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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
FACULDADE DE DIREITO “PROF. JACY DE ASSIS”
JOÃO PEDRO CANDIDO STROZE
DELAÇÃO PREMIADA E SUA APLICAÇÃO FRENTE AO ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL
UBERLÂNDIA – MG
2 JOÃO PEDRO CANDIDO STROZE
DELAÇÃO PREMIADA E SUA APLICAÇÃO FRENTE AO ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL
Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.
Orientador: Helvécio Damis de Oliveira Cunha
UBERLÂNDIA – MG
3 JOÃO PEDRO CANDIDO STROZE
DELAÇÃO PREMIADA E SUA APLICAÇÃO FRENTE AO ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL
Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.
DATA DE APROVAÇÃO: ____/ ____/ _____
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4 RESUMO
Desde seu surgimento a delação premiada vem sendo alvo de constantes
críticas. Questões a respeito de sua eticidade, validade como meio de prova,
aplicabilidade frente ao ordenamento jurídico pátrio, entre outros, são temas
constantemente abordados em debates referentes a esse instituto. O presente
trabalho busca fazer uma análise da delação premiada apresentando em um primeiro
momento informações sobre seu surgimento, desenvolvimento e aplicação, para
posteriormente apresentar as discussões relacionadas ao instituto e concluir acerca
da necessidade e validade de sua utilização no ordenamento jurídico nacional.
5 ABSTRACT
Since its inception the state's evidence has been the subject of constant
criticism. Questions about its ethics, validity as a means of proof, applicability to the
legal order of the country, among others, are subjects constantly discussed in debates
about this institute. The present work seeks to make an analysis of the state's evidence
presenting in a first moment information about its emergence, development and
application, to later present the discussions related to the institute and to conclude
about the necessity and validity of its use in the national legal order.
6 SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ... 8
2. DELAÇÃO PREMIADA ... 9
2.1 CONCEITO ... 9
2.2 NATUREZA JURÍDICA ... 11
2.3 ASPECTOS HISTÓRICOS E O INÍCIO DA DELAÇÃO PREMIADA NO BRASIL ... 11
3. DIREITO COMPARADO ... 17
3.1 DELAÇÃO PREMIADA NA ITÁLIA... 17
3.2 DELAÇÃO PREMIADA NOS ESTADOS UNIDOS ... 18
3.3 DELAÇÃO PREMIADA NA ESPANHA ... 19
3.4 DELAÇÃO PREMIADA NA ALEMANHA ... 20
4. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E SUA APLICAÇÃO FRENTE AO INSTITUTO DA DELAÇÃO PREMIADA... 21
4.1 PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA ... 21
4.2 PRINCÍPIO DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO - NEMO TENETUR SE DETEGERE ... 22
4.3 PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA ... 22
4.4 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE ... 23
5. DELAÇÃO PREMIADA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA ... 25
5.1 LEI DOS CRIMES HEDIONDOS - LEI Nº 8.072/90 ... 25
5.2 LEI DO CRIME ORGANIZADO - LEI Nº 9.034/95 ... 27
5.3 LEI DOS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL – LEI Nº 7.492/86 ... 28
5.4 LEI DOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E ECONÔMICA - LEI Nº 8.137/90 ... 29
5.5 LEI DE LAVAGEM DE CAPITAIS - LEI N° 9.613/98 ... 29
5.6 LEI DE PROTEÇÃO ÀS VÍTIMAS E TESTEMUNHAS - LEI Nº 9.807/99 ...30
5.7 LEI DE DROGAS - LEI Nº 11.343/06 ... 32
7
6. INSTITUTOS JURÍDICOS DA DELAÇÃO PREMIADA ... 38
6.1 DELAÇÃO PREMIADA NA OPERAÇÃO LAVA JATO ... 38
6.2 TIPOS DE DELAÇÃO PREMIADA ... 39
6.3 MOMENTOS EM QUE PODE OCORRER A DELAÇÃO PREMIADA...40
6.3.1 MOMENTO INICIAL – FASE POLICIAL...41
6.3.2 MOMENTO INTERCORRENTE – FASE JUDICIAL...41
6.3.3 MOMENTO TARDIO - APÓS O TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA ... 42
6.4 OBRIGAÇÕES PROCESSUAIS DO DELATOR ... 43
6.5 DIREITOS DO DELATOR ... 43
6.6 GRADUAÇÃO DO PRÊMIO...46
6.7 VALOR PROBATÓRIO DA DELAÇÃO ... 46
6.8 CORROBORAÇÃO RECÍPROCA OU CRUZADA ... 48
6.9 DIREITO SUBJETIVO DO ACUSADO ... 49
7. ASPECTOS POLÊMICOS ... 51
7.1 VALIDADE DA DELAÇÃO PREMIADA NO CASO DE RÉU PRESO 51 7.2 DISCUSSÃO A RESPEITO DA ÉTICA NO INSTITUTO DA DELAÇÃO PREMIADA ... 53
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 56
8 1. INTRODUÇÃO
O instituto da delação premiada foi introduzido por meio das Ordenações
Filipinas quando o Brasil ainda era apenas uma colônia de Portugal e permaneceu
presente no ordenamento jurídico brasileiro até o momento da independência. Após
longo período tal instituto passou novamente a ser previsto pela Lei de Crimes
Hediondos (Lei n° 8.072/90), com a possibilidade de que participante ou associado de
bando ou quadrilha voltado a prática desses crimes, denunciasse tais atividades às
autoridades visando obter redução de um a dois terços da sua pena.
Posteriormente esse instituto também passou a estar presente em outras leis
como a dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional, Crimes Contra a Ordem
Tributária, na Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro, entre outras que serão
futuramente discutidas neste trabalho. O mais recentemente exemplo que temos é
o da Lei de Combate às Organizações Criminosas (Lei n° 12.850/2013), esta é a
principal lei referente a delação premiada, pois foi responsável pelo preenchimento
de diversas lacunas e, por ser mais detalhada, passou a ser utilizada de maneira
complementar na legislação nacional.
O cenário político do país e a recente aplicação desse instituto em diversos
casos deu nova força às discussões a respeito da delação premiada, que agora não
se veem mais restritas a esfera jurídica, tendo se tornado assunto de interesse e
debate de toda uma sociedade. Nesse contexto, o trabalho em questão busca
apresentar um estudo aprofundado acerca do instituto da delação premiada, visando
uma análise a respeito de sua presença e da forma como vem sendo aplicada no meio
jurídico nacional.
O método de pesquisa utilizado será o exploratório, em que por meio de um
estudo amplo sobre o tema delação premiada chegaremos a discussões mais
específicas referentes à sua eticidade e aplicabilidade face ao ordenamento jurídico
nacional.
Do ponto de vista procedimental esse estudo será feito por meio de duas
vertentes: a) será utilizada a pesquisa bibliográfica visando o estudo do tema geral e
seu aprofundamento. b) Nesse mesmo sentido, poderá também ser utilizada a
pesquisa documental com o intuito de complementar as informações até então
9 2. DELAÇÃO PREMIADA
2.1 CONCEITO
Em uma primeira análise do termo delação premiada podemos entender a pessoa do delator como “aquele que denuncia à polícia ou à justiça o autor de delito
ou de conluio criminoso de que tem conhecimento” e a delação em si como o “ato de
revelar, denunciar ou acusar, traindo a confiança de outrem.” 1
Podemos ainda entender delação, segundo o Supremo Tribunal Federal,
como:
Espécie de colaboração premiada que consiste no conjunto de informações prestadas pelo acusado que tenha coperado efetiva e voluntariamente com autoridade policial ou judiciária na coleta de provas, favorecendo a identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e das infrações penais por eles praticadas. A contribuição eficaz para a apuração do delito e de sua autoria pode ensejar a redução da pena do colaborador, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou até mesmo o seu perdão judicial. 2
Do ponto de vista do vocabulário jurídico de Oscar Joseph de Plácido e Silva
o termo delação é:
Originado de delatio, de deferre (na sua acepção de denunciar, delatar, acusar, deferir), é aplicado na linguagem forense mais propriamente para designar a denúncia de um delito, praticado por uma pessoa, sem que o denunciante (delator) se mostre parte interessada diretamente na sua repressão, feita perante autoridade judiciária ou policial, a quem compete a iniciativa de promover a verificação da denúncia e a punição do criminoso. 3
Na conceituação de Raphael Boldt, a delação premiada é:
a possibilidade que tem o participante ou associado de ato criminoso de ter sua pena reduzida ou até mesmo extinta, mediante a denúncia de seus comparsas às autoridades, permitindo o desmantelamento do bando ou quadrilha, ou ainda facilitando a libertação do seqüestrado, possível no caso do crime de extorsão mediante seqüestro cometido em concurso de agentes. 4
1 Significado de delação. Disponível em:
<http://www.direitovirtual.com.br/dicionario//pagina/6&letra=D>. Acesso em: 26 nov. 2017.
2 Significado de delação. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/glossario/>. Acesso em: 26 nov. 2017.
3 DE PLÁCIDO E SILVA, Oscar Joseph. Vocabulário jurídico. 15ª ed. Atualização de Nagib Slaibi Filho e Geraldo Magela Alves. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
10 Nas palavras de Guilherme de Souza Nucci, o instituto da delação premiada
trata da:
(..) a possibilidade de se reduzir a pena do criminoso que entregar o (s)
comparsa (s). É o ‘dedurismo’ oficializado, que, apesar de moralmente
criticável, deve ser incentivado em face do aumento contínuo do crime organizado. É um mal necessário, pois trata-se da forma mais eficaz de se quebrar a espinha dorsal das quadrilhas, permitindo que um de seus membros possa se arrepender, entregando a atividade dos demais e proporcionando ao Estado resultados positivos no combate à criminalidade. 5
No entendimento de Damásio de Jesus conceitua-se o instituto da delação
da seguinte forma:
Delação é a incriminação de terceiro, realizada por suspeito, investigado,
indiciado ou réu, no bojo de seu interrogatório (ou em outro ato). ‘Delação premiada’ configura aquela incentivada pelo legislador, que premia o
delator, concedendo-lhe benefícios (redução de pena, perdão judicial, aplicação de regime penitenciário brando etc.). A abrangência do instituto na legislação vigente indica que sua designação não corresponde efetivamente ao seu conteúdo, pois há situações, como na Lei da Lavagem de Capitais (Lei n.9.613/98), nas quais se conferem prêmios a criminosos, ainda que não tenham delatado terceiros, mas conduzam a investigação à localização de bens, direitos ou valores objetos do crime. 6
Por fim, temos aqui a conceituação dada pelo próprio Ministério Público
Federal onde nos é informado que:
a) A colaboração premiada é meio de obtenção de prova sustentada na cooperação de pessoa suspeita de envolvimento nos fatos investigados, buscando levar ao conhecimento das autoridades responsáveis pela investigação informações sobre organização criminosa ou atividades delituosas, sendo que essa atitude visa à amenizar da punição, em vista da relevância e eficácia das informações voluntariamente prestadas. b) Não basta a simples confissão ou incriminação de terceiros. Para que o colaborador se beneficie, deve-se afastar das práticas delitivas e contribuir de maneira efetiva para a coleta de provas importantes tendentes a confirmar as revelações. Não se pode confundir a colaboração premiada com simples incriminação de terceiros: antes disso, trata-se de revelação de elementos importantes que permitam às autoridades desbaratar organizações criminosas ou esclarecer o cometimento de delitos graves, bem como a recuperação do produto ou proveito do crime. c) A colaboração premiada deve ser utilizada como meio de obtenção de prova levando-se em conta a
5 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral: parte especial. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 716
11 natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração. 7
2.2 NATUREZA JURÍDICA
No que se refere a natureza jurídica da delação premiada o tema gera
grande discussão, embora existam diversas leis que se utilizem desse instituto,
essas são omissas em relação ao tema. Diante disso, coube a doutrina e
jurisprudências debater sobre essa questão.
A conclusão alcançada foi a de que a delação premiada tem natureza jurídica
de meio de prova, ao passo que “a delação só adquire valor probatório quando o
acusado, além de imputar a alguém a prática de determinado crime, também confessa
sua participação nele; caso contrário, acaba sendo um mero testemunho”. 8
No mesmo sentido o Superior Tribunal de Justiça confirma esse
entendimento como podemos observar em publicação no Diário de Justiça
Eletrônico; “(...), pela distinção da própria natureza jurídica entre o acordo de
colaboração processual ("meio de obtenção de prova") e o depoimento de testemunhos em geral ("meio de prova")”. 9 Tal entendimento também pode ser observado durante o julgamento de um recurso de habeas corpus onde foi disposto, “Instituto da colaboração premiada que possui natureza jurídica de "meio de obtenção de prova". 10
2.3 ASPECTOS HISTÓRICOS E O INÍCIO DA DELAÇÃO PREMIADA NO BRASIL Inicialmente, no estudo a respeito do surgimento do instituto nos deparamos
com a época em que o Brasil ainda era uma colônia de Portugal. O Brasil Colônia não
7 Ministério Público Federal. Manual Colaboração Premiada. ENCCLA. Brasília, fevereiro de 2014. P. 2
8 NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 151.
9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. DIÁRIO DA JUSTIÇA ELETRÔNICO Edição nº 2453 – Brasília, disponibilização Terça-feira, 12 de junho de 2018, publicação Quarta-feira, 13 de junho de 2018. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/diarios/194733264/stj-13-06-2018-pg-5221> Acesso em: 17 jun. 2018.
12 possuía um sistema jurídico próprio, devido ao seu status de colônia, o ordenamento
jurídico aqui presente devia ser o mesmo aplicado em Portugal.
Nesse contexto colonial houve um período de grande importância para o tema
aqui estudado, pois em 1580 Portugal passou a ser governado pelo Rei da Espanha.
Em uma de suas medidas como rei de Portugal o monarca providenciou a elaboração
de um novo ordenamento jurídico conhecido como as Ordenações Filipinas, que em
1603 passou a vigorar tanto em Portugal quanto no Brasil.
Ao que se sabe o instituto da delação premiada foi pela primeira vez aplicado
no território nacional com fulcro nas Ordenações Filipinas, como destacado pelo
Professor Damásio Evangelista de Jesus, em artigo de sua autoria:
No Brasil, a delação premiada teve sua origem nas Ordenações Filipinas, que esteve em vigência de 1603 até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830. A parte criminal do Código Filipino constava no Livro V, Título CXVI,
que tratava da delação premiada, sob o título “Como se perdoará aos malfeitores, que derem outros à prisão”, que concedia o perdão aos
criminosos delatores e tinha abrangência, inclusive, por premiar, com o perdão, criminosos delatores de delitos alheios. Em função de sua questionável ética, à medida que o legislador incentivava uma traição, acabou sendo abandonada em nosso Direito, reaparecendo em tempos recentes. 11
No período em questão a delação era o principal, senão o único meio de se
obter informações a respeito de crimes consumados ou que ainda estavam sendo
planejados. Os meios de investigação eram nulos, quando não extremamente
ineficientes, nesse contexto a delação era praticamente o único meio existente a
época para que se pudesse inibir e efetivamente frustrar a prática de atividade
criminosas.
As informações prestadas pelos populares eram de extrema importância e
com isso as autoridades buscavam ao máximo encorajá-los a entregarem informações
em troca de recompensas pessoais, isso era uma forma de recompensá-los pela
informação prestada e ao mesmo tempo incentivar os demais a fazer o mesmo em
busca de também obterem recompensas para si.
13 No que diz respeito ao instituto da delação premiada em si, como dito ele foi
primeiramente observado sendo aplicado no território nacional através do disposto
pelas Ordenações Filipinas, mais especificamente podendo ser observado em dois
dispositivos, quais sejam o item 12 do Título VI e o Título CXVI, ambos pertencente
ao Livro V dessas ordenações.
No item 12 do Título VI, intitulado “Do crime de Lesa Majestade”, nos é
apresentado o trato destinado aqueles que revelem informações a respeito de fatos
delituosos praticados contra a pessoa do rei.
(...) 12. E quanto ao que fizer conselho e confederação contra o Rey, se logo sem algum spaço, e antes que per outrem seja descoberto, elle o descobrir, merece perdão.
E ainda por isso lhe deve ser feita mercê, segundo o caso merecer, se elle não foi o principal tratador desse conselho e confederação.
E não o descobrindo logo, se o descobrir depois per spaço de tempo, antes que o Rey seja disso sabedor, nem feita obra por isso, ainda deve ser perdoado, sem haver outra mercê.
E em todo o caso que descobrir o tal conselho, sendo já per outrem descoberto, ou posto em ordem para se descobrir, será havido por commettedor do crime de Lesa Magestade, sem ser relevado da pena, que por isso merecer, pois o revelou em tempo, que o Rey já sabia, ou stava de maneira para o não poder deixar saber.
Nesse dispositivo podemos observar a forma como se dava o perdão recebido
pelo delator. São apresentados 2 requisitos para que se possa receber o perdão: um
deles é que o delator não pode ser o principal responsável pela articulação do crime,
o outro está ligado ao fato de que a delação deve ser feita em momento que o rei
ainda não tenha conhecimento do fato, nem possibilidade de tê-lo. Nessa última
hipótese o item 12 deixa claro que caso a informação seja prestada quando o rei já
tivesse informações a respeito do fato, ou meios para obtê-las, o delator será
considerado culpado e não receberá nenhum perdão.
Aqui vale um importante destaque a respeito desse dispositivo que foi
aplicado em momento de grande destaque para a história nacional, pois Joaquim José
da Silva Xavier, mais conhecido por Tiradentes, foi condenado à morte e em 21 de
abril de 1792 foi enforcado, decapitado e esquartejado por seus crimes contra a coroa.
A relação entre o dispositivo apresentado e o momento histórico ocorre, pois
o que deu fim ao movimento da inconfidência e posteriormente levou a condenação
14 apresentada por Joaquim Silvério dos Reis, que em troca do perdão de suas dívidas
com a coroa e do recebimento de diversos benefícios, levou ao conhecimento do
governador da capitania de Minas Gerais, Luís da Cunha Menezes, os planos
arquitetados pelos inconfidentes.12
Fato curioso a se destacar é que Joaquim Silvério dos Reis tomou gosto pelas
vantagens obtidas por meio de suas delações, o que o levou posteriormente a
apresentar novas denúncias, desta vez contra um de seus desafetos. O problema aqui
é que tais acusações se mostraram infundadas e claramente feitas unicamente com
o intuito de obter novas vantagem da coroa.
A possibilidade de apresentar informações falsas, unicamente com o intuito
de se obter vantagens econômicas, tornou-se algo de certa forma preocupante para
a coroa que se viu em situação delicada, pois ao mesmo tempo que dependia da
população para obter informações ficava a mercê de informações falsas que
eventualmente lhe eram apresentadas. Como solução ao problema a coroa passou a
prever que o sujeito responsável pela delação fosse previamente detido até que os
fatos fossem esclarecidos e os culpados identificados. Essa nova postura de como
lidar com as delações acabou por gerar resultados diversos do pretendido, embora a
medida de fato desencorajasse as falsas denúncias, também acabou por criar na
população um medo de apresentá-las e acabar preso, o que consequentemente levou
a uma redução no número de denúncias, fossem elas verdadeiras ou falsas. 13
Dando continuidade aos estudos, ainda no Livro V das Ordenações Filipinas,
nos é apresentado o Título CXVI intitulado “Como se perdoará aos malfeitores, que
derem outros á prisão”, vejamos:
TITULO CXVI. Como se perdoará aos malfeitores, que derem outros á prisão. Qualquer pessôa, que der á prisão cada hum dos culpados, e participantes em fazer moeda falsa, ou em cercear, ou per qualquer artificio mingoar, ou corromper a verdadeira, ou em falsar nosso sinal, ou sello, ou da Rainha, ou do Principe meu filho, ou em falsar sinal de algum Védor de nossa fazenda, ou Dezembargador, ou de outro nosso Official Mór, ou de outros Officiaes de nossa Caza, em cousas, que toquem a seus Officios, ou em matar, ou ferir
12 Saiba o que realmente foi a Inconfidência Mineira e o que resta do período no Brasil. Disponível em: < https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2018/04/21/interna_gerais,953234/saiba-o-que-realmente-foi-a-inconfidencia-mineira-e-o-que-ainda-resta.shtml > Acesso em: 10 mai. 2018.
15 com bésta, ou espingarda, matar com peçonha, ou em a dar, ainda que morte della se não siga, em matar atraiçoadamente,quebrantar prisões e Cadêas de fóra per força, fazer furto, de qualquer sorte e maneira que seja, pôr fogo ácinte para queimar fazenda, ou pessôa, forçar mulher, fazer feitiços, testemunhar falso, em soltar presos por sua vontade, sendo Carcereiro, em entrar em Mosteiro de Freiras com proposito desbonesto, em fazer falsidade em seu Officio, sendo Tabellião, ou Scrivão ; tanto que assi dér á prisão os ditos malfeitores, ou cada hum delles, e lhes provar, ou forem provados cada hum dos ditos delictos, se esse, que o assi deu á prisão, participante em cada hum dos ditos maleficios, em que he culpado aquelle, que he preso, havemos por bem que, sendo igual na culpa, seja perdoado livremente, postoque não tenha perdão da parte
E se não fôr participante no mesmo maleficio, queremos que haja perdão para si (tendo perdão das partes) de qualquer maleficio, que tenha, postoque gravo seja, e isto não sendo maior daquelle, em que he culpado o que assi deu á prisão.
E se não tiver perdão das partes, havemos por bem de lhe perdoar livremente o degredo, que ti ver para Africa, até quatro annos, ou qualquer culpa, ou maleficio, que tiver commettido, porque mereça degredo até os ditos quatro annos.
Porém, isto se entenderá, que o que dêr á prisão o malfeitor, não haja perdão de mais pena, nem degredo, que de outro tanto, quanto o malfeitor merecer. M.-liv. 5 t. 74 pr.
S.-p. 6 t. 2 l 17.
1. E além do sobredito perdão, que assi outorgamos, nos praz, que sendo o malfeitor, que assi foi dado á prisão, salteador de caminhos, que aquelle, que o descobrir, e dér á prisão, e lho provar, haja de Nós trinta cruzados de mercê. M.-Iiv. 5 t. 74§ 1.
Como pode ser observado o Título CXVI dispõe a respeito do tratamento dado
aqueles que por meio de sua delação levem outros infratores à prisão. Assim da leitura
do artigo se extrai que o sujeito condenado por meio desse dispositivo poderia
conseguir o perdão de seus crimes, desde que relatasse o nome daqueles que
houvessem praticado algum dos crimes especificados nesse Título.
Ademais, podemos extrair da redação desse dispositivo que o delator poderia
receber o perdão por seus crimes ao delatar os demais participantes, ou, caso não
tivesse participado do crime relatado, ainda assim poderia receber o perdão, desde
que o crime imputado a pessoa do delator fosse de menor gravidade em relação aos
crimes por ele delatados.
Um último ponto de destaque a respeito desse Título é que ao final pode-se
observar a possibilidade do delator, além de receber o perdão, ainda ser
16 Dessa forma, o instituto da delação premiada, por meio da Ordenações
Filipinas, foi aplicado no território nacional durante o período colonial e posteriormente
durante o império. Somente após a independência do Brasil, no ano de 1822, as
Ordenações Filipinas passaram a ser gradualmente revogadas e substituídas por
novos diplomas legais que deram fim a existência do instituto da delação premiada no
ordenamento jurídico nacional. Assim permaneceu por um longo período até que em
1990, por meio da Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8072/90), novamente tal instituto
17 3. DIREITO COMPARADO
3.1. DELAÇÃO PREMIADA NA ITÁLIA
Passando por um período de grande instabilidade financeira, uma Itália
marcada pelo medo da máfia e pela corrupção no meio político-empresarial encontrou
no instituto da delação premiada um mecanismo que poderia ser o meio responsável
por dar um basta nessa situação.
Não se sabe ao certo a origem da máfia italiana, o que se sabe é que veio se
fortalecendo com o passar dos anos até chegar no ponto em que os mafiosos se
encontravam em uma posição de grande influência tanto na esfera política quanto na
esfera empresarial. Nesse contexto a delação premiada ganhou grande destaque
como um meio de quebrar o complexo sistema de influências que a máfia possuía e
assim, partindo dos pequenos, conseguiu chegar a importantes políticos, grandes
empresários e aos próprios chefões da máfia.
Pode-se dizer que o modelo italiano possui duas formas de delação, onde a
figura do delator pode ser associada a figura dos pentito ou a dos dissociati.
Os primeiros tratam-se de criminosos que, antes da sentença condenatória, retiram-se da associação e fornecem informações acerca da estrutura da organização à Justiça. Quando a veracidade de suas denúncias é comprovada, logram a extinção da punibilidade e, tanto o colaborador quanto seus parentes próximos, passam a receber salário, moradia e plano de saúde do Estado, que se torna responsável por sua integridade física. 14
No que se refere a figura dos dissociati cabe destacar que:
quanto ao dissociado, o registro de seu surgimento remonta à Lei nº 34/87 e teria como alvo as organizações terroristas ou aquelas consideradas subversivas da ordem estatal, aqui, exigiam-se do dissociado, além de informações sobre o grupo organizado, também a ruptura da ideologia política que originava o seu comportamento delituoso; e, quanto ao colaborador, previsto na Lei nº 82/91, para o enquadramento como tal bastava a prestação de informações úteis às autoridades investigativas, não havendo qualquer vínculo do indivíduo com a prática delitiva. 15
14 SILVA, Eduardo Araújo. Da moralidade da proteção aos réus colaboradores. São Paulo. In: Boletim IBCCrim nº 85, dezembro de 1999.
18 Observa-se que o modelo de delação italiano foi criado objetivando o combate
a máfia, se mostrando deveras eficiente em seu momento de maior destaque durante
a Operação Mãos Limpas, em italiano Operazione Mani Pulite, que levou à prisão
diversos empresário e políticos italianos relacionados aos mais diversos casos de
corrupção. Ainda no que diz respeito a Operação Mãos Limpas temos que ela foi uma
grande inspiração para o que veio aqui a se tornar a Operação Lava Jato.
3.2. DELAÇÃO PREMIADA NOS ESTADOS UNIDOS
Nos Estados Unidos o que se tem presente é uma cultura jurídica que busca
no acordo entre as partes, um meio mais célere na resolução de demandas judiciais.
Devido a esse fato grande parte dos processos civis lá existentes são resolvidos por
meio de acordos criados a partir de uma negociação entre as partes. Da mesma
forma, essa ideia foi transmitida a esfera penal, onde cerca de 90% dos processos
também acabam por ser resolvidos por meio de um acordo feito entre a promotoria
e a defesa do acusado. 16
Nesses acordos, conhecidos como plea bargaining, o que geralmente ocorre
é que a promotoria se propõe a retirar algumas das acusações imputadas ao réu e
em troca, esse se compromete a admitir a autoria dos demais crimes que lhe estão
sendo imputados, de forma que com esse sistema de acordos ambas as partes são
beneficiadas. Por um lado, o réu tendo em vista que se passasse por julgamento
poderia ser submetido a uma pena mais gravosa, pode ver em um acordo com a
promotoria a chance de obtenção de uma pena mais leve. Por outro lado, a
promotoria também vê esses acordos de forma positiva, pois eles são capazes de
garantir que o acusado será considerado culpado pelos crimes admitidos e ao
mesmo tempo geram uma enorme economia de recursos e de tempo por parte da
promotoria. 17
Ainda a respeito do tema, quando perguntado sobre os desafios enfrentados
com o emprego desses acordos e o possível sentimento de injustiça por eles criado,
o professor James B. Jacobs responde que nunca existe uma situação com apenas
19 uma solução, não há uma resposta absolutamente correta e se as partes podem
negociar e concordar em se comprometer a encontrar algo que acreditem que vai
satisfazê-las, isso gera uma vantagem, ainda assim juiz tem que aprovar a plea
bargaining. Se o advogado de defesa e o promotor concordarem com o acordo e o
juiz também aprová-lo, há algo muito mais vantajoso do que quando comparado a
um tribunal do júri, onde um dos lados diz: “Olha, ele é completamente culpado” e o
outro lado diz: “Ele é totalmente inocente.” Eles têm posições totalmente diferentes, onde, se o réu for condenado, pode haver dúvidas sobre se ele era mesmo culpado,
por outro lado, se for absolvido, poderá haver dúvidas se ele era realmente inocente.
Assim ele conclui afirmando que talvez seja mais satisfatório resolver a situação por
meio de um acordo entre as partes. 18
Assim, no que diz respeito ao sistema estadunidense, o regime do criminal
justice system dos EUA repousa sobre a ideia de que a verdade é fruto de uma
decisão consensual sistematicamente negociada. Isto vale tanto para a barganha
que se faz entre a promotoria e a defesa, quanto ao réu se declara culpado — plea
guilty, plea bargain. 19
3.3. DELAÇÃO PREMIADA NA ESPANHA
Na Espanha o que temos é a figura do arrependimento do acusado que, ao
cumprir com determinados requisitos, pode receber o benefício da diminuição da
pena.
Assim como já citado, o recebimento do benefício está relacionado ao
cumprimento de certos requisitos por parte do acusado, quais sejam:
a) abandono das atividades delituosas; b) confissão dos fatos delituosos nos quais tenha participado; e c) ajuda a impedir a produção do delito ou auxiliar na obtenção de provas para a identificação ou captura dos demais, ou, ainda,
20 cooperação eficaz para a consecução de provas que impeçam a atuação ou desenvolvimento das organizações criminosas em que tenha participado. 20
Esse instituto foi introduzido inicialmente no direito espanhol com o intuito de
combater as ações de grupos terroristas em seu território, sendo posteriormente
também aplicado a outras áreas do seu ordenamento jurídico.
3.4. DELAÇÃO PREMIADA NA ALEMANHA
Na Alemanha o que se tem é o kronzeugenregelung. Esse benefício é
concedido ao réu, caso ele se comprometa a colaborar com as investigações de
forma a ajudar as autoridades a impedir a prática de ações criminosas. Esse instituto
do direito alemão pode beneficiar o réu com uma simples diminuição na sua pena,
podendo chegar até a obtenção de perdão judicial em casos onde a colaboração
teve uma grande relevância.
Cabe destacar ainda que diferente do já citado plea bargaining, aplicado no
direito estadunidense, onde cabe a acusação a proposta de acordo, no caso alemão
cabe ao próprio juiz do caso propor o kronzeugenregelung.
21 4. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E SUA APLICAÇÃO FRENTE AO INSTITUTO DA DELAÇÃO PREMIADA
4.1. PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA
O artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal informa que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”
Tratam-se de importantes princípios que estão previsto em nossa
constituição, entretanto a utilização do instituto da delação premiada muitas vezes
parece ignorá-los. Respeitando o princípio do contraditório, para que o acusado possa
se defender corretamente se faz necessário que este tenha acesso a todas as
informações a respeito dos motivos pelos quais está sendo investigado, tais como os
fatos a ele imputados e até mesmo quem o está acusando. Isso é algo que não se
observa durante as investigações de suspeitos citados em delações que por muitas
vezes não tem acesso ao conteúdo completo a delação e menos ainda a dados
referentes a quem seria o delator que o está acusando.
A Operação Lava Jato ficou extremamente conhecida tanto no cenário
nacional quanto no exterior, embora de fato tenha trazido grandes avanços nas
investigações a respeito da corrupção no meio político-empresarial, algumas
ressalvas devam ser apresentadas a seu respeito. Citemos aqui partes do acordo de
delação firmado durante as investigações da Operação lava entre o Ministério Público
Federal e Paulo Roberto Costa:
Cláusula 12. A defesa desistirá de todos os habeas corpus impetrados no prazo de 48 horas, desistindo também do exercício de defesas processuais, inclusive de discussões sobre competência e nulidades.
Cláusula 17. Ao assinar o acordo de colaboração premiada, o colaborador, na presença de seu advogado, está ciente do direito constitucional ao silêncio e da garantia contra a autoincriminação. Nos termos do art. 4°, §14, da Lei 12.850/2013, o colaborador renuncia, nos depoimentos em que prestar, ao exercício do direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade. O colaborador renuncia ainda, ao exercício do direito de recorrer das sentenças penais condenatórias proferidas em relação aos fatos que são objeto deste acordo, desde que elas respeitem os termos aqui formulados. 21
22 No presente acordo ficam claras as violações ao princípio da ampla defesa,
vez que fica imposto ao delator a desistência de seus pedidos de habeas corpus, a
impossibilidade do exercício de defesas processuais e até mesmo a proibição quanto
a possibilidade de recorrer de uma futura sentença penal condenatória a ele atribuída.
4.2. PRINCÍPIO DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO - nemo tenetur se detegere
O artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal informa que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.”
O princípio do nemo tenetur se detegere é outro princípio que entra em conflito
com o instituto da delação, pois para participar de acordo de delação fica imposto ao
sujeito a renúncia a seu direito ao silêncio. Assim fica clara a violação ao princípio nos
acordos de delação, visto que o delator, além de ter que assumir a autoria do crime,
fica obrigado a ceder informações que lhe serão prejudiciais e futuramente poderão
ser utilizadas contra ele.
Fato ainda mais agravante é que tais revelações e renúncias a direitos
fundamentais são feitas com a convicção de que no futuro acabarão por gerar certos
benefícios ao réu, fato esse que pode muitas vezes não se concretizar. A concessão
dos benefícios estipulados pelo acordo fica vinculada a necessidade de se alcançarem
diversos resultados por meio das revelações feitas pelo delator e caso se entenda que
tais resultados não foram alcançados, ainda que o delator tenha dito somente a
verdade e informado todos os fatos dos quais tinha conhecimento, pode ocorrer que
no momento da sentença entenda-se pela não concessão dos benefícios que haviam
sido inicialmente acordados entre as partes.
4.3. PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA
O artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal informa que “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: (...).”
Segundo esse princípio no momento da sentença deveriam ser considerados
todos os elementos referente a culpabilidade, reprovabilidade da conduta do agente,
23 entretanto nos acordos de delação o que se verifica são casos onde a pena atribuída
é primeiramente baseada apenas nas constatações a respeito do delator ter ou não
cumprido com os termos do acordo e não com base na convicção do juiz em relação
a gravidade dos crimes cometidos, isso acaba por gerar uma padronização nas penas
aplicadas aos sujeitos beneficiados pela delação.
Nucci a respeito da importância de tal princípio nos explica que:
a individualização da pena, é essencial para garantir a justa fixação da sanção penal, evitando-se a intolerável padronização e o desgaste da uniformização de seres humanos, como se todos fossem iguais uns aos outros, em atitudes e vivências. Logicamente, todos são iguais perante a lei, mas não perante uns e outros. Cada qual mantém a sua individualidade, desde o nascimento até a morte. Esse contorno íntimo deve ser observado pelo magistrado no momento de aplicação da pena. 22
4.4. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Os benefícios concedidos pelos acordos de delação muitas vezes não ferem
somente o já citado princípio da individualização da pena, mas também a
proporcionalidade entre a reprovabilidade da conduta do agente e a pena aplicada. O
argumento de que houve proporcionalidade na aplicação da pena, pois o delator
colaborou com as autoridades e assim diminuiu a reprovabilidade de seus atos é
completamente descabido. Esse pensamento gera grandes injustiças que chegam ao
ponto do líder de uma grande organização, principal responsável por todo o esquema
criminoso, receber uma pena menor que outros sujeitos, muito menos importantes
nessa organização e cuja reprovabilidade dos atos foi visivelmente menor.
O fato do sujeito ter colaborado com as autoridades não foi originado por um
sentimento de arrependimento ou uma busca pela reparação de seus atos, mas
simplesmente pelo fato de que ao se ver encurralado tenha encontrado no instituto da
delação um meio de obter benefícios e assim diminuir sua pena ao final do processo.
Isso gera uma sensação de impunidade como pode ser observada ao
citarmos novamente na Operação Lava Jato o caso de Joesley Batista que fechou
acordo onde estava prevista que em troca de sua colaboração a Procurador-Geral da
24 República não vai processá-lo pelos crimes que cometeu. Segundo pesquisa do
Datafolha do ano de 2017, para 81% dos brasileiros os delatores Joesley e Wesley
Baptista, da JBS, deveriam estar presos. 23
25 5. DELAÇÃO PREMIADA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Como já havíamos citado anteriormente, a delação premiada não pode ser
considerada como algo novo no ordenamento jurídico nacional. Na época em que o
Brasil ainda era uma colônia, Portugal e Espanha passaram a ser governadas por
um único rei, nesse momento entraram em vigor em nosso território as Ordenações
Filipinas. Por muito tempo essas ordenações foram aqui aplicadas e somente após
a independência do Brasil, com a entrada em vigor do Código Penal de 1830 esse
instituto foi extinto do ordenamento jurídico pátrio. Entretanto, em determinado
momento, o instituto da delação premiada passou novamente a figurar em nossas
leis e aqui faremos um breve estudo a respeito das principais leis referentes ao tema.
5.1. LEI DOS CRIMES HEDIONDOS - Lei nº 8.072/90
Após a constituição de 1988, o instituto da delação premiada se viu
novamente presente na legislação nacional introduzido por meio da Lei nº 8.072, de
25 de julho de 1990, mais comumente conhecida como lei dos crimes hediondos.
Essa lei nos traz um rol taxativo a respeito dos crimes considerados
hediondos e apresenta a possibilidade da delação em duas hipóteses, referes aos
crimes de extorsão mediante sequestro e associação criminosa.
A primeira possibilidade para a aplicação do instituto da delação se encontra
no art. 7º, que estabeleceu a inclusão do parágrafo 4º no texto do art. 159 do Código
Penal, prevendo que: “§ 4º Se o crime é cometido por quadrilha ou bando, o co-autor
que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena
reduzida de um a dois terços." Esse parágrafo foi posteriormente alterado por meio da Lei nº 9.269, de 1996, onde atualmente consta: “§ 4º - Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do
seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços.”
Nesse sentido, para que seja possível a aplicação do disposto na hipótese
citada, são necessários o cumprimento de alguns requisitos:
26
delação feita por um dos coautores ou partícipes à autoridade; (d) eficácia da delação.
Liame subjetivo entre os agentes: para a aplicação dessa causa de diminuição de pena é necessário que o crime tenha sido cometido em concurso. Se a extorsão mediante sequestro não tiver sido praticada em concurso, por dois ou mais agentes, isto é, não havendo unidade de desígnios entre os autores e partícipes, ainda que haja a delação, a pena não sofrerá nenhuma redução. Na hipótese de autoria colateral não há falar em aplicação do benefício, ante a inexistência da unidade de desígnios entre os agentes. 24
A segunda hipótese onde é possível a aplicação do instituto da delação
premiada encontra-se prevista no art. 8º, parágrafo único, da referida lei, qual seja:
“Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando
ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços.”
Aqui nos deparamos com a possibilidade da aplicação do instituto da delação
premiada para os casos onde ocorre a formação de quadrilha ou bando, atual
associação criminosa conforme redação da lei nº 12.850/2013, para a prática de
crimes hediondos, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo.
Essa segunda hipótese possibilita ao sujeito que participe de associação
criminosa, para os fins exclusivamente determinados pelo artigo, obter a redução de
sua pena ao denunciar tal associação as autoridades de forma que possa ser
destruída. Aqui surge a figura da traição benéfica que possibilitará ao delator a
redução de um a dois terços de sua pena. 25
Por fim, a respeito da aplicabilidade dessa hipótese de delação após entrar
em vigor a lei nº 12.850/2013, que alterou o que se entendia por formação de
quadrilha ou bando para o que atualmente conhecemos como organização criminosa,
o professor Renato Brasileiro de Lima esclarece:
Este dispositivo legal, que permanece vigente e válido, a despeito da entrada em vigor da lei n° 12.850/2013, aplica-se exclusivamente aos casos em que, praticados os delitos de que cuidam a referida lei, doravante por meio da associação criminosa, esta seja desmantelada em razão de denúncia feita por um de seus integrantes. Logo, demonstrando-se que não havia uma associação criminosa para o fim de praticar crimes hediondos ou
24 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: legislação penal especial, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 253.
27 equiparados, ou seja, que um crime de tal natureza foi praticado em mero concurso eventual de agentes, não se admite o reconhecimento da delação premiada, mesmo que as informações prestadas pelo delator sejam eficientes para a identificação dos demais coautores e partícipes. 26
5.2. LEI DO CRIME ORGANIZADO - Lei nº 9.034/95
A Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995, posteriormente revogada pela lei
n°.12.850/2013, foi mais uma que previa a possibilidade da delação premiada como
uma forma de incentivo ao sujeito que levasse as autoridades informações relevantes conforme disposto na lei. Aqui a delação é tratada como “colaboração espontânea” e segundo o art. 6º da referida lei “Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a dois terços, quando a
colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria.”
No contexto da lei entendem-se como pressupostos para a obtenção do
benefício de redução de um a dois terços da pena a necessidade do crime ter sido
praticado por uma organização criminosa e a colaboração do agente de forma
espontânea, prestando as autoridades informações relevantes, que possibilitem o
esclarecimento das infrações penais cometidas.
A lei do crime organizado trazia curiosa lacuna em sua redação, pois, apesar
de tratar especificamente da utilização de meios operacionais para a prevenção e
repressão de ações praticadas por organizações criminosas, esqueceu-se justamente de apresentar uma definição para a expressão “organização criminosa” por ela utilizada.
Tal lacuna presente na lei gerou grande discussão a respeito de como se
enquadrariam as já existentes quadrilhas ou bandos, em relação a expressão “organização criminosa” por ela utilizada. Seriam as quadrilhas e bandos sinônimos de organização criminosa ou seria necessário algo mais para que essas pudessem
ser classificadas como organizações criminosas? Em vista de tais perguntas o
professor Fernando Capez nos apresenta a seguinte resposta:
William Douglas, partidário da primeira corrente, defendia que a Lei alcançava qualquer delito de quadrilha ou bando previsto no art. 288 do CP, pouco importando a existência de maior ou menor sofisticação. Essa também era a
28 nossa posição, pois se o enunciado afirmava que a Lei incidia sobre organizações criminosas, e o art. 1º dessa mesma Lei dizia que seu objeto eram os crimes praticados por quadrilha ou bando, forçoso concluir que ambas as expressões foram tratadas como tendo idêntico significado — o enunciado e o art. 1º utilizaram expressões equivalentes, com o mesmo conteúdo conceitual, para apontar o âmbito de incidência da Lei n. 9.034/95. A Lei, portanto, cuidava dos meios investigatórios e probatórios relacionados aos crimes cometidos por quadrilha ou bando (sinônimos de organização
criminosa). No mesmo sentido, Jorge César S. B. Gonçalves, para quem “só
se pode admitir a aplicação da lei ao clássico delito de quadrilha ou bando, e nada mais”. É claro que tal equiparação foi inadequada, mas esta havia sido a vontade da Lei: tratar como idênticas a quadrilha ou bando, agrupamento sem nenhuma sofisticação, complexidade ou estruturação diferenciada (a
chamada “criminalidade massificada”), e a organização criminosa, muito mais complexa, pertencente ao gênero criminalidade sofisticada. Foi, porém, o que o texto expresso da Lei determinara. Em suma, a Lei do Crime Organizado aplicava-se aos crimes cometidos por quadrilha ou bando, etiquetada como organização criminosa, permanecendo, contudo, com os mesmos elementos do tipo do art. 288 do CP. 27
5.3. LEI DOS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL – Lei nº 7.492/86
Inicialmente a Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional não
previa nenhuma hipótese de colaboração, entretanto posteriormente a Lei n°
9.080/95 incluiu um parágrafo 2º ao art. 25 da lei em questão. Assim, a partir daquele momento ficava previsto que “Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que através de confissão espontânea
revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena
reduzida de um a dois terços."
Da redação da lei podemos extrair que, para fazer jus ao benefício de
redução de pena de um a dois terços, o agente colaborador deve confessar a sua
participação no crime, revelando toda a trama delituosa, realizada em coautoria ou
quadrilha, de forma que as informações possam ser prestadas tanto a autoridade
policial quanto a judicial. Ademais, embora não seja exigido que as informações
prestadas sejam suficientes para a resolução do crime praticado, exige-se que o
colaborador entregue as autoridades informações a respeito da totalidade da ação
criminosa praticada e não somente de parte dela da qual tenha conhecimento.
29 5.4. LEI DOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E ECONÔMICA - Lei nº 8.137/90
A Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária e Econômica, assim como a Lei
nº 7.492/86, anteriormente citada, também foi alterada para o acréscimo de uma
possibilidade de colaboração entre o agente infrator e as autoridades.
Novamente, com redação dada pela Lei n° 9.080/95, incluiu-se um parágrafo
único ao disposto no art. 16 da lei nº 8.137/90, onde, igualmente ao art. 25, § 2º da
lei nº 7.492/86, passou a constar que “Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em
quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que através de confissão espontânea
revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços.”
Nesse contexto, temos que para a obtenção da redução de um a dois terços
da pena, mais uma vez se faz necessária a confissão da participação do agente em
relação crime praticado em coautoria ou quadrilha. Outra vez as informações podem
ser prestadas tanto a autoridade policial quanto a judicial onde, embora não
necessitem apresentar eficácia completa para a resolução da trama criminosa, as
informações prestadas pelo delator devem se referir a sua totalidade e não somente
a parte dela.
5.5. LEI DE LAVAGEM DE CAPITAIS - Lei n° 9.613/98
Em um primeiro momento aLei de Lavagem de Capitais apresentada em seu
art. 1º, § 5º a seguinte redação: “A pena será reduzida de um a dois terços e
começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou
substituí-la por pena restritiva de direitos, se o autor, co-autor ou partícipe colaborar
espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à
apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.”
Inicialmente, a respeito dos pressupostos, o professor Fernando Capez
dispõe que:
30 benefícios legais: a pena será reduzida de 1 a 2/3 terços e começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la (perdão judicial) ou substituí-la por pena restritiva de direitos. A delação pode ser realizada tanto na fase de inquérito policial quanto na fase processual, desde que até a sentença, pois é nesse momento que o delator será contemplado com o prêmio. 28
Aqui cabe ressaltar que a redação original do art. 1º, § 5º foi substituída pela nova redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012, onde ficou disposto que “A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou
semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer
tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar
espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à
apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.”
Embora, ainda, com algumas semelhanças em relação aos demais
dispositivos legais já citados, no que se refere a possibilidade de redução de pena
por meio de delação, aqui, pela primeira vez até então, são apresentadas inovações
a respeito dos possíveis benefícios aplicáveis a pessoa do delator. Além da já
conhecida redução de um a dois terços da pena, o legislador inovou prevendo o
cumprimento da pena em regime aberto ou semiaberto e principalmente ao prever a
possibilidade do juiz substituir a pena por uma restritiva de direitos ou, até mesmo,
de aplicar o perdão judicial.
5.6. LEI DE PROTEÇÃO ÀS VÍTIMAS E TESTEMUNHAS - Lei nº 9.807/99
A Lei de Proteção às Vítimas e Testemunhas teve grande destaque na
regulamentação da aplicabilidade da delação premiada na prática de crimes. Isso
ocorreu pois, diferente das leis até aqui apresentadas, onde a delação era restrita a
certos tipos penais, a redação dada pela Lei nº 9.807/99 era menos específica,
levando os doutrinadores e posteriormente a própria jurisprudência, ao entendimento
de que ela poderia ser aplicada a todos os crimes.
No tocante a forma a aplicação da delação temos o disposto nos artigos 13
e 14 dessa lei:
31 Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado:
I - a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa; II - a localização da vítima com a sua integridade física preservada; III - a recuperação total ou parcial do produto do crime.
Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso.
Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços.
Como já havia sido informado a grande novidade aqui é a possibilidade da
aplicação do instituto da delação para todos os tipos de crimes, desde que cumpridos
os requisitos presentes na norma. Ademais, assim como na Lei de Lavagem de
Capitais, novamente é prevista ao juiz a possibilidade da aplicação tanto de uma
redução de um a dois terços da pena, quanto a do perdão judicial no caso de réu
primário.
A respeito do art. 13, no que diz respeito a possibilidade da concessão do
perdão judicial, o professor Rogério Greco afirma que:
Pela redação do mencionado art. 13, tudo indica que a lei teve em mira o delito de extorsão mediante seqüestro, previsto no art. 159 do Código Penal, uma vez que todos os seus incisos a ele se parecem amoldar. Contudo, vozes abalizadas em nossa doutrina já se levantaram no sentido de afirmar que, na verdade, a lei não limitou a sua aplicação ao crime de extorsão mediante seqüestro, podendo o perdão judicial ser concedido não somente nesta, mas em qualquer outra infração penal, cujos requisitos elencados pelo art. 13 da Lei nº 9.807/99 possam ser preenchidos. 29
Por fim, cabe destaque ao art. 15 da lei em apreço, pois aqui o legislador
reconhece que o fato de delatar seus parceiros de crime pode gerar riscos aquele que
o fez. Nesse sentido, foi previsto que em caso de ameaça ou coação, seriam aplicadas
29 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2010, p.
32 ao delator medidas especiais de segurança e proteção visando a preservação de sua
integridade física, estando ele na prisão ou fora dela.
Deste modo, o art. 15 da Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999 prevê:
Art. 15. Serão aplicadas em benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e proteção a sua integridade física, considerando ameaça ou coação eventual ou efetiva.
§ 1o Estando sob prisão temporária, preventiva ou em decorrência de flagrante delito, o colaborador será custodiado em dependência separada dos demais presos.
§ 2o Durante a instrução criminal, poderá o juiz competente determinar em favor do colaborador qualquer das medidas previstas no art. 8o desta Lei. § 3o No caso de cumprimento da pena em regime fechado, poderá o juiz criminal determinar medidas especiais que proporcionem a segurança do colaborador em relação aos demais apenados.
5.7. LEI DE DROGAS - Lei nº 11.343/06
Inicialmente cabe informar que antes de ser revogada pela Lei nº 11.343, de
23 de agosto de 2006, o tema das drogas era regulamentado pelo disposto na lei nº
10.409, de 11 de janeiro de 2002.
A respeito disso Fernando Capez esclarece que:
A legislação básica era composta das Leis n. 6.368, de 21 de outubro de 1976, e 10.409, de 11 de janeiro de 2002. Esta última pretendia substituir a Lei n. 6.368/76, mas o projeto possuía tantos vícios de inconstitucionalidade e deficiências técnicas que foi vetado em sua parte penal, somente tendo sido aprovada a sua parte processual. Com isso, estavam em vigor: a) no aspecto penal, a Lei n. 6.368/76, de modo que continuavam vigentes as condutas tipificadas pelos arts. 12 a 17, bem como a causa de aumento prevista no art. 18 e a dirimente estabelecida pelo art. 19, ou seja, todo o Capítulo III dessa Lei; b) na parte processual, a Lei n. 10.409/2002, estando a matéria regulada nos seus Capítulos IV (Do procedimento penal) e V (Da instrução criminal). Dessa forma, a anterior legislação antitóxicos se transformara em um verdadeiro centauro do Direito: a parte penal continuava sendo a de 1976, enquanto a processual, a de 2002. Acabando com essa lamentável situação, adveio a Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, a qual, em seu art. 75, revogou expressamente ambos os diplomas legais. 30
No referente a delação, a lei de drogas traz previsto em seu art. 41 que: “O
indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o
processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na
33 recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços.”
Um ponto de destaque é que, embora esteja presente a possibilidade de
redução de pena de um a dois terços, não foi prevista a hipótese de se conceder o
perdão como anteriormente no art. 32, § 3º, da lei nº 10.409/02. Nesses casos, em
vista do princípio da irretroatividade da lei, nos crimes cometidos em momento
anterior a entrada em vigor da Lei nº 11.343/06, o réu faz jus ao recebimento do
perdão judicial, caso preenchidos os requisitos para sua obtenção.
5.8. LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA - Lei n° 12.850/13
A Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, veio para substituir a antiga Lei do
Crime Organizado de 1995, trazendo diversas inovações que a transformaram em um
dos principais instrumentos de combate ao crime organizado. Nela o instituto da
delação premiada sofreu importantes alterações, convertendo-se em um instituto de
grande relevância tanto no meio jurídico, quanto na sociedade em geral e despertando
inúmeras discussões entre os juristas.
Logo de início a nova lei põe fim ao antigo problema criado por sua
antecessora, agora não mais caberia a discussão a respeito do que a lei entenderia
por organização criminosa. Assim, logo o art. 1º, § 1º, da lei já deixa claro que se
consideram por organizações criminosas as associações compostas por quatro ou
mais pessoas, onde deve haver, ainda que de maneira informal, uma estrutura
ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas entre seus integrantes.
Acrescenta-se ainda que é necessário que essa associação de pessoas tenha como objetivo a
obtenção, direta ou indireta, de vantagem de qualquer natureza, por meio da prática
de infrações penais cujas penas máximas previstas sejam superiores a quatro anos
ou que possuam caráter transnacional.
Quanto ao instituto da delação premiada, esse recebeu aqui uma atenção
que, até então, não pôde ser observada em nenhum dos demais diplomas legais até
este momento apresentados. A seção I do capítulo II, onde estão presentes os artigos
4º,5º,6º e 7º, trata de maneira detalhada o assunto da delação, de forma a fazer com
que a Lei n° 12.850/13 passasse a ser utilizada de maneira complementar as demais
34 A princípio consideremos o art. 4º da lei, que de forma detalhada dispõe a
respeito do instituto da delação premiada aqui tratado como colaboração premiada
pelo legislador, vejamos:
Art. 4o O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial,
reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;
II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;
V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. § 1o Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a
personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração.
§ 2o Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério
Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).
§ 3o O prazo para oferecimento de denúncia ou o processo, relativos ao
colaborador, poderá ser suspenso por até 6 (seis) meses, prorrogáveis por igual período, até que sejam cumpridas as medidas de colaboração, suspendendo-se o respectivo prazo prescricional.
§ 4o Nas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de
oferecer denúncia se o colaborador: I - não for o líder da organização criminosa;
II - for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo. § 5o Se a colaboração for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida
até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos.
§ 6o O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para
a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.
§ 7o Realizado o acordo na forma do § 6o, o respectivo termo, acompanhado
35 § 8o O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos
requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto.
§ 9o Depois de homologado o acordo, o colaborador poderá, sempre
acompanhado pelo seu defensor, ser ouvido pelo membro do Ministério Público ou pelo delegado de polícia responsável pelas investigações. § 10. As partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor.
§ 11. A sentença apreciará os termos do acordo homologado e sua eficácia. § 12. Ainda que beneficiado por perdão judicial ou não denunciado, o colaborador poderá ser ouvido em juízo a requerimento das partes ou por iniciativa da autoridade judicial.
§ 13. Sempre que possível, o registro dos atos de colaboração será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações.
§ 14. Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade.
§ 15. Em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, o colaborador deverá estar assistido por defensor.
§ 16. Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador.
O artigo 4º nos apresenta quais serão os benefícios que podem ser obtidos
por meio da delação, quais sejam: a redução de até dois terços da pena, a substituição
da pena restritiva de liberdade por uma restritiva de direitos e até mesmo a concessão
de perdão judicial. Ainda informa que a aplicação do instituto da delação premiada só
será possível caso haja prévio requerimento das partes, devendo o delator colaborar
de forma determinante para que, com a investigação e o processo criminal, se alcance
ao menos um dos resultados previstos pelos incisos I a V do artigo em questão.
Ainda no caput do artigo 4º, para pôr fim às constantes discussões a respeito
de quais objetivos deveriam ser alcançados pela delação para que o sujeito fizesse
jus ao recebimento dos benefícios, o legislador deixa claro que deve-se alcançar ao
menos um dos resultados previstos na lei.
Com o intuito de um maior detalhamento, ainda são apresentados mais
dezesseis parágrafos a respeito da aplicação da delação. Dentre eles merecem
especial destaque os parágrafos 2º, 4º, 5º, 10, 14 e 16.
O parágrafo 2º veio para preencher uma lacuna no Código de Processo Penal,