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Os Mistérios da Encarnação nos Amboni de Nicola e Giovanni Pisano

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Academic year: 2021

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Recebido em: 07/06/2016 Aprovado em: 13/12/2016

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OS MISTÉRIOS DA ENCARNAÇÃO NOS AMBONI DE NICOLA E

GIOVANNI PISANO

THE INCARNATION MYSTERIES IN THE PISANI AMBONI

Paula Ferreira Vermeersch

Resumo: O presente artigo trata dos Púlpitos esculpidos pela oficina fundada por Nicola, escultor proveniente da Apúlia, na cidade toscana de Pisa, por volta de 1250. Nestas obras, Nicola e seu filho Giovanni apresentam uma visão sobre a História Sagrada, marcada pelas pregações franciscanas e discussões políticas do século. Provavelmente formado no círculo de Frederico II Hohenstaufen, no sul da Itália, Nicola se tornará o primeiro escultor a se utilizar diretamente de formas greco-romanas para tratar dos Mistérios da Encarnação, e seus significados para os fiéis. Nesse sentido, o artigo tenta alinhavar algumas hipóteses sobre a natureza do trabalho de Nicola, e interpretações possíveis sobre suas escolhas estéticas.

Palavras-chave: Escultura Toscana- Duecento- Mistérios da Encarnação

Abstract: This article deals with the Pulpits carved by the workshop founded by Nicola, a sculptor from Puglia, in the Tuscan city of Pisa, around 1250. In these works, Nicola and his son Giovanni feature a view of the Sacred History, marked by Franciscan preaching and political discussions of the century. Probably formed in the circle of Frederick II Hohenstaufen in Southern Italy, Nicola will become the first sculptor to be used directly from Greco-Roman ways to deal with the Incarnation Mysteries and their meaning for the faithful. In this sense, the article attempts to baste some hypotheses about the nature of Nicola's work, and possible interpretations of their aesthetic choices.

Keywords: Toscan Sculpture- Duecento- Incarnation Mysteries

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“Anno Milleno bis centium bisque triceno Hoc opus insigne sculpsit Nicola Pisanus Laudetur digne tam bene docta manus” Inscrição do Púlpito do Batistério de Pisa1.

Citado nos documentos como Nicolò Pietri de Apulia, morto provavelmente em 1284, Nicola Pisano recebeu este belo elogio público por maravilhar a comuna de Pisa com sua primeira obra-prima conhecida. Seu nome aparece citado, depois, no contrato para o Púlpito do Duomo de Siena, de 29 de setembro de 1265, conservado hoje no Arquivo da Opera della Metropolitana di Siena.

Especula-se que Nicola educou-se nas oficinas criadas por Frederico II Hohenstaufen (1194-1250) no sul da Itália2 e que chegou à Toscana por volta de 1245. Na cronologia que se costuma estabelecer para o artista, portanto, o Púlpito do Batistério de Pisa seria sua primeira obra a encontrar ressonância, e o modelo para as seguintes.

A falta de documentação sobre Nicola nos impede de elaborar hipóteses mais pormenorizadas sobre sua formação, e sobre o funcionamento de sua oficina em Pisa. Sabemos que na cidade toscana, que adotou como sua, Nicola teve um filho, Giovanni (c.1250-1314), que se tornou seu principal assistente e sucessor3.

É bastante plausível que Nicola tenha se tornado artista num contexto próximo, ou no próprio, que fez surgir o busto de Frederico II Hohenstaufen, o chamado busto de Barletta (fig.1). A princípio, este busto foi identificado como originário dos primeiros séculos da era cristã; pesquisas posteriores ligaram a escultura à corte do Sacro Império Romano, comandada por Frederico, na Sicília e na Apúlia, e dataram-na por volta de 1234-1239. O desejo de Frederico de reerguer, na combalida Península Itálica, o império encontrou terreno

1 Tradução livre: “No ano de 1260, Nicola Pisano esculpiu sua nobre obra. Que mão tão dotada seja enaltecida

como merece”, em WILLIAMSON, Paul. Escultura Gótica, 1140-1300. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.

2 KANTOROWICZ, Ernst. L’empereur Frédéric II. Paris: Gallimard, 1987 e TRONZO, William (ed.).

Hanover and London: National Gallery of Art, Washington, 1994.

3 Supino insiste na origem pisana de Nicola – porque nos documentos de Siena, o artista se identifica como

“pisanus di Pisis”, sendo nascido em Siena, de um certo Pietro di Apulia. Nessa hipótese, o jovem Nicola teria ligação com o Sul pela via paterna, mas talvez não passou os anos de sua formação no entorno da corte pugliese dos Hohenstaufen. A formação de Nicola, na Toscana, de qualquer forma, não passa longe de Frederico II – sendo Siena e Pisa cidades gibelinas, fundamentais no jogo político do Stupor Mundi. SUPINO, I. Benvenuto. Arte Pisana. Firenze: Fratelli Alinari Editori, 1904.

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fértil em algumas cidades, como o porto de Pisa, enriquecido por sucessivas vitórias contra esquadras sarracenas4.

Giorgio Vasari só inclui as biografias de Nicola e Giovanni Pisani na segunda edição das suas Vite, vindas à luz em 1568, sob responsabilidade da oficina florentina de Giunti. É uma questão delicada compreender o porquê da omissão, na edição dita torrentina, de 1550, das referências aos pisanos. Na “Vita di Nicola e Giovanni Pisani”, Vasari aponta grande atividade dos artistas como arquitetos: "Nicola, intanto, trattenendosi in Firenze, andava non solo esercitandosi nella scultura, ma nell'architettura ancora, mediante le fabriche che s'e andavano con un poco di buon disegno facendo per tutta Italia, e particolarmente in Toscana".5

A atividade de Nicola como arquiteto cruzou-se com a de Vasari. Enviado pelo grão-duque da Toscana para construir edifícios em Pisa, como os da Piazza dei Cavalieri6, Vasari mandou demolir algumas destas construções, que considerava assinadas por Nicola:

Nicola, il quale in que' medesimi tempi fece in Pisa il Palazzo degli Anziani vecchio, oggi disfatto dal duca Cosimo per fare nel medesimo luogo, servendosi d'una parte del vecchio, il magnifico palazzo e convento della nuova religione de' Cavaglieri di S. Stefano, col disegno e modello di Giorgio Vasari aretino pittore et architettore, il quale si è accomodato come ha potuto il meglio, sopra quella muraglia vecchia, riducendola alla moderna.7

Algumas obras e fragmentos dispersos, hoje conservados no Museo dell’Opera del Duomo di Pisa, podem ser oriundos de construções realizadas por Nicola como arquiteto. Ao que se saiba, essa hipótese é inédita, mas iria demandar uma pesquisa mais aprofundada e que foge do escopo deste artigo.

Cosimo I de Médici mandou erigir um túmulo a Carlo di Cosimo de Médici, filho natural do patriarca da família com uma escrava circassiana, no Duomo de Prato. No epistolário vasariano, constam cartas do Duque, encomendando a obra a Vasari. Ao final, o

4 A história da construção do Campo dei Miracoli está ligada, de fato, à entrada de riquezas, provenientes de

saques no Mediterrâneo. SANPAOLESI, Piero. La piazza dei Miracoli. Il Duomo, il Battisterio, il Campanile, il Camposanto di Pisa. Firenze: Del Turco Editore, 1949.

5 Signum, Centro di Ricerche Informatiche per le discipline umanistiche, Scuola Normale Superiore de Pisa,

“Edizione Digitale de Le Vite di Giorgio Vasari”: http://biblio.signum.sns.it/vasari

6 A presença de Vasari na cidade é atestada em seu epistolário: Carteggio vasariano, 1532-1574

(www.memofonte.it). A primeira carta escrita em Pisa por Vasari data de 5 de janeiro de 1561, para Giovanni Caccini, um corregionolário do grão-duque Cosimo.

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escultor e também arquiteto Vincenzo Danti encarregou-se da tarefa. O interessante nesse episódio é destacar que a Catedral de Santo Stefano, o Duomo de Prato, é geralmente atribuído a Giovanni Pisano. Vasari dá muita importância à atividade de arquitetos, tanto de Nicola quanto de Giovanni.

Conta-se uma história curiosa sobre as relações da família Medici, os mecenas de Vasari na sua remodelação da cidade, com o patrimônio pisano. Lorenzo de Medici foi acusado, em 1530, pelo humanista Francesco Maria Molza8, de ter decapitado a maior parte das figuras do Juízo Final, do Púlpito do Batistério da cidade, da “douta mão” de Nicola. As esculturas ficaram mutiladas até 1732, quando Pietro Bracci fez as cabeças que faltavam, outros detalhes como braços e mãos e uma figura inteira, que desapareceu ao longo dos séculos.

O Púlpito do Batistério de Pisa, que aparentemente tanto causou a admiração de Lorenzo il Magnifico, é tido como um dos conjuntos mais notáveis da história da escultura italiana renascentista. Possui 4,65 metros de altura, e uma base hexagonal. Baixos-relevos representam as cenas da Natividade, Adoração dos Magos, Apresentação ao Templo, Crucificação e uma criação para o Juízo Final (figs.2 e 3). Profetas e Evangelistas, Quatro virtudes cardeais, São João Batista e o Arcanjo Miguel compõem também arranjos no conjunto, chamado, em italiano, de ambone (púlpito elevado, que se usa com uma escada; no caso, de madeira, que se perdeu ao longo dos tempos).

Já o Púlpito do Duomo de Siena, datado de c.1265-1268, também em mámore, tem altura de 4,6m (figs. 4 e 5). Sua base é octogonal, uma escada de acesso foi acoplada no século XVI. Os documentos guardados no Arquivo da Opera Primaziale di Siena apontam a atuação de Nicola, seu filho Giovanni, Arnolfo di Cambio e dois assistentes, Donato e Lapo. As cenas da Visitação e Natividade, Adoração dos Reis Magos, Apresentação ao Templo e Fuga ao Egito, Massacre dos Inocentes, Crucificação, Juízo Final – Eleitos, e Juízo Final – Condenados, fazem parte do conjunto, que se diferencia do Púlpito do Batistério de Pisa por apresentar, num mesmo quadro, histórias diferentes, cenas sucessivas no mesmo espaço. Observa-se também uma proliferação de personagens: a Madonna da Anunciação,

8 HASKELL, Francis; PENNY, Nicholas. L’Antico nella storia del gusto. La seduzione della scultura classica.

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São Paulo entre os discípulos Tito e Timóteo, a Madonna com o Menino, anjos, o Cristo Místico, os Símbolos dos Quatro Evangelistas, o Cristo Pantocrator e figuras alegóricas nos lembram as tumultuadas cenas do Purgatório de Dante (principalmente os Cantos I e II) e os personagens inseridos em diálogos como exemplos9.

Elementos arquitetônicos dignos de nota são os capitéis, de ordem coríntia. Entre os arcos, Profetas ou Evangelistas, e Virtudes teologais são apresentadas: Fé, Esperança e Caridade, bem como quatro Virtudes cardeais: Justiça, Prudência, Fortaleza e Temperança. A coluna Central (fig. 6) tem um rodapé octogonal, adornado com as figuras das Artes Liberais e da Filosofia. Percebe-se que, no Duomo de Siena, os pisanos concentraram esforços nas alegorias. Serão necessárias pesquisas no Archivio della Opera para constatar se isso se deve a um pedido especial do comitente, isto é, a comuna sienense.

No Púlpito da igreja de Sant’Andrea, Pistóia, executado por Giovanni, entre 1298-1331, existem cinco painéis: Anunciação, Adoração, Massacre, Crucificação e Juízo Final. O Púlpito de Pistóia é bastante similar ao próximo produto da oficina, o Púlpito do Duomo de Pisa, de Giovanni, datado em torno de 1301-1310. Giovanni levou os sistemas de correspondências entre personagens e trechos da História Sagrada, e figuras alegóricas, à sua máxima potência, inserindo tais integrantes nas colunas, que sofreram danos ao longo dos séculos. O Púlpito do Duomo de Pisa ficou guardado, aos pedaços, porque não parava em pé. Quando da ditadura de Mussolini, as colunas danificadas foram repostas, na posição errada, para agradar o Duce, que pagou pelo restauro e que assim as preferiu (as cariátides deveriam ser as colunas externas)10.

No seu guia das obras de arte da Itália, o Cicerone, o historiador Jacob Burckhardt (1818-1897) escreve, na parte intitulada “Scultura del Medioevo”, sobre Nicola Pisano: “O seu estilo é um Renascimento prematuro (...). Entusiasta dos relevos antigos, sobretudo dos

9 As cenas do Púlpito do Duomo de Siena são mais legíveis, de fato, se o observador tem em vista as proposições

de Erich Aeurbach em “São Francisco de Assis na Comédia de Dante”, em Figura. São Paulo: Ática, 1997.

10 PERONI, Adriano (ed.). Il Duomo di Pisa. Mirabilia Italiæ. Modena: Franco Cosimo Panini Editore, 1995

e SANPAOLESI, Piero. La piazza dei Miracoli. Il Duomo, il Battisterio, il Campanile, il Camposanto di Pisa. Firenze: Del Turco Editore, 1949.

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sarcófagos, Nicola acorda, para uma nova vida, a beleza formal.”11 Burckhardt insiste na relação de Nicola com as obras antigas, gregas, romanas e etruscas.

Henrich Wölflinn, em A Arte Clássica, livro dedicado à memória de Burckhardt, denomina Giotto, Nicola e Giovanni Pisani como os “antecedentes” da “maturação” da Arte Italiana, no Cinquecento. Sobre estes artistas, escreve:

(...) Giovanni Pisano, o escultor, funde no seu material áspero uma emoção maior do que Giotto, o pintor. A história da Anunciação não poderia ter sido retratada com mais delicadeza, dentro do espírito daquele século, do que na concepção de Giovanni no relevo do Púlpito de Pistóia, e na impetuosidade de suas cenas lateja algo do ardor de Dante12.

Já Cesare Gnudi (1910-1981), num volume póstumo, de 1982, intitulado L’Arte

Gotica in Francia e in Italia, escreve:

A grandeza de Nicola reside antes de mais nada nisto: que ele assinala o ponto de inflexão da cultura gótica de além-Alpes no vivo da tradição figurativa italiana (...) só no contexto da nova cultura gótica a grande experiência clássica de Nicola, o estilo ‘heróico’ de sua primeira maneira, pode ser compreendida em todo o seu significado, em toda a sua vitalidade13.

Gnudi aponta a ligação das realizações de Nicola com obras das catedrais de Bamberg, por exemplo. Para esse autor, a principal via de comparação, para a análise da obra dos Pisani, não seriam os artistas toscanos um pouco posteriores ou contemporâneos (e o caso mais célebre seria o do entorno de Ambrogiotto da Bondone, mais ligado a Dante Alighieri), mas os artistas do chamado Gótico internacional – os grandes canteiros de obras do Norte.

Podemos apontar, nos Amboni da oficina de Nicola Pisano, uma reflexão profunda sobre o mistério da Encarnação. Nicola dá ênfase aos aspectos carnais do Deus vivo: a alegria jubilosa da Natividade contrasta com a dor da Crucificação. Mas, mais do que focar nos aspectos narrativos dos Evangelhos, ao fazer ressurgir as formas miméticas greco-romanas, o encanto hipnótico da anatomia humana representada no mármore, Nicola insiste na materialidade da Encarnação, como nas prédicas de São Francisco de Assis e de seus sucessores. Pode-se, aqui, pensar em duas perguntas. O escultor de Pisa ajudou os pregadores

11 BURCKHARDT, Jacob. Il Cicerone. Roma: Newton, 1992, p. 614 (Tradução livre). 12 WÖLFLINN, Henrich. A Arte Clássica. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p.10.

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franciscanos a convencer fiéis, perdidos no grande porto gibelino? E mais, esse seu desejo explícito de emular o antigo, encontrou respaldo nas novas ideias sobre religiosidade e política, que se formavam no seio das municipalidades italianas do seu tempo?

Os púlpitos podem ser lidos, assim, como importantes peças na ligação do fiel com a esfera divina – “pontes” para a ascensão através da meditação sobre os desdobramentos das ações do Deus vivo. Jesus age na História da humanidade materialmente – parece que Nicola e Giovanni Pisano optaram por reviver as formas greco-romanas para inserir a ação sagrada no século em que viveram.

Por outro lado, a cidade dos artistas foi uma das primeiras a aceitar e apoiar as causas franciscanas. Foi decisiva, nesse sentido, a ação do arcebispo Federico Visconti di Ricoveranza (c.1200-1277), que, tendo conhecido pessoalmente São Francisco em Bolonha, em 1222, tomou para si a defesa da Ordem. Federico Visconti acolheu Giovanni di Fidanza, conhecido como Boaventura de Bagnoregio (c.1221-1274), sétimo ministro-geral da Ordem, entre 1257 e 1274, em várias ocasiões. Em 1257, quando se tornou ministro-geral da Ordem, Boaventura proferiu uma pregação, depois muito comentada, no convento franciscano de Pisa14.

Em 1263, também na cidade toscana, sob o generalato de Boaventura, ocorreu o Capítulo Geral da Ordem. Neste Capítulo, do qual restaram as liturgias, a Imaculada Conceição de Maria foi aceita como festa franciscana (séculos antes de se tornar definitivamente dogma católico, em 1854), e a Legenda Maggiore de Boaventura é aprovada – sendo que se tornará a biografia oficial de Francisco de Assis e base para a divulgação de seu culto.

Mas, entre a pregação de Boaventura e o Capítulo Geral, o arcebispo Federico encomenda a Nicola o púlpito para o Batistério, ainda em construção. Tanto os sermões de Boaventura quanto os do arcebispo Federico Visconti15 são ricos em reflexões sobre o Mistério da Encarnação – os dois pregadores entendem a fundamental importância da

14 BAGNOREGIO, San Bonaventura di. “Sermone 243”. In: BOUGEROL, J. G. (ed.). Sermone De Tempore.

Opere. Roma: Città Nuova Editrice, 2003.

15 BÉRIOU, Nicole (ed.). Les sermons et la visite pastorale de Federico Visconti archevêque de Pise,

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reflexão sobre as ações de Jesus Cristo, o aspecto físico da Graça entre os homens. Seguindo o calendário litúrgico, o pregador tem a missão de transportar os fiéis para o tempo de Cristo, muitas vezes no sentido literal das Escrituras. Os púlpitos produzidos por Nicola e Giovanni, adornados com cenas dos Evangelhos, seriam objetos auxiliares nas pregações – dependendo da época do ano, as cenas são referidas nas palavras do religioso acima destas, e a figuração de Nicola, all’antica, deve ter causado impacto nas mentes e corações dos que ouviam Federico e Boaventura.

Possíveis fontes para o trabalho de Nicola seriam os sarcófagos gregos, romanos e etruscos, encontrados em Pisa e que foram recolhidos no Camposanto Monumental da cidade, inaugurado em 1278. A coleção de antiguidades da comuna ficava, até sua colocação neste grande espaço, na Igreja de Santa Reparata (que se localizava no atual espaço da Catedral), desde tempos imemoriais.

A ausência de informações mais acuradas sobre o conjunto não permite determinar, muitas vezes, a origem das peças ou sua circulação pelo Mediterrâneo – a etrusca Pisa foi porto importante na ligação com as colônias e cidades-Estado gregas, bem como, nos séculos seguintes, entreposto romano de relevância.

Depois dos bombardeios norte-americanos, em 1945, que arrasaram o Camposanto de Pisa (causando a perda irreparável de seu ciclo de afrescos do Duecento e Trecento), restaram cerca de 87 sarcófagos e alguns pedaços de esculturas. Sabe-se, pelas descrições, que a coleção tomava muito dos espaços do cemitério, e que as peças foram copiadas ao longo dos séculos. A diversidade de motivos iconográficos, bem como de soluções formais causavam espanto – e faziam do local um lugar privilegiado para o estudo das chamadas “antiquárias”16.

O projeto da construção do Camposanto teria origem em discussões de 1174. Nos anos seguintes, as autoridades da cidade acertaram os detalhes da construção, bem como uma

16 Em alguns guias de viagem dos séculos XVIII e XIX, por exemplo, os autores se dedicavam a identificar

parte dos sarcófagos e estabelecer algumas discussões sobre a origem destes e o significado de suas narrativas mitológicas, visando o estudo mais aprofundado da Antiguidade. Atualmente, tais descrições nos permitem ter uma noção da magnificência do Camposanto, antes de 1945. Um exemplo desses guias é MORRONA, Alessandro. Compendio di Pisa Illustrata. Pisa: Pietro Giacomelli, 1798.

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série de normativas para o funcionamento do ambiente fúnebre17. Uma prática que já existia, da reutilização de sarcófagos antigos, permaneceu – o que ajudou a conservar no local o que se encontrava na cidade e na região.

No Camposanto de Pisa, está o sarcófago romano cuja datação é a mais antiga – considerando que muitos outros não possuem tal exatidão. O sarcófago de Caius Bellicius Natalis Tebanianus, do segundo século da era cristã (fig.7), apresenta uma composição com festões no primeiro plano e um festim de divindades no segundo – a junção de personagens menores e maiores, bem como os motivos dos panejamentos e poses, poderiam ser referências para Nicola – que teve à sua disposição tantos sarcófagos e viu de perto a construção do Camposanto (as datas dos Púlpitos dos Pisani estão no mesmo arco temporal desse processo).

A frontalidade do rosto de São José, na Adoração dos Magos do Púlpito do Batistério de Pisa (fig.3) faz lembrar alguns dos rostos de outro sarcófago do conjunto do Camposanto – cabelos, barbas, fisionomias e a ideia da movimentação dos personagens nas narrativas agora envolvidas nos feitos do Deus encarnado.

É evidente que o clima político, de tentativa de restauração imperial, por parte dos Hohenstaufen, possa ter contribuído no desejo de retirar, de peças antigas, as formas para a criação dos Púlpitos pisanos. Mas também parece que partiu da própria oficina de Nicola – na cidade que sediou um Capítulo Geral da Ordem Franciscana, em 1263, importante nas suas resoluções e a ação de Boaventura de Bagnoregio (c.1217-1274). Em Pisa, Boaventura teve a sua biografia de São Francisco aprovada por sua Ordem, e fez importantes pregações – é de se pensar como um Púlpito, instalado no Batistério local, tenha sido significativo.

Nicola e Giovanni também citam, nos Púlpitos, cenas com várias figuras imbricadas, como as de batalhas (fig.9) – enquanto que no primeiro Púlpito, o do Batistério de Pisa, são apresentadas cenas únicas, no do Duomo de Siena as placas de mármore apresentam cenas muito mais “povoadas”, e com as figuras com dimensões menores. Ou seja – a diversidade dos sarcófagos do Camposanto parece ter interferido numa série de escolhas possíveis para os Pisani.

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Considerando que a cidade de Pisa idealizou um espaço que se pretendia digno dos tempos áureos do Império Romano do Ocidente, pode-se também supor que as ruínas e os acervos de Roma se tornaram modelos imediatos para os artistas empenhados na construção e execução das decorações, objetos, e todo o aparato necessário. Uma fonte de inspiração seria a Coluna de Trajano (fig.10). Construída pelo arquiteto Apolodoro de Damasco, para comemorar a conquista da Dácia (região hoje ocupada por vários países como Croácia, Sérvia, Albânia; a província ocupava praticamente toda a Península Balcânica), situada na entrada do complexo dos Fóruns, a Coluna apresenta uma grandiosa sequência narrativa, copiada ao longo dos séculos.

Mais ainda, Nicola e Giovanni tinham à sua disposição os Arcos de Triunfo, como o de Tito (fig.11), que, em seus alto-relevos, conta a história da destruição da cidade de Jerusalém e a dispersão da população da província revoltosa da Palestina, em 63 d.C. Os arcos e a Coluna de Trajano apresentam formas diversas de encaixar corpos, para a composição de narrativas complexas, o que é a proposta tanto do Púlpito do Batistério de Pisa, quanto do Duomo de Siena.

O desafio de encaixar, nestes corpos modelados à antiga, as narrativas do Novo Testamento, fez com que do Púlpito de Pisa para o de Siena, o ateliê de Nicola e Giovanni optasse por um preenchimento maior das superfícies com personagens secundários ou alegóricos – as cenas são mais “povoadas” no Púlpito do Duomo de Siena, o que nos remete às obras romanas. Parece crível supor que, no Púlpito do Batistério de Pisa, Nicola tenha como modelo os sarcófagos pisanos, e em Siena, Giovanni tenha pensado nas ruínas de Roma.

Permanece envolto em mistério, porém, o processo de aprendizado de Nicola – como o jovem artista dominou o mármore e resgatou a modelagem antiga da figura humana – o mesmo mistério que circunda o Busto de Barletta (fig.1). A Arte antiga ressurge na Itália em tempos conturbados. O certo é que esse ressurgimento, ocorrido em Pisa, esteve a serviço de instigantes personalidades artísticas, que estabeleceram com a tradição mediterrânea de séculos longínquos um diálogo fecundo, que marcará os séculos seguintes.

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Imagens

Fig. 1. Busto de Frederico II Hohenstaufen. Mármore. c. 1234-1239. Barletta: Museo Civico. Fonte: Wikipédia italiana.

Fig. 2. A Natividade. Nicola Pisano, 1260. Mármore, 85 x 114 cm. Pisa: Púlpito do Batistério. Fonte: Web Gallery of Art, www.wga.hu.

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Fig. 3. Adoração dos Magos. Nicola Pisano, 1260. Mármore, 85 x 114 cm. Pisa: Púlpito do Batistério. Fonte: Web Gallery of Art, www.wga.hu.

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Fig. 4 e 5. Púlpito (Ambone). Nicola e Giovanni Pisano, 1265-1268. Mármore. Siena: Duomo de Santa Maria Assunta. Fonte: Web Gallery of Art, www.wga.hu.

Fig. 6. Coluna Central. Artes Liberais e Filosofia. Nicola e Giovanni Pisano, 1265-1268. Siena: Púlpito do Duomo. Fonte: Web Gallery of Art, www.wga.hu.

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Fig.7. Sarcófago de Caius Bellicus Natalis Tebanianus. c. 110 d.C. Pisa: Camposanto Monumentale. Fonte: WikiCommons.

Fig. 8. Sarcófago antigo. Datação e origem incertas. Pisa: Camposanto Monumentale. Foto: Paula Vermeersch.

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Fig.9. Sarcófago antigo com cena de batalha. Datação e origem incertas. Pisa: Camposanto Monumentale. Fonte: WikiCommons.

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Fig.10. Coluna de Trajano. Mármore, 38 m de altura, 4 metros de diâmetro. Apolodoro de Damasco, 114 d.C. Fonte: Wikipédia.

Fig.11. Detalhe do Arco de Triunfo de Tito. Soldados romanos e os despojos de Jerusalém. Arco de Tito. 15,4 m de altura. 81 d.C. Fonte: WikiCommons.

Imagem

Fig. 1. Busto de Frederico II Hohenstaufen. Mármore. c. 1234-1239. Barletta: Museo Civico
Fig. 3. Adoração dos Magos. Nicola Pisano, 1260. Mármore, 85 x 114 cm. Pisa: Púlpito do Batistério
Fig. 4 e 5. Púlpito (Ambone). Nicola e Giovanni Pisano, 1265-1268. Mármore. Siena: Duomo de Santa Maria  Assunta
Fig. 8. Sarcófago antigo. Datação e origem incertas. Pisa: Camposanto Monumentale. Foto: Paula  Vermeersch

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