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Contos de fada e as mulheres: ressignificando leituras / Fairy tales and women: giving new meaning to readings

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Academic year: 2020

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761

Contos de fada e as mulheres: ressignificando leituras

Fairy tales and women: giving new meaning to readings

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DOI:10.34117/bjdv6n9-566

Recebimento dos originais: 20/08/2020 Aceitação para publicação: 24/09/2020

Vejane Gaelzer

Professora Doutora do Instituto Federal Farroupilha (IFFAR) Campus Santa Rosa e coordenadora do projeto de Pesquisa“Formas Discursivas do Aparecimento\Constituição do

Feminino”..

e-mail: vejane.gaelzer@iffarroupilha.edu.br

Raquel Moreira

Professora Doutora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) Campus Toledo e professora do Programa de Pós-Graduação em Letras Unioeste.

e-mail: raquelutfpl@gmail.com

Ana Maria de Almeida Lunardi

Bolsista do projeto de pesquisa e acadêmica do Curso de Arquitetura e Urbanismo do do Instituto Federal Farroupilha (IFFAR) Campus Santa Rosa.

e-mail: anamarialunardi@hotmail.com

Gabriela Basso Zanella

Bolsista do projeto de pesquisa e acadêmica do Curso de Arquitetura e Urbanismo do do Instituto Federal Farroupilha (IFFAR) Campus Santa Rosa.

e-mail: gabrielabassoz@outlook.com

RESUMO

Para entendermos os discursos que circulam ainda hoje sobre a mulher nas diferentes esferas da nossa sociedade, precisamos antes entender os mecanismos de construção desses discursos, especialmente a construção da imagem do que é ser mulher e papel que estas desenvolveram ao longo da história. Neste viés, o presente artigo tem o objetivo de analisar a construção discursiva do papel da mulher nas relações sociais, observando os discursos a ela atrelados, os quais lhes determinam um lugar social. Para tal análise, foram tomados por base os pressupostos teóricos de Mikhail Bakhtin (2004) e Michel Pêcheux (1997), além da releitura do conto de fadas Cinderela, como materialidade analítica. Deste modo, ao tratarmos do sujeito-mulher, deparamo-nos com um sujeito marcado por discursos patriarcais que ainda não lhe permitem relações igualitárias, antes refletem e mascaram situações de preconceito explícito e implícito nas diferentes práticas sociais, destinando a elas submissão. Entretanto, é inegável que mudanças foram conquistadas ao longo da história e que possibilitam - pelo menos a algumas - vidas mais dignas. Portanto, pode-se concluir que, aos poucos, o sujeito-mulher conquista seu espaço e sua voz ecoa, quebrando silêncios seculares.

1 Este artigo é resultado de estudos realizados no projeto de pesquisa “Formas Discursivas do

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761

Palavras-chave: discurso; papéis sociais; mulher. ABSTRACT

To understand the woman-related discourses that still circulate nowadays in different spheres of our society, we first need to understand the mechanisms that build up these discourses, specially the image construction of what it is like to be a woman and the role that them develop throughout history. Therefore, this article aims to analyze the discursive construction of the women’s role in social relationships. To analyze these relations of the social role of women, we have taken as a baseline the theoretical assumptions of Mikhail Bakhtin (2004) and Michel Pêcheux (1997), as well as the rereading of Cinderella fairytale, as analytical materiality. Thus, when dealing with the woman-subject, we come across a subject marked by patriarchal discourses that do not allow them egalitarian relations yet, but rather reflect and mask situations of explicit and implicit prejudice in different social practices, condemning them to submission. However, it is undeniable that changes have been achieved throughout history that make possible - at least for some - more dignified lives. Therefore, it can be concluded that, gradually, the woman-subject conquers their space and their voice echoes, breaking secular silences.

Keywords: discourse; social relationships, woman.

1 INTRODUÇÃO

A mulher não nasceu submissa, mas durante a história passou a sê-lo, isso porque, ao longo dos séculos, houve um domínio dos homens na sociedade na esfera pública, restando à mulher apenas a vida privada, ainda sob comandos patriarcais. Os homens tinham – ou ainda têm? - o direito ao espaço público, político, detentores do poder de decisões e de julgamentos. Já às mulheres, restavam-lhes – ou resta-lhes ainda? - o privado, a família, o lar, embalsamadas pelo sentimentalismo, destinadas ao casamento e à maternidade. Transgredir essa regra – estabelecida pelos homens – era trair sua natureza feminina e as que não tinham coragem da transgressão, permaneciam em silêncio. Neste caso, um silêncio significativo, de submissão, de exclusão e de repressão. Portanto, falar de mulher significa falar de relações de (re)produção de discursos patriarcais, de efeitos de sentidos que são (re)produzidos no jogo das relações sociais e é estabelecer um diálogo entre Sujeito, Língua e História. Na medida em que os discursos acontecem e são naturalizados, os sujeitos são interpelados pela língua, e é preciso investigá-los à luz da História, para que possamos compreender como esses processos discursivos constituem os sujeitos, atrelando a eles lugares sociais, dos quais eles enunciam e se reconhecem como sujeitos, interpelados pela língua. Ademais, é preciso compreender como a língua reflete e refrata, simultaneamente, as relações de poder e, a partir delas, constrói e naturaliza discursos nas diversas esferas da sociedade. Ao olharmos para o sujeito-mulher, temos para esse sujeito um lugar social determinado e respaldado por uma sociedade patriarcal, uma cultura mantida no e pelo poder masculino e, por muitas vezes, justificada pelas palavras que constroem um universo que

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761 inferioriza a mulher e a coloca em condição submissa. Isso significa que o discurso produz efeitos de sentido que constituem o imaginário social, determinando lugares sociais e, por vezes, reforçando representações estereotipadas. É fato, conforme afirma Tedeschi (2012), que esses papéis e representações sociais foram discursivizados pelo olhar masculino, imbricados pela suas relações com o poder, consolidando espaços inferiorizados, nos quais e pelos quais o sujeito-mulher se reconhece e a partir deles enuncia.

Neste viés, ao tratarmos sobre questões relacionadas à mulher e seu papel social, é preciso analisar os discursos e compreendê-los a partir de práticas sócio-históricas da condição da mulher, permeados de elementos simbólicos que (re)produzem efeitos de sentido no dito e não-dito. Isso porque as palavras significam a partir de uma ordem sócio-histórica e nelas as palavras assumem determinado tom valorativo, emitindo julgamentos de valor e determinando lugares sociais. É a partir desses lugares sociais, que as mulheres ocupam e enunciam, que se reconhecem como sujeitos nas suas práticas sociais. Deste modo, faz-se necessário estudarmos a trajetória histórica das mulheres e, ao mesmo tempo, sua interlocução com leituras, essas como produção de sentidos sócio-historicamente determinadas. Portanto, tendo em vista também essas questões sociais para além da teórica, propomos reflexões que envolvem referencial teórico e discussões atreladas às questões pertinentes à mulher, ao feminino nas nossas práticas sociais, as quais naturalizam certos discursos patriarcais - a de que eles comandam e elas obedecem - e lhe determinam condição de submissão e de silêncio.

2 LEITURA DO PAPEL SOCIAL DA MULHER: TEXTOS E LEIS

Ler é um ato de atribuir significados e de produzir sentidos não só em âmbito escolar, mas também na vida, participando da própria constituição do sujeito. Uma leitura não é mera reprodução ou decodificação, antes é algo significativo para a constituição de si próprio. Neste viés, a leitura assume papel importante na construção de discursos nas diferentes esferas da sociedade acerca dos papéis sociais dos sujeitos. A cada nova leitura, novos significados são atribuídos, identificando-se\contra-identificando-se os sujeitos e dialogando com o outro (autor), estabelecendo uma relação de aproximação e afastamento e ecoando outras vozes sociais para com o texto lido, desencadeando, então, uma outra relação entre autor, leitor e memórias discursivas. É nessa relação dialógica que os significados dos textos são diferentes para cada sujeito e, inclusive, diferentes para o mesmo sujeito em vários momentos de sua vida. Isso significa que os textos estão carregados de signos plurissignificativos e são atualizados a cada leitura com base na ordem sócio-histórica em que cada sujeito se inscreve para significar. Assim, a leitura vai além do

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761 texto e começa antes do contato com ele, pois o leitor assume um papel atuante, deixando de ser apenas decodificador e/ou receptor passivo. Isto porque a construção do significado do texto baseia-se na ordem sócio-histórica de cada leitor. Dessa forma, a leitura é um processo que participa da constituição da subjetividade dos sujeitos, significando de modos diferentes e a própria historicidade do sujeito-leitor interfere na interpretação do texto

Nesse processo, a história intervém para que a língua faça sentido e aí entram em jogo elementos de outras ordens, como: ideológicos, sociais, históricos, simbólicos e políticos. Nesta perspectiva, é preciso admitir espaço para a ambiguidade, a falha, a opacidade e o esquecimento e perceber que o gesto de interpretação está preso à representação e às construções imaginárias, conforme as formações sociais e formações imaginárias, a partir dos quais os sujeitos se reconhecem e “esses lugares estão representados nos processos discursivos” (PÊCHEUX, 2010, p. 82, grifo do autor). Isso significa que os efeitos de sentido resultam da relação do sujeito-interpelado pela língua com a história. Segundo Orlandi (2007, p. 21), “no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação”. Nesta perspectiva, ao tratarmos de questões relacionadas ao processo da leitura, estamos falando de leitura das vozes sociais, dos silenciamentos, das formas de assujeitamento ideológicas que se materializam nos textos.

Assim como a língua não é transparente, a leitura também não é, porque é afetada pelas condições históricas, culturais e ideológicas, em que o sujeito está inserido, daí os diferentes sentidos das palavras para os sujeitos. A linguagem só faz sentido porque se inscreve na história. A Análise do Discurso não procura um sentido verdadeiro, uma leitura única, há uma tentativa de perceber outros sentidos que ali estão, “a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos” (PÊCHEUX, 1997, p.26). Neste viés, os efeitos de sentido de discursos não são homogêneos e são distribuídos, isto é, as representações são diferentes pelas contradições vividas pelos sujeitos. Portanto, as construções imaginárias sob as condições que a ideologia adquire no cotidiano refletem e refratam os efeitos de sentido.

Assim, muitas vezes as leituras/discursos/textos que tratam do papel da mulher confundem-se com a análiconfundem-se de formação da família, pois a instituição do privado/doméstico como espaço impreterivelmente feminino inviabiliza a desassociação entre a mulher e a família, como aponta Perrot (1988, p.185) “[...] da história, muitas vezes a mulher é excluída [...] o ofício de historiador é um ofício de homens que escrevem a história no masculino”, o que deriva em uma visão parcial

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761 e marcada pela ideologia patriarcal. É fato que há a necessidade de reconhecer a mulher enquanto sujeito social e agente na formação da humanidade, de modo que ela não seja analisada apenas pelo viés da família e espaço privado, mas correlata à questão de ser sujeito social.

A interdependência entre a mulher e o ambiente privado - e a posse de ambos por um homem - remonta a antiguidade e encontra uma das principais bases de sustentação no discurso religioso, em especial nos registros de Gênesis, que atribuem a criação da mulher a partir de uma costela de Adão:

“Então, o Senhor Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu; tomou uma de suas costelas e fechou o lugar com carne.

E a costela que o SENHOR Deus tomara ao homem, transformou-a numa mulher e lha trouxe.

E disse o homem: - Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; chamar-se-á de varoa, porquanto do varão foi tomada” GÊNESIS,2 22-23, 2016).

Essa explicação da teoria do surgimento da mulher a partir da costela de Adão remete ao discurso não só simbolicamente de sua submissão ao homem, como também de modo concreto nas diferentes práticas sociais diárias. Assim, parece fato natural a sua obediência no privado, sua dedicação à família e ao domínio do homem na esfera pública, já que “ela existe, graças à costela de Adão!” Esse discurso é estendido aos direitos civis, pelos quais os homens também detinham poder sobre as mulheres. Prova disso é a Constituição do Império, outorgada em 1824. Em seu texto constitucional, apenas o homem era considerado cidadão, ignorando a existência da mulher, impedindo qualquer função pública, bem como o direito de votar e ser votada. Essa proposição fica clara em “Art. 91. Têm voto nestas eleições primárias: 1º) Os cidadãos brasileiros que estão no gozo de seus direitos políticos”. Apenas menciona-se o direito dos cidadãos, não havia exclusão expressa às mulheres, isso porque elas e os escravos não eram considerados sujeitos com direitos civis. Considerado como a primeira grande vitória feminista no país, o voto por mulheres foi permitido no Rio Grande do Norte em 1927. Cinco anos após e com muitos debates, o voto feminino foi autorizado no restante do país no Código Eleitoral de 1932 (art. 2º). Essa conquista foi oficializada pela Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, entretanto, a obrigação do voto, para mulheres, só existia quando fossem funcionárias públicas remuneradas (BRASIL, 1934). Essa restrição só foi derrubada com a promulgação da Carta Magna de 1946, onde a obrigatoriedade tornou-se absoluta para as mulheres alfabetizadas. Entretanto, por causa dos altos níveis de analfabetismo, o voto feminino ainda ficou restrito até 1985, quando, com a Emenda Constitucional nº 25, foi possibilitado o voto dos analfabetos. É importante destacar que,

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761 além da regulamentação dos direitos na esfera pública, a mulher também tinha a regulação da sua vida familiar e estava sujeita ao chefe familiar: o marido. Como informa a Lei de 1962 que

“Dispõe sobre a situação jurídica da mulher casada.

Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interêsse comum do casal e dos filhos.

Compete-lhe:

I - A representação legal da família;

"Art. 240. A mulher assume, com o casamento, os apelidos do marido e a condição de sua companheira, consorte e colaboradora dos encargos da família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta"( LEI Nº 4.121, DE 27 DE AGOSTO DE 1962).

Com essa regulamentação da mulher casada “colaboradora dos encargos da família”, percebemos a articulação do interdiscurso da obediência da mulher ao chefe, seu marido, em consonância com a ideia de ser parte da costela de Adão. E se estendermos essa constituição do senso comum, a costela, no âmbito alimentício, não faz parte da área nobre, antes considera-se parte inferior, o mesmo acontece com a mulher, ela é um sujeito inferior, secundário. Portanto, a ela não cabem tantos benefícios, antes obrigações. Deste modo, é imprescindível desvincular a mulher de sua posição de objeto\parte do homem para colocá-la na condição de sujeito de sua própria história. Não basta apenas conquistar direitos ao voto, ao trabalho, ter a emancipação política em relação aos homens, é necessária também a garantia desses direitos- condição a ser alcançada não apenas pelas mulheres, mas por todas as categorias sociais que são atingidas pelos reflexos da exploração e desigualdade impostas pela sociedade capitalista. Mesmo que as conquistas das mulheres já tenham percorrido um longo caminho para ultrapassar as bases estabelecidas pelo sistema patriarcal-capitalista, elas ainda estão imersas em diferentes discursos patriarcais que a inferiorizam e não lhes permitem a independência e protagonismo em todas as esferas da vida social.

De acordo com Pêcheux (1997), as palavras traduzem as relações do sujeito com aquilo que o representa, seja da ordem do político, do simbólico e\ou do ideológico. Neste viés, as palavras usadas nos textos assumem significados a partir das condições de produção de seus discursos, a mulher é posta, como sujeito inferior, tanto nos discursos Bíblicos em Gênesis, submissa ao seu dono - costela de Adão; como nos diferentes dispositivos da Lei, submissa ao chefe de família: o homem. Aqui ecoam discursos e saberes que interpelam as mulheres e com os quais elas se identificam e se reconhecem. A partir desse pré-construído, a mulher se reconhece como sujeito submisso e, a partir desse reconhecimento, assume - como efeito da interpelação - seu lugar inferiorizado e de dependência masculina, elencando o casamento como promessa de felicidade e

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761 de, então casada, ser um sujeito social, já que ela é esposa\ mãe de outrem.

Não só textos bíblicos e jurídicos atuam nos processos de reprodução de saberes, a literatura também sempre atuou fortemente na determinação de papéis sociais, em especial ao opacificar a relação sonho/fantasia com a realidade. Nesse cenário, os contos de fadas, por serem textos direcionados - não somente - mas prioritariamente às crianças, reforçam estereótipos e constituem pré-construídos do papel da mulher no seio familiar. De acordo com Pêcheux (1997), “é através do interdiscurso intrincado no complexo das formações ideológicas que se ‘fornece a cada sujeito’ a sua ‘realidade’ enquanto sistemas de evidências e de significações percebidas-aceitas-experimentadas” (p. 162). Isso significa que há uma naturalização do discurso de mulher dependente do casamento para a sua felicidade e para ser sujeito social, como também aparece no conto de Cinderela. São esses pré-construídos que interpelam o sujeito mulher e a partir deles, elas se reconhecem.

Tal reconhecimento se estabelece a partir de saberes que circulam em determinadas formações discursivas. Para Pêcheux (1997), as Formações Discursivas propagam saberes, em que efeitos de sentidos são naturalizados e valorizados, como se fossem evidentes, “determina o que

pode e deve ser dito” [grifo do autor] (p.160). Para o autor, o discurso passa pelo interdiscurso e

nele há dois elementos: “pré-construídos” e “articulações”. Nesse reconhecimento do sujeito, a partir do interdiscurso temos o que Pêcheux (idem) chama de forma-sujeito, isto é, no interior de uma Formação Discursiva, por meio do processo discursivo que acontece a interpelação do indivíduo em sujeito ideológico e a partir dele se reconhece. Portanto, é a partir desse reconhecimento e dos saberes que interpelam, o sujeito se identifica e elabora suas construções imaginárias, que determinam lugares sociais a si e ao outro. Nesta ótica, as Formações Discursivas Patriarcais determinam lugar social inferiorizado à mulher2 e a ela destinam o espaço privado, o cuidado familiar, a obediência ao seu dono, como reforça a ideia da costela de Adão.

Na esfera social, temos esse conjunto dominante de atitudes e de representações que correspondem aos saberes da Formação Discursiva Patriarcal (FDP doravante) e é nesse reconhecimento que muitas mulheres se identificam e ocupam lugar social inferiorizado. Deste modo, as mulheres, nesses determinados períodos históricos - regidos por essas leis- e sob essas determinadas condições de produção, não eram autorizadas a serem sujeitos civis, portanto, não tinham voz. De acordo com Pêcheux (1997), é a partir do reconhecimento mútuo entre os sujeitos e o Sujeito Universal que acontece o esquecimento das determinações que constituem o lugar

2 Condição essa reforçada cada vez mais no envelhecimento feminino. De acordo com Costa (2020), é na velhice que

a mulher (ao modificar seus “atributos inerentes” de beleza e fertilidade) se vê ainda mais marcada por estereótipos e discursos excludentes.

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761 social que o sujeito ocupa e a partir dele se reconhece como “sempre-já sujeito” e é desse assujeitamento ideológico que o “pré-construído remete àquilo que ‘todo mundo sabe”” (p.171). Isso significa que os discursos da FDP naturalizam construções imaginárias de que toda mulher está à espera de seu príncipe encantado para serem felizes para sempre!

3 CONTOS DE FADAS: EFEITOS DE SENTIDO

Se nos determos sobre os contos de fadas, narrativas curtas de tradição oral e do consciente

coletivo, que são mormente direcionados ao público infantil, percebemos que, assim como outros textos, eles também auxiliam na (re)produção de* discursos e de naturalização de relações de poder. Nas narrativas desses textos, o poder, muitas vezes, representado pela força, marca fortemente a história. Datado de séculos, essas histórias reproduzem as práticas sociais da sociedade patriarcal, à medida que a mulher assume um espaço social, no qual é destinada à vida doméstica e à submissão ao homem, e ela é apresentada, seguindo um modelo padrão de características físicas e psicológicas (LOBATO e SARMENTO-PANTOJA, 2012).

3.1 CINDERELA CLÁSSICA: SONHOS DE CINDERELA

Ao nos debruçarmos sobre o conto de fadas “Cinderela”, temos papel de protagonista, a mulher, no caso a “Cinderela”, a qual possui um lugar secundarizado em relação ao homem, o príncipe encantado. É ele que não só a livrará dos desígnios maléficos da madrasta, como também casará com ela, coroando-a princesa. Ele, dominador, nobre, educado, bravo e lindo, também representa um estereótipo de padrão de beleza. Ademais, na sua condição de homem, ele necessita ter força, bravura e coragem, papel de herói e salvador da “jovem donzela”. De acordo com a estrutura, descrita no início do conto, a jovem se encontra em uma situação de sofrimento, angústias; daí a expressão: ‘à espera do príncipe encantado!” Dessa maneira, o casamento é apresentado como o único caminho para a liberdade e para a felicidade, uma forma de livrar-se das privações materiais e da exclusão social a que estava submetida. Irônico é que apenas ela troca sua submissão: a da madrasta, ela passa ao príncipe. Contudo, essa submissão é vista como liberdade! Pêcheux (1997) chama atenção para o sujeito assujeitado na ilusão de estar livre. O autor retoma a teoria do assujeitamento de Althusser (1985), em que o “indivíduo é interpelado como sujeito [livre] para livremente submeter-se às ordens do Sujeito, para aceitar portanto [livremente] sua submissão” (PÊCHEUX, 1997, p.133). Aqui a princesa, o que se estende também a muitas mulheres, tem a ilusão de ser livre, autônoma e escolher o casamento. No entanto, a evidência do sujeito, como resultado de si mesmo existe no apagamento do fato de que o sujeito é

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761 resultado de um processo, a que Pêcheux (idem, p.156) chama de “interpelação-identificação”.

Esse “efeito ideológico ‘sujeito’, a ilusão pela qual a subjetividade aparece como fonte, origem, ponto de partida ou ponto de aplicação” (idem, p.163) faz com que o sujeito se reconheça como sujeito social e histórico e tenha uma identificação. Assim, ao nos debruçarmos sobre o discurso do papel social da mulher, percebemos que esse reconhecimento acontece a partir do funcionamento das representações nos processos discursivos da FDP. Como já postulado, essas representações constituem o interdiscurso (pré-construído), a de que a mulher é submissa, levando ao intradiscurso (discurso a ser formulado), ela quer um marido, filhos e família; está disposta a aceitar a conduta de ser bela, recatada e do lar, usufruindo, então, de um status social superior: a de ser casada e ter um marido e uma família, logo, ser feliz! Esse interdiscurso leva ao intradiscurso, isto é, toda mulher quer ser feliz, para isso ela precisa casar. Portanto, temos um discurso patriarcal que produz efeitos de sentido, inscritos em uma ordem sócio-histórica, e que determinam lugares sociais, a partir dos quais os sujeitos enunciam. Isto significa que os discursos propagam saberes, em que alguns efeitos de sentido são valorizados e naturalizados, enquanto outros, silenciados e excluídos.

Interessante e paradoxal, é que as próprias mulheres – mães, avós, babás, professoras – contam com o cunho pedagógico de ensinar às crianças histórias de contos de fadas, as quais legitimam e naturalizam discursos patriarcais sobre seus papéis sociais. De acordo com Paiva (1990, p. 17) “pelos escritos de Platão, soube-se que as mulheres mais velhas contavam às crianças histórias simbólicas, e, desde então, os contos de fadas passaram a estar vinculados à educação de crianças”. A partir da condição de interpelação ideológica do discurso dominante patriarcal Mesmo com a conquista do direito ao acesso à leitura, as mulheres continuam (re)produzindo os discursos de sua condição de submissão e de dominação masculina, reforçando a sua função na vida privada. Prova disso é o papel de mãe da fada. No diálogo que tem com Cinderela sobre a ida ao baile, ela enfatiza: "pois bem, se prometer ser uma boa menina eu a farei ir ao baile" (TATAR, 2004-p.42). Esse tipo de fala é típico de mães que buscam reforçar o bom comportamento de menina e, ao mesmo tempo, recompensar a virtude. O Recorte a seguir é do Conto clássico de Cinderela que nos ajuda a refletir essas representações simbólicas e de grande repercussão e (re)conhecimento social do papel da mulher:

R1: “Acontece que a fada-madrinha tinha avisado que toda a magia só duraria até à meia-noite

e um. Quando o relógio badalou as doze batidas e um minuto, Cinderela teve de sair correndo. Foi quando deixou um dos seus sapatinhos de cristal na escadaria. O príncipe, muito preocupado

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por não saber o nome da moça ou como reencontrá-la, pegou o pequeno sapatinho e saiu em sua busca no reino e em outras cidades. Muitas moças disseram ser a dona do sapatinho, mas o pé de nenhuma delas se encaixava no objeto (...) A moça então experimentou o sapatinho, mas antes mesmo que ele servisse em seus pés, o príncipe já tinha dentro do seu coração a certeza de que havia reencontrado o amor de sua vida. Cinderela e o príncipe se casaram em uma linda

cerimônia, e anos depois se tornariam Rei e Rainha, famosos pelo bom coração e pelo enorme

senso de justiça. Cinderela e o príncipe foram felizes para todo o sempre [grifo nosso](

https://pt.wikipedia.org/wiki/Cinderela).

Esse desfecho concretiza o papel social da mulher, pautado no discurso da FDP. A mulher, esposa, que está à espera do príncipe encantado para finalmente ser feliz - a partir do casamento - e constituir uma família, daí então, a felicidade plena. Além disso, a personagem Cinderela, frágil e dependente, não faz nada em relação aos maus-tratos das irmãs e da madrasta, também pode ser visto como uma virtude que enaltece a personagem, mesmo diante de tanta maldade, ela apenas suportava silenciosamente, assim como tantas mulheres suportam, talvez, maus tratos, sejam eles físicos ou simbólicos, e permanecem em silêncio. A personagem Cinderela exemplifica então o que se espera das mulheres na sociedade patriarcal! Ser linda, dócil, infinitamente bondosa e obediente!! A recompensa será a coroação do final feliz: “Cinderela e o príncipe foram felizes

para todo o sempre”.

3.2 REVOLUÇÃO FEMININA: DESPERTAR DE CINDERELA

Os discursos cotidianos, nas diferentes esferas da sociedade, nos mostram que a condição da mulher ainda está pautada em valores patriarcalistas que se manifestam principalmente na construção de uma imagem ideal do que é ser mulher. Esses valores costumam fazer uma tentativa de subordinar o feminino ao masculino e normalizar muitos rótulos que foram culturalmente atribuídos à mulher através da (re)produção de discursos estereotipados e baseados nas vivências históricas. Mesmo com todos os avanços sociais, políticos e culturais obtidos pelas mulheres através dos anos, características tão presentes na estereotipização e formação de uma imagem feminina da sociedade patriarcal ainda prevalecem, mesmo que seja de forma velada.

É fato que a trajetória de conquista das mulheres é árdua e diária, interessa-nos aqui destacar a década de 1970, em que a ONU tratou da questão da mulher como uma problemática oficial, o que incentivou e permitiu a criação de um local de visibilidade para um movimento social que ainda atuava clandestinamente, e abriu espaço para que grupos pudessem agir abertamente nos

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761 âmbitos social e político, como o movimento Brasil Mulher e o Nós Mulheres, atuantes em São Paulo. Iniciado por mulheres de classe média, assim como no cenário norte-americano, o feminismo brasileiro, na época auto-intitulado de "movimento de mulheres", expandiu-se através de uma articulação peculiar com o movimento de esquerda e a Igreja Católica, todos em oposição ao regime militar, atingindo com as camadas populares e suas organizações regionais, constituindo-se em um movimento interclasses. Essa atuação conjunta marcou o movimento de mulheres no Brasil e deu-lhe coloração própria.

Em 1979, a anistia às exiladas políticas significou a volta de membros atuantes do feminismo militante, que retornaram ao país influenciadas pelo desenvolvimento do movimento feminista internacional, sobretudo o europeu, explicitando uma trajetória discursiva pautada nas relações de gênero e na saúde da mulher. As ideias feministas difundiram-se no país a medida que cada vez mais grupos eram criados (em sua maioria na forma de organizações não-governamentais), e que o discurso tornava-se mais técnico, profissional e especializado em demandas específicas, uma vez que a década de 1980 foi palco do início do desenvolvimento da pesquisa acadêmica sobre a mulher e divulgação desse tema no meio editorial. Além disso, no cenário político e governamental, criaram-se conselhos referentes à questão feminina, em todos os níveis, federal, estadual e municipal. A questão da violência contra a mulher passou a ser dedicada a delegacias próprias e, no âmbito da saúde, surge como uma problemática de saúde pública. No fim da década de 1980, como resultado de todo esse processo social, político e cultural, deu-se uma importante mudança da condição da mulher na Constituição Federal de 1988, que representou o reconhecimento da igualdade de gênero, ao afirmar que mulheres e homens são iguais em direitos e obrigações perante a lei, nos seguintes termos:

Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;”

Entretanto, mesmo depois dos inegáveis avanços trazidos por essa Constituição e como resultado das lutas empreendidas, as mulheres ainda se defrontam com uma construção imaginária preconceituosa, sua maior adversária no dia-a-dia, porque arraigada principalmente nos discursos da FDP. Sabemos que a legislação é responsável por regular as relações, as instituições e os processos judiciais e é por meio dela que são assegurados direitos individuais e coletivos da mulher. Todavia, a legislação não é capaz de sozinha mudar o cenário de inferiorização, desigualdade e discriminação que ainda cercam a mulher, mas constitui o marco inicial para as

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761 estratégias políticas de enfrentamento e superação das desigualdades, por meio da materialização ou concretização desses direitos. A partir da década de 1990, foram aprovadas cerca de trinta leis referentes a afirmação e ampliação dos direitos das mulheres, destacando-se a legislação sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher, conhecida como Lei Maria da Penha (2006). A Lei alterou o Código Penal como a introdução do parágrafo 9, do Artigo 129, possibilitando que agressores de mulheres, em âmbito doméstico ou familiar, sejam presos em flagrante ou tenham a sua prisão preventiva decretada.

As mudanças legislativas serviram para ancorar certas mudanças comportamentais/sociais que, por sua vez, implicaram em desestabilizações do discurso patriarcal, que não mais hegemonicamente suportam as práticas discursivas de homens e mulheres. A partir disso, então, cria-se a oportunidade de um novo olhar, de outras construções discursivas acerca do papel social da mulher. Há outras posições sociais que podem ser ocupadas pelas mulheres, pois - fora da FDP - há outros sentidos que a constituem. Nas palavras de Pêcheux (2010), “o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e o lugar do outro” (p.81). Isso significa que a mulher não mais se identifica e se reconhece apenas como submissa e propriedade do homem, a “eterna costela de Adão”, não é mais evidente que ela deve obedecê-lo. Nesse viés, temos vestígios da relação de um novo interdiscurso - a capacidade e independência da mulher - construindo outros intradiscursos - para ser feliz, a mulher não precisa casar - com elementos e representações sociais, as quais atravessam e interpelam o sujeito-mulher. Daí, a construção de saberes que deslizem e se desidentifiquem com a FDP.

A fim de refletirmos como o sujeito (re)atualiza seu dizer na relação da memória discursiva, cujo lugar é constituído os saberes, conhecimentos e bagagem cultural, traremos o recorte da releitura do conto de fadas “Cinderela”, o qual constitui nosso corpus discursivo. O texto compõe uma atividade pedagógica de escrita e de leitura realizada em aula3. Para o desenvolvimento da atividade, primeiramente, solicitamos a escolha de um conto de fadas e, a partir do conto escolhido, deveria-se elaborar outro final. Para essa atividade, não foi feita qualquer discussão anterior sobre os temas abordados dos contos de fadas para que cada aluno, a partir da sua leitura de mundo, possa expor a compreensão da história do conto e dar a sua versão final, portanto, produzindo sentido a partir de suas próprias determinações sócio-históricas. Então, elaborados os diferentes

3 A atividade foi realizada com a segundo ano do Ensino Médio - ano de 2019, em uma instituição pública. O recorte

usado é de uma das alunas da turma, Laura Eduarda Nonemacher Tilvitz, que gentilmente nos concedeu o texto; a ela, nossos sinceros agradecimentos.

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761 desfechos, eles são socializados em aula. No conto de fadas clássico Cinderela, a personagem principal, sonha com o príncipe encantado. Sonho, talvez, ainda hoje, de muitas meninas. Ao mesmo tempo, isso representa o caminho a ser percorrido pela mulher no papel que a sociedade patriarcal lhe reservou: a concretização, por meio do casamento, do seu papel social de ser esposa e mãe. Além disso, fomenta a ilusão de o casamento ser uma válvula de escape para que a vida tão sofrida de inúmeras mulheres possa mudar. Portanto, os contos de fada, por conterem representações da vida real, naturalizam esses discursos e solidificam a dominação masculina, reafirmando para as crianças o discurso do poder do homem, como único e capaz de auxiliar/resguardar as mulheres, seres dóceis, frágeis e submissas - de seus pais e/ou maridos.

Para Bakhtin (2004, p. 41), “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas relações sociais em todos os domínios.” Elas, ao serem empregadas, trazem consigo um julgamento e um tom valorativo presentes nos processos e nas práticas discursivas, isto é, valores que não estão presos à língua. Esta, por sua vez, é constituída e dotada de sentido pela exterioridade. Assim, os sentidos – que não são controlados nem do lugar do qual eles derivam e nem para o qual eles se dirigem, considerando, desse modo, como um espaço de fronteiras e de deslizamentos – são determinados historicamente, ou seja, todo dizer significa de algum lugar social e histórico. A releitura do Conto de fadas de uma aluna-autora, apresentada a seguir, nos auxilia para refletirmos sobre o tom valorativo das palavras e suas posições axiológicas:

R2: “Cinderela e o príncipe conversaram durante horas, mas para ela, durante todo o

tempo, algo parecia errado. Por mais produzida que estivesse não se sentia ela mesma. Sabia que nunca gostara de vestidos, que o salto lhe incomodava e que não passara a vida pensando em se casar com um príncipe. Entendia também que a competição entre as mulheres deveria acabar.

Então, quando o relógio marcou 00h01min, enquanto a maquiagem deixava seu rosto, seu cabelo voltava ao mesmo penteado de sempre e o vestido se transformava num conjunto de calça e camisa, a moça teve um pronunciamento de liberdade:

Não sou o que esperam de mim, nunca fui e nunca serei. Não me prenderei a maquiagens, saltos e nem a afinadores de cintura. Essa sou eu em minha mais pura versão, não deveria e nem vou envergonhar-me de minha imagem. Quando estou em casa, convivo comigo nesta versão o tempo todo, ao sair, não mais me arrumarei para que a sociedade me aprecie, arrumar-me-ei somente para mim, do jeito que me sinto bem. Não estou à procura de um príncipe, agora procuro

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761 por mim mesma” (TILVITZ, 2019, p.9).

Observando o desfecho do conto Cinderela, a autora quebra a ordem esperada e o efeito é surpreendedor! O final não condiz mais com a construção histórica e cultural moldado no e pelo discurso da FDP (imprescindível para estruturar o percurso do papel social da mulher), antes o inverso, pois “não passará a vida pensando em se casar com um príncipe”(TILVITZ, 2019, p.9). Conforme Bakhtin (2003), as palavras remetem a julgamentos de valores e aqui, a “mocinha da história”, para ser feliz, não precisa casar. Portanto, o desejo de casar-se e ser feliz para sempre, presente em grande parte dos contos de fada, inexiste. Para a sociedade patriarcal, também representada no conto tradicional da Cinderela, o casamento torna-se o único caminho para a felicidade e para a libertação das privações materiais e da exclusão social, cuja condição Cinderela se encontrava. Dessa forma, naturaliza-se uma dualidade: poder do homem e a submissão da mulher. Conforme Pêcheux, trata-se do “‘sempre já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e ‘seu sentido’ sob a forma da universalidade” (PÊCHEUX, 1997, p. 164), o que corresponde ao pré-construído do discurso. O interdiscurso nos permite acionar tudo aquilo que já sabemos historicamente sobre a vestimenta feminina e é a esse pré-construído que a aluna-autora refuta: “não me prenderei a maquiagens, saltos e nem a afinadores de cintura” (TILVITZ, 2019, p.9).. Nessa versão mais moderna, todavia, temos o que Pêcheux (1997) chama de mau-sujeito, aquele que discorda do Sujeito Universal (dominante) de certa Formação Discursiva, e a “harmonia” entre o esse Sujeito Universal e o sujeito da enunciação estremece-se, porque há uma tomada de posição do sujeito da enunciação, na qual ele se contrapõe à Forma Dominante. Neste viés, há uma captura que não é plena, que contraria os saberes do discurso da sociedade patriarcal e rompe com esses saberes, remetendo-os a outros efeitos de sentido: a mulher não é submissa. Há uma contra-identificação, “quando estou em casa, convivo comigo nesta versão o tempo todo,

ao sair, não mais me arrumarei para que a sociedade me aprecie” (TILVITZ, 2019, p.9); aqui

rompe-se com saberes da Formação Discursiva dominante do poder masculino e traz o “grito” de liberdade: “não sou o que esperam de mim, nunca fui e nunca serei (...)Essa sou eu em minha mais

pura versão” (TILVITZ, 2019, p.9). E apresenta o grand finale: “não estou à procura de um príncipe, agora procuro por mim mesma” (TILVITZ, 2019, p.9). Nesse final, a aluna-autora refuta

o discurso do papel social atribuído à mulher que busca incansavelmente o seu príncipe para ser feliz para sempre, como se não fosse possível a felicidade sem ele. Há aqui o reconhecimento do sujeito mulher independente do homem. Pêcheux (1997) nos mostra que a origem da subjetividade e da identidade não estão no sujeito, mas nas condições sócio-históricas, em que se inscrevem e que interpelam, transformam e identificam o sujeito. Tais condições denotam que os sinais do

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761 discurso patriarcal ainda marcam fortemente o discurso das e sobre as mulheres, e por mais que haja sentidos que deslizem daqueles dominantes, não existe um discurso puro, completamente novo e livre das cicatrizes históricas. A nova Cinderela reclama conhecer-se, ela procura a si própria, uma vez que agora, sem a identidade pré-estabelecida que o "casamento lhe daria", ela não ainda é, ela está a procura. Essa constituição da mulher como parte (sua costela) do homem, e portanto só completa com ele, já não constitui mais o único sentido, o dominante, mas ainda ressoa até mesmo no momento de sua contestação. Portanto, dar à Cinderela seu "grito de liberdade" só é possível em uma associação à trajetória histórica de lutas e conquistas sociais e de legislação alcançadas, mas que ainda tem um longo caminho a percorrer. O fardo da costela de Adão ainda impera nos discursos das diferentes esferas da sociedade, contrapondo-se aos saberes que se desidentificam com a FDP e travando batalhas silenciosas em muitos lares.

Ademais, a partir desse Recorte do conto de fadas a Cinderela, nosso corpus discursivo, podemos analisar as posições-sujeito a partir de personagens em jogo – masculinas e femininas – que posicionam-se de alguma forma, ou pelo menos, representam posições ideológicas relacionadas às Formações Discursivas Patriarcais e aos saberes que deslizam e se desidentificam com a FDP. Essas posições-sujeito - a que nos referimos - passa pela interpelação do indivíduo em sujeito,conforme Pêcheux (1997). Ao retomar os estudos de Althusser (1985), Pêcheux, (idem) pautado no processo de interpelação, chama atenção para o vínculo que há entre o sujeito de direito - regido pelo Aparelho Repressor do Estado no âmbito jurídico-político - e o sujeito ideológico - a evidência como origem e causa de si. Neste viés, o sujeito de direito entra em contato com outros sujeitos de direitos e com o sujeito ideológico. Isso significa que essas possíveis contra-identificação da mulher com os discursos da Formação Discursiva Patriarcal também advêm do respaldo jurídico, de modo que não há apenas uma reprodução das relações de produção, mas também de transformação das relações de produção, como posto por Pêcheux (1997). Daí a compreensão de que o desfecho desconstrutivo produzido pela aluna-autora funciona como um efeito, uma marca, que nos permite compreender as relações que existem entre as diferentes representações do papel do homem e da mulher. Essa transformação das relações de produção\desconstrução poder-nos-á auxiliar a entender as representações do feminino e do masculino que se constituem imaginária e historicamente, dada a interpelação ideológica que continua funcionando e ressoando nos processos discursivos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761 axiológicas (BAKHTIN, 2003) cuja representação está atrelada ao lugar social dos sujeitos. É a partir do lugar social de quem enuncia e de quem recebe o enunciado que as palavras recebem seus efeitos de sentido. Portanto, as palavras significam a partir de situações sociais concretas e históricas. Além disso, não restam dúvidas sobre os efeitos de sentidos dos contos de fadas para a naturalização e (re)produção de discursos, cujas narrativas disseminam relações de poder, posições axiológicas, consoante os papéis sociais, demarcadores aqueles que são excluídos, inferiorizado e oprimidos. Prova disso é o caso do conto Cinderela. No texto original, são claras as representações sociais de homens e mulheres, pautadas no viés da sociedade patriarcal, naturalizando padrões de beleza e estereótipos, lugares e papéis sociais. Assim, (re)produz-se a dominação masculina e submissão feminina, como naturais, quando são construções sociais. Os saberes da FDP propagam um conjunto de proposições e saberes para manter a ordem da dominação sobre as mulheres como se isso fosse do interesse delas.

As mulheres, por outro lado, também se constituem nessa relação social de dominação e no seio dessas relações sociais, há ainda as que se reconhecem como rainhas do lar, exatamente como convém ao domínio masculino. Essa falsa aparência da linguagem possibilita que os discursos da FDP ajam em nome de uma evidência de sentidos, capaz de refratar essa inferiorização. Desta forma, ao tratarmos questões relacionadas ao papel social da mulher, percebemos que esse papel é parte constitutiva das relações sociais, dominadas pelo universo masculino que as estereotipam; homens, como fortes, bravos, corajosos e protetores; e as mulheres, frágeis, submissas e meigas, em busca do príncipe encantado, para consolidar seus destinos: o casamento e a maternidade. Esses discursos naturalizam desigualdades sociais e dificultam seus enfrentamentos e rupturas. Parte da práxis de resistência ao discurso de submissão e inferiorização feminina pode ser desencadeada na escola. Nesta perspectiva, é pertinente trabalhar a leitura dos discursos (sejam eles escritos ou orais, literários ou técnicos, verídicos ou fictícios) para além da decodificação e propiciar a interlocução de sujeitos, textos e condições sócio-históricas, cujos efeitos de sentidos, imbricados nas esferas sociais, possam aportar em outros/diferentes "finais" daqueles que, infelizmente, ainda vemos acontecer.

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71670-71687, sep. 2020. ISSN 2525-8761

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