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O Criador-intérprete na Dança Contemporânea

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O Criador-int6rPrete

na

Danga

Contem

poranea

Sandra lvleyer NUnGS

E s t e e n s a i o p r o p O e u m a r e f l e x a o i n i c i a l s o b r e a { i g u r a d o c r i a d o r - i n t e r p r e t e n a d a n g a m o d e r n a e c o n t e m P o r a n e a A r t i c u l a d o r d e v d r i a s l i n h a s d e p e n s a m e n t o e p r a t i c a s c o r p o r a i s c r i a s u a a s s i n a t u r a p 1 6 p r i a n a s r e l a Q o e s d a d a n q a c o m o u t r a s a r e a s o o c o q h e c i m e n t o . S e u p r o c e s s o c r i a t i v o e i n v e s t i g a t i v o s e d 6 e m s e u P 1 6 P r i o c o r p o , n a b u s c a P o r n o v a s D o s s i b i l i d a d e s d e m o v i m e n t o ' t o n i c i d a d e e d r a m a t u r g i a c o r p o r a l

A multiolicidade e diversidade caracterizam o universo da danQa cenica na atualidade. Corpos hibridos nascidos da contaminaQao entre fontes culturais, t6cnicas corporais e goneros artisticos distintos. E raro observar hoie um corpo que dance construido atrav6s de uma t6cnica especilica Em sua formaqio, os artistas t6m acolhido elementos distintos e vezes dispares de prdticas corporais que veo da d a n Q a A s a r t e s m a r c i a i s , d a y o g a a l d a n q a contemDoranea. Os referenciais ainda nitidos que a danqa moderna delineava deram lugar ?r noq6o de destenitorializagdo, ou seja, a perda de territ6rios permeando a relagSo da danQa com oulras artes e areas do conhecimento. Misluras estas que se apresentam "ilus6rias na medida em que o corpo do bailarino nao f o r t o c a d o " .

Muitas sao as est6ticas de corpo possiveis na cena da danga. H6que se descobrir novostermos para d e s i g n a r a s d a n g a s r e s u l t a n t e s d e t a m a n h a

l.LOUPPE Laurence. Corpos hibridos in Liq6es de danQa 2. Univercidade. Rio de Janeko, 2000.

O Criador-int6rprete na Danga Contemporanea

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contaminaqao entre areas. No que se refere e danQa contemporanea, naotodaa danQa que 6 coetanea, mas aquela que apresenta umaorganizaQao de movimentos c o m d e t e r m i n a d a s e s p e c i f i c i d a d e s l 6 c n i c a s e est6ticas, evidencia-se a presenQa de um carater investigativo que leva a novos registros corporais. Reafirma-se hoje a figura do "criador-int6rprete"-nomenclatura que referencia um percurso de pesquisa do profissional em seu pr6prio corpo em busca de uma esp6cie de resolugao investigativa. Este formula novas perguntas com o seu corpo para que possam caminhar e m a l g u m ti p o d e p r o c e d i m e n t o t 6 c n i c o e metodol6gico.

Como se lhe lirassem as certezas, os resquicios de movimento de um tempo clessico, alguns criadores da danEa contemporAnea abrigam-se numa nova ci0ncia. Ndo se contentam em se utilizar somente de uma grametica corporal construida at6 entao via danQa cl6ssica e moderna. O corpo virtuoso coexiste com o que se permite dangar assumindo sua precariedade e transitoriedade. lvlas estas "novas hip6teses" precisam estar presentes no corpo, e nao somente enquanto recursotematico ou veiculagdo de midias (relaE6es com artes plasticas, teatro, video e outras tecnologias). Pressup6e a pesquisa de uma tonicidade corporal.

Propaga-se uma danQa contemporanea que a s s u m e a f r a g m e n t a q a o , a d e s c o n s t r u q S o e a simultaneidade como possibilidades de existencia no mundo. Os orincioios norteadores da modernidade como aordem, a estrutura, o centro e a linearidade, sao substituidos por outros como a multiplicidade, a descentralidade e a nao-linearidade. A nogdo de simultaneidade dissolve a hierarquia no pr6prio corpo e a relaQao deste com os outros corpos e o espaQo na cenadadanQa. Naobra do core6grafo americano L4erce Cunningham, a exemplo, os bailarinos espalham-se por todo o espaQo sem uma hierarquia, ndo hd pontos de concentraQeo 6nicos. Nao he direQoes fixas, cada

O Criador-int6rorete na Danea Contemporanea

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bailarino estabelece novas relaE6es. A autonomia de partes do corpo imp6e uma descentraliacao, onde os movimenlos ja nao convergem para uma iinalidade. H 6 n a d a n q a c o n t e m p o r a n e a u m c e r t o a n a r q u t s m o c o r p o r a l , q u a n d o p a r t e s d o c o r D o trabalham como se possuissem exist6ncia orooria. Ja os cnadores da modernidade, na primeira metade do seculo, buscavam o movimento chave ,,interior,,, de onde originariam outros movimentos. lsadora Duncan evocava o plexo solar e lMartha Graham, a regjeo da pelve-.

Em trabalhos de companhias brasileiras como a Quasar, de GoiAnia, e Cena 1.1, de Florian6polis, e de solrstas como Vera Sala, de SAo paulo, 6 possivel perceber formas distintas de entender a quebra de hierarquia e fragmentaqSo do corpo, onde partes deste independem de um 0nico centro propulsor. Nas quedas no chao da pesquisa corporal de Vera Sala, o corpo assume sua precariedade, duvida de seu pr6prio eixo, como se lhe tirassem as certezas. Nos movimentos aparentemente involunterios, revela-se a busca de um tdnus muscular pr6prio que se aproxima do corpo nao virtuoso, pr6ximo da exclusio social. Na construcdo corporal do Ouasar e do Cena I 1 , as reler6ncias paia o surgimento da fragmentaQao do movimento adv6m da cultura popular e de massa. Refer6ncjas do video clioe e do video game produzem no corpo um outro tiDo de entendimento para a mesma quest6o.

2. f.n sL€ busca por Lma danqa qJe exoressasse o esptllo

nuraTo UJTcal pesq-iSoL o movimenro chave qLre obedeceria

a uma 169ica emocional, e nao ,mecenica, (que atribuia A t6cnjca

d o b a l 6 ) . E s t a b e l e c e u e n t 6 o , a i n d a q u e d e m a n e i r a n a o

srstemaitzada, o cenlro de ifradiageo que iria nortear os pr6ximos

cfiaoores da danqa moderna e que igualmente estabeleceria

pnncrpros para o teatro: o lrorco, entre o plexo solar e a o6lvjs.

naturatmentecomopontosmaispr6ximosdaregiaoquefisicamente

experimentamos estas emogoes. Eu sonhava descobri um

movtmento inicial do qual nasceria toda una s6ie de outtos movimentos, descreveu Duncan (Garaudy,19gO:67).

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A reafirmaEdo da figura do criador-int6rprete no s6culo XX veio conduzida por mulheres. A pesquisa do movimento das primeiras criadoras modernas - lsadora Duncan, Loie Fuller, Ruth Saint Denis, lvlartha Graham, D6ris Humpherey e lvlary Wigman iniciava-se em seu p r 6 p r i o c o r p o . A d a n q a m o d e r n a p r o p u n h a u m a representagao onde a mulher nao se dissolvia na p e r s o n a g e m , c o m o n o s b a l 6 s ro m a n t i c o s e d e repertorio, mas evocava uma presenqa muito mais concreta a partir de suas pr6prias referdncias de mundo.

At6 o s6culo XlX, o core6grafo, como umvoyeur, construia o movimento no corpo das bailarinas. A figura feminina retratada na danQa no s6culo XIX evocava u m a r e p r e s e n t a q d o i d e a l i z a d a p e l o homem. ' A bailarina nao 6 uma mulherque danqa, 6 um sentimento universal que se apodera de um corpo anOnimo, e este corpo 6 apenas um signo", declararia a bailadna e atriz Loie Fullei, tomando como suas as palavras de Mallarm6 (Sasportes,1983:36). A an6lise da danQafeita pelo poetafrancCs seguia uma linha mais abstrata, uma quase "metafisica", levando-a idealmente para al6m do corpo fisico oue executa e define o movimento-. Em seus escrilos, procurava dar um sentido erquela nova d a n q a q u e eslava n a s c e n d o , p r 6 - a n u n c i a n d o a autonomia desta area. Para Mallarm6, a bailarina seria uma construgao do p0blico, um quase sonho. Esta danQa se manteria como pura invenqeo do espirito humano, negando a mulher a autoria de seu movtmento.

3. Assim como lsadora Duncan, Fuller (1861-1928) criava suas dangas longe dos criterios do bal6. Atravds da manipulagao de imensos veus que a envolviam num jogo de projegeo de luz evocava uma atmosfera menos realista e mais simb6lica, que lhe faziam perderocontorno definidodos limites do corpo. Sintonizada com o ideerio do inicio do s6culo, transformou-se na musa dos simbolistas (Sasportes:1983:36).

4. St6phane N.4allarme (1842-1898) foi um dos mais importantes poetas da escola simbolista e seu pensamento foideterminante na evoluQao po6tica no s6culo XX. O poema L'aprds-midid'um faune, de 1876, inspirou Vaslav NijisnKy a criar em 1912 a sua primeira -genial e polemica - coreografia, com o mesmo nome do poema.

O Criador-int6rorele na Danea Contempolanea

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As criadoras americanas lsadora Duncan (1878-1927) e lvlarta Graham (1894-1991) e a alema l/ary Wigman (l886-1973) pretendiam uma representaqao do ser humano de seu tempo, estandarte este da modernidade, mas o fizeram de maneiras particulares. A danqa perde o discurso universal peculiar da danqa clessica e conquista uma nacionalidade identificada com cada pais. E.tamb6m uma identidade de cada criador. Embora com motivaqoes comuns. como avisao de uma danqa mais livre e a necessidade de expressar o corpo do homem de seu tempo e de sua naQao, e c o m u m c e r t o t r a n s i t o d e i n f o r m a Q 6 e s e n t r e o s criadores, a danga americana te16 qualidades diferentes d a e u r o p 6 i a . O p r a g m a t i s m o a m e r i c a n o a b r e possibilidades para a negaQao do antigo (bal6) para o s u r g i m e n t o d o n o v o , e n q u a n t o a A l e m a n h a n 6 o conseguira extinguir de sua danqa o expressionismo, nem a parsagem pos-guerra.

E marcante a influencia dos estudos do frances F r a n q o i s D e l s a r t e ( 1 8 1 1 - 1 8 7 1 ) n a f o r m a g a o d e u m pensamento na danga moderna. O corpo, tanto do ator como do bailarino, mobiliza-se no inicio do s6culo parq a expressao tendo, como fonte, a regiao do tronco'. Inicialmente ator e cantor, Franqois Delsarte (181 1-1871) dedicou-se a pesquisar e classificar as leis que regem a utilizaqao do corpo como meio de expressao, valorizando nos gestos sua significaQao emocional. Observou os gestos das pessoas emlodas as situaQoes davida, vendo o discurso verbalcomo inferior ao gesto,

5. Os movimenlos partindo do centro do corpo para Delsarte exprimem mais potencialmente a expressividade humana (Garaudy,19B0i84). Suas pesquisas, que contemplam todas as afies, enriqueceram a linguagem da danQa moderna a partir do: (a) primado do tronco como motor e centro de irradiagao da expressao, opondo-se ao torso mais rigido do bal6 na sua valorizaQao do movimento dos membrost (b) o uso da aliemancia entre tensao e extensao, conlragao e relaxamento, fluxo e refluxo seguindo as leis de sistole e diestole da vida. O bal6 insistia na ulilizaqao da tensao como polo mais influente; (c) o valor do peso do corpo, da rela9ao do homem com a terra e (d) a intensidade do sentimento comanda a intensidade do oeslo.

O CriadoFint6rprete na Danga Contemporanea

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que 6 o agente do coraEao, o agente persuasivo. Fielacionou voz, gesto e emoEao, criando a Lei da Correspond€ncia: cada funEao do espirito corresponde a uma funQao do corpo, ou seja, todos os sentimentos tCm sua p16pria traduQao corporal (Bourcier, 1987). As pesquisas de Delsarte proporcionaram o acesso a t o d o s e c u l i u r a f i s i c a , f a t o r d e t e r m i n a n t e p a r a o s u r g i m e n t o d a s m u l h e r e s e n q u a n t o c r i a d o r a s . lntluenciou todo uma geraEao de artistas da danEa, iniciando por lsadora Duncan, Ruth Saint-Denis, Ted Shawn e N,4ary Wigman.

Duncan mantinha um ideerio pedag6gico que inaugura um novo pensamento para a danQa, e que iria culminar no nascimento da danqa moderna e do conceito do criador-int6rprete. Avessa aos c6digos corporais estabelecidos pelo bal6, apela para a danqa c o m o r e s u l t a n t e d o m o v i m e n t o d o i n d i v i d u o e m conexao com a natureza. lvlovimento este resultante "da alma e do espirito humano", segundo Duncan ( B o u r c i e r , 1 9 8 7 : 2 5 1 ) . O r e g r e s s o d n a t u r e z a - no momento em que outras artes negavam a natureza como modeio-, o retorno ao sagrado, a forma primitiva na danEa, a incorporaqao das danQas do orlente e a sensualidade revestem-se em um discurso libertador f r e n t e a o a c a d e m i c i s m o v i g e n t e n o b a l 6 . D u n c a n i n a u g u r a u m a d a n g a c o n s t r u i d a p e l o c r i a d o r (core6grafo) em seu p16prio corpo.

A rnovimentaQao proposta por Duncan carregava uma parcela de divindade e um apelo a trag6dia grega p r e s e n t e n o d i s c u r s o d o f i l 6 s o f o a l e m a o F r i e d r i c h Nietzsche, o representante da "filosofia da vida" do seculo XIX-. Outro mestre de pensamento de Duncan,

6. Nletzsche (1844-1900) foi figufa dissonante em sua 6poca, marcada em sua maior a por correntes racionalistas e positivistas. Sua primeira obra, o Nascimenta da lrag1dri? (1872), inJluenciada pelo pensamento de Schopenhauer, ldenlifica na tragedia grega

u c r d , v o v d v .

O Criador-int6rprete na

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o jil6sofo alemao Arthur Sohopenhauer (1788-1860)' *-i i indica que a verdadeira ess6ncia que fundamenta as

coisas externas e possivel de ser encontrada a partir de cada um. Nestes impulsos, "e nao nas raz6es que o i n t e l e c l o a r r u m a p a r a explicar t a i s a s p i r a g o e s , a realidadedoserviventeexiste" (Guiraldelli Jr. 1996:38). Ancorada em tais visoes de mundo, neo caberia na

",,:l::-'i danQa pensada por Duncan um enquadramento em ..,,.-: i c6digos pr6-estabetecidos.

i:: i Assim como Duncan, Mary Wigman via a danqa

como exerclcio de liberdade, provocando uma ruptura metodol6gica ao fugir dos padr6es impostos pelo academiscismo e buscar uma danQa do seu tempo, uma expressividade que o bal6 teria perdido. Wigman tratou de construir estados da natureza no corpo' mas de forma diferenciada do de Duncan. Esta buscava atingir estes estados vla saida da "alma" de seu corpo, buscando na natureza exterior (vento, onda). Wigman tentava traduzir estes estados no corpo, fisicalizando a n a t u r e z a d o h o m e m . F o r m a r o b a i l a r i n o e r a conscientizd-los de impulsos que jf estavam presentes neles mesmos. A est6tica individual proposta por Wigman contribuiu para proporcionar ao bailarino um n o v o v o c a b u l e r i o c o r p o r a l e a t r i b u i u - l h e u m a responsabilidade sobre sua p16pria expressao: colocar o bailarino "d escuta de si mesmo, onde se pode ouvir a repercussao do eco do mundo"(Bourcier, 1987:299) W i g m a n s e g u e o s p r i n c i p i o s d e l s a r t i a n o s a o estabelecer o movimento partindo do tronco e, assim como Duncan, concebia a sua danqa como uma impulsdo interna. Wigman cria a "danqade expressdo", que iria culminar na danEa{eatro. A utilizaQao da mAscara em algumas de suas obras, como a Hexentanz (DanQa da Feiticeira-1913), imprimia uma dimensao humana universal.

A americana Martha Graham estabelece as motivag6es que iriam nortear a sua danga e influenciar a danqa de centenas de seguidores por todo o mundo

O Criador-interprete na Danqa Contemporanea

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Rejeitando as danqas alusivas A natureza de Duncan e cansada de danQar divindades e ritos ancentrais via Ruth Saint-Denis e Ted Shaw Graham declara o seu interesse de falar do homem confrontado com os

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permanentes da humanidade. "Ndo quero ser 6rvore, flor, onda ou nuvem. Devernos procurar no corpo do bailarino nao a imitaQao dos gestos cotidianos, nem os espet6culos da natureza, nem seres estranhos vindos de um outro mundo, mas um pouco deste milagre que e o ser humano motivado, disciplinado, concentrado" (Bourcier,1987).

O s e i x o s d e p e s q u i s a d e G r a h a m e r a m p r i m e i r a m e n t e d e i n s p i r a q d o n a c i o n a l i s t a , q u a n d o buscava um movimento da alma do oovo americano. s u a fo r g a d i n A m i c a d e i m p u l s o . p i o n e i r i s m o e puritanismo, e ap6s, pela sua inspiragdo nos mitos gregos em sua busca dos problemas fundamentais da humanidade. As teorias treud;anas a insoiraram Dara f a l a r d o s m i t o s r e v e l a d o r e s d a t r a g 6 d i a h u m a n a , buscando uma atualizaqao destes mitos e rltos tanto nas fontes arcaicas de seu pr6prio pais, entre os povos indigenas, quanto na literatura e mltologia grega.

A danEa moderna ganha entao o status de tecnica ao ser finalmente sistematizada por Graham. Sua tecnica busca romper com as linhas ondulantes d a d a n Q a c l a s s i c a i n t r o d u z j n d o m o v i m e n t o s espasmodicos, impulsos bruscos necesserios para falar do homem de seu tempo, que sentia a ang0stia das grandes guerras e a imposigao de um progresso duvidoso. O ponto fundamental de sua t6cnica 6 o ato maior da vida: a respiraQao. A partirdo tronco, da regiao p6lvica, centro motor da vida e da sexualidade, os movimentos surgem respeitando as leis da contraQao e dilataqao (tension, release). Outro principio de sua t6cnica utiliza o chao como propulsor do movimento.

A o c o n t r a r i o d a d a n Q a d e G r a h a m e o u t r o s criadores da modernidade, Cunninoham constr6i uma

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recnlca sem encadeamentos narrativos e semanticos, concebe uma danEa que nao apela para signifjcados para al6m do que esta sendo executado oelo corDo. Cunningnam rompe com a identidade teatral da danca m o d e r n a e s u a im p o s i Q a o d e s i g n i f i c a d o s . d a n d o qualificaQao ao movimento em si mesmo. As linhas de movimento, embora pareQam clAssicas, nao tem as mesmas motivaqoes do bal6. Nao contam hist6rias nem tem uma direQao semantica.

A danQa de Cunningham traz a id6ia de evento, situaQdes que se re-arranjam conforme o acaso davida; o bailarjno tem que se adaptar es situaQ6es sem ser automatico. Sintonizado com a filosofia oriental, o zen budismo, retira a centraljdade do espaqo e v6 a arte n a o c o m o modo de expressao d e l e n t i m e n t o s pessoais. "O maior prop6sito 6 nao ter prop6sito, viver apenas a natureza aleat6ria da vida. Olhar para o mundo e ndo para si mesmo", dilia Cage, ao falar de seu irabalho e de Cunningham'.

S i n L o n i z a d o t a m b 6 m c o m u m p e n s a m e n t o cientifico do s6culo XX, Cunningham relaciona o temDo e o espaQo. Sua parceria com o mLisico John Caoe e o u t r o s a r t i s t a s d a v a n g u a r d a a r t i s t i c a a m e r i c J n a . intensiticada a padir da decada de 50, eleva a arte cada vez mais a objetividade material da obra. ao fazer a r t i s t i c o l i v r e d e s i g n i t i c a d o s e x l e r i o r e s a e l a . Cunningham polemiza com o exacerbado simbolismo expressionista que via na danQa do s6culo XX, como as d e N , 4 a r t h a G r a h a m e l\,4ary W i g m a n . Cage e u u n n r n g n a m c o t a b o r a v a m e n t r e s i i n d i s s o c j a n d o m u s t c a e d a n Q a , e s t a s i n d e p e n d e n t e m e n t e coexistentes no mesmo tempo e lugar.

. A t 6 c n i c a d e s e n v o l v j d a p o r Cunningham e pflmetra vista neo contenta aqueles que querem estabelecer signiticados, conexoes mais emotivas. lvlas

7; l ha.ve norh;ng to say and tm saying h.V:deo sobre a vida e obra

oe Jonn L;age com direQao de Allan Wi,ler (EUA, 19gO).

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promove conex6es de qualquer forma, se levarmos em conta que nao ha movimento que nao signifique algo nele mesmo. O movimento em Cunningham nao 6 semantico, mas sintatico. A partir da d6cada de 60 instaura-se um paradigma est6tico: Ihe mind is muscle". B u s c a v a - s e r o m p e r d e f i n i t i v a m e n t e c o m a representaQao do corpo como expressao da separaEao da alma e do corpo. O movimento 6 pensado em sua "pureza" sint6tica, longe dos conteridos psicol69icos veiculados pelas danqas modernas.

A core6grafa americana Trisha Brown tentava dernonstrar que as mulheres tinham "mente" e neo s6 "corpo". O que a atraia ir elaboraEdo de f6rmulas matematicas e diagramas era o desejo de demonstrar que as core6grafas mulheres nao necessariamente criam intuitivamente ou instintivamente, nem constroem suas danqas com movimentos que "vem naturalmente" do corpo, como Duncan propunha. Os p6s-modernistas, a s s i m c o m o B r o w n , d e f e n d i a m u m a a b o r d a g e m m i n i m a l i s t a e a q u e s t a o f o r m a l d a c o r e o g r a f i a , recusando a profusao de gestos e a trama dram6tica. Os bailarinos nao representam individuos, forqas ou tipos, mas sim eles mesmos. O movimento nao 6 pensado em termos de misica. O corpo fala por si m e s m o , a s r o u p a s n a o e n v i a m m e n s a g e n s o u representam personagens. A Iuz nao e usada para criar atmosfera, apenas ilumina. Os espaQos para a danqa sao m0ltiplos, os grupos se apresentam na rua, em telhados, ginasios.

A danEa acontece no corpo, no vocabulerio e x p r e s s o p o r s u a m a t e r i a l i d a d e . N d o t r a t a d e catacte(izat estados da alma ou atmosferas, nao transmite narrativamente mensagens. O conteldo que eventualmente pode vir a ser gerido num quadro de relaq6es entre participantes tem um sentido, mais do

B. A mente 6 um m0sculo", titulo original de uma coreografia da

core6gfafa americana Yvone Ra ner

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q u e uma significaQao". N a c o n s t r u g A o d e s u a dramaturgia corporal, a danqa lida com movimentos que, por sua qualidade de abstraqao, "nao se pode mais do que suspeitar de sua signifi.c^aqao", salienta a dramaturga Marienne Van Kerkhove'". A danqa ndo se oferece naturalmente como arte narrativa. Nao tem direcionamento para a personagem tal qual o teatro, o seu sentido 6 de outra ordem. O teatro lida (ou deveria lidar) com o movimento no corpo do ator enquanto aEao dram6tica. O que caracteriza uma aqao humana no teatro e a sua finalidade e sentido, que organizam a aqdo do corpo. Na danga, um movimenlo como o developp+ (no qual a perna em movimento 6 puxada para cima e estendida ao lado) nao se destina a nada, precisa estar atrelado a outro movimento para ganhar alguma semantica. O sentido aparece nas relagoes

entreos movimentos.Adanqap6s-modernaamericana

deu grande visibilidade a esta questao.

Para se contextualizar a figura do criador-int6rprete nas tr6s fltimas d6cadas do s6culo XX ha que se falar de Pina Bausch. Em seu trabalho de p e s q u i s a , B a u s c h d i s s o l v e u o s h a b i t u a i s e n t e n d i m e n t o s d o s l i m i t e s e n t r e d a n q a e t e a l r o , trabalhando nao em sua integraEao ou carenclas, mas nos "espaQos vazios" entre estas artes, iqSugurando assim uma "esp6cie nova": a danQa teatro

Para a critica Helena Katz, Bausch recuperou os i d e a i s d e N o v e r r e ( 1 7 2 7 - 1 8 1 0 ) a o c o n s t r u i r u m a

9. O que tem significaEao, ou seja, um conleudo previamente determinado e que se procura transmitir O sentido lende a uma diregao e pode ser gerado num quadro de relaQoes entre os elementos da obra e entre os participantes (Coelho, 1986:87). '10. Marienne Van Kerkhove in DossiC de Dramaturgia. Bruxelas, Nouvelles de Danse. 1999.

11. Nascida na Alemanha em 1940, Pina Bausch estudou na mais importante escola moderna da Alemanha, a Folkwang, em Essen, dirigida por KurtJoss, trazendo consigo a heranga de Rudolf Laban, Joss e Wigman (expressionismo). Foi A Nova York na d6cada de 70 e dangou em importantes companhias, viveu o feminismo e o movlmento de integraqao entte as artes.

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dramaturgia pr6pria para a danga, servindo-se tamb6m deelementos do teatro -. O que se convencionou chamar de danQa esta quase ausente do trabalho de Pina Bausch. Tanto que para algumas plat6ias que esperam ver as convenq6es da danQa explicitadas (piruetas, elevaQ6es de pernas), seu trabalho 6 de dificilabsorgSo. Rompe-se a representagSo da danqaque se esperaver. Segundoa core6grafa, "6 preciso aprenderalgumacoisade diferente, aitalvez poderemos voltar a danQal"'.

O ser humano 6 seu modelo. "Observar as pesscas,6 a 0nica coisa que sempre fiz, olhar as relaQ6es entre as pessoasr falar sobre elas. Nao conheQo coisa mais importanle" -. Seu teatro (ou danga) se apega ds d0vidas e incertezas, Bausch n6o se realiza frente a u m a m e n s a g e m q u a l q u e r . S u a s p e g a s fa z e m perguntas. As respostas ficam em aberto, s6 abrem as f e r i d a s . P a r a a c o r e 6 g r a f a , r e s p o n d 6 - l a s s e r i a presungoso. O que lhe compete 6 observar as pessoas e a si mesma.

Os movimentos nao contam hist6rias nem ilustram uma narrativa linear. Os movimentos constituem em si mesmos hist6rias. Bausch quebra a conespondencia direta entre um gesto e seu significado comumente atribuido e foge de interpretaqoes dogmeticas. Sua obra desconcerta nas imagens nada convencionais que

12. Noverre defendia o bal6 enquanto "bal6 de aeao", retirando seus artificialismos, adereQos impr6prios que escondiam a expressividade do corpo. O modelo do bal6 de corte torna-se desgastado, pois ia se enunciava em sua 6poca o declinio da cone, o crescimento das cidades, o nascimento de um sislemade mercado para a arte que exigia uma especialidade e profissionalismo que acorteidnao podia apresentar. para Noverre, a notagao antiga da danga clessica i6 nao dava conta da expressivldade necess6ria, vindo a compor a coreografia juntamente com o baila.jno. No seculo Xvlll, diferentemente das outras artes, que imitavam a natureza visivel, para a danga era preciso re-inventar realidades para as coisas neo visiveis da natureza humana, tais como a paixao, a anglstia.

13. Hoghe, Raimund. Cadernos de Teatro, n. 116. 1989. 14. ldem.

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suscita, embora estas imagens (movimentos) sejam pesquisados no cotidiano. So que um cotidiano extraido em sua potencialidade criativa e paradoxal. O ator-bailarino 6 int6rprete de suas mem6rias pessoais elevadas a uma significagdo maior do ser humano.

As estruturas de trabalho de Bausch basicamente sao a simultaneidade, onde verias coisas ocorrem ao mesmo tempo, e permitindo-nos diferentes maneiras de v6-las. a alternAncia de climas, provocando abismos d e d r a m a t i c i d a d e , a f r a g m e n t a q a o , r e t i r a n d o a funcionalidade esperada de cada gesto, e a repetiqao, utilizada como elemento de transformaqdo (Fernandes, 2000). A repetiqao, quando utilizada na t6cnica de danEa tradicional, colabora para a construEao de um corpo; no trabalho de Pina Bausch, quebra estruturas. De tanto repetir uma cena, esta evolui, os seus signos (ou signif icados) multiplicam-se.

A id6ia de um criador-int6rprete diferencia-se do i n t 6 r p r e t e - c r i a d o r . N e s t e c a s o , a o r d e m d a s nomenclaturas altera o sentido. Enquanto o segundo, ainda que coloque sua abordagem pessoal e obra que danqa, seja criada porele ou por outrem, o processo de pesquisa habitualmente reproduz ou reananja padr6es de movimento j6 existentes. Ja o criador-int6rprete busca uma assinatura a partir de seu proprio corpo, num processo investigativo. Articula novas hipoteses que estabelecem possibilidades de relaq6es entre movimentos at6 entao nao previstas num corpo que danQa. Sua danqa ganha um aspecto "figural". O que 6 construido em seu pr6prio corpo nao 6 facilmente transferido para outro corpo. Dada a sua singularidade, as relag6es que se estabelegpm diferem de uma representagao mais "figurativa" ". A coreografia de um bal6 de repert6rio possui um tipo de representaqao que se oermite atualizar em outros corpos. Naobra de certos

15. No texto Os novos c6digos corporcis da danQa contemporenea Michel Bernard (1990) chama a atengao para o aspecto iigural da obra do artistaplestico Francis Bacon. As figuras humanas do artista sao "imagens-eventos" !nicos.

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criadores-int6rpretes as dificuldades de se trabalhar a mesma danQa em outros corpos sao maiores dadas as singu aridades da pesquisa ccrporal.

Do cruzanento de informaEoes v rdas de oLtras ereas do conhecimento emergem as novas propostas dos corpos que danEam na contemporaneidade. O criador int6rprete, ao inv6s de somente re-combinar paciroes de movimentos, busca questione-los, recriando

I m q a e ^ r i t , . ^ r o ^ n r 4 f i . r

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Referências

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