silêncios podem ser mais reveladores do que as palavras. É o jogo mnemônico.

1. Uma mulher, uma vida.

Dona Marietinha passou os últimos anos de sua vida em um casebre no final da Rua das Marias. Essa é a parte mais pobre de Cajaíba. Durante muito tempo o povoado foi dividido em duas partes: rua de cima (praça com capela, escola e mercado) e rua de baixo (com a população pobre). A própria nomenclatura da rua já denuncia a condição social de seus moradores. Trata-se de Marias, pessoas sem sobrenomes, anônimos na pacata vida social do povoado. Um desses anônimos era dona Marietinha, que tinha por nome de batismo Maria. Neste sentido, a rezadeira em questão seria mais uma das Marias sem fala, sem sobrenome, sem dignidade.

Realmente dona Marietinha era uma anônima na história oficial. Vinda de uma prole marginalizada, excluída das benesses financeiras, a rezadeira estudada não teve certidão de nascimento, nem de batismo. Oficialmente dona Marietinha não existia.

Por ser uma anônima no Estado brasileiro, dona Marietinha sofreu com a falta de assistência. Somente no final de sua vida foi registrada sua existência. Depois de uma série de depoimentos de pessoas que alegaram conhecer a rezadeira a mais de 70 anos, ela pôde ser registrada e, finalmente, aposentada, diminuindo assim a situação de miséria em que vivia.

Em Cajaíba as oportunidades de trabalho sempre foram escassas. O cultivo de mandioca para a produção de farinha era a única atividade plausível até 1980. Os moradores da Rua das Marias, como na maioria das vezes não possuíam terras próprias, “vendiam seus

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dias”, ou seja, trabalhavam nas propriedades dos vizinhos. Homens e mulheres trabalhavam com a enxada ou na farinhada (produção de farinha).

Eram nas farinhadas que as relações sociais se fortaleciam. Os laços de solidariedade eram necessários, pois os vizinhos e parentes iam auxiliar na raspagem da mandioca. Nesta ocasião as notícias circulavam entre risos e ironias. No fim, todos recebiam beijus como forma de agradecimento. Neste ínterim, podemos dizer que a farinhada desempenhava um importante papel na comunidade local, pois era um mecanismo de sociabilidade, era o elo que congregava parentes, amigos e vizinhos. As notícias circulavam e os laços de solidariedade se fortaleciam concomitantemente.

Entre esses trabalhadores anônimos estava dona Marietinha. A raspagem de mandioca e o trabalho na enxada sempre estiveram presentes em sua trajetória. Mas a enxada não era o seu único ganha-pão. Ainda jovem e principalmente na terceira idade, Marietinha vivia da produção de artesanato. Suas peças, destinadas ao uso doméstico, eram encomendadas por muitos moradores de Cajaiba.

Dona Marietinha passava o dia a procura das dicurizeiras para retirar sua matéria-prima: a palha do ouricuri, conhecida como pindoba. Ao recolher o seu material espalhava pelo terreiro da casa para secar, desfiava e produzia diferentes objetos. Eram vassouras, espanadores, abanadores de todos os tamanhos. Era um meio de sobrevivência.

A casa da rezadeira refletia as condições sociais da dona. A casa de taipa construída no terreno localizado no final da Rua das Marias era a imagem da pobreza. Baixa, com ausência de mobília, água encanada e eletricidade, a casa possuía o piso em barro batido.

Com telhado em chalé, a construção possuía uma fachada simples com uma porta e janela. Ao entrar no casebre, o expectador deparava-se com uma sala quase que vazia, tendo como móveis um banco comprido e alguns tamboretes. Após esta sala, havia um estreito corredor com a entrada do quarto (no qual havia uma cama e um camiseiro) e que dava acesso à cozinha. Nesta a simplicidade dominava a cena. Havia um pote, com canecas de alumínio e panelas de barro sobre as prateleiras, um fogão a lenha, um purrão e uma mesa cercada de tamboretes.

Esta era a casa de dona Marietinha. Como vimos o cenário apresenta uma situação rústica, estigmatizado pela pobreza. Todavia, deve ser lembrado que a casa era de uma rezadeira e que esse aspecto também transparece no cenário privado de sua casa. É a faceta do universo religioso. Na sala de entrada também havia uma mesinha sobre a qual estava um

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pequeno oratório cercado por flores naturais. Nas paredes da mesma sala estavam espalhados dezenas de quadros representando santos populares.

Por conseguinte podemos ver os quadros e o oratório como indícios do leque devocional de dona Marietinha, e por que não, da população local. Na plêiade de santos presentes na casa de dona Marietinha podemos destacar as devoções marianas (Nossa Senhora do Desterro, do Bom Parto, da Conceição e das Dores), Senhor dos Passos, São Jorge, Santo Antônio, São João e São José. Essas devoções estão associadas à cura de muitos dos males que atormentam a população e por esse motivo, no final do ritual dona Marietinha oferecia a reza ao santo designado para proteger da enfermidade de sua especialidade.

Outrossim, os santos expostos não retratam somente o aspecto devocional de um personagem específico. Esses santos também da devoção de muitos moradores. Imagens como a do Senhor dos Passos e Nossa Senhora da Conceição podem ser localizadas em praticamente todas as residências do povoado.

O oratório conjuntamente com os quadros representam a sacralidade, é o ponto de contato com a realidade sacra no interior do recinto de dona Marietinha. Esses elementos serviam como uma válvula de escape nos momentos de aflição e angústia. Prova disso eram as várias fitas amarradas nos quadros. O drama social transparecia na devoção, evidenciando a exclusão social notória. Dona Marietinha era uma rezadeira pobre.

2. Uma tradição tecida pelas linhas do mistério

A reza é uma tradição marcada pela oralidade. Tanto o ritual como a transmissão dos saberes são caracterizados pelo uso das palavras. São os sussurros das orações, o uso das palavras mágicas e o ensino das rezas.

Geralmente, o conhecimento das rezas é transmitido de geração para geração através da oralidade. A maior parte dos rezadores do povoado alega ter aprendido as orações com seus pais e, principalmente, com os avós. Estes possuem uma significativa relevância dentro do fenômeno estudado. Todos os rezadores identificados no levantamento de 2002, possuíam idade superior a 60 anos. Ao que indica, a reza aparenta ser um conhecimento dos moradores mais idosos.

Essa constatação mascara um aspecto revelador. No fenômeno da reza é constante o segredo. A reza é um tipo de conhecimento destinado a poucos e por isso não deve ser ensinada a qualquer um, principalmente jovens. Talvez esse seja um dos motivos da reza ser

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pronunciada em tom baixo e de forma veloz. Os sussurros teriam a função de preservar o segredo, de evitar a difusão do conhecimento.

O segredo do ritual das rezas apresenta um problema: a perpetualização dos saberes. Como na maioria das vezes os rezadores só passam seus conhecimentos quando estão com a idade consideravelmente avançada, pode ocorrer que alguns morram sem transmitir seus saberes. Neste caso, não morre somente os rezadores, mas parte significativa do ritual.

Contudo, nestes casos, o ritual não se torna menos eficiente ou mais pobre. Pelo contrário, ele passa por um processo de ressignificação, somando-se com outros elementos antes inexistentes. Trata-se, portanto, de uma releitura do fenômeno religioso.

Os elementos do ritual ao desaparecer vão sendo substituídos por outros, que vão preenchendo as lacunas existentes. Uma diferença basilar entre os conhecimentos tradicionais e os ressignificados é a transmissão. Enquanto os do primeiro grupo ocorrem de forma exclusiva por meio da oralidade, no segundo existem múltiplas possibilidades de ocorrer. Quase sempre é marcado pelo misticismo. Esse é o caso de seu Messias, que alega ter aprendido as rezas em uma revelação divina, por meio de sonho. Conforme o depoimento:

Eu tava casado e a minha mulher tava doente há muito tempo. Eu já tinha vendido quase tudo e nada de melhorar. No terreiro eu só tinha uma vaquinha, que ia vender no outro dia. De noite eu rezei e pedi para que Deus me mostrasse o remédio certo. No outro dia acordei lembrando dele. Vendi a vaca e comprei o remedi. Foi mesmo de tirar com a mão. A partir desse dia passei a me lembrar de umas rezas que Deus manda, se for caso de reza mesmo. (Messias, 2002).

Um aspecto revelador do depoimento de seu Messias é que ele alega só lembrar da rezas se o rezado estiver atormentado com “doença de reza”, caso contrário, ele não lembra das orações. Essa é uma nova característica do ritual dos rezadores no povoado. A reza além de ser palavras mágicas, passa a ser também “inspiração divina”.

Este aspecto torna o rezador mais prestigiado na comunidade, pelo fato dele não ser apenas o herdeiro de uma tradição longínqua, mas por ter sido agraciado pelo cosmo sagrado com o dom da cura. O mistério neste caso é um relevante componente legitimador.

Todavia, o mistério é um aspecto muito presente na prática ritualística de seu Messias. Entre todos os rezadores de Cajaíba, ele é o mais enigmático. Fala pouco, reza baixo e ainda costuma recomendar infusões para os rezadores. O detalhe instigante dessas infusões está no preparo. As chamadas “garrafadas” destinadas aos banhos de chás são preparadas pelo próprio rezador. Nesta ocasião, seu Messias afasta-se do povoado, indo buscar as plantas

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medicinais e a água para as infusões na serra da Ribeira. Esse deslocamento temporário do convívio social apresenta outra face além do misticismo e do segredo. Trata-se também de um meio de aproximar-se da realidade sagrada, por meio do isolamento e do contato com a natureza. Na intensa integração homem/natureza o sagrado manifesta-se (ELIADE, s/d).

3. Na senda da memória: murmúrios em busca da cura

O ritual das rezas no povoado Cajaíba não é realizado aleatoriamente. Cada rezador segue os preceitos herdados das gerações passadas ou manifestadas pelo divino. Rezar é um dom que incumbe em abnegação. A maioria dos rezadores vive nos arredores do povoado, em casas simples, de taipa. Por ser vista como um dom, os rezadores não cobram pela reza, sendo-lhes apenas permitido receber os chamados agrados (sabonetes, alimentos e doces).

Um dos pontos que deve ser observado nas rezas é o tempo. A depender da reza, deve ser respeitado o horário propício para melhor eficácia das orações. É por esse motivo que nenhuma das rezas pode ser realizada à noite. O ideal é que elas sejam realizadas entre as seis da manhã e às dezoito horas. Outro aspecto relevante no ritual das rezas é a presença de elementos da natureza. Em todas as rezas esse elementos estão presentes. Podemos dizer que a presença de tais elementos cumpre um propósito específico: possibilitar a interação entre a ordem cósmica sagrada e a desordem caótica profana. O ritual dos rezadores constitui um diálogo entre o sagrado e profano, o humano e o sagrado, o mal e o bem exorcizador.

Cada reza exige um elemento natural específico. Com isso na reza de olhado e quebrante usa-se ramos de vassourinhas; na murcha folha, cebola roxa; cobreiro brabo; caule de manaíba (mandioca); vermelha; barro e vento mau; pinhão roxo. Podemos dizer que a principal função desses elementos é exorcizar o mal do rezado. No plano simbólico, ao pronunciar as palavras mágicas em sussurros, acompanhados de gestos repetitivos, os rezadores buscam retirar o mal atormentador do rezado, transportando esse mal para o elemento natural. Essa crença é legitimada pelo fato da transformação de tais elementos, ora murchando, ora ressecando. Assim, podemos dizer que no ritual ocorre uma circulação de energias simbólicas, na qual o rezador, provido de capital simbólico exorcizador busca transferir os males do rezado para o elemento natural. Na reza, o poder simbólico é evidente.

Para garantir a eficiência do ritual, o rezador deve ser cauteloso na escolha dos ramos ou do barro. Ele deve retirar de locais onde pessoas já possam ter benzido (cruzado) ou mesmo os ramos que possuam sementes. Tudo isso pode desarticular a circulação das

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energias simbólicas, pois impedem que elemento retenha o mal exorcizado, que pode passar diretamente para o rezador. A reza também possui seus perigos.

O principal elemento legitimador das rezas é a cura. É ela quem torna um rezador mais prestigiado do que outros. Quanto maior for o índice de eficiência do rezador, maior será a possibilidade desse rezador acumular capital simbólico, quase nunca convertido em capital econômico.

4. A guardiã da memória

Um mundo de fantasias, lendas e seres fantásticos. O universo simbólico das rezas reúne um considerável número de lendas, histórias miraculosas que visam justificar o ritual, ou talvez, o ritual tenha como mérito justificar o mito, por meio da repetição da ação mítica perpetuada pela tradição. De qualquer forma, antes ou depois da execução do ritual dona Marietinha costumava contar como teve início a reza de cada enfermidade.

Durante as entrevistas dona Marietinha revelou importantes aspectos das rezas. No primeiro encontro ela mostrou-se relutante, com respostas curtas e negativas, do tipo: “eu não rezo mais” ou “eu não sei”. Essa reação da rezadeira foi vista por surpresa, pois tínhamos relativa familiaridade com a mesma. O gravador entre entrevistador e entrevistada quebrou a espontaneidade das respostas. Essa situação mudou na segunda entrevista, na qual dona Marietinha expôs várias facetas do mundo dos rezadores, demonstrando o processo de transmissão da cultura e as lendas legitimadoras.

Cada reza possui uma lenda que retrata sua origem. Essas lendas são retidas inúmeras vezes pelos rezadores e dona Marietinha foi uma de suas principais divulgadoras. No relato das lendas podemos observar o propósito de legitimar a prática da reza, muitas vezes mal vista pelo clero oficial. Observem o depoimento:

Quando Jesus andou, ele se fingiu de pobre. Ele passou numa casinha onde vivia um casal bem pobrezinho e eles iam comer tatu. Jesus pediu esmola o homem deu e falou pra mulher dar um pouco de comida. Ela não quis e disse para o marido mandar ele ir embora. Quando o casal foi almoçar a mulher se engasgou com um osso e falou para o marido e pedir ajuda ao velhinho que tinha passado em sua casa. Quando o homem encontrou o velhinho (Jesus), este disse que para melhorar era só rezar: casa velha, esteira rôta; bom homem, má mulher; se este osso não descer, valei-me Jesus de Nazaré. (SANTOS, 2002)

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A narrativa de Dona Marietinha é intrigante. Ela revela diferentes concepções do universo místico dos rezadores. A primeira delas é a do tempo. O tempo tratado na lenda é bíblico, ou seja, um período sacralizado. Neste caso a reza seria uma tradição oriunda do tempo das Sagradas Escrituras. Além disso, a tradição teria sido deixada pelo próprio Cristo. Mas o Cristo do depoimento também retrata uma faceta da população cajaibense. Ele teria vindo travestido de pobre, para atender às necessidades dos pobres. Mesmo se tratando do tempo mítico da Bíblia, o relato expõe aspectos da realidade cotidiana do povoado Cajaíba. Casebre, alimentação escassa, esmolas são facetas ocultas do convívio social do povoado.

Dona Marietinha em sua trajetória de rezadeira não era uma simples repetidora de história. Ela alegou já ter sido testemunha ocular de uma manifestação demoníaca. Em uma pescaria no riacho da fonte, em uma serra próxima do povoado, dona Marietinha mais duas companheiras teriam visto as “presepadas do coisa ruim”. Segundo dona Marietinha não foi o próprio demônio que apareceu, mas a Saia Velha (diabo em formas femininas) que teria arrastado folhas e árvores. No depoimento emocionado a rezadeira declara o esforço das três mulheres rezando e evocando a intervenção divina até fazer desaparecer aquela cena horrenda.

Os indícios intrínsecos a este relato em um ambiente rústico, em contato com a natureza diante de três mulheres. Neste sentido podemos tecer duas considerações antagônicas. Primeiro é que o diabo apareceu para as mulheres, ou seja, estas continuavam sendo vistas no povoado como fonte de pecado, seria a representação de Eva. Mas não devemos esquecer que segundo dona Marietinha foram as preces angustiadas das mulheres que fez a Saia Velha desaparecer. Neste caso, as mulheres seriam a redenção (Maria). Além das súplicas, não pode ser negado o peso mítico do número de mulheres. Foram três vozes femininas suplicando a ação divina contra o mal, ou seja, uma alusão a Santíssima Trindade.

A ação das mulheres no campo das rezas é bem limitada. O tabu do ritual em relação ao quadro feminino é notório. Devido às especificidades de cada reza, com exigência de horário, material e rezador, a eficácia das práticas das rezadeiras é muitas vezes questionada. Para seu Zé de Arcolino, irmão mais novo de dona Marietinha, tem rezas como a dona do corpo que devem ser realizadas as seis e dezoito horas. Além disso, se for executada por mulheres a eficácia não é garantida, devido a menstruação. O ciclo menstrual no povoado Cajaíba continua sendo visto como um sinal de debilidade psíquica.

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Contudo, com dona Marietinha a situação foi diferente. Ela foi uma rezadeira que conseguiu se destacar entre os principais rezadores da localidade. O ciclo menstrual não afetou a confiabilidade da rezadeira e ela conseguiu legitimação. Ela era uma porta-voz da tradição, por carregar em sua memória o peso das informações a serem transmitidas para a juventude. Dona Marietinha se legitimou mesmo sendo pobre e ter nascido mulher.

5. As marcas de uma caminhada de abnegação

A reza é uma tradição passada de geração a geração por meio da oralidade. O poder da palavra vai além da cura de enfermos excluídos da assistência pública, pois é um eficiente mecanismo de perpetualização do ofício dos rezadores. Na Cajaíba de outrora, os moradores costumavam reunir-se em pequenos grupos ao entardecer. O cessar da luz solar confluía com a transmissão dos saberes. Idosos e crianças sentavam nas calçadas de suas casas para contar fatos passados, estórias de “trancoso” e suas experiências. Muitos dos saberes do povo cajaibense revelam o aspecto da observação. São ricas interpretações do formato das nuvens, do vôo dos pássaros, da cor do pôr-do-sol, dos dias festivos que geralmente trazem respostas para as angústias sociais da localidade.

Dona Marietinha é uma herdeira dessa tradição. Ela teria aprendido as rezas com a avó, conhecida no povoado por Maria Parteira. A avó de Marietinha foi uma das principais rezadeiras de Cajaíba no decorrer da primeira metade do século XX, mas assim como a neta, oficialmente foi mais uma anônima. Mesmo assim, no campo mnemônico saiu vitoriosa, ainda sendo lembrada em sua terra natal cinqüenta anos após sua morte.

O poder de dona Maria Parteira chega a impressionar. Era uma rezadeira que conhecia rezas de todos os males, de todos os tipos. Rezava para cura de qualquer enfermidade humana, bicheira de rastro e até para controlar os fenômenos naturais. Ela alegava ter o dom de controlar fenômenos naturais, sendo capaz de parar trovão, rio cheio e apagar fogo. Suas palavras eram sinônimas de poder no campo simbólico. Ainda hoje poucos contestam que dona Maria Parteira tivesse condições de propiciar tais proezas.

Parte do repertório de cura da rezadeira foi repassada para os seus netos, Zé de Arcolino e dona Marietinha. Eles só puderam aprender as rezas de benesses humanas. Não se sabe o motivo dessa restrição, pois só podemos fazer conjecturas a respeito.

Uma possibilidade seria a falta de legitimidade das outras rezas diante da comunidade. O homem cajaibense não buscava controlar a força natural por meio de rezas.

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Esta constatação é pouco plausível. Como já foi dito antes, no povoado ainda hoje muitos crêem na existência de rezas capazes de tais proezas. Assim, seria difícil afirmar sobre uma possível crise de legitimação, na descrença de tais rezas nos meados do século XX.

Uma motivação mais plausível está relacionada ao aspecto do segredo. Dona Maria Parteira teria revelado a seus netos as rezas que eles estavam preparados para executar. As rezas fortes e, por conseguinte, perigosas, teriam permanecidas guardadas na memória da velha rezadeira para ser repassada em uma ocasião mais oportuna. Neste sentido, a morte teria silenciado a avó de Marietinha antes do tempo. A garota cajaibense, juntamente com seu irmão, não teve tempo de aprender o ofício por completo.

Mas o silêncio repentino de dona Maria Parteira deve ter tido suas motivações. Ela era mais um agente em um campo disputado. O segredo das rezas mais poderosas seria um meio de permanecer em um posicionamento privilegiado nos campos da saúde e religiosidade. As rezas constituíam o seu dom, a expressão do capital simbólico que só poderia ser transmitido para familiares, no caso, os netos. O poder continuava em família. Não sabemos também a motivação de haver saltado de geração. Maria Parteira passou seus saberes para os netos e não para os filhos. Isso pode ter contribuído para a fragmentação ritualística.

Todavia, muitos aspectos unem avó e neta, como o fato de serem mulheres, rezadeiras, pobres e parteiras. No decorrer do século XX era comum que as rezadeiras também fossem parteiras. Além da cura, mulheres como dona Marietinha eram incumbidas de facilitar os partos. Essa parece ser uma característica remota do universo religioso popular. O historiador inglês Peter Burke, ao tratar sobre a cultura popular na Idade Moderna alertou que “a mulher ‘sabia’ muitas vezes era parteira, que podia assistir a parturiante com fórmulas mágicas e preces específicas” (BURKE, 1989, p. 30)

Os partos estavam inseridos no amplo leque de especialidades das rezadeiras. As senhoras dos cochichos inaudíveis e das ervas eram também as que preparavam, puxavam e anunciavam o nascimento de uma nova vida. Nem sempre os partos eram fáceis. O risco de morte aterrorizava as grávidas e abalava o prestígio das parteiras. O maior risco era o das crianças laçadas, que exigiam um parto ultra-cauteloso. No nascimento, o limite entre a morte e a vida era uma linha tênue. A invocação ao sagrado era um dos caminhos para facilitar os partos. Por isso que as crianças laçadas eram batizadas de José ou Josefa. O estigma do drama do nascimento era inserido na identidade do laçado.

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O sacrifício e dedicação das rezadeiras-parteiras eram reconhecidos. Os filhos das parturientes que elas tinham auxiliado no parto as chamavam de mãe. Mesmo não os tendo carregado em seu ventre por nove meses, as parteiras eram consideradas mães por terem auxiliado a dar a luz, a traze-los para o mundo. É uma forma de capital simbólico.

Entretanto, rezar não era tarefa fácil. Havia também o peso do dom divino. Praticar o ritual poderia ser uma atividade perigosa. Se não houvesse cautela na escolha do material, o mal do rezado atormentado poderia ser transferido para o rezador.

Podemos dizer que se trata de uma circulação de energias simbólicas, ou seja, ao iniciar o ritual na tentativa de exorcizar a doença do rezado por meio da ação dos ramos/reza, o rezador desencadeia um complexo processo de movimentação de forças do campo simbólico. Primeiramente o rezador age, incidindo seu poder (ou da reza) sobre o enfermo. Os tormentos do enfermo são deslocados e transferidos para os ramos (ou qualquer outro elemento da natureza). Dessa forma as energias simbólicas circulam entre rezador, ramos e rezado, ficando atrelados aos ramos. Caso os ramos contenham alguma impureza, as enfermidades exorcizadas passam direto para o rezador, que está propenso a receber tais energias. É por esse motivo que dona Marietinha sempre foi cuidadosa em retirar os três ramos para suas orações. Ela evitava o uso de ramos impuros, com sementes ou que tivessem sido benzidos. Como ressaltou seu Zé de Arcolino, essa era uma forma de evitar que as doenças penetrassem em seu corpo.

Os cautelosos cuidados de dona Marietinha não foram suficientemente eficazes. A rezadeira foi afetada por uma das enfermidades das quais rezava. Foi o ar de congestão, passageira ou derrame. Nos últimos anos de vida Marietinha passou a sofrer com os infortúnios de ter a metade do corpo paralisada. Era o temido ar de babar. Em algum momento de sua trajetória, ela escolheu os ramos errados e perdeu a saúde, que já era debilitada. O preço do equívoco foi alto.

A partir desse momento o filho passou a cuidar da mãe. Nesta ocasião as manchas de vitiligo sobre o corpo negro da rezadeira perderam espaço diante das inúmeras feridas. Os moradores da Cajaíba davam o veredito: “ela é uma nega de valor, mas só está esperando a hora”. As doenças foram mais percalços na trajetória de uma rezadeira negra.

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No último decênio de sua vida, dona Marietinha era vista como a mais importante rezadeira de Cajaíba. Ela conseguiu legitimar-se em um campo em que os homens eram vistos como os detentores de maior poder. Além disso, contribuiu para a perpetualização do imaginário, com a difusão de lendas. Ela foi a mulher responsável pela cura, mas também pela prevenção das diferentes enfermidades. A pobreza da rezadeira contrastava com o respeito que a mesma detinha no povoado.

O cotidiano da rezadeira revelou uma faceta prestigiada. Muitos dos moradores lhe pediam a benção. Dois motivos justificam esses comportamentos. O primeiro deles está associado ao antigo ofício de parteira de dona Marietinha. Geralmente, as pessoas que nasciam em casa eram condicionadas a chamar a parteira de mãe. Dona Marietinha conseguiu ser inserida em diferentes famílias cajaibenses, ao menos no campo simbólico. Ela tornou-se figura marcante no processo de formação dos moradores do povoado, pois atuando como parteira e rezadeira, dona Marietinha poderia está presente na vida dos moradores da localidade do nascimento até a morte.

O outro motivo demonstra a legitimação da rezadeira no campo. Apesar de ser mulher, pobre e negra (fato que poderia impedir o acúmulo de capital simbólico em uma comunidade conservadora), dona Marietinha conseguiu ao longo de sua trajetória de rezadeira angariar prestígio. Ela tornou-se uma ligação entre duas realidades distintas, o elo que unia o contingente cotidiano e profano à realidade sagrada. Destarte, este olhar descortina apenas os aspectos da vida da rezadeira em sua maturidade. A juventude de Marietinha continuava enigmática.

No decorrer da entrevista em todos os momentos em que focalizamos a sua juventude, dona Marietinha desconversava. Ela protelou a conversa sobre esse aspecto. Foram hesitações e não ditos que propiciaram o aumento da curiosidade sobre o que Marietinha escondia sobre aquele período remoto.

As respostas das inquietações começaram a surgir a partir da análise da estrutura familiar dos rezadores. Da família de dona Marietinha só encontramos o irmão e o filho. O fato de ter gerado apenas um filho era uma situação incomum na rotina familiar do povoado. Então passamos a indagar sobre possíveis motivações que fizeram de Marietinha ter apenas um filho. A resposta não tardou em aparecer. A rezadeira nunca chegou a se casar e acabou sendo mãe solteira. Na comunidade ser mãe solteira gerava uma péssima reputação.

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De mãe solteira a rezadeira prestigiada, dona Marietinha cruzou uma longa e árdua caminhada na trilha da memória. A imagem de mulher mundana foi sendo apagada da memória social, sendo substituída por uma imagem de rezadeira, parteira, responsável por um importante ofício da sociedade local: a saúde.

Na trama mnemônica dona Marietinha saiu vitoriosa, tornando-se a mais popular entre os rezadores da localidade, ostentando a pose de possuir maior poder de mobilização. Com isso, podemos dizer que Marietinha foi uma rezadeira de múltiplas facetas e ações. Foi mulher, pobre, negra e mãe-solteira. Mesmo assim tornou-se popular.

Referência Bibliográfica

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Referências

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