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"Protecionismo" Ambiental e Conflitos Sociais na Comunidade Bom Jesus, Uruará, Pará

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Academic year: 2020

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“PROTECIONISMO” AMBIENTAL

E CONFLITOS SOCIAIS

NA COMUNIDADE BOM JESUS,

URUARÁ, PARÁ*

IVAÍDE RODRIGUES DOS SANTOS**, ASSIS DA COSTA

OLIVEIRA***

O

processo de ocupação do território da Transamazônica (BR-230) inseriu-se, his-toricamente, em distintas estratégias governamentais de exploração dos recursos naturais visando a exportação para centros comerciais nacionais e/ou internacio-nais1. Na década de 1970, com o Decreto-Lei nº. 1.106, de 16 de junho de 1970, o regime militar intensificou a colonização dirigida na região com a constituição do Programa de Integração Nacional (PIN), na intenção de investir no plano de obras de infraestrutura nos espaços de atuação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), e assim promover a rápida integração dessa área à economia nacional.

Resumo: o artigo objetiva analisar o processo de disputa da “questão ambiental” na

Comu-nidade Bom Jesus, por meio da análise de entrevistas locais sobre a fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Discute-se modo de utilizar as normas legais para criminalizar os agricultores familiares, fazendo parte de uma estratégia de “protecionismo” ambiental e estigmatização dos sujeitos locais.

Palavras-chave: Protecionismo ambiental. Conflitos sociais. Direito ambiental. Direito dos

povos e comunidades tradicionais.

* Recebido em: 03.02.2015. Aprovado em: 15.03.2015.

** Agricultor familiar, licenciado e bacharel em Etnodesenvolvimento pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus de Altamira, ex-coordenador geral da Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP), sediada em Altamira, Pará. E-mail: vairsantos@yahoo.com.br.

*** Professor de Direitos Humanos do Curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento da UFPA, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da UFPA. Secretário de articulação do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). Membro do Grupo Temático “Povos e Comunidades Tradicionais, Questão Agrária e Conflitos Socioambientais” do IPDMS. Advogado. E-mail: assisdco@gmail.com

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Desde então, milhares de famílias das regiões Nordeste, Centro-Sul e Sul do Brasil foram estimuladas pelo governo federal à se deslocarem para a região – e muitas outras vieram “espontaneamente” de vários estados do Brasil atraídas pelas propagandas – motivadas pela esperança de consolidar o sonho de conquistar a terra própria e desenvolver atividades agrí-colas que não puderam realizar em seus estados de origem, a exemplo da Comunidade Bom Jesus, localizada no atual município de Uruará/PA.

A Comunidade Bom Jesus está localizada na vicinal do Km 224-Norte da Rodovia Transamazônica, a uma distância de 17 km da BR 230, pertencendo ao município de Uruará/ PA. É formada, basicamente, por famílias originárias do estado da Bahia que chegaram ao Pará entre 1984 e 1988. Nos primeiros dez anos de existência da Comunidade havia aproxi-madamente 50 famílias bastante articuladas e lideradas pelo Sr. José Rodrigues, popular “Zé Grande” (avô do Ivaíde), fundador da, então, Comunidade Católica Bom Jesus, em outubro de 1985, e da escola, em 1986, a qual recebeu o mesmo nome da comunidade.

Inserida dentro do contexto de colonização dirigida do governo militar, as práticas culturais de uso dos recursos naturais dos agricultores familiares da Comunidade Bom Jesus foram intensamente influenciadas pelas condições ambientais da região e pelas regras/critérios estabelecidos pelo Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma Agrária (IN-CRA), sobretudo quanto a necessidade de desmatamento para permanência nos lotes, uma das obrigações definidas aos colonos para que pudessem adquirir o título da terra.

Porém, nos últimos anos, a disseminação e internalização do discurso da sus-tentabilidade e da preservação do meio ambiente trouxe novas situações e conflitos aos agricultores familiares locais, as quais objetiva-se analisar ao longo do presente artigo, especialmente no tocante aos procedimentos fiscalizatórios do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) junto à Comunidade, para refletir sobre os usos políticos do discurso da proteção ambiental para desenvolver ações de “protecionismo” que articulam um apego literal à norma com à desconsideração da diversidade cultural e à desigualdade das formas de tratamento de agentes de diferen-tes forças político-econômicas.

Os dados que subsidiaram este artigo foram obtidos dos relatórios das pesquisas realizadas pelo discente Ivaíde Rodrigues dos Santos junto à sua Comunidade de origem, a Bom Jesus, durante o período do Tempo-Comunidade do Curso de Licenciatura e Bacha-relado em Etnodesenvolvimento2, sediado na Faculdade de Etnodiversidade no Campus de Altamira da Universidade Federal do Pará (UFPA).

As pesquisas foram realizadas entre os anos de 2011 e 2014, mediante o uso de diversos métodos de pesquisa: aplicação de questionários semiabertos, entrevistas semiestruturadas, observação participante, análise documental e de bibliografia. Além disso, foram realizadas visitas domiciliares, sempre com ciência prévia das famílias e da comunidade, assim como reuniões realizadas antes do início de cada etapa da pesquisa/ Tempo-Comunidade.

POLÍTICA AMBIENTAL E “PROTECIONISMO”: O IBAMA E A COMUNIDADE BOM JESUS

A política de preservação ambiental do Governo está concebida sob a lógica das quantidades de recurso naturais, por isto é algo que precisa “economizar”, “preservar” e

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“pro-teger”, ainda que sob um jogo desigual de tutela e intervenção estatal e com interesses econô-micos nem sempre visíveis nas ações de proteção ambiental empreendidas.

Por isso mesmo, Almeida (2012, p. 64) indica que a partir da primeira década do Século XXI passa-se a ter a implantação de políticas governamentais de reorganização de espaços e territórios, que visam menos uma lógica de “proteção” da natureza e mais a de “protecionismo”, é dizer, “numa ação do Estado inspirada principalmente no potencial de crescimento econômico” e que se vale muitas vezes do discurso da sustentabilidade ambien-tal para promover a flexibilização de direitos étnicos e a desconsideração às territorialidades específicas e históricas3.

Nesse sentido, o município de Uruará foi palco, no ano de 2010, da operação “Arco de Fogo” desenvolvida pelo IBAMA em parceria com a Polícia Federal e a Força Nacional. Para além do fato da operação ter logrado uma quantidade considerável de infrações am-bientais e embargo de serrarias clandestinas, a cultura institucional de fiscalização e repressão estatal sob o discurso da proteção ambiental atingiu um caráter generalizante e passou a ser o modus operandi de atuação do órgão ambiental no município – e na região.

Em nossa pesquisa realizada com algumas famílias da Comunidade Bom Jesus (SAN-TOS, 2013), as mesmas relataram estarem passando por um processo acelerado de vulnerabi-lização social e financeira, apontando como fator externo mais relevante a “política ambiental do governo”, ou melhor, a forma de atuação do IBAMA nas ações de fiscalização ambiental junto aos agricultores familiares:

Se o IBAMA me multar, mesmo vendendo meu gado, minha terra não dá para pagar a multa. Tratam-nos como bandidos, estou aqui há 38 anos e tenho três lotes, e ainda não desmatamos tudo, é uma sensação de frustração, um sentimento de perda de uma vida inteira, ai chega o governo e me proíbe de trabalhar (João Gaúcho, entrevistado em 28/05/2013).

O Sr. João é um dos pioneiros que chegou à localidade no início da década de 1980. Começou com o cultivo de lavouras anuais, depois investiu na lavoura cacaueira, assim como a pimenta do reino e café, porém nenhuma dessas atividades agrícolas proporcionou estabili-dade econômica e produtiva para sua família. Por último, decidiu investir na criação de gado, e até o momento conseguiu sobreviver, no entanto, segundo o mesmo, com a intensificação das fiscalizações ambientais já vê possibilidade de mudar de ramo, ou até sair.

Pudemos presenciar esse clima de tensão que vivem os agricultores da Comunida-de Bom Jesus toda vez que técnicos do IBAMA se dirigem à ela para realizar às fiscalizações ambientais. Numa das vezes, quando a equipe do órgão chegou à Comunidade, moradores e trabalhadores tiveram que se esconder no mato com medo de serem presos ou multados. Tudo isto só contribui para o agravamento da situação socioeconômica das famílias que está expressamente manifestado nas falas das pessoas, a exemplo da que segue abaixo:

Eu não sou bandido, não quero matar, nem roubar, só quero trabalhar, mas vejo que isto já não é possível, estou sozinho, tenho que ajudar meus filhos na cidade, o cacau e gado já não está compen-sando, ai chega o Governo que, ao invés de ajudar, nos obriga a sair de nosso lugar (Miguel Costa, entrevistado em 25/05/2013).

O Sr. Natanael é outra pessoa que está desanimada com a situação pela qual passa a agricultura. Segundo ele, não se vê vivendo na cidade, mas cogita esta possibilidade, colocou placa de venda nos lotes que herdou dos pais, inclusive cancelando uma proposta de

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financia-mento, mesmo após ter feito gastos preliminares, pois é grande a chance do fiscal do banco indeferir, uma vez que a área de pastagem recém-aberta está dentro da Área de Preservação Permanente (APP) – na concepção do IBAMA – como já aconteceu com outros agricultores da região, que após terem gasto com a elaboração do Cadastro Ambiental Rural (CAR)4, o gerente do banco indeferiu o projeto e, portanto, inviabilizou o repasse do crédito.

No contexto da Comunidade e do processo histórico de colonização da região, duas questões influenciam a ordem atual de intensificação da criminalização dos agricultores familiares pelo órgão ambiental. A primeira diz respeito ao tempo em os agricultores estão na área. Por morarem há mais de 30 anos no local, foram historicamente orientados pelo INCRA a trabalharem com um limite máximo de 50% de floresta desmatada em cada pro-priedade, regra que foi internalizada pelos agricultores como limite “legal” ou “estatal” de uso da terra/propriedade, ainda que vários agricultores até hoje não tenham atingido esse limite de desmatamento.

No entanto, com a aprovação da Medida Provisória (MP) nº. 1511/1996 e, poste-riormente, da MP nº 2.166/2001, que alterou o antigo Código Florestal (Lei nº. 4771/1965), “fora aumentada de 50% para 80% a área de Reserva Florestal Legal nas propriedades rurais na região de florestas na Amazônia Legal” (SCHÜTZ, 2012), a qual foi mantida no Novo Código Florestal (Lei nº. 12651/2012)5.

A mudança normativa, sob o auspício da ideia de fortalecimento da preservação ambiental, e não desconsiderando seu caráter positivo, na prática institucional acabou por gerar um “apagamento do passado normativo” e uma descontextualização das práticas cultu-rais de atividade produtiva estruturadas por ele. Como uma “tabula rasa”, o órgão ambiental se viu impelido a impor os novos ditames legais e classificar como “predatório”, “prejudicial” ou “danoso” os usos dos recursos naturais empreendidos durante décadas pelos agricultores familiares6, com apoio e incentivo do INCRA.

Uma segunda questão é o fato de grande parte das propriedades existentes na Co-munidade Bom Jesus estarem em terreno inclinado. Segundo relatos dos interlocutores, le-vando em consideração o fator de relevo das propriedades como exige a lei, a maioria das propriedades está impossibilitada de ser utilizada para atividades agrícolas, pois, segundo o Novo Código Florestal Brasileiro, as Áreas de Preservação Permanente (APP) deverão ser preservada, como expressa o diploma legal:

Art. 4º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei:

IV - as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água perenes, qualquer que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros; (Redação dada pela Lei nº 12.727, de 2012). V - as encostas ou partes destas com declividade superior a 45°, equivalente a 100% (cem por cento) na linha de maior declive [...] (BRASIL, 2012).

Fearnside (2003, p. 4), em seu estudo sobre a região da Transamazônica, mais pre-cisamente no trecho entre Brasil Novo e Medicilândia, mostra como as formas de relevo dos lotes acaba por impossibilitar a prática de atividades agrícolas:

[o] relevo topográfico na área é altamente variável. Alguns colonos têm lotes quase planos, mas a maioria tem severas limitações causadas por encostas íngremes. As encostas inclinadas não só impos-sibilitam qualquer perspectiva de agricultura mecanizada como também abrigam um considerável potencial de erosão especialmente sob cultivos anuais.

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Logo, as questões normativas, ao serem utilizadas de maneira a não considerar a diversidade cultural, acabam gerando práticas institucionais marcadamente voltadas para a repressão e criminalização dos agricultores familiares, como sem ante tal “novidade” não se houvesse que sopesar as condições históricas de uso do território e os modos de vida tradi-cionais. Com isso, o IBAMA reproduz a faceta histórica de intervenção do Estado na região amazônica, com políticas públicas de intervenção sobre os modos de vida locais somente para dizer-lhes “o que não fazer” e “o que não ser”, e, por isso mesmo, induzindo relações de poder assentadas na imposição de conhecimentos e na desconsideração de lógicas nativas de tratamento dos recursos naturais que foram, em outros tempos, marcantemente incentivadas pelo próprio Estado, nesse caso, o INCRA, quando do início da colonização.

Mais do que isso, o Estado coloca-se como aquele que só chega para impedir ou deslegitimar, nunca para promover políticas públicas que atendam reivindicações históricas dos agricultores familiares. Desse modo, dissemina uma prática institucional de preserva am-biental de “cima para baixo”, desconsiderando as formas de territorialização e de uso dos recursos naturais, cujos efeitos acabam sendo a depreciação das condições de vida no campo e o aquecimento do mercado de terras7, portanto, a reprodução do “protecionismo” ambiental (ALMEIDA, 2012).

Paradoxalmente, enquanto os pequenos agricultores são proibidos de derrubar para produzir para o próprio consumo, o IBAMA concede licença para o governo construir a obra da Usina Hidrelétrica de Belo Monte (UHE Belo Monte) que está gerando impactos desastrosos para as comunidades tradicionais e a população local, dentre os quais o desma-tamento de grandes porções de floresta nativa ainda existente na região da Volta Grande do rio Xingu, da qual pesquisa do IMAZON (2013) constatou uma projeção de desmatamen-to de 80% da cobertura florestal em territórios fora de áreas protegidas (terras indígenas e unidades de conversação) para os próximos 20 anos, na área de influência da UHE Belo Monte, além de estimar que o desmatamento indireto causado pela hidrelétrica pode atingir o pico de 5.316 km² em 20 anos, ou seja, mais de dez vezes o tamanho da área a ser alagada pela barragem, planejada para ser de 503 Km².8

Além disso, se, por um lado, o IBAMA pressiona os agricultores familiares da comunidade para se adequarem as lógicas legitimadas e normatizadas de reserva legal, por outro, o INCRA se omite das responsabilidades executando ação completamente in-compatível com a realidade de centenas de famílias, como é o caso da criação, em 1993, do Projeto de Assentamento Tutuí Norte9 (PA Tutuí Norte) para pequenos agricultores na mesma vicinal onde fica a comunidade Bom Jesus. As condições do assentamento são péssimas10. Não tem energia e o apoio técnico está distante de Uruará aproximadamente 100 km, localizado numa terra seca, de solos fracos para a agricultura, e fica numa área onde foi retirada toda a madeira pelas madeireiras e fazendeiros. Novamente, lá, quando o IBAMA chega, é somente no intuito de saber se houve desmatamento acima de limite legal, e não de entender as condições de produção do desmatamento como mecanismo de reprodução da ausência de políticas públicas do Estado para fortalecimento da agri-cultura familiar.

Diante desse cenário fica estabelecido um quadro de conflito socioambiental en-tre agricultores familiares, de um lado, e Estado brasileiro, de outro, que tem trazido sérios problemas para as famílias da Comunidade Bom Jesus, sobretudo para a intensificação do êxodo rural:

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[p]enso que o ciclo da agricultura está chegando ao fim, criar gado não compensa no modelo que sempre criamos, o capim está morrendo, não conseguimos controlar as pragas das pastagens manu-almente e o cacau também perdeu valor, infelizmente vamos vender aquilo que nosso pai lutou tanto para consegui, nosso lote (Natanael, entrevistado em 12/05/2013).

Segundo levantamento realizado em conversa com os moradores da comunidade (SANTOS, 2013), a estimativa é de que já houve a perda de 70% das famílias, as quais se mudaram preponderantemente para a cidade ou retornaram para seus lugares de origem11. Ao mesmo tempo, há uma inversão discursiva sobre quem são os “vilões” do desmatamento no município, atribuindo-se aos agricultores familiares um grau de responsabilidade que es-camoteia seu caráter seletivo e discriminatório.

Por isso, tornou-se de “senso comum” ouvir no município de Uruará o discurso de que as práticas da agricultura familiar são as “grandes fomentadoras do desmatamento”. Contra-riando essa visão superficial em relação ao uso dos recursos naturais por parte dos agricultores, a posição e a consciência dos mesmos é completamente diferente de 20 ou 30 anos atrás, outra concepção foi incorporada atribuindo à apropriação dos recursos naturais outros significados, ampliando para além da preservação, se colocando como parte do meio ambiente.

É possível ver em várias propriedades da Comunidade Bom Jesus as matas ciliares se recuperando, as margens de curso d’água preservadas, o aumento do peixe e a presença de animais que antes estavam ficando difíceis de encontrar, isto tudo apesar de acelerado êxodo rural. O rio, a lagoa, a cacimba, as árvores e os animais são parte que compõe a identidade cultural que está ligada ao modo de vida da Comunidade. Exemplificando, vejamos o depoi-mento de um pescador da região dos lagos no Rio de Janeiro, que mostra sua identificação/ concepção de meio ambiente:

[c]onsidero a Lagoa quase minha mãe. Toda a minha família sempre pescou aqui. Antes era ‘de cesto’. O pobre vivia aqui, numa casinha de sapê e sempre tinha o que comer... esta lagoa pra mim é tudo. Eu brigo, eu dou a minha vida por ela, eu dou qualquer coisa por ela... Eu sinto muito a lagoa está hoje como está. Sou nascido e criado aqui. Não sei viver sem a praia, sem as águas. Se eu for para cidade grande, eu tenho que ver a praia, eu estou vendo a minha lagoa... É a melhor vida do mundo, a vida de pescador. É uma higiene mental, aquele peixe fresco, chegar em casa cheio de peixe natural. Eu acho que não acostumo com outro serviço...Eu pesco desde os 10 anos de idade. Essa lagoa era a coisa mais rica que nós via aí, há 25 anos atrás. Tenho 30 anos pescando. Nasci e me criei dentro desta lagoa. Hoje eu luto porque eu nasci e me criei aqui e o que tenho agradeço a ela porque foi tirado dela. Meu pai, minha família, tudo veio da pesca. Inclusive foi ele que me jogou prá água quando eu tinha 10 anos. Então quando a gente vê esta situação agente fica triste... (OLIVEIRA, 2003, p. 9).

Com as comunidades tradicionais de agricultores não é diferente, fazemos parte de uma história construída com muita luta. Sempre que retornamos a Comunidade, vemos as casas abandonadas, o curral, as árvores plantadas, a igrejinha, o igarapé onde brincávamos, outras marcas já não existem mais, mas as lembranças estão vivas em nossa memória e isto é algo imensurável e impagável – mesmo sendo realocado para outro lugar, não é possível retirar de nós a história que fica enraizada naquele lugar e que segue conosco por toda a vida. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O “protecionismo ambiental” desenvolvido pelo IBAMA produz, na Comunidade Bom Jesus, os efeitos opostos ao da proteção ambiental, relegando aos agricultores os

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senti-mentos de impotência e de medo frente às fiscalizações ambientais, e promovendo uma rela-ção desigual de cobranças frente às outras intervenções mais drásticas no território da região, com a UHE Belo Monte. O legalismo generalizante do discurso do desmatamento e da (ale-gada) proteção ambiental acaba desconsiderando a historicidade do processo de colonização na comunidade – e na região, como um todo – e estigmatiza as comunidades rurais, sem atentar para os sentidos nativos de “desenvolvimento” e “sustentabilidade” que se manifestam em práticas materiais e simbólicas.

Este cenário tem ocasionado consequências negativas para a reprodução econômica e sociocultural da Comunidade Bom Jesus, pois seus membros possuem uma concepção di-ferente do que é desenvolvimento, melhoria de vida e viver bem. Se perguntarmos para um/ uma chefe de família da Comunidade o que é viver bem, certamente a resposta não será o “acumulo de bens e dinheiro”, antes sim a ideia de querer é continuar no nosso território com o mínimo de condições estruturais para poder dá uma vida melhor aos filhos, poder caçar, pescar, realizar as mais diversas formas de manifestação cultural, além das práticas produtivas, as quais se baseiam em três princípios importante: “poder alimentar-se bem” (fartura), mo-radia de qualidade (sem barulho, mosquito e de janela aberta) e solidariedade (o que tenho não só meu).

As roças e a lida com o rebanho são realizadas em mutirão, quando se apanha uma caça, um peixe ou se abate um animal (porco ou gado), isto é dividido entre os parentes e vizinhos, por isso a produção não se baseia unicamente na subsistência física ou comercial, ela está ligada a uma dimensão social, religiosa e cultural, pois são nessas práticas que se ensi-nam e transmitem os saberes e conhecimentos sobre os modos de vida e, consequentemente, a construção da identidade cultural do grupo, de maneira similar, mais não idêntica, ao que enfatiza Luciano (2006, p. 193-4) sobre a concepção de economia dos povos indígenas:

[a] importância de se entender esta dimensão social das economias indígenas é fundamental para não se considerarem as atividades produtivas apenas como necessidades físicas ou biológicas (so-brevivência física), mas também como necessidades pedagógicas, espirituais e morais. Assim, uma cerimônia ou festa de “Dabucuri”, no Alto do Rio Negro, ao mesmo tempo que é um espaço e um momento de socialização de um determinado ciclo produtivo bem-sucedido, é também um longo período de formação prática e espiritual de jovens que estão se preparando para a vida adulta. Atualmente, muitas dessas práticas culturais já não são possíveis de realização, em virtude de várias famílias fundadoras da Comunidade terem saído dela. Isso deixa um sen-timento de tristeza e de isolamento, pois é comum em alguns calendários sociais, como a Páscoa e o Natal, uma família abater um gado e chamar os vizinhos para comerem juntos, ou quando uma pessoa adoece e todos vão lhe dar apoio e fazem o roçado para ajudar – sem essas relações construídas e repassada há séculos por nossos ancestrais, nossa existência fica ameaçada, ou, ao menos, entra num dinamismo físico de saída do campo e afastamento das pessoas que afeta drasticamente a dinâmica cultural.

Por outro lado, cabe problematizar o “protecionismo ambiental” do IBAMA en-quanto uma prática institucional que desconhece (ou deprecia) os direitos étnicos das comu-nidades tradicionais camponesas, sobretudo o da autonomia e da participação nos processos de decisão sobre suas vidas e políticas que venham a afetá-las. Trata-se de identificar a conver-são dos direitos territoriais dos agricultores familiares em medidas passíveis de flexibilização ante o imperativo dos direitos ambientais e do interesse governamental que o instrumentaliza

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a seu favor e ao seu sabor. environmental “protectionism” and social confliCTS in bom jesus community, uruará pará

ENVIRONMENTAL “PROTECTIONISM” AND SOCIAL CONFLICTS IN BOM JESUS COMMUNITY, URUARÁ PARÁ

Abstract: the article aims to analyze the dispute process of “environmental issue” in Bom Jesus

community’s, through analysis of loca interviews on the supervision of the Brazilian Institute of Environment and Renewable Natural Resources. It discusses how to use the legal standards for criminalizing family farmers as part of a strategy of environmental “protectionism” and stigmati-zation of local actors.

Keywords: Environmental protectionism. Social conflicts. Environmental law. Right of

traditio-nal peoples and communities.

Notas

1 A região da Transamazônica assim se constituiu nominalmente apenas na década de 1970, por conta da rodovia construída com o mesmo nome. Antes disso, a região também fora palco do domínio econômico do aviamento da borracha, da diversificação da exportação de produtos da floresta (pele de animal, castanha-do-pará, entre outros) e o garimpo (COSTA, 2012; LÉNA, 2004; Schmink e Wood, 2012). No entanto, tais perío-dos, constantemente chamados de ciclos econômicos, não serão analisados no presente trabalho.

2 Para outras informações sobre o curso e a modalidade do Tempo-Comunidade, que integra a dinâmica da Pedagogia da Alternância, consultar: Oliveira, Beltrão e Ribeiro (2013), Oliveira e Beltrão (2015).

3 E continua: “[o]s sentidos práticos se baseiam, enfim, numa noção de crescimento econômico mais voltada para a expansão das commodities e uma ‘reestruturação formal’ do mercado de terra e seu potencial de ‘regionalização’ ou agilização de títulos, dirimindo conflitos fundiários localizados e dispondo, para as tran-sações de compra e venda, apenas imóveis regularizados” (ALMEIDA, 2012, p. 66).

4 O CAR, criado no âmbito do Sistema Nacional de Informação sobre Meio Ambiente (SINIMA), “passa a ser o registro público nacional obrigatório para os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informa-ções ambientais das propriedades e posses rurais. Tem por objetivo gerar uma base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento (art. 29 do Código Florestal)” (Lehfeld, Carvalho & Balbim, 2013, p. 139. Grifos nossos).

5 No texto do diploma atual, da seguinte forma: Art. 12. Todo imóvel rural deve manter área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal, sem prejuízo da aplicação das normas sobre as Áreas de Pre-servação Permanente, observados os seguintes percentuais mínimos em relação à área do imóvel, excetuados os casos previstos no art. 68 desta Lei: [...] I - localizado na Amazônia Legal: a) 80% (oitenta por cento), no imóvel situado em área de florestas [...]” (Brasil, 2012).

6 Nesse ponto, cabe enfatizar a disputa por significados e representações existentes no campo ambiental está, configurando-se como “um dinâmico espaço de formulação de esquemas classificatórios: ideias como ‘pre-datório’, ‘poluição’, ‘degradação’, ‘sustentável’, ‘preservação’, ‘biodiversidade’, são categorias novas e ino-vadoras, cujos significados estão em disputa, trazendo para o centro da luta os critérios a partir dos quais se legitimam práticas, atividades e estruturas de poder estabelecidas sobre o mundo material e simbólico” (Oliveira, 2004, p. 99).

7 As últimas informações recebidas da comunidade (maio de 2014) indicavam que o Sr. Natanael já se encon-trava morando em Altamira e trabalhando numa empresa que presta serviço ao Consorcio Construtor de Belo Monte (CCBM), após ter vendido o lote para um empresário do ramo de madeira e pecuária de fora da região.

8 Segundo o relatório do IMAZON (2013): “Para estimar o impacto do projeto da UHE no desmatamento calculou-se a diferença entre a área total desmatada em 20 anos nos cenários com e sem o projeto. Combi-nando a tendência do desmatamento mais baixo do período 2006-2009 com as projeções de população com o projeto projetou-se que seriam desmatados em torno de 800 km2 adicionais em 20 anos. Já considerando

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a tendência do desmatamento mais elevado do período 2000-2005, projetou-se que seriam desmatados de 4.408 km2 a 5.316 km2 adicionais, dependendo do nível de imigração. A proporção da floresta remanes-cente em 2009 que seria desmatada até 2030 também variaria grandemente dependendo da tendência da relação entre população e desmatamento. Se prevalecesse a tendência observada entre 2006 e 2009, em 20 anos seriam perdidos cerca de 5% da floresta remanescente em 2009 nos cenários com e sem a UHE. Mas se prevalecesse a tendência de 2000-2005, em 20 anos seriam desmatados de 33% a 38,5% da floresta remanes-cente em 2009. Cerca de três quartos da floresta original fora de Áreas Protegidas estaria desmatada em 20 anos se a tendência elevada de desmatamento prevalecesse mesmo no cenário sem a UHE Belo Monte. Com a UHE com taxa elevada de desmatamento a perda de floresta chegaria a cerca de 80% da área original de floresta. Portanto, a variação do nível de intensidade e eficácia da fiscalização (que resultaram em tendências de taxas muito diversas recentemente) será um fator preponderante na capacidade de mitigar os impactos do projeto” (Grifos nossos).

9 A área que corresponde ao atual assentamento foi palco de grilagem e intensa exploração de madeira pela empresa Marajoara, o que tornou a terra imprópria para a pratica da agricultura familiar, possibilitando assim a expansão da atividade pecuária. Depois que a empresa saiu da área, o INCRA criou o assentamento. 10 Notícia vinculada em janeiro de 2013 com o título “Agricultor denuncia abandono de assentamento em

Uruará, PA”, informava “a situação de abandono pela qual as famílias do Projeto Tutuí Norte, na região Transamazônica, estão passando. De acordo com o agricultor [denunciante], o assentamento ‘Projeto Tutuí Norte’, que fica a 100 km da sede do Município de Uruará, foi criado há cerca de 10 anos e até hoje eles não receberam nenhum tipo de benefício por parte do Governo Federal, haja vista que o assentamento é de responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, INCRA. ‘Dentro desse assenta-mento há muitas famílias e elas estão morando e trabalhando há mais de oito anos, sem casa, sem recursos e sem estradas, e quando fazem os seus plantios, às vezes, a sua produção até se perde’, desabafou Marinho” (Brasil Novo Notícia, 2013).

11 A maioria dos grupos familiares se encontram, na atualidade, apenas com o pai e/ou a mãe no campo, ambos sem condições financeiras e físicas para continuar o árduo trabalho na agricultura. Na dinâmica de saída do campo, em regra, primeiro vão os filhos para cidade com o objetivo de estudar, porém como as cidades não possuem estruturas capazes de oferecer serviços públicos, assim como empregos, os filhos se veem no dilema de estudar ou trabalhar, e acabam optando pela segunda alternativa. E, como não tem como manter duas despesas no lote e na cidade, uma vez que os pais já não podem contar com a força de trabalho, o resultado é a venda ou o abandono da propriedade pelos pais para irem morar com os filhos, quebrando assim um ciclo de reprodução cultural, uma história construída com muito suor, durante décadas, no campo.

Referências

ALMEIDA, A. W. B. Territórios e territorialidades específicas na Amazônia: entre a “prote-ção” e o “protecionismo”. Cadernos CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 63-71, 2012.

BRASIL. Lei nº. 12.651, de 25 de maio de 2012 (Código Florestal). Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm. Acesso em: 27 set. 2014.

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Referências

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