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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Luciana Mattos

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Luciana Mattos

Adolescente autor de ato infracional:

falência do pai ou falência da pátria?

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Luciana Mattos

Adolescente autor de ato infracional:

falência do pai ou falência da pátria?

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

Dissertação

apresentada

à

Banca

Examinadora como exigência parcial para

obtenção do título de MESTRE em Serviço

Social pela Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, sob orientação da Profª. Doutora

Maria Lúcia Rodrigues.

SÃO PAULO

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

À Profª. Drª. Maria Lúcia Rodrigues, orientadora deste trabalho, agradeço a dedicação ao me acompanhar neste percurso acadêmico, mormente no que se refere à confiança e ao apoio devotados.

À Profª. Drª. Myriam Veras Baptista a participação na banca examinadora e as valiosas contribuições desde a qualificação.

À Profª. Drª. Maria Liduína de Oliveira e Silva a aceitação do convite para compor a banca examinadora, trazendo, igualmente, inexcedíveis contribuições.

À Profª. Drª. Maria de Lourdes Trassi os “retornos” dados a partir do primeiro contato com o material, na banca de qualificação.

À Profª. Drª. Márcia de Lima Farias, parceira desde os primeiros dias do Mestrado, louvo seu apoio imensurável e o constante estímulo para a realização desta pesquisa. A sua forma de compreender o universo acadêmico torna as reuniões de pesquisa deveras mais humanizadas.

Ao Dr. Flávio Frasseto, Defensor Público, que não pode dimensionar o quanto a sua disponibilidade em me receber, ceder materiais, dialogar e sugerir caminhos e leituras auxiliou na construção desta pesquisa. Agradeço a apresentação que me foi feita dos teóricos da criminologia crítica e as suas produções tão relevantes para esta dissertação. O primeiro diálogo que tivemos foi, realmente, um divisor de águas na confecção deste texto.

À querida Roseli Albuquerque, sem cujo auxílio eu não teria continuado este percurso, reverencio o incentivo para que eu chegasse até a seleção do mestrado. A sua sensibilidade e o seu senso de humor tornaram mais leve a realização do estudo, além das risadas entre almoços e empadinhas.

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olvidar, ainda, o estímulo, principalmente nos últimos dias, essencial para que eu lograsse êxito.

À querida Kátia, secretária do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, agradeço a atenção cotidiana e o carinho tão importante nesta árdua jornada de pesquisa.

Aos adolescentes inseridos em medidas sócio-educativas, sobretudo àqueles que em algum momento cruzaram os meus caminhos, direciono este trabalho, que somente terá sentido caso lhes produza reflexos. A indignação em relação a todas as violações a que estão submetidos foi o motor que impulsionou esta pesquisa.

A todos os familiares de adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa, em especial aos que eu conheci na AMAR (Vicente, Conceição, Valdinez, Miriam e tantos outros), desejo, sinceramente, que algum dia o Serviço Social e a Psicologia possam estar a serviço de uma transformação eficaz em suas realidades. Aproveito o ensejo para estender o agradecimento também a José Renato, adolescente que conheci na AMAR e do qual sempre me lembro: a sua história é um estímulo para que eu continue a atuar nesta área.

A José Resende Filho e Givanildo Silva, profissionais e militantes da área da infância e da juventude, com os quais trabalhei durante os meus primeiros meses na FEBEM e que me mostraram que os adolescentes são sujeitos de direitos e que é possível a realização de um trabalho pedagógico, destaco que a minha luta pela efetivação desses direitos tem como uma de suas referências os nossos dias de trabalho.

A todos os pesquisadores do NEMESS – Ensino e Questões Metodológicas em Serviço Social, em especial à Fátima Fontes, sempre acreditando no valor do afeto, e à Sandra, que, vindo de Porto Alegre, em uma conversa antes da qualificação, acalmou os meus dias.

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À Francisca (Assistente Social – chefe) e à Maria Costantini (Psicóloga - chefe da Equipe Técnica Judicial) terem-me recebido atenciosamente e fornecido indicações dos processos que já haviam passado por avaliações com a Equipe Técnica. Sem esse apoio, não teria sido possível operacionalizar a realização da pesquisa.

À CNPq o apoio financeiro durante a pesquisa, fundamental para que fosse desenvolvida.

À Profª. Drª. Miriam Debieux Rosa, psicanalista, lacaniana, com a qual, freqüentando sua disciplina, tive oportunidade de dialogar acerca da “função do pai na psicanálise”. Agradeço ter-me dado segurança, com sua bagagem acadêmica, para afirmar que alguns termos utilizados como linguagem psicanalítica não passam de “chavões psicologizantes”. Com suas aulas e indicações de leitura, aprendi sobre o diálogo entre a psicanálise e a sociedade.

Aos companheiros do Conselho Regional de Psicologia, em especial Marilene Proença, Maria Auxiliadora Arantes e Lúcia Toledo, parceiras na vivência de uma Psicologia com compromisso social e preocupada com a transformação da realidade, devo dizer que, junto a eles, me sinto estimulada a pensar uma Psicologia para além dos consultórios.

À Áurea Fuziwara, Presidente do CRESS/SP, referencial para a efetivação do projeto ético-político do Serviço Social, desejo que, neste período à frente do CRESS, o seu compromisso possa refletir nas ações dos demais profissionais do Serviço Social.

À querida amiga Lilian de Moura, Assistente Social da Fundação CASA, agradeço permitir-me experipermitir-mentar, ao seu lado, uma atuação do Serviço Social verdadeirapermitir-mente compromissada com os adolescentes e com seus familiares. Revelou-me existirem excelentes profissionais escondidos nas estruturas institucionais.

A sua demonstração de amizade é a incorporação daquela música que diz ”amigo mais certo, nas horas incertas”, demonstrada tanto nos momentos de alegria, quanto nos de tristeza.

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diversas batalhas que enfrenta para garantir a efetivação de direitos de crianças e adolescentes.

Aos meus irmãos Edson e Marcio, às cunhadas Bárbara e Marlene, à afilhada Carol e às sobrinhas Isabela e Maria Clara, reconheço que a realização desta pesquisa, em muitos momentos, distanciou-me deles, deixando-me impaciente. Agradeço a torcida!

À minha cunhada Bárbara agradeço a amizade incondicional nos momentos mais difíceis da minha vida. Sem o seu ombro, eu não teria resistido até o desfecho.

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Resumo

Autora: Luciana Mattos

Título: Adolescente autor de ato infracional: falência do pai ou falência da pátria?

O presente trabalho objetiva realizar uma análise por meio de relatórios, laudos e avaliações elaborados por psicólogos e por assistentes sociais do Poder Judiciário, enfatizando-se as considerações acerca da dinâmica familiar, notadamente expressões como “família desorganizada”, “fragilidade do pai” e similares, as quais aparecem nesses documentos, em diálogo com a questão social.

A construção desta pesquisa deu-se a partir do trabalho desenvolvido na qualidade de psicóloga na ex-FEBEM/SP – Fundação do Bem-Estar do Menor - e na AMAR – Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco -, ocasião em que se teve contato com diversos laudos de adolescentes e, outrossim, com seus familiares. Observaram-se, então, uma tendência à excessiva culpabilização destes últimos, sobretudo às supostas falhas do pai no exercício de suas funções, e, por outro lado, a pouca relevância dada a outras instâncias de vida do adolescente, o que está consubstanciado na ausência de dados sobre os fatores sócio-econômicos.

A amostra obtida, após autorização do Departamento de Execuções da Infância e da Juventude de São Paulo (DEIJ), açambarca vinte e nove processos referentes a adolescentes autores de ato infracional em cumprimento de medida sócio-educativa, na modalidade de internação.

A metodologia utilizada foi a análise de conteúdo, de L. Bardin, definindo-se categorias de análise do material.

Em relação aos resultados, na maioria dos estudos sociais, não se observaram referências a questões sociais, silenciando-se a respeito do descompromisso do Estado na formulação e na execução de políticas públicas de atendimento à população. Os “problemas” esgotam-se em questões familiares e de personalidade, com observações despolitizadas e abstraídas de suas violentas condições históricas.

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Abstract

Author: Luciana Mattos

Title: Adolescents committing transgressions: disintegration of the father or

disintegration of the country?

The present research paper aims to carry out an analysis based on reports,

accounts and assessments structured by psychologists and Judicial Power social

workers, focusing on issues related to family dynamics, markedly expressions such

as “disorganized family”, “father frailty” and others alike, present in the

aforementioned documents, dialoging with the social issue.

This research has emerged from the work I developed, as a psychologist, at the

then FEBEM/SP – São Paulo’s State Foundation for The Well-Being of Minors –

and at AMAR – Association of Mothers and Friends of Children and Adolescents at

Risk –, opportunity in which I had access to various reports by adolescents, as well

as the chance to get in contact with their parents. Concerning the latter, a tendency

towards excessive blaming has been observed, especially with regard to both the

presumed failures by the father in the exercise of his role, and, on the other hand,

the low relevance attributed to other life instances of the adolescent, evidenced by

the absence of data on socio-economic factors.

The sample, obtained with the authorization of DEIJ (São Paulo’s Department of

Enforcement of Childhood and Youth), comprised twenty-nine lawsuit cases related

to adolescents who had committed transgressions and were serving

socio-instructional penalties of the internment type.

The methodology applied was that of content analysis, by L. Bardin, and thereby

material analysis categories were determined.

As for the result, in the majority of social studies, no reference to social issues was

observed, highlighting a silence with regard to the State’s lack of commitment to

formulating and executing public care policies. The so-called “problems” are

reduced to family and personality issues, with depoliticized observations, erased of

their violent historical conditions.

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Sumário

Introdução 01

Capítulo 1: O Poder Judiciário e

o “saber” das equipes interprofissionais 17

1.1 O Serviço Social e a Psicologia no Judiciário 20

Capítulo 2: Catalogando Famílias: o discurso técnico à serviço do quê?

Reconhecendo a pluralidade: diverso ou desviante ? 24

2.1 As condições sócio-econômicas 35

Capítulo 3: O Pai na psicanálise: Reflexões críticas 40

Capítulo 4: O Estado Transgressor: Entre limite e transgressão 50

4.1 A fragilidade dos laços sociais 52

Capítulo 5: Metodologia 55

5.1 A amostra 57

Capítulo 6: As Categorias Temáticas 59

6.1 O pai e as configurações familiares 60

6.2 Autocrítica 67

6.3 A Instituição 71

6.4 A questão social 73

Considerações Finais 87

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Introdução

Era julho de 1.997. Estava sendo contratada como psicóloga na FEBEM/SP: o primeiro trabalho após a conclusão do curso de graduação.

O que se denominava treinamento de funcionários incluía uma visita ao Complexo Tatuapé. Tão logo todo o grupo que seria contratado reuniu-se, fomos conhecer algumas unidades consideradas modelos.

Algumas supervisoras da FEBEM/SP acompanhavam-nos e iam-nos apresentando aquele universo, evidentemente sob a sua ótica, o que, por inevitável, explicitava a lógica da própria Fundação.

Ao entrarmos no Complexo, fomos logo informados da existência de divisões em circuitos leve, médio e grave. Lembro quando nos foi apresentado este último circuito: a primeira cena que presenciei foram aqueles adolescentes, enfileirados e com as mãos para trás, trajados de moletons iguais, cruzando aquelas telas.

A Unidade Educacional 12, reputada modelo, foi a unidade do circuito grave eleita para nos ser apresentada naquela ocasião. O referido grupo entrou na Unidade, enquanto alguns adolescentes passavam por um corredor, cruzavam algumas portas, atravessavam outras onde não havia ninguém e iam pedindo “licença, licença”, todos de mão para trás, cabeça baixa, clamando licença. Para quem? Para existir?

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humilhação poderia ser modelo, como aquelas supervisoras, dentre as quais psicólogas e assistentes sociais, enxergavam aquilo de forma tão natural, insista-se, como modelo de gestão?

Licença foi a única palavra que ouvi os adolescentes pronunciarem.

Ao sairmos da Unidade, constatamos que o diretor chegava. Tratava-se de um homem de estatura baixa e que nos foi apresentado como “fulano, pequeno só no tamanho, mas é um grande diretor”. Saí de lá com um nó, ou vários - na cabeça, no coração e na garganta.

Transcorrida uma semana, quando retornei ao Tatuapé para o primeiro dia de trabalho, é que ficaria sabendo onde trabalharia, em qual circuito. “Você, Luciana, vai ficar no circuito grave”. Logo pensei: era lá mesmo onde eu queria estar, pois o intuito era compreender aquela lógica, ouvir outras palavras, que não só licença. A meu juízo, era patente que os citados adolescentes tinham vida e muito mais para falar. Enfim, era naquele local em que eu queria estar.

Fui designada para trabalhar na Unidade 13, cuja localização ficava ao lado da Unidade do “grande diretor”. Recebida pelo Senhor Diretor José Resende, a quem devo muito em relação à construção de olhar não perverso relativamente aos adolescentes, principiei a vivenciar a execução de um trabalho sócio-educativo e, a partir dessa experiência, posso assegurar que esse tipo de trabalho é possível e, mais do que isso, necessário, como direito e não como utopia.

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Em vista disso, o Sr. José Resende tratou de conversar um pouco com o adolescente, que se acalmou e, conforme sugestão do próprio diretor, seguiu para a horta, que então se cultivava.

O diretor já havia me informado que assumira, havia uma semana, a direção daquela unidade e que estava implantando várias ações, sendo a horta uma delas. Também disse que não gostaria de me designar, naquele momento, para ler prontuários, tampouco lhe agradava a idéia de confinar-me numa sala, como acontece entre os técnicos da FEBEM/SP.

Após conversarmos, disse que eu poderia ficar à vontade para falar com os adolescentes, sugerindo que tentasse travar algum contato com aquele adolescente, que então já se encontrava na horta.

Quando cheguei à pequena plantação, estava o adolescente com a enxada em punho, junto a um outro jovem, cada qual de um lado do terreno. Fui conversando com aquele que já tinha visto na sala e, quando um funcionário apareceu na porta e gritou o nome do outro, percebi que eram os dois que haviam se desentendido, ou seja, estava diante de dois jovens recém enfurecidos e de uma enxada.

Pareceu-me, então, que a lógica da Unidade seria outra e que falar algo que não fosse “licença” seria possível e até desejável. Percebi que o diretor quis-me colocar em outro lugar, que não o da comodidade, para abrir outras possibilidades de intervenção.

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Tudo quanto aprendi naquele universo não tivera na Academia. A construção dessa pesquisa permite-me retomar algumas cenas e histórias que marcaram minha trajetória e foram-me ajudando a definir meu objeto de pesquisa.

Os primeiros dias de visita de familiares foram significativos; as observações, mais do que isso. Pode-se dizer que as interações com os familiares marcaram a minha trajetória. Que expressão era aquela dos familiares, das mães nos dias de visita, que dor tão profunda, como dimensionar? E os pais? Que homens eram aqueles, que histórias teriam? Sentiam-se extremamente humilhados com aqueles procedimentos: filas imensas, revista e insultos.

Quantos pareciam querer dizer no olhar: “Eu não sou culpado”? Quanto as pessoas que lhes atendiam muitas vezes pareciam dizer com gestos, olhares e palavras: “Estamos aqui com o seu filho que você não conseguiu educar”? De quantas falências eles eram acusados e quantas falências de outras instâncias até hoje são omitidas, ficando no lugar do não dito?

Outro cenário importante foi o Forum. Certa vez, na audiência de um adolescente cuja mãe acompanhava, o juiz, com toda arrogância que é característica de alguns membros da magistratura, perguntou-lhe: “Tem outros filhos?”. Ao que a mãe respondeu: “Tenho sim senhor, mais três”. E aí ele emendou: “São todos bandidos?”

Que lugar era aquele? Que perguntas eram essas? Indescritível o olhar da mãe ao ouvir aquela pergunta. Sempre que me lembro da cena, vem à lembrança uma composição feita por alguns adolescentes da FEBEM/SP:

Chega perto de mim... Me deixa falar...

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Contar a experiência de trabalho na FEBEM/SP, sem mencionar a tortura, não seria possível. Num dos primeiros dias em que acompanhei a visita de familiares, após o término da visita, ainda na Unidade, os adolescentes no pátio começaram a chamar-me para ir até lá ouvir um som que se propagava de uma unidade vizinha: “Encosta aqui para ouvir, senhora”, dizia um deles.

As unidades eram co-vizinhas e as paredes, geminadas. As janelas altas de uma davam para o pátio da outra.

Quando comecei a ouvir, vislumbrei serem sons de socos, gritos, pancadas e gemidos. Adolescentes estavam sendo agredidos por funcionários que gritavam: “Vagabundo! Ladrão!”

Acionamos, imediatamente, o diretor da nossa unidade, e as denúncias foram feitas, tendo sido o diretor da unidade vizinha afastado, uma vez que o fato tomara uma proporção gigantesca e contornos dramáticos. Ganhávamos, assim, um grupo de funcionários rivais.

O que quero ressaltar, porém, é que quase “toquei” as agressões, aqueles gritos nunca mais esqueci. Desde então, sempre que escuto um relato de agressão a adolescentes, não fico pensando: “Será que é assim, do jeito que os adolescentes dizem?” Aquele episódio norteou minhas ações e norteia até hoje, desde o meu pedido de demissão da FEBEM/SP até a minha atual participação nas Comissões de Direitos Humanos e da Criança e do Adolescente do Conselho Regional de Psicologia.

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permaneciam isolados para não serem alvos de retaliações e de agressões, o que poderia resultar, evidentemente, em óbito.

Vale ressaltar que a denominação “seguro” surgiu entre os próprios adolescentes e poderia ser usada para nomear tanto um adolescente que estivesse cumprindo a medida de internação por prática de estupro, quanto para nomear um adolescente que houvesse levantado um pedaço da sua própria camiseta ou deixado uma camisa muito aberta durante o horário de visita, passando por diversas outras “infrações”: delatar, olhar para a visita de outro adolescente etc.

Os “seguros” apresentavam também a lógica da reprodução: quando um adolescente deixava de ser “seguro”, a crueldade que ele impunha aos demais perpetuava-se de outra forma. Um jogo de reproduções de uma lógica cruel, a lógica da Fundação.

Há uma cena que ilustra bem todo o quadro da supracitada lógica cruel, acima descrito, que perpassa não só os padrões institucionais, mas que revela um Estado transgressor: estava no pátio conversando com um grupo de adolescentes, quando, repentinamente, saiu de um dos quartos um adolescente cambaleante. Pude verificar que, aparentemente, ele estava com eritemas e feridas mais graves. Fora agredido por um grupo de adolescentes, e o seu corpo não com marcas, mas praticamente desfigurado, assinala, à perfeição, a reprodução dessa lógica cruel, que, aliás, principia muito antes da medida de internação.

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Nesta Introdução, optei por manter a história de três adolescentes, as quais foram apresentadas no Memorial para a qualificação. Manter o registro destas histórias significa dar um rosto para cada processo pesquisado, registrar que se trata de histórias de vida e não de documentos empilhados nas mesas do Cartório da Vara da Infância e da Juventude.

Luiz Fernando

Este adolescente chegou à Unidade, onde eu atuava como psicóloga, transferido do circuito grave, após uma sessão de tortura a que ele e outros adolescentes foram submetidos. As agressões foram devidamente denunciadas ao Poder Judiciário, que determinou uma intervenção na Unidade, transferindo-o para outra.

Esse episódio havia tomado grandes proporções e todos os funcionários do Complexo sabiam do ocorrido; a grande parte manifestava ódio em relação aos adolescentes, considerando que eles haviam “denunciado” alguns funcionários ao Juiz Corregedor.

Portanto, quando chegaram àquela Unidade, já havia grande expectativa por parte dos funcionários em saber quem era aquele adolescente tão perigoso (era assim que vinha sendo nomeado), que cometera graves crimes e tumultuava as unidades da FEBEM. Além de considerado infrator grave, era tomado como liderança negativa, termo muito utilizado na lógica funcional para designar aquele a quem se atribui a culpa por rebeliões etc.

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Nesse cenário, tive meu primeiro contato com o adolescente. Lembro-me de que entrei no quarto onde ele e mais dois outros estavam para conhecê-los. Não estava imbuída da lógica institucional e apenas buscava conhecer mais do que meros rótulos.

Logo me deparei com rostos marcados. Luiz Fernando havia sido tão agredido que teve derrame ocular - os olhos estavam absolutamente vermelhos e o rosto, cheio de hematomas.

Entabulamos um diálogo e, após certo período de permanência na Unidade e diversos atendimentos, o sobredito adolescente, numa de nossas conversar, perguntou-me: “Eu não sei o que é ter pai... pai é diferente de mãe?”

Ele me formulou essa pergunta com um olhar ávido por resposta, quiçá por uma experiência de paternidade, ao mesmo tempo que, por meio dela, me afastava daquele “perigoso infrator”, pondo-me diante de uma interrogação demasiadamente humana. Essa pergunta fez eco em toda a construção do meu projeto de pesquisa, sobretudo por falar do lugar do pai.

Naquela época, em pleno no ano de 1.999, a entrada de celulares e de armas na FEBEM era incomum, não tinham ocorrido ainda as transferências dos adolescentes para o sistema prisional, nem a incorporação tão maciça de características do sistema penitenciário. Dentro desse contexto, a forma como ocorreu a fuga de Luiz Fernando foi espetacular.

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Pelo curso do adolescente durante o cumprimento da medida sócio-educativa, cabe a seguinte reflexão, já que, como defendem alguns teóricos, o jovem procurava no ato infracional o acesso à lei: ainda que o adolescente traga em seu histórico a ausência do pai, o que remete à história de outros adolescentes com o pai ausente, omisso ou violento, qual foi a lei que ele encontrou senão uma lei frágil, ausente, omissa ou violenta?

Os representantes da lei - Poder Judiciário e, de forma mais ampliada, os representantes da Fundação - agiram com uma ética que permite garantir esse lugar da lei? Construíram junto com o adolescente esse referencial?

Luiz Fernando conheceu um Poder Judiciário desmoralizado, que não combateu o crime de tortura e não puniu exemplarmente monitores que praticavam, de modo impune, esse mesmo crime. Demais, uma representante da Fundação que trouxe consigo uma arma na vagina, burlando toda a segurança e colocando em risco a vida dos adolescentes e dos funcionários, não foi devidamente responsabilizada, defendendo-se com todas as brechas legais.

E antes da internação? Se se pensar no histórico dos adolescentes da Fundação, será que o que ele conheceu também não foi um Estado ausente, omisso e violento? Será que, no imaginário dos adolescentes de hoje, esse lugar da lei está preservado, com a ampla divulgação na mídia de escândalos envolvendo autoridades judiciais?

A pergunta permanece ecoando: “Pai é diferente de mãe?”

Douglas

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período de internação, envolveu-se em “problemas disciplinares”, consoante a denominação usada na própria Fundação, ou seja, o não-cumprimento de regras relativas a horários, bem como discussões com funcionários. Era também considerado uma liderança negativa.

Circulava na Unidade como um grande traficante, e esta era a imagem que os funcionários tinham dele; eram unânimes em afirmar que, na ocasião da desinternação, ele retornaria ao tráfico, afirmação que também era feita por alguns técnicos da Unidade.

O maior argumento desse grupo na defesa da mencionada avaliação era a postura de Douglas, muito questionador, sempre resistindo a tomar banho nos horários determinados, a ir à escola, situada dentro do Complexo, nos horários designados. Era comum, nas avaliações, esses aspectos de cumprimento de regras na rotina da unidade serem tomados como determinantes para a avaliação quanto à desinternação. Douglas foi transferido de Unidade por ser liderança negativa.

Um ou dois anos depois, num dia de sol escaldante, estava eu na calçada, aguardando o semáforo fechar para atravessar um dos cruzamentos da Avenida Paulista com uma daquelas alamedas íngremes. Logo vejo um rapaz, sob o sol, subindo essa mesma alameda e carregando consigo uma carroça. Aquele rosto todo suado... o suor escorria, pingava, com uma expressão de cansaço que me chamou a atenção. Quando me fixei naquele rosto, eis que reconheci Douglas!

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Durante todo o período de permanência na Fundação, ele foi bombardeado com preconceitos, numa lógica burocrática, punitiva e controladora que permanece presa às normas disciplinares. Já não estava mais presente o grande traficante, senão alguém diferente e, pior do que isso, as suas potencialidades tinham sido anuladas pelo sistema.

Eduardo

Também tido como adolescente extremamente violento (esta conclusão baseava-se somente na classificação do ato infracional), circulava na Unidade com certo status.

Ao longo do período em que esteve na Fundação, as regras para saídas externas de adolescentes ainda eram mais flexíveis, podendo efetuar-se sem escolta. Essa proibição total de saídas externas veio após o episódio do “Batoré” (adolescente que era acusado de diversas infrações e que fugiu durante uma saída, gerando uma enorme repercussão na mídia).

Com a possibilidade de sairmos da Unidade e considerando que seria importante para o adolescente a realização de um atendimento médico externo, agendamos o atendimento e combinamos levá-lo: iríamos eu, uma monitora e o adolescente. Claro que muitas pessoas asseveraram que ele fugiria e que, por isso, deveríamos adotar a máxima cautela. Muitos tinham certeza de que ele não voltaria, devo confessar que essa dúvida também tomou de assalto meu espírito.

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Era comum que, nessa modalidade de saída, os adolescentes comessem alguma coisa diferente, um lanche, um almoço, era uma forma de quebrar aquela rotina institucional. Claro que tudo isso só foi possível porque, naquela Unidade 20, havia essa proposta pedagógica (sementes plantadas pelo já citado Sr. José Resende).

No dia agendado, saímos do Complexo Tatuapé, fomos caminhando até a estação Belém do Metropolitano e lá entramos numa lotação para fazermos todo o percurso até a Vila Maria, local onde Eduardo seria atendido. Tudo transcorreu bem, falamos sobre a sensação de estar na rua, Eduardo brincou muito, tinha um senso de humor apurado.

Retornamos até as proximidades do Metrô, perto de um local onde havíamos pensado em almoçar com ele. Cuidava-se de um restaurante “por quilo”, nada sofisticado, em que fazíamos as refeições cotidianamente. Considerava a comida boa e, do meu ponto de vista, avaliava que seria um momento agradável, já que tanto eu, como a monitora, enxergamos em Eduardo uma expectativa muito positiva.

Servimo-nos. Havia grande variedade, diversas opções de pratos quentes e frios. Quando olhei para o prato do Eduardo, que estava ao meu largo, notei que ele só havia pego tomate, alimento que dispôs sobre todo o prato!

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Chegou lá chorando, pedindo para entrar. Entramos com ele, que foi correndo para o quarto, em prantos, só após algumas horas aceitou falar com um educador e disse que, ao se ver naquele restaurante na frente de tantos talheres, toda aquela comida, entrou em pânico, não sabia como agir.

Esse episódio foi muito significativo para mim, visto que percebi como estamos distantes desses adolescentes e o quanto eles têm para nos falar. Percebi, ainda, como os programas voltados para adolescentes precisam escutá-los antes de montar os conteúdos programáticos e quanto o exercício, o sair da unidade, estar em outros espaços é fundamental, ao contrário do confinamento.

Aquele Eduardo, chorando, na frente de um prato de tomate, o quanto aquela saída tinha mobilizado uma série de outros conteúdos, quanta exclusão, sensação de não pertencimento Eduardo já tinha vivenciado? Correr para a FEBEM, buscando lá seu porto seguro, dado que, naquele espaço, ele era temido, respeitado, enfim, ele pertencia. E a indagação: o quanto nós, profissionais da área social, estamos reforçando essas rotulações que reafirmam a periculosidade dos adolescentes?

Em 2.003, desliguei-me da FEBEM/SP. Já conhecia a Presidenta da AMAR - Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco (mais conhecida como “Mães da Febem”) - e mantinha alguns contatos com ela, sobretudo nos últimos dias no Complexo Tatuapé, no intuito de “denunciar” as práticas de tortura.

A Presidenta da AMAR fez-me um convite, o de integrar a equipe da AMAR, atuando com as mães dos adolescentes que cumpriam medida sócio-educativa.

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contra a violação de direitos a que os seus filhos eram submetidos e se constituiriam como sujeitos de suas próprias histórias, mais do que histórias individuais, histórias coletivas.

Após o período em que permaneci na FEBEM/SP, poder estar em um lugar no qual as mães teriam voz e que, por conseguinte, os adolescentes teriam voz era, de fato, muito significativo. Daí a decisão de aceitar o convite.

Foi na AMAR, descolada daquele papel de psicóloga da Fundação, que tive contato com as mais delicadas histórias. Foi lá que os familiares conseguiram expor as suas dores, os seus limites. Era o lugar apropriado para conseguirem falar dos segredos familiares.

A expressão de angústia, que presenciei em tantas visitas, aquele choro contido que a mãe não poderia deixar sobrevir na frente dos monitores na FEBEM, era na AMAR que elas se permitiam expor a dor.

E essa dor dizia muitas vezes da história de vida; outras vezes, daquele momento de internação do filho e da sensação de encontrá-lo todo espancado, cheio de hematomas, e sentir-se impotente. Na AMAR, realizavam-se oficinas de reflexão com o objetivo de trabalhar essas questões e fortalecer o grupo de familiares.

Durante minha permanência na Fundação, fui delineando o meu projeto de pesquisa. Deu-se lá o primeiro contato com as avaliações e com os pareceres de adolescentes autores de ato infracional e, mormente, foi naquele espaço que surgiram as primeiras indagações sobre a forma como essa questão do pai era tratada nas avaliações.

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entravam na sala da AMAR com um olhar distante, uma expressão de quem queria falar algo... mas como? Como dizer que não era bem aquilo, que tudo não se resumia à “falência deles”?

Impregnada dessas interrogações, iniciei o curso de Mestrado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC/SP.

O presente estudo enfoca uma análise de laudos, pareceres e avaliações realizadas por profissionais da Equipe Técnica do Poder Judiciário (psicólogos e assistentes sociais).

Tomou-se um aspecto como disparador da análise: o surgimento nos documentos da figura do pai do adolescente autor de ato infracional, haja vista ter construído, durante a minha experiência na FEBEM e na AMAR, a percepção de que expressões como “falência do pai”, “fragilidade do pai” e similares apareciam de forma recorrente.

Utilizando a questão do pai como elemento deflagrador da análise, estudou-se como aparecem, nos documentos, as referências a questões relacionadas à dinâmica familiar dos adolescentes, aos aspectos de sua personalidade e como articulam essas questões com as sócio-econômicas.

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A pesquisa foi realizada nos processos de adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa de internação que passaram por avaliação com a Equipe Técnica do Judiciário.

No primeiro capítulo, intitulado O Poder Judiciário e o “saber” das equipes interprofissionais, apresenta-se a dinâmica de funcionamento do DEIJ – Departamento de Execuções da Infância e da Juventude de São Paulo - e sobre o que a legislação vigente, notadamente o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente -, estabelece acerca do “fazer técnico”.

Recorreu-se a Frasseto (2005) para encetar um questionamento sobre o lugar que as produções técnicas ocupam no DEIJ. Ainda nesse capítulo, perquiriu-se acerca do histórico da Psicologia e do Serviço Social no Judiciário, investigação baseada principalmente nos estudos de Fávero (2005).

No capítulo seguinte, intitulado Catalogando Famílias: o discurso técnico a serviço do quê? Reconhecendo a pluralidade: diverso ou desviante?, discorreu-se sobre a diversidade de arranjos familiares e o quanto o reconhecimento dessa diversidade é um diferencial relevante para nortear o discurso técnico, produzindo discursos estigmatizantes ou não.

Nesse capítulo, mostraram-se, outrossim, autores que discutem os grupos familiares e o impacto dos fatores econômicos na configuração de um quadro de vulnerabilidade.

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O quarto capítulo, O Estado Transgressor, transitou pelas contradições sociais comuns aos diversos grupos familiares, dialogando com as configurações do pacto social. Quais são os valores sociais predominantes na atualidade? São valores estáveis, consolidados? Apoiou-se, para tanto, em autores que discutem a fragilidade dos valores sociais na atualidade.

Na Metodologia, buscou-se Bardin (1977), que, em sua obra clássica, traz uma definição abrangente acerca da análise de conteúdo, e em Minayo (2007,16), que enfatiza que “nada pode ser intelectualmente um problema se não tiver sido, em primeiro lugar, um problema da vida prática”. Nesse capítulo, apresentaram-se a amostra pesquisada e o percurso de acesso aos documentos.

No sexto capítulo, intitulado Categorias Temáticas, apresentaram-se os resultados da análise por categorias temáticas, conforme proposto por Bardin (1977). Agrupou-se o material analisado nas seguintes categorias: O pai e as configurações familiares; Autocrítica; A instituição; A questão social.

Nas Considerações Finais, discorreu-se acerca do diálogo entre as produções do Serviço Social e da Psicologia, considerando a natureza plural do presente estudo, que abarca temas relativos não só à Psicologia e ao Serviço Social, como também ao Direito.

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Capítulo 1. O Poder Judiciário e o “saber” das equipes interprofissionais

O Departamento de Execuções da Infância e da Juventude (DEIJ) é o departamento do Forum das Varas Especiais da Infância e da Juventude de São Paulo, responsável exclusivamente pela fase de execução da medida sócio-educativa, isto é, da aplicação propriamente dita.

Esse acompanhamento inclui tanto o processo sócio-educativo do jovem (relatórios técnicos enviados pela Fundação Casa, decisão de alteração da medida ou de seu encerramento), quanto a fiscalização de eventuais irregularidades ou descumprimento de direitos pela Fundação Casa ou pelo Estado em relação ao adolescente sob sua tutela.

Para uma apresentação sobre a dinâmica de funcionamento das Varas da Infância e da Juventude da capital paulista, recorreu-se a Frasseto:

No Forum atuam profissionais do Direito cuja missão é definir medidas jurídicas em resposta a infrações praticadas por adolescentes. O Promotor de Justiça representa o interesse público de intervir em face daquele que transgride normas penais. O advogado (defensor) representa o interesse do adolescente em não ter sua liberdade de locomoção suprimida ou restringida por imposição do Estado. Ao juiz incumbe, depois de ouvidas as opiniões de Promotor e defensor, decidir as questões aplicando a lei ao caso concreto (FRASSETO, 2005, p.5).

A legislação vigente – Estatuto da Criança e do Adolescente -, ao dispor sobre a medida de internação, afirma no artigo 121: “A internação constitui medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”.

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máximo a cada seis meses”. Sobre o prazo, o § 3º ressalta que: “Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos”.

Para analisar-se o caráter indeterminado da medida de internação, Frasseto apresenta relevantes considerações sobre o “fazer técnico” nesse cenário:

Indeterminado o tempo de duração do regime, a aferição das condições para que cesse, ou seja, para que o sentenciado seja solto, decorrerá dos informes técnicos prestados por profissionais especializados. (...) De forma geral e especificamente na capital paulista, enquanto não houver sugestão, subscrita por psicólogo e assistente social, expressamente favorável à soltura, a medida de internação vai sendo mantida. De forma geral a adesão judicial a um parecer explícita ou implicitamente desfavorável à liberação é quase absoluta (FRASSETO, 2005, p. 7).

Essas ponderações levam à percepção do significativo lugar ocupado pelas avaliações realizadas por psicólogos e por assistentes sociais. Ao embasar decisões judiciais, as produções desses profissionais ocupam um lugar decisivo na história de vida dos adolescentes e de seus familiares.

O presente estudo analisa, documentalmente, as produções de psicólogos e de assistentes sociais, uma vez que:

Embora a lei silencie sobre o ponto, os profissionais que produzem o parecer técnico, como já se adiantou, são predominantemente o psicólogo e o assistente social. Parte-se do pressuposto da interprofissionalidade, ou seja, da combinação de saberes como condição indispensável ao alcance de uma cognição mais segura de aspectos relevantes da causa ligados à situação pessoal e social do adolescente (FRASSETO, 2005, p. 7).

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Os motivos que ensejam nova avaliação não são apontados em lei e variam de acordo com o entendimento de cada magistrado. Usualmente, a providência vem justificada por particularidades do estudo enviado, reputado incompleto ou superficial. Outras vezes, ela se dá em razão da gravidade do ato infracional ou da circunstância de se tratar de jovem reincidente, hipóteses em que haveria, segundo o entendimento do juiz, necessidade de maior cautela para a liberação. Em um menor número de vezes, demanda o juiz o aprofundamento de algumas questões particulares ligadas ao arranjo e à dinâmica familiar e à biografia do adolescente. De forma menos explícita, por detrás da ordenação de novo exame, reside uma desconfiança com relação ao trabalho da FEBEM, tido como suspeito em razão da necessidade de o sistema liberar vagas para suportar a pressão da entrada sempre crescente. (FRASSETO, 2005, p. 7).

Neste estudo, optou-se pela análise dos documentos produzidos pelos técnicos do Poder Judiciário em virtude do lugar que ocupam na engrenagem do cumprimento da medida sócio-educativa de internação.

As suas produções embasam decisões judiciais referentes à liberação ou não do adolescente, sendo que, conforme Frasseto, a adesão judicial a um parecer desfavorável à liberação é quase absoluta.

Definido esse escopo, antes de se debruçar sobre o fazer desses profissionais, no contexto do adolescente em medida de internação, recorreu-se a Fávero para apresentar-se a trajetória do Serviço Social e da Psicologia na Instituição Judiciária.

1.1 O Serviço Social e a Psicologia no Judiciário

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A citada autora dispõe sobre as intervenções dos profissionais (psicólogos e assistentes sociais):

Trabalhando, na maioria das vezes, com demandas sociais e psicológicas que permeiam o cotidiano das Varas da Infância e da Juventude e Varas da Família e Sucessões, o assistente social e o psicólogo intermediam (SIC) ações judiciais que envolvem crianças e adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade social, que necessitam de medidas protetivas, jovens autores de delitos, famílias em situações de conflito. Nessa intervenção, realizam orientações, acompanhamentos e encaminhamentos, articulações e, principalmente, oferecem subsídios sociais e psicológicos à autoridade judiciária, mediante relatórios, laudos e pareceres, nos quais se destacam informações sobre a história social de vida e comportamento desses sujeitos (FÁVERO, 2005, p. 36).

O histórico do Serviço Social no Tribunal de Justiça expõe o início de uma atuação formal no final dos anos 1940:

O Serviço Social começou a atuar formalmente junto ao Juizado de Menores no final dos anos 1940, quando ocorreu a I Semana de Estudos do Problema de Menores, mais especificamente com a criação do Serviço de Colocação Familiar no Estado de São Paulo. O desenvolvimento desse trabalho foi atribuído aos assistentes sociais, no Juizado, abrindo um vasto campo para consolidação de suas atividades nesse contexto (FÁVERO, 2005, p. 48).

Desde o início da atuação do Serviço Social no Judiciário, a função de embasar decisões judiciais está presente:

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Nessa retomada da trajetória do Serviço Social do Judiciário, observaram-se, desde o início, a prática da entrevista e a elaboração de relatórios, ou seja, a função de perito como o eixo norteador das intervenções, o que permanece nas práticas analisadas neste estudo.

A inserção da Psicologia no Poder Judiciário teve sua primeira ocorrência em 1.981, quando alguns psicólogos, que anteriormente atuavam como voluntários, foram contratados, tendo como atribuições, de acordo com Fávero (2005, p. 52) “assessorar o magistrado por meio de estudo de caso, elaborar avaliação psicológica, apresentar propostas de intervenção e realizar orientações pertinentes à sua área”.

Em estudo realizado sobre relatórios psicológicos judiciais, Bernardi aponta que:

A atuação de psicólogos na Justiça Especial da Criança e do Adolescente em São Paulo teve início na década de 80 a partir da implementação do Código de Menores de 1979, que dispunha sobre a possibilidade do magistrado ser auxiliado por estudo de caso realizado por equipe interdisciplinar sempre que possível (BERNARDI, 2005, p. 66).

Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1.990, a manutenção de equipe interprofissional no Poder Judiciário passou a ser obrigatória, competindo-lhe, entre outras atribuições, fornecer subsídios à autoridade judiciária, conforme rezam os artigos 150 e 151 da Lei Federal nº. 8.069/90, mais conhecida como ECA.

Seção III - Dos Serviços Auxiliares

Art. 150 - Cabe ao Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta

orçamentária, prever recursos para manutenção de equipe inter-profissional, destinada a assessorar a Justiça da Infância e da Juventude.

Art. 151 - Compete à equipe inter-profissional, dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária,

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Ressaltam-se dos artigos supracitados dois aspectos relevantes para o presente estudo, a saber: I) a legislação refere-se à competência da equipe interprofissional, ou seja, está prevista, legalmente, a interlocução entre os saberes; II) “tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária”. Esses dois aspectos concernem às relações de poder/saber que se entrelaçam no universo do Judiciário. Sobre o espaço de trabalho no Poder Judiciário, ao refletir sobre o estudo social, Fávero ressalta que:

(...) ao pensarmos o estudo social a partir da ocupação, pelo assistente social, de um espaço de trabalho vinculado ao Poder Judiciário – um Poder de Estado, que, enquanto responsável pela aplicação das leis e distribuição da justiça, tem sido visto, tradicionalmente, como se estivesse num patamar superior ou à parte dos demais poderes, o que, via de regra, se reproduz em diversas instâncias de ações no seu interior (FÁVERO, in CFESS 2007, p. 11).

Em publicação do CFESS – Conselho Federal de Serviço Social - sobre o estudo social1, são apresentados alguns questionamentos e reflexões sobre a prática do assistente social no Judiciário:

Os assistentes sociais têm consciência do saber que acumulam e do seu uso enquanto saber-poder? Deve-se compreender se se trata de um saber fundamentado histórica e teoricamente ou reduzido ao senso comum; se as ações têm sido direcionadas com base no compromisso com a ampliação e garantia de direitos. Os profissionais da área de Serviço Social devem questionar se o trabalho apenas como perito não leva ao risco maior e mais fácil da fragmentação das suas ações e da terceirização desses serviços, enquanto parte do projeto neoliberal de um Estado mínimo (FÁVERO, in CFESS 2007, p. 13).

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O exercício privilegiado de um poder com características disciplinares por parte do serviço social, na construção de seu saber e de sua prática no âmbito do Judiciário, é uma realidade que se evidenciou nessa pesquisa (FÁVERO, 2005, p. 125).

No decorrer desta pesquisa, ao serem analisados os documentos produzidos por assistentes sociais e por psicólogos, observar-se-á o posicionamento desses profissionais sobretudo em relação ao olhar que direcionam aos arranjos familiares e ao que tem sido nomeado como “fragilidade do pai” ou “ausência de referencial paterno”. Estas expressões dizem sobre o lugar do pai na família e estabelecem correlações entre esse lugar e a prática do ato infracional.

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Capítulo 2. Catalogando Famílias: O discurso técnico a serviço do quê?

Reconhecendo a pluralidade: diverso ou desviante?

Mais do que analisar a influência da estrutura familiar (pai ou mãe ausente), deve-se perguntar pela afetividade que une a família gerada.

Bader Sawaia

A diversidade de arranjos familiares na sociedade contemporânea é tema recorrente nos mais variados campos: produções acadêmicas, abordagens da mídia e até mesmo em conversas informais, rodas de amigos. Todavia, houve-se por bem incluir o aludido tema no início do trabalho por se considerar que, em contextos avaliativos (como o do Judiciário), o reconhecimento da diversidade é um diferencial relevante para nortear o discurso técnico.

Esse reconhecimento baliza expectativas sobre o grupo familiar e direciona intervenções. Buscar enquadrar a diversidade de modos de organização de grupos familiares em modelos pré-formatados ou construídos historicamente, nos coloca na arriscada posição de tratar como desvio aquilo que é simplesmente diverso.

Ao tratar determinado modo de composição familiar como desviante, destitui-se a família do lugar de detentora de potencialidades.

Ao analisar-se o lugar da família na política social e o quanto o contexto social pode ser potencializador ou esfacelador dessas potencialidades, Carvalho considera que:

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Citando Afonso e Figueiras, Carvalho acrescenta:

Este movimento de organização-reorganização torna visível a conversão de arranjos familiares entre si, bem como reforça a necessidade de se acabar com qualquer estigma sobre as formas familiares diferenciadas. Evitando a naturalização da família, precisamos compreendê-la como grupo social cujos movimentos de organização-desorganização-reorganização mantêm estreita relação com o contexto sociocultural. (...) É preciso enxergar na diversidade não apenas os pontos de fragilidade, mas também a riqueza das respostas possíveis encontradas pelos grupos familiares, dentro de sua cultura, para as suas necessidades e projetos (AFONSO; FIGUEIRAS, 1995).

Os modos de organização dos grupos familiares são perpassados por questões sociais, econômicas e culturais que não permitem uma avaliação linear da forma de atuação da família e dos desdobramentos possíveis a partir deste ou daquele modo de organização. Ou seja, o argumento reducionista de que, se “falhou” a família, deve entrar a atuação do Estado não abarca todas as interferências que o grupo familiar vivencia e coloca sobre a família um olhar que enfatiza as dificuldades e não o direito à proteção.

Esse modo dicotômico de pensar a constituição do sujeito em camadas, como se primeiro viessem as construções familiares e, acima, as construções do Estado, sobretudo preenchendo lacunas geradas por falhas nos sistemas familiares, favorece um discurso culpabilizador em relação ao grupo familiar. É preciso perceber a família sendo atravessada o tempo todo pela proteção ou desproteção do Estado.

Avaliando esse contexto, a autora continua:

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Carvalho reafirma o lugar da família como espaço de proteção, sublinhando, entretanto, a responsabilidade do Estado:

Família e sociabilidades sócio-familiares se alteraram. No entanto, esta não perdeu o que lhe é essencial: suas possibilidades de proteção, socialização e criação de vínculos relacionais. (...) Não se trata, porém, de desresponsabilizar o Estado em sua função de garantir e assegurar as atenções básicas de proteção, desenvolvimento e inclusão social de todos os cidadãos (e, particularmente, daqueles mais vulneráveis na sociedade contemporânea). Esta solidariedade familiar, no entanto (SIC), só pode ser reivindicada se se entender que a família, ela própria, carece de proteção para processar proteção. O potencial protetor e relacional aportado pela família, em particular daquela em situação de pobreza e exclusão, só é passível de otimização se ela própria recebe atenções básicas (CARVALHO, 2003, p. 19).

Essa inter-relação entre a proteção processada pela família e a proteção processada (ou não) pelo Estado é um diferencial importante na definição de intervenções. Isso porque, se não reconhecida, poderá gerar a não-implicação do Estado e uma sobrecarga de cobranças depositadas sobre os grupos familiares.

Nesse sentido, para auxiliar a configuração do que seria essa proteção demandada pela família, Carvalho (2003, p. 19) cita atenções diversificadas que otimizariam o potencial protetor da família: I) Acolhimento e escuta; II) Rede de serviços de apoio psicossocial, cultural e jurídico à família; III) Programas de complementação de renda; IV) Programa de geração de trabalho e renda.

A autora provoca a refleção sobre a relevância da rede de apoio aos grupos familiares para que estes se constituam em espaços de proteção, de resistência aos apelos, exemplificativamente, do mundo infracional.

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organização, se monoparental ou não, além de proporcionar um alcance mais efetivo no planejamento das intervenções.

Nessa contextualização das múltiplas formas de organização familiar, vale lembrar a preciosa observação de Sarti, que aponta a família como alvo de interferências externas:

Falar em família neste começo do século XXI, no Brasil, como alhures, implica a referência a mudanças e a padrões difusos de relacionamentos. Com seus laços esgarçados, torna-se cada vez mais difícil definir os contornos que a delimitam. Vivemos uma época como nenhuma outra, em que a mais naturalizada de todas as esferas sociais, a família, além de sofrer importantes abalos internos tem sido alvo de marcantes interferências externas (SARTI, 2002, p. 21).

A autora discute se, na atualidade, é possível sustentar o discurso de modelo “adequado” de família:

Embora a família continue sendo objeto de profundas idealizações, a realidade das mudanças em curso abala de tal maneira o modelo idealizado que se torna difícil sustentar a idéia de um modelo “adequado”. Não se sabe mais, de antemão, o que é adequado ou inadequado relativamente à família. No que se refere às relações conjugais, quem são os parceiros? Que família criaram? Como delimitar a família se as relações entre pais e filhos cada vez menos se resumem ao núcleo conjugal? Como se dão as relações entre irmãos, filhos de casamentos, divórcios, recasamentos de casais em situações tão diferenciadas? Enfim, a família contemporânea comporta uma enorme elasticidade (SARTI, 2002, p. 25).

Sarti frisa que, diante da flexibilidade das fronteiras familiares, abordar o tema das famílias e das políticas sociais exige ir além de um único referencial:

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Reconhecer as implicações de condições de vida e de trabalho desfavoráveis auxilia a romper com a estigmatização de grupos familiares e possibilita superar um discurso desqualificador.

A propósito, Gomes, ao refletir sobre as atuais condições de vida e de trabalho das famílias populares, aponta:

E temos a impressão de que a miséria, a vida precária e deplorável de um grupo familiar e, sobretudo, o abandono de crianças é fruto da irresponsabilidade do casal. Porém, a evidência parece inequívoca: à criança abandonada, objeto da violência alheia, civil ou militar, correspondem famílias abandonadas, objeto primeiro da violência social, institucionalizada (GOMES, 2003, p. 61).

Ainda discorrendo sobre a população que habita bairros populares e sobre as características da vida cotidiana dessas populações, a autora enfatiza:

O tom impessoal, acadêmico não nos pode impedir de ter em mente o que me parece essencial: a expressão “luta pela sobrevivência” refere-se à luta travada por uma ou mais pessoas, no dia-a-dia, de maneira a garantir o mínimo necessário à subsistência individual ou de um grupo doméstico. É crucial mantermos viva a consciência de estarmos lidando com a concretude da vida humana, e não com alguma coisa abstrata, como o linguajar acadêmico, pode induzir-nos a pensar (GOMES, 2003, p. 65)

Nesse sentido, a referida especialista problematiza as conseqüências perversas de ações que não incluam uma análise sobre o contexto no qual se insere aquela família, bem como não reconheçam as condições sócio-econômicas desfavoráveis que atuam sobre determinados grupos familiares.

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Szymanski, ao refletir sobre o tratamento que a psicologia tem dado à família, aponta que:

Desde Freud, família e, em especial, a relação mãe-filho, têm aparecido como referencial explicativo para o desenvolvimento emocional da criança. A descoberta de que os anos iniciais de vida são cruciais para o desenvolvimento emocional posterior focalizou a família como o locus potencialmente produtor de pessoas saudáveis, emocionalmente estáveis, felizes e equilibradas, ou como o núcleo gerador de inseguranças, desequilíbrios e toda sorte de desvios de comportamento (SZYMANSKI 2003, p. 24).

A autora continua a reflexão, trazendo as implicações de tomar a família como norma e não como um modelo historicamente construído:

Não tenho dúvidas de que a família que se está visualizando é composta por pai, mãe e algumas crianças vivendo numa casa. Essa imagem corresponde a um modelo, que é o da família nuclear burguesa. As interpretações das inter-relações passaram a ser feitas no contexto da estrutura proposta por aquele modelo e, quando a família se afastava da estrutura do modelo, era chamada de ‘desestruturada’ ou ‘incompleta’ e consideravam-se os problemas emocionais que poderiam advir da ‘desestrutura’ ou ‘incompletude’. O foco estava na estrutura da família e não na qualidade das inter-relações. (...) Fora desse contexto, as famílias são consideradas ‘incompletas’ e ‘desestruturadas’. Essas são mais responsabilizadas por problemas emocionais, desvios de comportamento do tipo delinqüencial e fracasso escolar (SZYMANSKI, 2003, p. 25).

A autora conclui seu artigo sobre “teorias” de famílias apontando que:

Observou-se que, tanto nas teorias e práticas de atendimento familiar como nas representações nas famílias, aparece, de forma irrefletida, o viés do modelo de família nuclear burguesa com conotação normativa. (...) O mundo familiar mostra-se numa vibrante variedade de formas de organização, com crenças, valores e práticas desenvolvidas na busca de soluções para as vicissitudes que a vida vai trazendo. Desconsiderar isso é ter a vã pretensão de colocar essa multiplicidade de manifestações sob a camisa-de-força de uma única forma de emocionar, interpretar, comunicar (SZYMANSKI, 2003, pp. 26, 27).

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cumprimento de medida de internação, no momento das entrevistas com técnicos (psicólogos ou assistentes sociais), pode se configurar como essa “camisa de força”, caso o profissional utilize este modelo familiar - pai, mãe e filhos - como norma e considere desvios as relações estabelecidas fora do referido modelo.

Bilac, ao discorrer sobre transformações recentes na vida familiar, questiona se, com tantas modificações e dúvidas, é possível chegar-se a uma teoria da família e ressalta a importância da interdisciplinariedade:

(...) Não há dúvidas sobre o fato de que boa parte das famílias está mudando. Em que medida estas mudanças significam a renovação do(s) modelo(s) já existentes ou a emergência de novos modelos? (...) Caberia perguntar se, com tantas dúvidas e tantos aspectos a serem examinados, é possível chegar-se a uma teoria da família.

É bem possível que sim, embora não pareça que possa ser mais uma tarefa isolada de nenhuma das Ciências Humanas, seja ela a Sociologia, a Psicologia ou a História. Uma abordagem da família que dê conta da complexidade desse objeto, em nossos dias, deveria ser, necessariamente, uma construção interdisciplinar. Talvez seja essa a melhor forma de se sair da encruzilhada a que chegaram os estudos da família (BILAC, 2003, p. 37).

Perceber que uma única ciência não abarca a diversidade das formas de vida implica reconhecer que uma só teoria psicológica ou sociológica (ou a obra de um determinado autor) não poderá ser a única referência para rotular a família que se apresenta. Uma referência única poderá decepar modos de constituição significativos para aquele grupo familiar, provocando sofrimento, o que, ao invés de favorecer a mobilização do grupo para enfrentar determinada adversidade, poderá imobilizá-lo.

Mello, ao considerar a questão da organização/desorganização familiar, ressalta que:

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longo do qual se situariam as formas de desorganização mais ou menos severas (MELLO, 2003, p. 51).

Ainda em referência ao modelo que define organização e desorganização, acrescenta:

O modelo que preside as atribuições de organização e desorganização é o da família nuclear, monogâmica, composta de mãe, pai e filhos. O pai provê, com seu trabalho, todas as necessidades da família; a mãe, carinhosa e infatigável, toma conta da casa e da educação das crianças. Tanto o pai como a mãe encontram profunda satisfação em seu trabalho e digna recompensa econômica, proporcionando um clima de estabilidade e harmonia para o crescimento das crianças. Estas brincam e estudam, são alegres e despreocupadas. (...) O mundo desta família gira em torno de si mesmo, imutável, como um oásis de estabilidade num mundo perigoso e turbulento (MELLO, 2003, p. 56).

A leitura das características desse modelo provoca um sentimento de utopia, como a descrição de algo inatingível, donde a perversidade de buscar “esgarçar” o tecido do outro até alcançar o inatingível. Quantas rupturas podem ser provocadas na constituição daquele tecido, diverso do modelo idealizado? Será que esse formato de intervenção não diz mais das nossas buscas, das nossas limitações, do que da “falha” do outro?

Mello enfatiza o quão estigmatizante é tomar esse modelo como padrão:

A existência dos modelos normativos não mereceria maior consideração, se estes não fossem tomados como padrões a partir dos quais são medidos os desvios. Mais ainda, não teriam importância se, como modelos ideais, não fossem veiculados a toda hora pelos meios de comunicação, como o certo, o bonito, o desejável. Também não teriam importância se, como produtos ideológicos, não fossem interiorizados e não se tornassem um dos fundamentos políticos de atribuição de caráter negativo e estigmatizante. É freqüente encontrarmos, mesmo na literatura especializada, a assim chamada “desorganização familiar” como a única responsável pelo fracasso escolar e adaptativo das crianças. Mais ainda, ela aparece também como fonte da violência, do abandono de crianças e da marginalidade dos jovens, ou seja, a família é responsável pelo que aparece como fracasso moral dos seus membros (MELLO, 2003, p. 57).

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considerou o quanto tem se catalogado a diversidade como desviante. Nesse sentido, a decisão por “catalogar” o diverso como desviante coloca-nos diante do posicionamento ético-político do profissional envolvido em intervenções com grupos familiares, o que pode atuar como potencializador ou esfacelador das competências familiares.

Considera-se que essa postura desqualificadora das formas de organização familiar recaí, sobretudo, em camadas mais populares, como um adereço que se soma ao rol de adversidades. Não é incomum, nas discussões de caso, nos diversos equipamentos que atuam com famílias, ouvirem-se frases como “um filho de cada pai”.

Mello, ao discorrer sobre as populações das periferias e das favelas das grandes cidades, reafirma a importância de reconhecer-se o que nomeia como pluralidade de formas de organização familiar:

Não é razoável falar de ausência de organização, mas de polimorfismo familiar. Despidos da rigidez das fórmulas e sem olhos preconceituosos, podemos ver as famílias como elas são e não como deveriam ser, segundo modelos que são abstratos, pois são históricos e presos às diferentes perspectivas das classes sociais. (...) é preciso estar muito atento e não confundir a violência dos conflitos que atingem estas famílias com a desorganização, porque estaríamos formulando juízos de valor que têm a nossa experiência pessoal e de classe como base da representação (MELLO, 2003, p. 58).

A autora enfatiza, ainda, as condições em que vivem essas famílias:

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Penso que, após um mapeamento, tão completo quanto possível, das diferentes maneiras de viver a família, estaremos em condições de reescrever uma teoria que não seja cega, ou, ainda pior, excludente e discriminadora para tão amplos segmentos da sociedade brasileira (MELLO, 2003:60).

Nesse sentido, o posicionamento do profissional responsável por este “olhar” sobre o grupo familiar poderá estar carregado de preconceitos, interferindo nas conclusões sobre o modo de vida daquele grupo familiar. Donzelot, ao tecer crítica sobre as intervenções dos trabalhadores sociais, mais especificamente no trato com as famílias, refere-se à tecnologia do inquérito sobre as famílias pobres, relatando as intervenções de controle das famílias. Nesse trecho, a autor analisa a prática da visita domiciliar:

É sempre preferível que o visitador não convoque seu cliente, mas vá ao domicílio deste último e que tal visita seja feita de surpresa’. Ainda hoje é o ABC da profissão de Assistente Social que escolhe as horas vazias da tarde para fazer a sua primeira visita, pois é quase certo encontrar a mãe sozinha em casa. (...) Falando e tomando algumas anotações, o visitador observa à sua volta, examina o aposento, sua disposição, seu estado, as promiscuidades que ele impõe, as condições de higiene em que vivem os habitantes. Ele estabelecerá o inventário da mobília, dos utensílios, das roupas à vista. Também não é mau levantar a tampa de algumas panelas, examinar as reservas de alimentos, as camas e, se preciso for, tirar algumas fotos expressivas (DONZELOT, 1986, p. 114).

Para não parecer algo distante da realidade brasileira, acrescenta-se citação de Iamamoto:

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As considerações supracitadas, que dizem respeito ao posicionamento do profissional, auxiliam a sustentar que não há neutralidade possível. O profissional, seja assistente social, seja psicólogo, estabelece com os grupos familiares relações que o colocam em posição que contribui para o desenvolvimento daquele grupo familiar ou reforça uma condição de subalternidade. Daí a interrogação deste capítulo: o discurso técnico, a serviço do quê?

Sawaia, ao abordar o tema família, ressalta que:

Família é conceito que aparece e desaparece das teorias sociais e humanas, ora enaltecida, ora demonizada. (...) Ela continua sendo, para o bem ou para o mal, a mediação entre o indivíduo e a sociedade. E mais, assiste-se hoje ao enaltecimento dessa instituição, que é festejada e está em evidência nas políticas públicas, e é desejada pelos jovens (SAWAIA, 2002, p. 42).

A autora continua sua análise propondo situar historicamente esse revival da família:

O contexto em que emerge, como já foi dito e é conhecido por todos, é o do neoliberalismo, caracterizado por Estado mínimo, capital volátil, crise de emprego, aumento da miséria, manipulação comercial e publicitária de corpos e sentimentos. As instituições não mais promovem modelos de identificação e confiabilidade, e o indivíduo está fechado em si mesmo, encastelado e auto-absorto em seu narcisismo. Nesse contexto, o Estado, isentando-se dos deveres de prover o cuidado dos cidadãos, sobrecarrega a família, conclamando-a a ser parceira da escola e das políticas públicas, e a sociedade, atônita, na ausência de “lugares com calor”, elege-a como o lugar da proteção social e psicológica (SAWAIA, 2002, p. 45).

Referências

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