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OS AQUÍFEROS BRASILEIROS E A GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS TRANSFRONTEIRIÇO

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011

OS aqUífEROS bRaSIlEIROS E a GEStãO dE

REcURSOS HídRIcOS tRanSfROntEIRIçOS

Alexandre Cassel Marques*

RESUMO

O presente trabalho investiga a situação dos aquíferos brasileiros no contexto das relações internacionais e, em especial, a gestão de recursos hídricos transfronteiriços. É resultado de uma pesquisa bibliográfica e de entrevistas de especialistas sobre tema. Inicialmente, os recursos hídricos são analisados como parte de um sistema maior – o meio ambiente – e submetidos a uma visão crítica à luz dos conceitos de abundância e escassez hídrica, ressaltando-se o papel do ecologismo como corrente de pensamento relevante na problemática ambiental internacional. Em seguida, são estudados os aquíferos brasileiros quanto à sua importância e situação atual, com destaque para o seu enquadramento no direito brasileiro e na gestão de recursos hídricos. No prosseguimento, investiga-se a questão da soberania sobre os recursos hídricos e seus impactos para as relações internacionais. Demonstra-se, ainda, a importância do conflito pela água no mundo contemporâneo como fonte de ameaças e oportunidades para o Brasil. Com inspiração no método de planejamento da Escola Superior de Guerra (ESG), são apresentados os paradigmas emergentes, as forças e vulnerabilidades brasileiras relativas ao problema em estudo, donde emergem a Geopolítica e a Geoestratégia com foco nos aquíferos e suas implicações para os destinos do Brasil. Uma conclusão encerra esta contribuição à Escola Superior de Guerra e ao Brasil.

palavras-chave: Água. Aquíferos. Meio Ambiente. Gestão de Recursos Hídricos.

Relações Internacionais. Geopolítica. Geoestratégia.

abStRact

This work investigates the brazilian underground water situation in the context of international relations, especially the transboardery water resources management. It results of a bibliography search and specialists interview. First of all, water resources are analyzed as a part of a major system – the environment – and submitted by a critic view under the concepts of abundance and shortage of water, putting in the headlines the ecology thinking. Then, the brazilian underground water are focused concerning their importance and actual situation, headlining their position in the ______________

* Coronel do Exército, Diplomado pela Escola Superior de Guerra em 2008, Pós-graduado pelo Institu-to COPPEAD / UFRJ e pela Fundação Getúlio Vargas, servindo no Escritório de Projetos do Exército.

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011

brazilian constitutional law and in the water resources management system. After that, this work investigates the sovereigntyof water resouces and its impacts on the international relations. Especial attention is given to water conflict around the world as font of threats and opportunities to Brazil. Inspired on the “Escola Superior de Guerra” (ESG) method of planning, the strengths and weakness concerning the issue are presented. Geopolitics and Geostrategy considerations are given as contribuition to ESG and Brazil

Keywords: Water. Environment. Water Resources Management. International

Relations. Geopolitics. Geostrategy.

1 IntROdUçãO

A escassez de matérias primas – água, alimentos, minerais estratégicos e petróleo – esse último principalmente, é a grande motivação por trás de ações militares, econômicas e políticas conduzidas pelas grandes potências desde o fim da I Guerra Mundial. (REVISTA DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, 2007, p. 13).

A citação acima, escolhida para introduzir o presente trabalho, demonstra sua importância para o desenvolvimento e a segurança do Brasil. É neste sentido, também, que a Política de Defesa Nacional torna clara e inequívoca a relevância do tema ao afirmar: “Países detentores de grande biodiversidade, enormes reservas de recursos naturais e imensas áreas para serem incorporadas ao sistema produtivo podem tornar-se objeto de interesse internacional” (BRASIL, 2005, p. 5).

Este trabalho estuda um dos assuntos da chamada agenda global – a água – recurso abundante do Brasil e motivo de cobiça. Por meio de uma pesquisa bibliográfica e de entrevistas de especialistas sobre o tema, é investigada a situação dos aquíferos brasileiros no contexto das relações internacionais e, em especial, a gestão de recursos hídricos transfronteiriços.

Os recursos hídricos são tratados aqui como parte de um sistema maior – o meio ambiente – e submetidos a uma visão crítica à luz dos conceitos de abundância e escassez hídrica, destacando-se o papel do ecologismo como corrente de pensamento relevante no contexto ambiental internacional.

Faz-se ainda uma análise da soberania sobre recursos hídricos e seus impactos para as relações internacionais. São objetos de estudo os conflitos pela água no mundo contemporâneo como fonte de ameaças e oportunidades para o Brasil.

Com inspiração no método de planejamento da Escola Superior de Guerra (ESG), são apresentados os paradigmas emergentes, as forças e vulnerabilidades brasileiras relativas ao problema em estudo, donde emergem a Geopolítica e

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011 a Geoestratégia com foco nos aquíferos e suas implicações para os destinos do Brasil.

2 OS REcURSOS HídRIcOS E O EcOlOGISMO

2.1 ABUNDÂNCIA E ESCASSEZ HÍDRICA NO SÉCULO DA AGENDA 21

Abundância e escassez de água estão cada vez mais presentes na agenda da comunidade internacional no último terço do século XX, a era do ecologismo1. Essas

duas dimensões antagônicas formam a moldura escolhida para o problema da água neste artigo.

A Carta Europeia da Água2, proclamada, em 1968, pelo Conselho da Europa

em Estrasburgo, em plena Guerra Fria, já mencionava: “os recursos de águas doces não são inesgotáveis. É indispensável preservá-los, administrá-los e, se possível, aumentá-los”. E mais adiante: “á água não tem fronteiras. É um bem comum que necessita uma cooperação internacional”.

Mas foi com a Declaração de Estocolmo de 1972, resultado da Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente, marco do ecologismo, que a questão da água entrou definitivamente para a agenda dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, impulsionada por uma “ideia força” muito mais abrangente e poderosa – a preservação do meio ambiente.

Nos anos seguintes, diversas conferências e encontros internacionais vêm mantendo o ecologismo na pauta das “preocupações essenciais da humanidade”. Dentre essas atividades, destacam-se3:

Conferência das Águas, Mar del Plata, Argentina, 1977; a)

Conferência de Nairobi, Quênia, 1982; b)

Declaração de Dublin, Irlanda, 1992; c)

Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento d)

(Rio-92), Rio de Janeiro, Brasil, 1992;

19ª Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas (Rio + 5), Nova e)

Iorque, EUA, 1997;

Terceira Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas f)

sobre Mudança do Clima, Quioto, Japão, 1997;

Conferência Internacional sobre Água e Desenvolvimento Sustentável, g)

Paris, França, 1998;

1 Movimento que visa a um melhor equilíbrio entre o homem e seu meio natural, assim como a proteção dele. Baseia-se na defesa de que apenas mudanças radicais na estrutura da sociedade industrial moderna podem reintegrar o homem à biosfera. Corrente política que defende tais ideias (Dicionário Houaiss da Língua Portu-guesa, 2001, p. 1097). Alguns autores preferem o termo ambientalismo.

2 Disponível em: http://www.comitepaz.org.br/carta_europeia.htm.

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011 Conferência do Milênio, Nova Iorque, 2000; e

h)

Conferência de Joanesburgo, África do Sul, 2002. i)

Essas conferências significaram, por outro lado, marcos relevantes para o Direito Internacional Ambiental, em especial a Declaração de Estocolmo e a Rio-92. Nesta última foram produzidos documentos importantes, tais como:

a Declaração de Princípios sobre Florestas; a)

a Convenção sobre Diversidade Biológica; b)

a Convenção sobre Mudanças Climáticas; c)

a Agenda 21; e d)

a Declaração do Rio

e) 4.

A Agenda 21, concebida e aprovada durante a Rio-92, contém compromissos da comunidade internacional (179 países à época) com a mudança da matriz de desenvolvimento no século XXI. O termo “Agenda” foi concebido no sentido de intenções, desígnio, desejo de mudanças para um modelo de civilização em que predominasse o equilíbrio ambiental e a justiça social entre as nações.

Assim, “o chamado desafio ambiental trouxe uma verdadeira revolução cultural, pois implica limitar a relação da sociedade mundial com o Planeta” (PEREIRA, 2007, p. 287).

Com efeito, percebe-se que a problemática do meio ambiente tem sido enfatizada em todo o mundo, suas causas econômicas, políticas e sociais e as possíveis consequências para o futuro da humanidade. Imperam os paradigmas da Agenda 21.

Constatam-se com frequência na mídia escrita, eletrônica e digital - imprensa, televisão, rádio e internet – notícias sobre a escassez de água5 na África subsaariana

e no Oriente Médio; a situação de desabastecimento de água potável em metrópoles populosas, como em São Paulo e no Recife; ou mesmo a poluição de mananciais, como é o caso da Bacia do Alto Tietê, na Região Metropolitana de São Paulo.

O discurso da escassez hídrica “[...] foi apropriado por políticos, comunicadores e diversos segmentos do público em geral, que o reproduzem da mesma maneira genérica e abstrata6 com que o receberam, divulgando uma visão parcial e distorcida

dos problemas que o cercam e, o que é pior, das possíveis soluções” (DOWBOR et al., 2005, p. 38). Isso gera um efeito multiplicador e mobilizador em torno da ideia de escassez hídrica global.

Como exemplo de números que são comumente utilizados para abordar as questões mundiais da água e a degradação dos recursos hídricos do planeta Terra, 4 Uma avaliação acerca da implementação da Agenda 21 no Brasil está disponível em: http://www.scielo.br /

scielo.php? script = sci_arttext&pid=S0103-40141997000100019.

5 Como exemplo disso, o acesso na Internet, em 29 de julho de 2008, pelo verbete “escassez de água” retornou 1.780.000 artigos no sítio Google e 731.000 no Yahoo. Já o verbete “abundância de água” retornou 4.100.000 artigos no Google e 3.070.000 no Yahoo.

6 Que não é concreta, que resulta de abstração, que opera unicamente com idéias, com associação de ideias, não diretamente com a realidade sensível (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001, p. 32).

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011 Tundisi (2005, p. 53) aponta os seguintes dados fornecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU):

o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) a)

identifica 80 países com sérias dificuldades para manter a disponibilidade de água;

mais de 1 bilhão de pessoas com dificuldade de acesso à água b)

potável e 2,4 bilhões sem acesso a saneamento básico;

estima-se que entre 10 mil e 20 mil crianças morrem diariamente c)

vítimas de doenças por veiculação hídrica;

em algumas regiões da China e da Índia o lençol freático afunda de 2 d)

a 3 metros anualmente e 80% dos rios são tóxicos demais para a manutenção de peixes; e

cerca de 37% da população mundial vive próxima à costa, onde o e)

esgoto doméstico é a maior fonte de contaminação das águas do mar. Neste debate, a “escassez geral e abstrata [de água] surge como ideia determinante e geradora de um novo modelo global de gestão a ser adotado por todos os países em todas as situações” (DOWBOR et al., 2005, p. 39). Existiria, assim, uma verdadeira ideologia7 da escassez generalizada de água doce em todo o

mundo, segundo aqueles autores.

Segundo Dowbor et al. (2005, p. 37), o tratamento abstrato da questão da água serviria aos interesses de grupos econômicos, que defendem a privatização como solução global e diretriz para as estratégias nacionais de saneamento8, em

detrimento de alternativas públicas com a participação da sociedade e demais atores interessados na questão.

Nota-se que, apesar dos efeitos pedagógicos e virtuosos da mobilização mundial em torno da questão da falta de água doce, o discurso baseado em abstrações tende a encobrir as diferenças peculiares de cada país em termos de oferta e demanda, ocultando as verdadeiras origens históricas do problema e dificultando a elaboração de políticas e estratégias consistentes para o futuro.

Percebe-se que o ecologismo tem implicações em todas as expressões do Poder Nacional. Um exemplo marcante de sua influência está na internalização de alguns de seus conceitos no próprio texto constitucional9 e em outras leis.

É importante mencionar também as políticas de instituições, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, que condicionam 7 Ciência proposta pelo filósofo francês Destutt de Tracy (1754-1836) nos parâmetros do materialismo iluminista. Conjunto de ideias e valores que expressa interesses econômicos, políticos e sociais (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001, p. 1565).

8 Neste trabalho, a expressão saneamento será empregada em seu sentido amplo, abrangendo as ações de abas-tecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem urbana e outras com o objetivo sanitário de controlar doenças.

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a concessão de crédito para projetos de infraestrutura dos países emergentes à adequação aos critérios de sustentabilidade ambiental aceitos por aquelas instituições financeiras.

Não obstante, um conjunto de novas disciplinas e técnicas, como a Avaliação Ambiental Estratégica10 e a Auditoria Ambiental, apoiadas em normas

internacionais, como as ISO 14.000, foram criadas em decorrência do ecologismo e sua aplicação em escala mundial, proporcionando embasamento técnico normativo para a mitigação de impactos ambientais nos mais variados projetos. Citem-se ainda engenhosos mecanismos de valoração dos danos ao meio ambiente11 e de

compensação ambiental, como os créditos de carbono, propostos com ênfase para os países em desenvolvimento. Por outro lado, o pagamento pelos serviços ambientais prestados12 por ecossistemas brasileiros preservados não é cogitado

pelos países desenvolvidos, os grandes poluidores.

Assim tem início o século da Agenda 21. Como será mostrado a seguir, não se pretende negar o aquecimento global, os benefícios da proteção do meio ambiente ou a escassez hídrica, mas discutir o assunto de forma a contribuir para uma reflexão centrada nos interesses da segurança e do desenvolvimento do Brasil. Entende este autor que o aproveitamento racional e a conservação da natureza devem caminhar juntos.

2.2 ASPECTOS GERAIS SOBRE OFERTA, DEMANDA E POLUIÇÃO DE RECURSOS HÍDRICOS

Pelo ângulo da oferta, a quantidade total de água disponível no planeta depende do chamado ciclo hidrológico. De acordo com Rocha (2001, p. 246), o ciclo hidrológico é o fenômeno global da circulação fechada da água entre a superfície terrestre e a atmosfera, impulsionado pela energia solar associada à gravidade e à rotação da Terra. Ele é o responsável pela renovação da água e compõe-se das seguintes fases: precipitação, evaporação, transpiração, escoamento superficial e escoamento subterrâneo.

Alemar (2006) cita ainda estudo apresentado pela Agência Nacional de Águas (ANA), pelo qual se pode elaborar a seguinte tabela classificatória, tendo por base a classificação adotada pela ONU:

10 Um estudo sobre a Avaliação Ambiental Estratégica encontra-se em ARAÚJO, 2007.

11 Uma descrição dos métodos de cálculo do valor econômico de um recurso ambiental está em QUINTIERE, 2006, p. 244.

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011 Tabela 1 – 2ª Classificação dos níveis de oferta de água

Oferta de água: m³/pessoa/ano Classificação

Abaixo de 1.000 Estresse hídrico

Entre 1.000 e 2.000 Entre 2.000 e 10.000

Regular Suficiente

Entre 10.000 e 100.000 Rico

Acima de 100.000 Muito Rico

fonte: MATOS; ZOBY (2004, apud ALEMAR, 2006, p. 118)

Segundo Dowbor et al. (2005, p. 150), a ONU considera como crítica uma disponibilidade hídrica per capita anual de 1.500 m3/habitante/ano, um dos indicadores

utilizados para a comparação entre os países. Verifica-se que há distintas classificações acerca da disponibilidade hídrica per capita.

Como mostra Tundisi (2005, p. 26),as estimativas para o Brasil ficam entre 12% e 16% do total da água doce existente no planeta, grande parte dela subterrânea. O autor argumenta que o Brasil ocupa a 25ª posição dentre os países com maior disponibilidade per capita anual, da ordem de 48.314 m3/habitante/ano.

De posse dos dados apresentados acima, malgrado as diferenças entre as escalas de classificação, poder-se-ia concluir que o Brasil possui uma situação confortável, sendo um país rico em termos de oferta hídrica.

Porém, Tundisi (2005, p. 26) cita o do Estado do Amazonas, entre outros, onde a disponibilidade hídrica per capita anual é de 773.000 m3/habitante/ano, enquanto no

Estado do Rio e Janeiro a disponibilidade é de 2.189 m3/habitante/ano e em Pernambuco,

de 1.270 m3/habitante/ano. Existem diferenças marcantes entre as regiões brasileiras.

Enfocando a oferta de água no Rio Tietê, Dowbor et al. (2005, p. 150) menciona a cidade de São Paulo, onde a Bacia do Alto Tietê conta com uma disponibilidade hídrica da ordem de 201 m3/habitante/ano, o que pode ser classificado como situação crítica.

Portanto, conclui-se que, além das diferenças de critérios para a classificação da oferta e da demanda hídrica, existem diferenças de disponibilidade hídrica relevantes no Brasil, seja entre unidades da federação, seja dentro de um mesmo estado. A oferta de água abaixo dos níveis recomendados é uma realidade em seis estados da federação e no Distrito Federal.

Analisado sumariamente o quadro de oferta de água doce no Brasil, em se tratando de possíveis cenários para o mundo, pode-se ter uma ideia de como a redução da disponibilidade hídrica evoluirá no planeta até 2015 por meio da figura 1 abaixo13.

Percebe-se que a redução da disponibilidade hídrica no mundo também não será uniforme, visto que cada país apresenta marcantes diferenças geográficas, econômicas e sociais em seu território, levando a uma grande variação entre os países.

13 Fonte: CENTRAL INTELLIGENCY AGENCY (CIA). Global Trends 2015: a dialogue about the future with nongover-nment experts, 2000.

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Pode-se então inferir que, no futuro próximo, continuará existindo países com abundância de água; e outros, em número crescente, com escassez. Dentre estes últimos estarão potências econômicas e militares, como Estados Unidos, China, Índia e União Europeia.

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011 Pelo lado da demanda de água, Tundisi (2005, p. 43) aponta os principais usos múltiplos da água, em que residiriam as mais importantes fontes de conflito14:

abastecimento público em áreas urbanas e em áreas rurais; a)

irrigação e agricultura; b)

usos industriais, destacando-se o resfriamento de água e máquinas, c)

abastecimento, diluição e limpeza; navegação (hidrovias); d) turismo e recreação; e) produção de hidroeletricidade; e f)

pesca, piscicultura, e pecuária. g)

O consumo de água de cada usuário varia de país para país e de região para região em um mesmo território. Explica Tundisi (2005, p. 39) que o uso na agricultura é o mais importante, correspondendo a 70% do consumo total, seguindo-se os usos na indústria (7%), no abastecimento público (13%) e para consumo animal (10%).

Conforme mostra Dowbor et al. (2005, p. 103), no Brasil, os índices de abastecimento de água mostram que há enormes desigualdades entre regiões e entre ricos e pobres. Os mais prejudicados são aqueles que vivem nas favelas, periferias e pequenas cidades. Segundo levantamentos15, o saneamento básico

atinge em torno de 60% dos domicílios urbanos e 13% dos domicílios rurais, representando um grande passivo social.

Não obstante, outro aspecto relevante a ser estudado,a qualidade da água, depende de suas propriedades físico-químicas e biológicas, sendo afetada pela poluição. Ao discorrer sobre os principais agentes poluidores, de maneira geral os autores pesquisados citam os resíduos fecais, os fertilizantes usados na lavoura, os agrotóxicos, os detergentes, os ácidos, os óleos em geral e o petróleo em particular, os metais pesados e,finalmente, os fármacos.

Quintiere (2006, p. 50) aponta que a consequência direta da poluição da água se traduz na necessidade das sociedades arcarem com custos cada vez mais elevados para o restabelecimento dos níveis de qualidade considerados adequados para cada uso.

Assim, pode-se concluir esta subseção afirmando que a escassez de recursos hídricos não se manifesta de forma homogênea e generalizada no mundo, mas de forma heterogênea e algumas vezes pontual.

Por outro lado, inserida no quadro mais amplo do ecologismo, a ideologia de escassez hídrica global vem mobilizando populações e governos em torno do tema, que, em algumas ocasiões, é tratada de forma abstrata e incompleta.

Não se trata de negar o problema da escassez de água doce, nem da poluição, mas de aceitar que não são globais, variam de país para país, região para região, 14 Entendido como choque de interesses, de qualquer natureza, podendo ser armado ou não.

15 Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/ /home/ estatistica/populacao/default_censo_2000. Acesso em: 23 jun. 2008

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cidade para cidade. São questões derivadas da evolução sócio-econômica de cada país a serem enfrentadas com dados e fatos, ciência e tecnologia, não com abstrações.

O Brasil, que pode ser considerado uma potência hídrica em termos absolutos, enfrenta graves problemas de escassez hídrica e poluição em determinadas regiões, como foi visto.

Embora algumas vezes omitidos ou pouco citados, os aquíferos brasileiros fazem parte desse contexto. Assim, suas peculiaridades, importância, tutela jurídica constitucional e sistema de gestão serão analisados a seguir.

2 OS aqUífEROS bRaSIlEIROS E a GEStãO dE REcURSOS HídRIcOS

2.1 IMPORTÂNCIA E SITUAÇÃO DOS AQUÍFEROS BRASILEIROS

Devido ao seu posicionamento ou distribuição espacial, as águas se classificam em “superficiais (enxurradas, rios, córregos, lagos, açudes), subsuperficiais (infiltradas a pequenas profundidades), subterrâneas (são os aquíferos subterrâneos, lençóis freáticos) e oceânicas” (ROCHA, 2001, p. 241).

Rocha calcula que as águas subterrâneas correspondam a 35,44 vezes o volume de águas superficiais e que “a manutenção e a pureza das águas dos rios, pântanos (banhados) e lagos têm sua origem nas águas subterrâneas (lençol freático).”

Este fato decorre da interrelação entre as águas superficiais e subterrâneas. As águas dos aquíferos mais superficiais (freáticos) tendem a chegar aos rios16,

fornecendo-lhes vazões nos períodos mais secos. Isso permite uma avaliação preliminar sobre a importância dos aquíferos e sua conexão com os recursos hídricos superficiais, em especial os rios.

Rocha (2001, p. 259) cita os seguintes números: somente um dos reservatórios subterrâneos do Nordeste17 brasileiro possui um volume de onze

trilhões de metros cúbicos de água disponível para consumo humano, volume suficiente para abastecer toda a atual população brasileira, da ordem de 170 milhões de pessoas18, por um período de 60 anos. E vai mais longe ao dizer que

o Brasil possui o impressionante volume de 111 trilhões e 661 bilhões de metros cúbicos de água em suas reservas subterrâneas.

Segundo o autor, o Aquífero Guarani é o maior do planeta e possui um volume de água imenso, suficiente para abastecer toda a população atual do 16 REVISTA ÁGUAS SUBTERRÂNEAS. São Paulo: Associação Brasileira de Águas Subterrâneas, ano 1, no 3, jan./fev.

2008, p. 4.

17 Ver o Projeto Cadastro da Infraestrutura Hídrica do Nordeste a cargo da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais. Disponível em: < http://www.cprm.gov.br/rehi/projeto.pdf >. Acesso em 19 ago. 2008.

18 Valor correspondente ao censo 2000. Fonte: IBGE, disponível em: < http://www.ibge.gov.br/ /home/estatísti-ca/população/ default_ censo_2000 >. Acesso em 23 jun. 2008

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011 mundo, ou seja, seis bilhões de pessoas, até o ano de 2.400. Ocupa uma área de 840.000 Km2 do território nacional.

Cita, ainda, que no Piauí e no Rio Grande do Norte existem importantes plantações irrigadas com água de poços profundos, com culturas de uvas e cítricos para exportação, e que o Estado de São Paulo é o maior usuário de águas subterrâneas, tendo cerca de 90% das indústrias abastecidas parcial ou totalmente com esse recurso.

Os principais sistemas aquíferos do País19 são apresentados na figura 2,

com suas reservas explotáveis20 estimadas. Note-se que parte deles situa-se

na fronteira com países vizinhos, quais sejam: Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia e Guiana.

Conforme levantamento da Agência Nacional de Águas estima-se que existam no País pelo menos 400.000 poços, dos quais 160.00021 se encontram

cadastrados no Sistema de Informações de Águas Subterrâneas (SIAGAS)22 da

Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM). A água subterrânea de poços e fontes é intensamente explotada no Brasil e vem sendo utilizada para diversos fins, como para o abastecimento humano, a irrigação, a indústria e o lazer.

A disponibilidade hídrica subterrânea e a produtividade de poços são, geralmente, os principais fatores determinantes na explotação dos aquíferos. Em função “do crescimento descontrolado da perfuração de poços tubulares e das atividades antrópicas, que acabam contaminando os aquíferos, a questão da qualidade da água subterrânea está se tornando cada vez mais importante para o gerenciamento do recurso hídrico no País” (BRASIL, 2007b, p. 65).

Porém, como aponta Rocha (2001, p. 277), a maior parte dos estudos de qualidade da água subterrânea, publicada recentemente, volta-se à caracterização de áreas contaminadas. A questão da vulnerabilidade e proteção dos aquíferos23

é ainda um tema pouco explorado e que necessita ser incorporado à gestão das águas subterrâneas e ao planejamento do uso e ocupação territoriais24.

19 Disponível em: < http://www.ana.gov.br/SalaImprensa/projetos/livro_GEO.pdf >. Acesso em: 10 jun. 2008. 20 Reserva explotável do aquífero é o volume real que pode ser retirado sem prejuízo para o meio ambiente como

um todo, inclusive as restituições para os cursos d’água superficiais, a preservação das culturas implantadas, as obras de captação já instaladas e outras demandas dependentes desse potencial (BRASIL, 2007b).

21 Dado colhido com o Engo. Humberto Albuquerque, chefe do setor de hidrogeologia da CPRM.

22 Disponível em: <http: //siagas. cprm.gov.br/ wellshow/ indice.asp? w=1024&h= 764&info =1>. Acesso em 19 ago. 2008.

23 Encontra-se em implantação o projeto da Rede Nacional de Monitoramento Integrado das Águas Subterrâneas, a cargo da CPRM, que visa a suprir essa necessidade.

24 REVISTA ÁGUAS SUBTERRÂNEAS. São Paulo: Associação Brasileira de Águas Subterrâneas, ano 1, no 5, jan./fev.

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011 Figura 2 - Principais sistemas aquíferos do Brasil

fonte: Agência Nacional de Águas

“O Brasil não possui uma rede nacional de monitoramento de águas subterrâneas. Por isso, existe uma grande carência de informação a respeito da qualidade das águas, especialmente de abrangência regional” (BRASIL, 2007b, p. 64).

Percebe-se que o Brasil ainda apresenta uma deficiência séria no conhecimento do potencial hídrico de seus aquíferos, do seu estágio de explotação e da qualidade

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011 das suas águas. Os estudos regionais são poucos e se encontram defasados.

O Sistema Aquífero Guarani (ou Botucatu), por exemplo, muito comentado nos últimos anos, tem recebido especial atenção dos pesquisadores, mas ainda precisa de estudos. Sabe-se que “o sistema aquífero [Guarani] apresenta-se em vários locais compartimentado por falhamentos geológicos expressivos e por intrusões e rochas [...] que funcionam como barreiras hidráulicas, segmentando o aquífero, afetando o fluxo subterrâneo e a qualidade da água” (ROSA FILHO, 2006).

O mesmo pesquisador aponta que a espessura do Aquífero Guarani é muito variada, desde valores inferiores a dez metros até superiores a 300 m. “Em alguns pontos são possíveis extrações acima de 400.000 l/h/poço. Em contrapartida, existem locais onde as vazões são muito baixas” (ROSA FILHO, 2006).

E complementa Rosa Filho (2006), afirmando que, nas regiões onde o sistema aquífero ocorre em maiores profundidades, a água (in natura), muitas vezes, não é adequada ao consumo humano. Sob o ponto de vista hidráulico, ele não é transfronteiriço em toda a área de ocorrência, havendo continuidade na região entre o Mato Grosso do Sul e Paraguai, e entre o sudoeste do Rio Grande do Sul, Argentina e Uruguai.

Concluindo, pode-se afirmar que as águas subterrâneas representam uma riqueza natural importante para o País, para o atendimento atual e futuro de diversas demandas, compartilhada, em parte, com vizinhos da América do Sul. Embora careça de estudos quali-quantitativos, essa riqueza já está bastante explorada em algumas regiões e sujeita a poluição oriunda de diversas fontes.

Assim, analisada a importância e a situação geral das águas subterrâneas no Brasil, importa estudar como essas águas se encontram tuteladas no direito constitucional brasileiro.

2.2. OS AQUÍFEROS NO DIREITO BRASILEIRO

Alguns autores consideram a legislação de águas, no Brasil,um verdadeiro cipoal. Em princípio, este autor concorda, pois as dúvidas relativas à matéria decorrem em parte da própria Constituição Federal de 1988 (CF/88). Ao definir os bens e as competências da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a Carta Magna dá margem a interpretações que podem levar à confusão acerca da competência legislativa e administrativa, bem como sobre domínio dos recursos hídricos.

Longe de querer esgotar o tema neste trabalho, cabe aqui explicar que, em termos de águas doces, tanto a União quanto os Estados e o Distrito Federal possuem competência legislativa e administrativa sobre a matéria, conforme o direito constitucional brasileiro.

Via de regra, a União, ao legislar sobre águas, estabelece normas gerais, de aplicação nacional, relativas às águas federais e estaduais, com a finalidade de

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criar, alterar ou extinguir direitos. Não se confundem esses direitos com as normas administrativas estabelecidas pelos Estados Federados, mesmo que sob forma de lei.

Assim, a União tem competência para estabelecer as normas gerais sobre recursos hídricos, os Estados e o Distrito Federal legislam no interesse regional e os municípios sobre assuntos de interesse local (art. 30, I da CF/88), assim como podem suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (inciso II).

Feitas essas considerações iniciais, é importante ressaltar que a partir da promulgação da CF/88, todas as águas passaram a pertencer à União, aos Estados ou ao Distrito Federal, conforme sua localização. Segundo a lei brasileira, os recursos hídricos são bens de domínio público, de uso comum, sujeitos à escassez e, por conseguinte, dotados de valor econômico.

Isso se deve também em função da nova Lei das Águas do Brasil, Lei no

9.433/97, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e, dentre diversas inovações, extinguiu as águas particulares e introduziu novas fórmulas para a administração dos recursos hídricos.

Comenta-se que as principais melhorias, introduzidas pela Lei no 9.433/97,

foram a transferência de uma parcela do poder de decisão acerca do uso de águas doces aos usuários da água e à sociedade civil, bem como o conceito de bacia hidrográfica como unidade de planejamento e gestão de águas. Isso será tratado mais adiante.

Neste ponto, importa destacar o que prevê a CF/88, art. 20, inciso III, sobre os bens da União:

Os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, se estendam ao território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais (BRASIL, 1988).

Aqui reside uma questão relevante para o direito de águas e as relações internacionais, como será discutido mais adiante, uma vez que nenhum Estado-Nação detém o domínio absoluto de um corpo d’água que faz fronteira com outro país, por tratar-se de recurso hídrico compartilhado.

Há, nestes casos, a necessidade de articulação entre as soberanias limítrofes. A Lei no 9.984/00, que instituiu a Agência Nacional de Águas, dispõe em seu art.

4º, parágrafo 1º, que aquela autarquia deverá considerar, nos casos de bacias hidrográficas compartilhadas com países vizinhos, os respectivos acordos e tratados entre os países.

Sendo esse o quadro geral do ordenamento constitucional de águas no Brasil, a pergunta que emerge é: como estão enquadrados os aquíferos?

Nos termos do art. 26, inciso I, da CF/88, incluem-se entre os bens dos Estados e do Distrito Federal “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes

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Granziera (2006, p. 80) explica que a CF/88, ao fixar as normas relativas à questão das águas que pertencem aos Estados, adotou o princípio da exclusão, ou seja, as águas estaduais são aquelas que não pertencem à União. O texto constitucional também estabeleceu que as águas subterrâneas pertencem aos Estados, sem citá-las ao tratar da União. Aqui reside a dúvida relativa a não existirem águas subterrâneas de domínio da União.

Para elucidar esta dúvida, Granziera cita Vladimir Passos de Freitas:

Apesar da importância, as águas subterrâneas não vêm sendo objeto de regulamentação. Segundo o art. 26, inc. I, da Constituição Federal, elas se incluem entre os bens dos Estados. [...] o domínio das águas subterrâneas ordenado na Carta Magna não resolve, por completo, as dúvidas existentes. discute-se, por exemplo, a quem pertencem essas águas quando se estendem pelo território de mais de um país, como por exemplo, o aquífero de botucatu [...]. Todavia, a meu ver, não é possível concluir que tal circunstância torne as águas subterrâneas bens da União, pois inexiste qualquer dispositivo na Carta Magna que disponha de tal forma. E não é possível falar-se em analogia com a situação das águas superficiais, ou seja, os rios que dividem ou atravessam dois ou mais Estados (GRANZIERA, 2006, p. 81, grifo nosso).

Por fim, Granziera (2006, p. 81) argumenta que, de fato, não há base constitucional para o entendimento que as águas subterrâneas, subjacentes a mais de um Estado, sejam do domínio da União.

Portanto, pode-se afirmar que as águas subterrâneas carecem de uma melhor regulamentação no direito constitucional brasileiro, que torne clara e transparente a atual situação duvidosa quanto ao seu domínio, em particular devido à grande quantidade desse importante recurso debruçado sobre as fronteiras brasileiras com países da América do Sul, quais sejam Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia e Guiana.

2.3 ASPECTOS GERAIS SOBRE A GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL

Comentou-se acima que a Lei no 9.433/97 introduziu melhorias relevantes na

administração dos recursos hídricos brasileiros. Contudo, este avanço não resultou de medidas proativas tão somente.

Em verdade, resultou de um processo de conscientização nacional acerca do problema da poluição hídrica e da escassez de água doce em importantes regiões do país, particularmente em grandes metrópoles como São Paulo, e em polos industriais. Refletiu, sobretudo, a internalização de princípios do Direito Internacional Ambiental e, em especial, os conceitos de desenvolvimento sustentável no ordenamento jurídico brasileiro.

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A esse respeito, argumenta Granziera (2006, p. 46) que nas declarações emanadas das conferências sobre meio ambiente dois tipos de princípios se destacam: uns a serem observados pelos Estados diante dos demais; outros a serem adotados internamente, na busca de soluções para minimizar os efeitos da poluição e da degradação ambiental.

Conforme afirma Tundisi (2005, p. 79), o próprio conceito de “gestão das águas” surgiu nesse contexto, em substituição ao de “tratamento”. E, nas últimas duas décadas do século passado, o controle da contaminação e a gestão das águas passaram a ser integrados, ou seja, incluindo todos os componentes do ciclo, como as águas atmosféricas, as superficiais e as subterrâneas.

Assim, a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), instituída com a Lei no

9.433/97, baseia-se nos seguintes fundamentos (art. 1º): a água é um bem de domínio público;

I)

a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; II)

em situação de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o III)

consumo humano e a dessedentação de animais;

a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo IV)

das águas;

a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da V)

Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos;

a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a VI)

participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades (BRASIL, 1997).

Os objetivos fixados pela Política Nacional de Recursos Hídricos são (art. 2º): I) assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos;

II) a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável;

III) a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes de uso inadequado dos recursos naturais. (BRASIL, 1997).

Para Granziera (2006, p. 117), o gerenciamento de uma bacia hidrográfica envolve objetivos, diretrizes e instrumentos. Antes que qualquer plano de gestão possa ser desenvolvido, os objetivos devem ser matéria de acordo entre os diversos usuários da água, particularmente no tocante aos índices de qualidade almejados e os compromissos que devem ser acertados entre os usos conflitantes, como, por exemplo, entre geração de energia elétrica e navegação.

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011 Resta, ainda, definir os instrumentos de planejamento e de controle da Lei no

9.433/97, que a caracterizam como um instrumento de planejamento econômico, a saber:

instrumentos de planejamento: plano de bacia hidrográfica; a classificação, a)

o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes; e o sistema de informações sobre recursos hídricos;

instrumentos de controle: a outorga; o licenciamento ambiental; e a b)

cobrança pelo uso dos recursos hídricos.

Desses instrumentos, cumpre destacar, por sua relevância, o plano de bacia hidrográfica e a cobrança pelo uso dos recursos hídricos. O primeiro diz respeito ao planejamento estratégico e integrado dos recursos hídricos dentro de uma mesma bacia hidrográfica, cuja aprovação é competência dos comitês de bacia hidrográfica.

É uma ferramenta moderna de gestão que pode levar a conflito. “[...] o conteúdo do plano, na forma fixada no art. 7º da Lei no 9.433/97, não só pode

estabelecer indiretamente um zoneamento de bacia hidrográfica, como pode, também, alterar o uso e ocupação do solo, ainda que esse tema seja de competência municipal” (GRANZIERA, 2006, p. 144).

A cobrança é um dos instrumentos de gestão dos recursos hídricos instituídos pela Lei nº 9433, de 8 de janeiro de 1997, cujo objetivo é estimular o uso racional da água e gerar recursos financeiros para investimentos na recuperação e preservação dos mananciais das bacias. Não é um imposto, mas um preço público, fixado a partir de um pacto entre os usuários de água, sociedade civil e poder público no âmbito do comitê de bacia, com o apoio técnico da Agência Nacional de Águas (ANA).

Compete à ANA operacionalizar a cobrança pelo uso dos recursos hídricos de domínio da União e repassá-los integralmente à agência de águas da bacia, segundo determina a Lei nº 10.881, de 9 de junho de 2004, cabendo àquela instituição alcançar as metas previstas no contrato de gestão assinado com a Agência Nacional de Águas, instrumento pelo qual estes recursos são transferidos.

Citando, como exemplo, a bacia do rio Doce (MG e ES) implantou a cobrança em 2011 e se espera uma arrecadação de R 13,2 milhões em 2012. Além disso, a cobrança está em funcionamento na bacia do Rio Paraíba do Sul (MG, RJ e SP) desde 2003; na dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (MG e SP) desde 2006, e na do São Francisco (AL, SE, PE, BA, MG, GO DF) desde 2010. Até o ano passado (2011), foram arrecadados R$ 146 milhões, utilizados em diversas ações, como recuperação de matas ciliares, preservação de nascentes e construção de estações de tratamento de esgotos25.

Cabe, finalmente, destacar que no tocante à inserção dos recursos hídricos subterrâneos nos Planos de Recursos Hídricos, a Resolução no 22/2002 do 25 Disponível em: http://sosriosdobrasil.blogspot.com/2011/11/bacia-do-rio-doce-comeca-cobranca-pelo.html.

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CNRH26 estabelece em seu art. 2º que: “os Planos de Recursos Hídricos devem

promover a caracterização dos AQUÍFEROS e definir as interrrelações de cada aquífero com os demais corpos hídricos superficiais e subterrâneos e com o meio ambiente, visando à gestão sistêmica, integrada e participativa das águas” (BRASIL, 2002).

Caracterizado,assim, o novo paradigma de gestão para os recursos hídricos brasileiros, um recurso ambiental estratégico e importante para o fortalecimento do Poder Nacional, torna-se necessário abordá-lo sob a ótica das relações internacionais, pois aí repousam questões essenciais para a segurança e a defesa do Brasil, como será visto a seguir.

3 a pROblEMÁtIca dOS REcURSOS HídRIcOS tRanSfROntEIRIçOS

3.1 SOBERANIA, RECURSOS HÍDRICOS E RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Uma breve análise da inserção e da importância dos recursos hídricos brasileiros no cenário e no contexto mundial assinala assuntos relevantes e singulares, principalmente no que se refere ao subcontinente sul-americano.

Segundo a CF/88, art. 1º, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é a soberania. Para a Escola Superior de Guerra, em seus conceitos fundamentais, soberania significa:

Manutenção da intangibilidade da Nação, assegurada a capacidade de autodeterminação e de convivência com as demais Nações em termos de igualdade de direitos, não aceitando qualquer forma de intervenção em seus assuntos internos, nem participação em atos dessa natureza em relação a outras Nações (ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, 2008a, p. 25).

Para Reale (apud Guerra, 2006, p. 112), a soberania significa o poder de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência.

A CF/88, art. 4º, ao definir os princípios basilares que regem as relações internacionais do Brasil, aponta, entre outros, a independência nacional, a autodeterminação dos povos, a não intervenção, a igualdade entre os Estados e a solução pacífica dos conflitos.

Por outro lado, “a relativização do conceito de soberania é tida como pressuposto para a construção e evolução do Direito Internacional. Segundo Kelsen27,

os Estados são soberanos na medida em que não exista Direito Internacional ou que não se suponha sua existência.” (GUERRA, 2006, p. 111).

26 Disponível em: <http://www.cnrh-srh.gov.br/>. Acesso em: 28 ago. 2008.

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011 Entretanto, no âmbito internacional, “a soberania vai ser limitada pelos imperativos da coexistência de Estados soberanos [...]” (GUERRA, 2006, p. 112). Fica claro que o imperativo da coexistência pacífica entre soberanias cresce de importância na manutenção da ordem internacional. Embora os Estados reafirmem a soberania sobre os recursos naturais em seus territórios, surge a noção de soberania compartilhada.

Assim, quanto a recursos hídricos transfronteiriços, devem ser cogitadas as seguintes questões de destaque:

os Estados têm direito soberano aos recursos hídricos que ocorrem livres a)

na natureza e não respeitam as fronteiras políticas?

estaria o Estado sujeito a uma possível intervenção ou ingerência em b)

matéria de recursos hídricos?

recursos hídricos poderiam dar margem a

c) casus beli28?

Em relação às duas primeiras questões, é sabido que durante as conversações que antecederam a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio-92, houve por parte de alguns países desenvolvidos uma tentativa de evitar a referência ao direito soberano e aprovar a tese do dever de ingerência, em particular em questões humanitárias e de meio ambiente.

Graças à ação decidida de países em desenvolvimento, dentre eles o Brasil, tal postulado não prosperou e venceu o princípio consagrado de que os Estados têm o direito soberano de explorar seus recursos segundo suas próprias políticas de meio ambiente e desenvolvimento.

Apesar disso, o movimento ecologista internacional vem perseguindo o objetivo de garantir o direito de intervenção em matéria ambiental. O meio ambiente “não foi, ainda, razão jurídica anunciada para qualquer intervenção militar” (GUERRA, 2006, p. 120), mas atos de ingerência já foram realizados em seu nome se considerarmos iniciativas nos campos político, econômico e diplomático. Aí repousa grande ameaça para o Brasil.

O Brasil tem participado ativamente de importantes fóruns e iniciativas internacionais que tratam dos recursos hídricos, nas diferentes vertentes técnicas e políticas da abordagem de temas, tais como a universalização do acesso à água, a conservação e a gestão dos recursos ante os problemas ambientais que os afetam, a importância econômica e, principalmente, o papel desses recursos nas políticas de desenvolvimento.

Buscando fortalecer essa posição no cenário internacional, o País é signatário das mais importantes convenções e declarações internacionais que 28 Casus beli: expressão latina que significa razões que justificariam a guerra.

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tratam direta ou indiretamente da questão dos recursos hídricos, conforme já foi visto.

No contexto das relações bilaterais, de modo análogo, o Brasil tem buscado fortalecer sua posição, principalmente no continente sul-americano, procurando contribuir para uma análise mais racional e menos ideológica dos problemas e dos desafios da gestão dos recursos hídricos na região que resulte em uma efetiva articulação e em benefícios mútuos dos países.

Neste esforço nacional de contemplar e priorizar o tema de recursos hídricos no contexto internacional, o País tem considerado como instrumentos importantes: buscar estabelecer relação de cooperação com os países vizinhos a partir de um compartilhamento das informações técnicas e de apoio ao fortalecimento da capacitação técnica das instituições; priorizar ações e projetos que contemplem as bacias dos rios fronteiriços e transfronteiriços; e contribuir com a discussão da gestão integrada dos recursos hídricos, seja no aprimoramento de suas políticas internas, seja na expansão de suas experiências e práticas de gestão.

Ocorre que a experiência histórica brasileira na gestão internacional de recursos hídricos se deve exclusivamente às águas superficiais. Sobre isso, cabe destacar os seguintes tratados:

da bacia da Lagoa Mirim e do Rio Quaraí, com o Uruguai (1963); a)

da bacia do Prata, envolvendo inicialmente a República das Províncias b)

Unidas do Rio da Prata (1828), o Uruguai (1851), a Argentina (1857); a Argentina, a Bolívia, o Paraguai e o Uruguai (1967);

de Itaipu, com o Paraguai (1973); c)

da bacia Amazônica, envolvendo Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, d)

Peru, Suriname e Venezuela (1978), posteriormente reafirmado, em 1998, no bojo do Pacto Amazônico; e

o Acordo-Quadro sobre Meio Ambiente do Mercado Comum do Sul e)

-Mercosul- (2001).

Mais recentemente, uma nova iniciativa vem ganhando relevância no âmbito do Mercosul, pela primeira vez dedicada aos recursos hídricos subterrâneos.

Trata-se do Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aquífero Guarani (PSAG)29, que se encontra em andamento desde 2000

e cujo objetivo é formular um marco legal para a gestão compartilhada dos recursos hídricos subterrâneos pelos quatro países envolvidos (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai).

Os recursos para este projeto são do Global Environment Facility (Fundo Mundial para o Meio Ambiente), sendo a agência implementadora o Banco Mundial e a agência executora internacional a Organização dos Estados Americanos (OEA).

Outra iniciativa relevante, no mesmo sentido, o Programa International 29 Ver Projeto Aquífero Guarani: disponível em: < http:// www.mma.gov.br/ index.php ? ido = conteúdo. Monta

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011 Shared (Transboudary) Aquifer Resource Management (ISARM)30 Américas, foi

lançado a partir de 2000.

No Brasil, o objetivo desse programa é elaborar diretrizes para gestão de aquíferos transfronteiriços, identificando-os, caracterizando-os e desenvolvendo projetos conjuntos com outros países. Abrange os aquíferos localizados em estados que tem fronteiras com países vizinhos, a saber:

Amazonas (Solimões-Iça) – Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e a)

Venezuela;

Pantanal – Brasil, Paraguai, Bolívia; b)

Boa Vista / Serra do Tucano / North Savana- Brasil e Guiana; c)

Grupo Roraima - Brasil, Guiana e Venezuela; d)

Costeiro - Brasil e Guiana Francesa; e)

Aquidauna / Aquidaban - Brasil e Paraguai; f)

Litorâneo / Chui - Brasil e Uruguai; g)

Permo / Carbonífero - Brasil e Uruguai; h)

Serra Geral – Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina; i)

Guarani – Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina; e j)

Caiuá-Bauru / Acaray – Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina. k)

Assim, quanto às duas primeiras questões de destaque, pode-se concluir que o Brasil tem buscado reafirmar sua soberania sobre os recursos naturais com base em uma postura flexível e de cooperação com seus vizinhos.

Essa postura tem sido cada vez mais significativa em função da história e da terceira questão de destaque, quanto à possibilidade de casus beli, a qual será estudada a seguir.

3.2 A DISPUTA PELA ÁGUA: AMEAÇAS E OPORTUNIDADES

Pessoas envolvidas com a segurança e o desenvolvimento nacionais, frequentemente se perguntam: a disputa pela água poderá levar Estados-Nações à guerra no futuro?

Wally N’Dow (apud DOWBOR, 2005, p.105) considera que grande parte dos conflitos políticos e sociais no futuro deixará de ter como causa o petróleo e será provocada pelas disputas em torno da água.

Para Silva (2005), na Europa, hoje, a poluição industrial – por exemplo, no Reno – ou a qualidade hídrica – no caso das águas calcáreas da França e da Alemanha – obrigaram a população a aceitar a água como mercadoria vendida em supermercados. A precificação da água e sua mercantilização são uma realidade.

Segundo ele, coincide a existência de extensas reservas hídricas, populações em expansão, conflitos étnicos e religiosos, além de escassez de 30 Ver Projeto ISARM Américas: disponível em: < http:// www.mma.gov.br >. Acesso em: 17 jun. 2008.

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recursos para a preservação, já que a maioria dos países da região se encontra sob forte monitoramento financeiro internacional visando à implantação de gestões neoliberais.

E conclui dizendo que, neste sentido, a água se tornou uma questão de segurança e de defesa do Estado Nação, devendo constar do planejamento estratégico de todos os países, em especial daqueles considerados “fontes hídricas”.

Já Adeodato (2008, p. 32), ao investigar a situação da água no semiárido nordestino, registra que os projetos financiados pelo Banco Mundial, para permitir a irrigação de cultivos agrícolas no Estado do Ceará e suprir as necessidades de Fortaleza, vêm provocando conflitos. Isso ocorre na medida em que as populações ao longo do Canal da Integração, em cidades como Nova Jaguaribara, carentes de oferta de saneamento básico, desviam ilegalmente água para sua sobrevivência.

Por outro lado, Gleik (apud ADEODATO, 2008, p.38) destaca que com o aquecimento global a situação dos conflitos pela água tende a se agravar.

Na América do Sul, Adeodato (2008, p. 39) cita a possibilidade de conflitos pela água da Bacia do Rio da Prata, em que pese a situação favorável da oferta hídrica. Sustenta que o aumento da população, as culturas irrigadas e a industrialização crescente, inclusive para a indústria florestal, podem comprometer a oferta de água doce, em especial dos aquíferos.

Bouguerra (2004, apud ALEMAR, 2006, p. 207) declara que “é difícil provar que a água é a causa de um conflito, pois, muitas vezes, as causas são múltiplas”.

Já Alemar (2006, p. 207) afirma que se a utilização de um curso d’água passa a ser motivo de discórdia entre dois ou mais Estados, é porque falharam na avaliação de suas responsabilidades recíprocas. E mais, foram “incapazes – por razões políticas, religiosas, éticas ou econômicas – de compartilhar e gerenciar conjuntamente um recurso comum no interesse de todas as partes (PETRELLA, 2002 apud ALEMAR 2006, p. 207).”

A fim de apresentar uma síntese dos conflitos pela água no mundo contemporâneo, organizou-se a tabela 2 a seguir, com base em pesquisa realizada nas fontes citadas acima. Alguns desses conflitos foram resolvidos mediante acordos internacionais, enquanto outros ensejaram guerras, ou contribuíram para tal.

Tabela 2 - Síntese dos conflitos pela água no mundo contemporâneo

região Conflito pela água

Oriente Médio – Bacia do Rio

Jordão Israel, onde a agricultura no deserto levou à multiplicação de colônias agrícolas, onde o padrão de vida (e logo o consumo de água) era mais elevado do que na maioria dos vizinhos. Assim, a garantia de controle dos aquíferos no Sul do Líbano se impunha como objetivo estratégico nas guerras Árabes- Israelenses.

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Oriente Médio – Bacia dos

Rios Tigre e Eufrates Tensões e negociações entre Turquia, Síria e Iraque, em decorrência das vazões dos Rios Tigres e Eufrates. A Turquia construiu hidrelétricas e ameaça o controle das fontes do Eufrates, colocando a Síria e o Iraque em clara situação de dependência e alto risco.

Oriente Médio – Bacia do

Rio Jordão Israel, Jordânia, Síria e Líbano disputam as vazões do Rio Jordão. A Guerra dos Seis Dias, em 1967, teve como uma de suas causas a tentativa da Síria de desviar o curso de um de seus afluentes. Ásia – Bacia do Rio Ganges Tensões entre a Índia e o Bangladesh envolvendo as vazões dos

Rios Ganges, principalmente após a construção da Hidrelétrica de Farakka pelos indianos.

Ásia – Bacia do Rio Amarelo Tensões internas entre as províncias da China que são banhadas pelo Rio Amarelo.

Ásia Central – Cachemira O controle das regiões de onde provêm as fontes dos rios que correm para a China, Paquistão e Índia agudizam os conflitos na Cachemira, Nepal e Tibet.

África – Região do Sahel No Sahel (a franja entre o Sahara e a savana semiárida africana) a escassez ameaça alguns milhões de pessoas com a fome. Ali, Chad, Mali, Niger e Líbia se enfrentam constantemente, visando o controle de lagos e oásis do deserto.

África – Região Sul Disputas entre África do Sul e Namíbia colocam a situação deste último país como crítica.

África – Bacia do Rio Nilo Tensões internacionais entre Egito, Sudão e Etiópia envolvendo as vazões do Rio Nilo e a construção da represa de Aswan e do canal de Jonglei.

África – Bacia do Rio

Okavango Namíbia e Botsuana disputam as vazões do Rio Okavango, o terceiro maior rio da África. África – Região Norte Tensões internacionais entre Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia pelo uso de reservas e do lençol freático, tendo na Tunísia seu epicentro. O setor hoteleiro bastante desenvolvido pela Tunísia e Marrocos é acusado de oferecer água em abundância aos turistas, enquanto a massa da população sofre a penúria. Enquanto isso, denunciam a agricultura marroquina, tunisiana e argelina de gastar água numa atividade de baixíssima remuneração.

América do Norte – Bacia

do Rio Bravo (ou Grande) O aproveitamento do Rio Bravo (ou Grande), na fronteira dos EUA com o México, é uma fonte constante de atritos, com os desvios crescentes para a irrigação e o abastecimento das cidades e da agricultura norte-americanas.

região Conflito pela água

América do Sul – Bacia do Rio São Francisco e Açude Castanhão

A escassez de água no semiárido nordestino do Brasil, os projetos de agricultura irrigada e a situação da escassez hídrica em grande cidades, como Fortaleza, provocam disputas pelas vazões do Rio São Francisco e do açude Castanhão.

América do Sul – Bacia do

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Europa – Bacias dos Rios Oder, Mosa e Danúbio. Além do Lago Lanoux

No Rio Oder, disputas envolvem de um lado a Polônia, e de outro, a Alemanha. A Dinamarca, a França, o Reino Unido, a então Tchecoslováquia e a Suécia. Em torno do Rio Mosa enfrentaram-se França e Bélgica, na década de 1930. O caso do Lago Lanoux, entre a França e a Espanha, na década de 1950. O caso Gabcikovo-Nagymaros, cujas origens remontam a 1977, envolvendo a Hungria e a então Tchecoslováquia sobre a realização de obras no Rio Danúbio, e que se estendeu até a década de 1990.

fonte: o autor.

Alemar chama a atenção para os vários tipos de conflitos motivados pela água. “Do ponto de vista das águas transfronteiriças, ou seja, daquelas águas compartilhadas por dois ou mais Estados, é possível prever a ocorrência séria de pelo menos dois deles: a) pelo direito de acesso; e b) pelo direito de uso soberano” (ALEMAR, 2006, p. 213).

Portanto, à luz da história, da repercussão do ecologismo em âmbito mundial (os paradigmas da Agenda 21) e da importância geopolítica dos recursos hídricos, em especial dos aquíferos, a resposta à terceira questão de destaque (quanto à possibilidade de casus beli) é afirmativa, conforme demonstram as fontes pesquisadas.

Diante desse quadro, quais seriam as principais ameaças e oportunidades para o Brasil?

No campo das principais ameaças podem ser visualizadas as seguintes, com implicações para todas as expressões do Poder Nacional brasileiro:

a) a tentativa de ingerência estrangeira nos assuntos brasileiros concernentes ao domínio e a gestão de recursos hídricos, em particular os transfronteiriços na América do Sul;

b) o acirramento de conflitos em âmbito mundial e, mais especificamente, sul-americano e interno, pela posse, uso e proteção de recursos hídricos;

c) a efetivação de pressões e constrangimentos oriundos de potências estrangeiras tendo como argumento a preservação do meio ambiente e da água, cuja intenção velada seria a reserva desses recursos estratégicos para seu uso futuro, com consequências negativas para o Poder Nacional brasileiro;

d) a superposição de vários ordenamentos jurídicos, dificultando convergências e unanimidades de doutrina na matéria de recursos hídricos, entre as nações sul-americanas; e

e) a dificuldade em conciliar a assimetria de políticas públicas nacionais de meio ambiente em região de fronteira, com implicações para as soberanias envolvidas.

No campo das principais oportunidades apresentam-se os seguintes (da mesma forma, com impacto em todas as expressões do Poder Nacional brasileiro):

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011 a) o aumento da cooperação internacional, em particular a sul-americana, em matéria de meio ambiente e de recursos hídricos transfronteiriços;

b) as condições para o Brasil tornar-se líder mundial em gestão de recursos hídricos e em tecnologias, visando à eficiência hídrica; e

c) a implementação de diretrizes geopolíticas brasileiras relacionadas com os recursos hídricos; e

d) o fortalecimento da Geopolítica, da Geoestratégia e do Geodireito brasileiro no cenário internacional.

4 GEOpOlítIca E GEOEStRatéGIa

4.1 PARADIGMAS EMERGENTES: FORÇAS E VULNERABILIDADES

O Brasil, detentor de reservas hídricas consideráveis e de um sistema de ciência e tecnologia que foi capaz de produzir empresas como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), a Petróleo Brasileiro S.A. (PETROBRAS) e a Empresa Brasileira de Aeronáutica (EMBRAER), apresenta-se no cenário internacional como um ator relevante em matéria de recursos hídricos, em especial os aquíferos.

Da mesma forma, o País está apto a conceber políticas e implementar estratégias que vão desde o domínio científico-tecnológico de vanguarda na industrialização de produtos “hidroeficientes” de diversas naturezas, até sistemas de gestão internacional compartilhada para recursos hídricos transfronteiriços.

Além disso, o Brasil e os demais países da América do Sul têm como um de seus principais desafios a “transformação em realidade do extraordinário potencial natural da América do Sul [...] pelo aumento da produtividade de [...] seus recursos naturais” (GUIMARÃES, 2006, p. 321), com o que este autor concorda plenamente.

Quais são, então, as principais forças e as principais vulnerabilidades brasileiras relativas aos aquíferos?

a) Forças:

- existência de recursos humanos qualificados em áreas do conhecimento científico relacionadas com recursos hídricos subterrâneos, em especial a hidrogeologia, destacando-se os quadros da CPRM, da ANA e da Companhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB);

- existência de instituições de ensino e pesquisa voltadas para o estudo de águas subterrâneas;

- tecnologia suficiente para implantar os programas e projetos relacionados com aquíferos;

- marco legal para a gestão dos recursos hídricos no “estado da arte”, destacando-se as Leis no 9.433/97 e no 9.984/00;

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- recursos hídricos em quantidade e qualidade para dar suporte o desenvolvimento nacional;

- recursos orçamentários e extraorçamentários (oriundos da cobrança pelo uso de recursos hídricos, por exemplo) que podem viabilizar projetos voltados para os aquíferos;

- organizações de governo em condições de desenvolver os programas e projetos necessários ao desafio, dentre elas o Ministério do Meio Ambiente, a CPRM, a ANA, e os órgãos do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH);

- o projeto de Implantação da Rede Básica Nacional de Monitoramento Integrado das Águas Subterrâneas e o Sistema de Informações de Águas Subterrâneas da CPRM;

- o Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aquífero Guarani; e

- a participação ativa no Programa International Shared (Transboudary) Aquifer Resource Management.

b) Vulnerabilidades:

- pouco conhecimento acerca da real situação dos aquíferos brasileiros, devido ao percentual de implementação do SIAGAS, da ordem de 40%, e da não existência de um sistema de monitoramento e de gestão de águas subterrâneas;

- número restrito de especialistas em aquíferos, em especial hidrogeologia; - uso da mídia para influir na opinião pública mediante o discurso

ideológico da escassez hídrica global;

- atuação do movimento ecologista polarizado em torno das propostas de preservação do meio ambiente a qualquer custo, com prejuízo do desenvolvimento nacional;

- complexa e extensa base legal para a gestão de recursos hídricos no Brasil;

- carência de uma educação ambiental mais efetiva, em todos os níveis; - poluição de fontes hídricas de superfície, levando à superexplotação de

aquíferos;

- carência de uma cultura de reuso da água para poupar recursos hídricos subterrâneos e superficiais: e

- ausência de dispositivo no texto constitucional tornando claro e inequí-voco o domínio da União sobre aquíferos transfronteiriços.

4.2 GEOPOLÍTICA E GEOESTRATÉGIA FOCADAS NOS AQUÍFEROS

Para o General Carlos de Meira Mattos, “Geopolítica é a Política aplicada aos espaços geográficos sob a inspiração da experiência histórica” (MATTOS, 2002, p. 33).

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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011 Nestas bases e de acordo com a análise das fontes pesquisadas, é possível formular algumas premissas geopolíticas orientadas para os aquíferos brasileiros:

o contexto mundial recomenda considerar como ponto de partida o a)

cenário futuro mais provável de crescente escassez de recursos hídricos em algumas regiões no mundo, levando a conflitos entre Estados-Nações, de intensidade variável, cujas soluções envolverão desde acordos de cooperação até ações bélicas;

o Brasil é uma potência hídrica que também enfrenta problemas de b)

quantidade e qualidade das suas águas doces, inclusive de seus aquíferos; existem aquíferos gigantes na América do Sul que não respeitam fronteiras c)

políticas, implicando questões de soberania compartilhada de recursos hídricos e recomendando flexibilidade nas negociações entre os países; o Brasil deve considerar a Agenda 21 na formulação do conjunto das d)

políticas e estratégias nacionais. Esta é uma realidade mundial importante, mas não deve ser um entrave para o desenvolvimento e a segurança do país. Desenvolvimento e meio ambiente devem caminhar juntos;

o Brasil buscará, a médio prazo,

e) o aumento da área plantada e da safra

de grãos, o que, combinado com o crescimento populacional e industrial, pressionará a demanda por recursos hídricos, em especial dos aquíferos. Assim, propõe-se a seguinte Geopolítica para os aquíferos brasileiros e a gestão de recursos hídricos transfronteiriços:

Implementação de um sistema sul-americano de gestão compartilhada de aquíferos transfronteiriços, com os objetivos de: (i) contribuir para a conquista e manutenção da segurança hídrica para o Brasil; (ii) evitar conflitos pela água com países vizinhos e, caso seja impossível fazê-lo, solucioná-los por vias pacíficas; e (iii) cooperar para o fortalecimento da união dos países sul-americanos.

Para tanto, visualiza-se a seguinte Geoestratégia:

- constituir grupo de estudos de alto nível para propor alteração da CF/88, por meio de emenda constitucional, que torne claro e inequívoco o domínio da União sobre as águas subterrâneas debruçadas nas fronteiras brasileiras;

- ampliar a implantação dos instrumentos de planejamento e de controle da Lei no 9.433/97, em particular e com urgência a cobrança pelo uso de recursos

hídricos, como forma de viabilizar financeiramente projetos para os aquíferos brasileiros;

- concluir a Rede Básica Nacional de Monitoramento Integrado das Águas Subterrâneas, o banco de dados do SIAGAS e desenvolver o sistema de gestão de aquíferos brasileiros;

- concluir os projetos PSAG e ISARM;

- estabelecer os acordos internacionais, bilaterais ou multilaterais, necessários à formação de parcerias para a gestão compartilhada de aquíferos transfronteiriços;

Referências

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