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Moralismo e Misoginia em Auto Da Alma, de Gil Vicente / Moralism and Misogyny in Auto Da Alma, by Gil Vicente

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 66862-66871, sep. 2020. ISSN 2525-8761

Moralismo e Misoginia em Auto Da Alma, de Gil Vicente

Moralism and Misogyny in Auto Da Alma, by Gil Vicente

DOI:10.34117/bjdv6n9-210

Recebimento dos originais: 08/08/2020 Aceitação para publicação: 10/09/2020

Maria do Carmo Faustino Borges

Doutoranda em Letras, Literatura e Historicidade Universidade Estadual de Maringá – UEM

Endereço: Rua Arthur Thomas, 71, apto. 192 – Maringá – PR E-mail: mariacfabo@hotmail.com

RESUMO

O enfoque deste estudo é observar a figura feminina na construção da obra literária o Auto da Alma, de Gil Vicente, 1518. No texto, a mulher é representada na forma alegórica de uma alma, e o discurso ocorre na transposição de um sermão cristão por meio de personificações: da Alma, do Diabo, da Igreja, do Anjo, dos Santos e de objetos representativos do mundo idealizado pela doutrina da Igreja. Considerado o criador do teatro português, Gil Vicente tem sua obra caracterizada pela religiosidade a partir do cristianismo e pelos sinais humanistas de seu tempo. Neste contexto, o auto apresenta uma figuração do homem que transita no espaço de experimentação entre o Bem e o Mal, conflito que configura história e cultura, e cujos elementos identificam a mulher como objeto de condenação, instigada pelo Diabo ao pecado da vaidade e da ostentação. Fruto de interpretações medievais, o livro do Gênesis, acerca da Criação, traz na figura de Eva o estigma e a herança de pecadora para a mulher. A narrativa do auto aborda o posicionamento e a representação da Alma a caminho da salvação. As referências teóricas de apoio deste estudo constam a partir de Jacques Le Goff, Franco Jr., Georges Duby, entre outros. Consideramos que o texto de Gil Vicente destaca a ideologia predominante do homem que se sobrepõe e julga a mulher, indicando um movimento de marginalização e perfil moralizante ao auto.

Palavras-chave: Idade Média, Mulher, Misoginia, Gil Vicente. ABSTRACT

The focus of this study is to observe the female figure in the construction of the literary work Auto da Alma, by Gil Vicente, 1518. In the text, the woman is represented in the allegorical form of a soul, and the discourse occurs in the transposition of a Christian sermon through personifications: of the Soul, the Devil, the Church, the Angel, the Saints, and objects representative of the world idealized by the doctrine of the Church. Considered the creator of the Portuguese theater, Gil Vicente's work is characterized by its religiosity based on Christianity and the humanist signs of his time. In this context, the self presents a figuration of the man who transits through the space of experimentation between Good and Evil, a conflict that configures history and culture, and whose elements identify women as objects of condemnation, instigated by the Devil to the sin of vanity and ostentation. Fruit of medieval interpretations, the book of Genesis, about Creation, brings in the figure of Eve the stigma and the inheritance of a sinner for the woman. The narrative of the self addresses the positioning and representation of the Soul on the way to salvation. The theoretical references of this study are from Jacques Le Goff, Franco Jr., Georges Duby, among others. We

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consider that Gil Vicente's text highlights the predominant ideology of the man who overlaps and judges the woman, indicating a movement of marginalization and moralizing profile to self.

Keywords: Middle Ages, Women, Misogyny, Gil Vicente.

1 INTRODUÇÃO

A literatura, ao refletir o homem dentro de sua cultura, em uma determinada contemporaneidade, utiliza elementos próprios e adequados na construção das obras. Para elucidar pensamentos cristãos e aqueles relativos à imagem da mulher na Idade Média, alguns escritores valeram-se do uso da alegoria como instrumento de reprodução simbólica do contexto e do ideário daquele período. Gil Vicente foi o maior criador e escritor do teatro medieval, e toda a sua produção ocorre em um período de transição do Teocentrismo para o Humanismo, ainda muito influenciado pela Igreja.

O teatro, encenado nas casas de espetáculos pelo mundo, tem como principal objetivo o entretenimento do público, seja pelo choro, quando o comove, ou pelo riso, quando o diverte, também tem obras com ação pedagógica, como no caso dos autos de Gil Vicente. Esse teatro, por sua vez, imbuía-se de uma função moralizadora, observada na própria linguagem de seus textos, característica que não diminui seu valor, ao contrário, soma-se aos demais aspectos, particularizando o tempo e o espaço de sua criação. Os textos literários revestiam-se de pedagogia catequética, de modo a conduzir uma política voltada aos valores da religião cristã. Os artistas que não obedeciam ao padrão estabelecido tinham seus livros confiscados e vetados por vias inquisitoriais muito severas, como no caso acentuado de Portugal, segundo Lopes e Saraiva (s.d.).

Esse estudo tem por objetivo observar a figura feminina na construção do Auto da Alma (1518), de Gil Vicente1, como gênero literário e como elemento da cultura que desenvolve a temática da referida obra acerca do mundo religioso e da crença cristã, na elaboração de um discurso em que a alegoria cria e destaca aspectos didático-literários, bem como evidencia o preconceito, a misoginia voltada para a figura feminina, o que nos justifica a escolha desta narrativa para abordar o moralismo e a misoginia.

No Auto da Alma, o Anjo, a Alma, a Igreja, o Diabo, entre outros são personagens constituintes de um corpus adequado à análise proposta e compõem o enfoque desta pesquisa que se ocupa em discutir e ilustrar as formas criadas, mesmo pelo viés da Arte, de discriminar, de expor a mulher, neste caso, a partir da alegoria da Alma. Para fundamentar a discussão, realizamos uma

1 Os excertos da obra literária transcritos serão referidos pelas iniciais de seu autor, ou seja, GV, seguidas do ano de

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pesquisa bibliográfica de teóricos como Le Goff, Reboul, Maleval, Hansen, entre outros, e tomamos excertos da obra vicentina para ilustrar e defender nossas asserções.

Gil Vicente (1465(?) – 1536) foi o dramaturgo mais destacado da Idade Média em Portugal, embora escrevendo para a corte. É considerado o verdadeiro criador do teatro português, com seus autos, farsas e comédias. Tentou fundir em suas peças o pensamento medieval ao moderno – Humanismo – movimento que começava a demarcar o universo de sua época. Auto é uma das modalidades do texto teatral, de cunho popular na Idade Média. Naquele período, servia para designar tanto peças cômicas, quanto as de instrução, as morais e as de mistério. Compunha-se de uma multiplicidade quase estática de quadros e cenas, estruturados em versos.

Entre os vários estilos de auto, há o de moralidade, subdividido em bíblico e alegórico, caso do Auto da Alma, no presente estudo. Os autos de moralidade são fundamentados em temas religiosos, para edificar e moralizar, com clara intenção didática. Constam como os mais conhecidos: Auto da Barca do Inferno, Auto da Barca do Purgatório, Auto da Alma, Auto da

Visitação; suas farsas e comédias: Farsa de Inês Pereira, Quem tem Farelos, Comédia de Rubena.

2 BREVES CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

Desde o período carolíngio, a cultura clerical prevaleceu sobre a cultura laica, mas, com a Reação Folclórica na Idade Média Central, ocorreu uma inversão: a folclorização dos elementos e dos eventos cristãos (FRANCO Jr., 1990), facilitando a prática de manifestações culturais populares – a teatralização nos adros das igrejas. Ocorreu, desta forma, uma harmonização entre as duas culturas em vista da necessidade de uma continuidade social.

As possibilidades de criação e, consequentemente a leitura estavam presas à ideologia cristã, e a Igreja manipulava o conteúdo das obras, dificultando uma abertura para o mundo que abria os horizontes, para o Humanismo. Neste contexto, prevaleceu o talento de Gil Vicente, quando por meio da alegoria2 de uma Alma, que desempenha o papel de uma mulher, e permite estabelecer “[...] relações analógicas de prefiguração entre homens e acontecimentos da Bíblia [...]”3. Deste modo, a

Alma, metaforizando o papel de uma mulher, representa as condições e comportamentos atribuídos ao feminino, quando tentada a seguir o caminho do Mal. Na Idade Média, havia a representação de anjos e de santos na intercessão do sobrenatural divino. Assim, a Arte ficava em vantagem com a

2 Todorov (1975, p. 69) cita Fletcher ao definir alegoria: “Falando em termos simples, a alegoria diz uma coisa e

significa outra diferente”

3 In: HANSEN, João Adolfo. Alegoria, construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra – Unicamp, 2006.

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Igreja, podendo criar e relativizar as ideias cogitadas no plano real e transferi-las para o plano artístico, transfigurando objetos, personagens e caracterizando o ficcional às narrativas literárias.

Por outro lado, era comum a figura feminina representar a fraqueza, a vaidade, e a abordagem misógina sempre retratava a mulher, imputando a ela a culpa, os desvios e os males na sociedade. Este pensamento segue por toda a Idade Média, oriundo da leitura e interpretação do livro do Genesis, mais especificamente sobre a criação e a queda da humanidade, a qual é atribuída a Eva, a mulher que conduzira Adão ao pecado, incitando-o a comer do fruto proibido, excluindo ambos do Paraíso. A partir dessa perspectiva, toda mulher, tendo precedentes em Eva, é considerada como inferior, causadora de problemas e dores, pecadora e mais propensa a cometer erros. Tal atribuição às mulheres se estenderia a outros parâmetros, até mesmo feiticeiras: “[...] são levadas a desviar o curso das coisas, portanto, a opor-se às intenções divinas [...]”; as damas são, indóceis, agressivas a seus maridos, pois o casamento era mera formalidade por interesses materiais, o que as levava ao adultério e, desse modo, sendo ainda, culpadas pela luxúria indomável. (DUBY, 2013, p. 258-259). A mulher era responsabilizada por não respeitar os preceitos cristãos e corromper a sociedade.

O Auto da Alma narra a experiência de uma Alma que deve decidir entre dar crédito às investidas do Diabo para desviá-la do caminho cristão e encaminhá-la para o Mal. O último, representado pelos prazeres do mundo, tais como joias, poder e riquezas, aguçando a vaidade e, de outro, o Anjo mostrando o caminho do Bem, feito de boas obras, e o distanciamento das vaidades e das ostentações. Como pecadora, ela inclina para o lado do Diabo, porém o Anjo, insistente, convence-a de não se desviar outra vez. O Anjo leva a Alma até a Santa Madre Igreja, quando quatro grandes teólogos a recebem com um banquete: Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Jerônimo e São Tomás. Nessa recepção, a representação da Paixão de Cristo, a Alma arrepende-se, converte-se e encontra a salvação.

No contexto monoteísta, já da contemporaneidade humanista, o Bem é concebido como fonte absoluta de amor, de bondade, representado por Deus; enquanto o Mal encarna o lado oposto na figura do Diabo. Diferente do mundo politeísta, a vida do homem não é mais prevista pelo destino, mas calcada no livre-arbítrio4, projeção esta do homem que serve ao desenvolvimento temático do Auto em questão.

A concepção medieval do Bem prevalecendo sobre o Mal está representada na peça pelas entidades alegóricas do Anjo Custódio e do Diabo, respectivamente. A Alma é uma personagem feminina que incorpora a vaidade humana e entra em conflito a partir dos aconselhamentos do Anjo

4 Na Idade Média, o homem não é subjugado pelo destino, mas constrói o seu próprio, usando sua vontade, calcada no

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e das tentações do Diabo. Temos, portanto, nas personificações o sobrenatural teológico, para transcender o mundo real.

Entendendo o Humanismo como um período de transição entre o Teocentrismo e o Antropocentrismo, reconhecemos, neste Auto, os efeitos das mudanças socioculturais do período em questão. No primeiro, a preocupação era a existência voltada a Deus e a luta constante para a vida eterna; no segundo, o homem se descobre em sua individualidade, nas suas capacidades de ação e seu universo passa a ser o centro do mundo. Desta maneira, a Alma representa o contexto do humano, das fraquezas, dos prazeres do mundo, do profano, a figura feminina. Por outro lado, o discurso do Anjo conserva as características do Teocentrismo, do mundo sobrenatural e divino, elementos que norteiam a ideologia masculinista. O Auto da Alma tende a racionalizar a ideia de Deus, “[...] de forma a garantir uma ordem da natureza obedecendo a leis constantes, embora transcendentes à razão humana, pois o sentido da vida está na salvação post-mortem [...]” (LOPES; SARAIVA, s.d., p. 207).

Embora o pensamento cristão de “vida eterna” seja predominante no Auto, os pressupostos do Humanismo são evidentes na Alma, pois ela valoriza os bens materiais, os prazeres, a vida presente. Todavia, cabe a ela escolher o caminho e decidir seu destino, o livre-arbítrio, concepção própria do homem renascentista. O teatro vicentino, influenciado por este contexto, tem neste Auto um veículo de propagação de conteúdos bíblicos, da doutrina da Igreja, transitando entre o Teocentrismo e o Antropocentrismo. Por conseguinte, o discurso coloca a figura feminina como fraca, levada pelo desejo, desprovida de virtudes e sempre tendenciosa ao pecado. Maleval (1995, p.189, grifos do autor) pondera: “[...] Como se mestre Gil [...] na esteira dos Patriarcas, que determinaram ser a natureza feminina mais fraca, mais fácil de sucumbir à tentação, a alma, como mulher no Auto da Alma, que quase se perde pela vaidade”.

3 LEITURA DO AUTO

Em um primeiro momento, o diálogo acontece entre o Anjo e a Alma, quando o dramaturgo utiliza recursos estilísticos da Retórica, a saber, o discurso epidítico5, que, conforme Reboul (2000, p. 45), “[...] louva ora um homem ou uma categoria de homens [...]”: “Alma humana, formada/ de nenhũa cousa, feita/ mui preciosa,/ de corrupção separada,/ e esmaltada / naquela frágoa perfeita,/ gloriosa;/ planta neste vale posta/ pera dar celestes flores/ olorosas/ e pera serdes tresposta / em a

5 Segundo Reboul (2000), o discurso epidítico serve de aparato, de ampliação ao depoimento e elogio feito pelo poeta

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alta costa” (GV, 1965, p. 54). Este efeito hiperbólico no texto excede ao natural, dá nobreza e persuade.

O Anjo complementa essa passagem, aconselhando a Alma: “Vossa pátria verdadeira/ é ser herdeira/ da glória que conseguis/ [...] não durmais;/ [...] que a jornada/ muito em breve é fenecida, / se atentais” (GV, 1965, p. 55). A Alma acolhe a ideia: “Anjo que sois minha guarda/ olhai por minha fraqueza/ terreal/ [...] Ó precioso defensor/ meu favor/ vossa espada lumiosa/ me defenda!” (GV, 1965, p. 55 e 56). Ela confessa sua fraqueza humana e pede ao anjo que a defenda com sua espada. Para Le Goff (2005, p. 332), “[...]. No pensamento medieval, ‘cada objeto material era considerado como a figuração de alguma coisa que lhe corresponderia num plano mais elevado, e torna-se, deste modo, seu símbolo’ [...]”. Neste sentido, a arma de posse do anjo é dotada de “poderes cristãos”, portanto, sobrenaturais.

Segundo Todorov (1975), um meio pelo qual se pode identificar a alegoria é a presença da metáfora contínua, que revela a intenção segura de falar do objeto primeiro do enunciado e de outra coisa além, como no exemplo da Alma, que corresponde a uma alegoria, visto que não encerra em si e em seu comportamento apenas o conceito teológico de “alma”, mas reflete os embates sofridos pela mulher diante de valores outrora sólidos e que, com o Humanismo, passam a ser questionados. Além disso, sob uma perspectiva misógina, usa a Alma para representar a natureza corrompida da figura feminina, por ser próprio do discurso daquela ideologia o entendimento de que, herdeira das características de Eva, pela qual o mal entrou no Paraíso, a mulher carrega consigo a degradação dos bons costumes e das virtudes, os males.

No pensamento medieval, segundo Duby (2013, p. 43), está presente a ideia de que “[...]. A mulher, todas as mulheres, a serva do grande sacerdote diante de quem são Pedro renegou Jesus, Eva no paraíso levando Adão a desobedecer, são instrumentos do diabo [...]”, ou seja, na mulher residiria o problema do pecado e da desobediência desde a transgressão de Eva. A partir desses pressupostos, a escolha da personagem Alma, para traduzir a fraqueza, as dúvidas e dificuldade de trilhar o caminho do Bem, é justamente para filtrar a imagem feminina, a representante apropriada para tanto.

Em decorrência da tentação, o anjo aconselha a Alma não se influenciar pelas ambições e pelas vaidades: “Não vos ocupem vaidades,/ riquezas, nem seus debates./ Olhai por vós;/ que pompas, honras, herdades/ e vaidades,/ são embates e combates/ pera vós”. Este discurso é inspirado no cristianismo, de que o mundo é apenas uma passagem para a vida verdadeira e perdurável, sendo que importa a vida pós-morte.

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O Anjo situa-se em um plano simbólico e sobrenatural assim como a Alma: “[...] não só a realidade mostrava que o mundo celeste era tão real quanto o terrestre, mas que formavam um só mundo, numa inextrincável mistura que prendia os homens na rede de um sobrenatural vívido” (LE GOFF, 2005, p. 158). Isto possibilita o diálogo entre as personagens. A Alma, ao representar o humano feminino, é influenciada pela vaidade e pelos atrativos terrenos. O Diabo tenta seduzir a Alma: “Quem vos engana/ e vos leva tão cansada/ por estrada/ que somente não sentis/ se sois humana? [...] Vivei à vossa vontade/ e havei prazer / Gozai, gozai dos bens da terra” (GV, 1965, p.58). Se a alma é abstrata, como poderia estar cansada, gozar dos bens da terra, constituir-se matéria humana? O construto alegórico da Alma personifica a fraqueza moral da mulher, assim, o Diabo é insistente e tenta convencer a Alma: “Uns chapins haveis mister/ de Valença: ei-los aqui / Agora estais vós mulher/ de parecer. Ponde os braços presuntuosos/ isso si!/ Passeai-vos mui pomposa,/ daqui pera ali, e da lá para cá,/ e fantasiai” (GV, 1965, p. 62). O excerto, com predominância da descrição, indica que o poeta prevê a recepção, cujo efeito é comover e fazer com que o leitor se transporte para o universo criado.

Le Goff (1994) afirma que o gosto “bárbaro” é conhecido pelas cores brilhantes, e ainda tem o belo como o rico, pelos objetos e pelos metais preciosos, como o ouro, a prata, as pedras preciosas e outros.6 É da natureza humana o fascínio pela riqueza e pelas coisas belas, o que, neste caso,

poderíamos ler como um traço de influência, ou mesmo de herança do Oriente na cultura medieval, mas para os valores cristãos, tais elementos eram considerados parte do universo do Mal, pois despertavam a cobiça e a vaidade. Nesse aspecto, a personagem do Diabo, como sedutor da Alma, facilita esta interpretação, situando o discurso no plano sobrenatural.

O Diabo teima em ganhar a disputa com o Anjo: “Ainda é cedo para a morte/ [...] Viva vosso parecer/ [...] O ouro pera que é/ e as pedras preciosas/ e brocados? / E as sedas pera quê? [...] Vedes aqui um colar/ d’ouro mui esmaltado/ e dez anéis” (GV, 1965, p. 64). Nesta passagem, é o Diabo quem convence a Alma, e ela recai, ressaltando seu lado humano e feminino, motivada pelas joias e roupas, símbolos que representam as futilidades então condenadas pela ordem cristã. O ambiente onde as personagens transitam, misturando-se aos objetos, é facilitado pelas criações alegóricas, dando sentido e coesão ao contexto.

Embora Hansen (2006) faça uma distinção entre duas alegorias, a verbal e a factual, em Gil Vicente, elas se interpõem para atingir o efeito final, a saber, a alegorização das figuras bíblicas ou

6 Na Idade Média, “[...] o Oriente é o grande horizonte onírico e mágico dos homens do Ocidente medieval porque é ele

o verdadeiro estrangeiro e porque – pelo menos para os Gregos e para os Romanos – desempenhou, podemos dizer desde sempre, esse papel. Tudo vem do Oriente: o bom e o mau, as maravilhas e as heresias; e os homens do Ocidente ganham finalmente uma extrema consciência disso [...]” (LE GOFF, 1994, p. 62).

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religiosas que passam por apreciação do público do escritor e por aquela do leitor de diferentes épocas, de todos os tempos. Ainda de acordo com o autor (2006, p. 9), de maneira genérica, o leitor pode optar por “analisar os procedimentos formais que produzem a significação figurada” ou “analisar a significação figurada nela”, isto é, considerando o sentido pré-existente nas coisas, nos homens e nos acontecimentos, revelados na alegoria. É possível constatar no texto de Gil Vicente a teoria postulada por Hansen (2006) de que há duas alegorias simetricamente inversas e que, no entanto, no Auto, não se dissociam: “uma construtiva ou retórica” e outra “interpretativa ou hermenêutica”. As passagens bíblicas, os objetos religiosos, o espaço “Santa Madre Igreja”, e as personagens tanto representam o “sentido literal” – significante, quanto o “sentido espiritual” – significado.

A Igreja, Santa Madre Igreja, é a “estalajadeira”, refúgio das almas a caminho da eternidade, metaforiza a segurança e a garantia de salvação. O Anjo convence a Alma a procurar a Igreja: “Vedes aqui a pousada/ verdadeira e mui segura/ a quem quer Vida” (GV, 1965, p. 69). A fé, elemento transcendental aqui evidenciado, ultrapassa o real e explica o fenômeno. A Alma, por sua vez, mostra-se arrependida e quer ajuda: “[...] sou ũa alma que pecou/ culpas mortais/[...] Não me prezei de prudente,/ mas contente/ me gozei com os trajos feos/ mundanais ]...] Conheço-me por culpada/ e digo diante de vós/ minha culpa/ Senhora quero pousada” (GV, 1965, p. 69, 70,72). Desta maneira, compreendemos que os textos argumentados por elementos cristãos encontravam ambiente favorável para expressar a representação do imaginário daquele período nas obras literárias: “A recuperação cristã arrastou o maravilhoso, por um lado, para o milagre e, por outro, para uma representação simbólica e moralizante” (LE GOFF, 1994, p. 54). Os artifícios retóricos, e principalmente a alegoria, era a arma intelectual para representar o mundo profano.

A Alma é acolhida pela Santa Madre Igreja: “Vinde-vos aqui assentar/ mui de vagar,/ que os manjares são guisados/ por Deos Padre” (GV, 1965, p. 72), e oferece um banquete, servido pelos santos, Agostinho, Jerônimo, Ambrósio e Tomás - pilares da Igreja. Como celebração, “os manjares” constituem-se de objetos e insígnias, metáforas que simbolizam a Paixão de Cristo: o sudário (Verônica), os açoites, a coroa de espinhos, os cravos, o Crucifixo: “Pousada com mantimentos;/ mesa posta em clara luz;/ sempre esperando que os dobrados mantimentos/ dos tormentos/ que o Filho de Deus na cruz/ comprou, penando” (GV, 1965, p. 53). Trata-se de uma solenidade sagrada, segundo a doutrina Cristã, em que a paixão e morte de Jesus Cristo possibilitam a salvação para os homens condenados pelo pecado. A mesa corresponde à metáfora “altar”; os manjares, às “insígnias da paixão”.

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A partir de Todorov (1975), podemos considerar o “manjar” uma alegoria, por ser uma metáfora contínua, isto é, na forma literal e no contexto cristão, como alimento para a Alma, na busca da salvação. No excerto anterior, observamos a influência da ideologia cristã na arte literária. Na Idade Média, a folclorização dos temas religiosos adaptou, a seu modo, artifícios e estilos literários com o objetivo de abordar tais assuntos. O Auto da Alma, portanto, media informações e imagens de um painel sociocultural e religioso em que se inseria o homem do Humanismo, reflexo também do contexto histórico, no qual a misoginia era visivelmente comum.

Dentre outros excertos, os apresentados neste estudo proporcionam uma leitura do tempo e espaço com os quais o Auto da Alma, de Gil Vicente, dialoga. O estudo das alegorias e dos símbolos nos direciona a uma leitura da imagem feminina sob a perspectiva de marginalização da mesma, conferindo, no Auto, aspectos do pensamento que permeou a mentalidade daquela sociedade e que influenciaram definitivamente nas manifestações teatrais. Segundo Le Goff (2005, p. 266), “Neste mundo dualista que foi a Cristandade medieval, a sociedade é antes de tudo o teatro de uma luta entre a unidade e a diversidade, assim como entre o bem e o mal [...]”. Essas considerações permitem-nos observar vestígios de identidade cultural, na recriação da realidade, por meio do trabalho artístico, assim como perceber a sua colaboração para melhor percebermos a finalidade e a excelência da arte literária.

4 CONCLUSÃO

Depreendemos neste estudo que o Auto da Alma se constitui uma das peças pronunciadamente alegóricas de Gil Vicente, ainda influenciada pelo Teocentrismo e como instrumento pedagógico para o ensino religioso ou moral, em contraponto a um contexto sociocultural já permeado por valores materiais, como a cobiça e a fascinação pelo mundo real, característicos do Antropocentrismo.

A alegoria está presente na configuração das personagens e dos objetos, propiciando o desenvolvimento de um contexto sobrenatural, de uma narrativa desenvolvida artisticamente para conquistar e cativar a atenção do leitor/espectador, no caso de uma representação teatral. Outra observação que resultou desse estudo é a preservação das convenções do cristianismo medieval: a presença do teológico no texto tornou-o previsível: a vitória do Bem sobre o Mal. Este aspecto confirmou ainda o cunho moralizante do auto, e o desprezo das coisas profanas em troca da salvação.

Observamos, também, que o universo do homem medieval se centrava em noções abstratas para explicar a realidade e, deste modo, Gil Vicente lançou mão dos artifícios literários, de simbologias, da alegoria, para identificar o mundo profano com as coisas da hierarquia divina; um

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modo intelectual de representar o que é compreensível em uma sociedade ainda presa aos simbolismos.

REFERÊNCIAS

DUBY, Georges. As damas do século XII. Tradução: Paulo Neves e Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

FRANCO Jr., Hilário. A Idade Média – Nascimento do Ocidente 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.

HANSEN, João Adolfo. Alegoria, construção e interpretação da metáfora. São Paulo – Campinas: Unicamp, 2006.

LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. 2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. Nova História, 13.

LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Maravilhoso. Dicionário temático do Ocidente medieval. São Paulo: EDUSC, 2005. v.2. p. 105-120.

LOPES, Oscar; SARAIVA, José Antonio. História da Literatura Portuguesa. 16ª ed. Porto: Porto, s/d.

MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Rastros de Eva no Imaginário Medieval. Santiago de Compostela: Laiovento, 1995.

REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Perspectiva, série Debates, 1975.

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