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Relatórios dos Presidentes de Província – possibilidades para o estudo de saúde e da mortalidade no Rio Grande do Norte (1835 a 1889)

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Relatórios dos Presidentes de Província – possibilidades para o estudo de saúde e da mortalidade no Rio Grande do Norte (1835 a 1889)1

Dayane Julia Carvalho Dias (Unicamp)

Resumo

Nas primeiras décadas do século XIX, os presidentes de província do Rio Grande do Norte apresentavam um discurso de que a Província possuía ‘bons climas’ e estaria longe das epidemias que assolavam o resto do País, e manter-se ‘saudável’ era um sinônimo de ‘civilização’, ‘ordem’ e ‘progresso’. Mas, a partir da segunda metade do século XIX, a Província foi atingida por uma sucessão de surtos epidêmicos de cólera-morbo, febre amarela e varíola, que mudaram o modo com que os presidentes tratavam a saúde pública. Nesta proposta de comunicação foram analisados relatórios de presidente da província que relatam as condições de saúde e mortalidade da população do Rio Grande do Norte ao longo do século XIX. Os resultados indicam que, mesmo antes da segunda metade do século XIX, a população da Província sofria impactos em decorrência dos surtos epidêmicos, sobretudo de varíola. Porém, foi somente a partir de 1850 que a administração provincial tomou medidas visando atender as questões e demandas em relação à saúde pública, devido ao aparecimento das epidemias de cólera e de febre amarela. Este exercício de conhecer as possibilidades do uso das informações estatísticas disponíveis nos relatórios para o estudo da saúde pública e da mortalidade na província é um passo inicial para uma análise mais ampla sobre a população na província do Rio Grande do Norte na segunda metade do século XIX. Em etapas futuras, esses dados serão sistematizados/cruzados com outras fontes seriadas, como os registros paroquiais.

Palavras-chave: Rio Grande do Norte; século XIX; saúde pública; mortalidade.

1 Artigo apresentado no XXI Encontro Nacional de Estudos Populacionais ocorrido no período de 22 a 28 de setembro de 2018, em Poços de Caldas, Minas Gerais.

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Introdução

Os relatórios de presidentes de Província eram documentos produzidos pela administração da província e destinavam-se à Assembleia Provincial com periodicidade anual ou quando havia mudança da presidência (GRIS et al, 2010). Informavam sobre economia, saúde pública, obras, educação, estatísticas e demais assuntos relacionados à administração provincial. Nesta proposta de comunicação, essas fontes foram analisadas, especialmente no que se diz respeito às condições de saúde da população, bem como os dados sobre o número de óbitos arrolados para o Rio Grande do Norte, ao longo do século XIX. É importante destacar que os relatórios, assim como qualquer fonte histórica e demográfica, são passíveis de críticas. Os discursos proferidos pelos presidentes muitas vezes são tendenciosos, a fim de satisfazer interesses pessoais e políticos. Desta forma, foi realizada uma análise crítica sobre as informações podem trazer acerca da saúde pública e da mortalidade do Rio Grande do Norte entre 1835 e 1888. O recorte temporal está associado ao documento mais antigo disponível (1835), seguindo até o final do Império, com a proclamação da república (1889). Os relatórios estão disponíveis entre períodos – 1835-1839, 1841-1863, 1866-1867, 1870-78, 1880, 1882-83, 1885-882 – permitindo captar a discussão e os dados quantitativos sobre saúde e

mortalidade no Rio Grande do Norte, sem intervalos temporais alargados entre os relatos.

Na primeira metade do século XIX, enquanto outras partes do mundo eram acometidas por crises epidêmicas de cólera e febre amarela, o Brasil mantinha o discurso sobre o País ter condições de salubridade satisfatória, apesar da incidência de epidemias de varíola desde o período colonial

2 Os relatórios dos presidentes de província do Rio Grande do Norte estão disponíveis online pelo site: >http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/rio_grande_do_norte< Acesso em: 02 fev de 2018.

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(CHALHOUB, 1996). O mesmo discurso também estava presente no Rio Grande do Norte.

Mas partir da segunda metade do século XIX, a Província foi atingida por surtos epidêmicos de cólera-morbo, febre amarela e varíola (SANTOS, 2013). Segundo Avohanne Araújo (2015), o Império do Brasil sofreu constantes epidemias e, nesse contexto, uma série de medidas foi implementada para combatê-las. Tais medidas foram introduzidas inicialmente na Corte, e depois nas demais províncias do Império.

No Rio Grande do Norte, os médicos do “partido público”, pagos pela gestão provincial, tinham a responsabilidade de propagar a vacina contra a varíola por meio da inoculação da população, assim como socorrer, emergencialmente, os doentes atingidos pelas epidemias de cólera, febre amarela e varíola. Além disso, a Inspetoria de Saúde Pública da Província3 ficou

responsável por fiscalizar o exercício médico e farmacêutico. Porém, conforme Maria Regina Mattos (1985), a ação do governo provincial não passou da contagem das vítimas, pois eram precárias as condições de atendimento médico à população. Segundo a autora, a atuação do médico do partido público era limitada, uma vez que havia a dificuldade de atingir áreas carentes do interior em curto espaço de tempo, além de o conhecimento científico oferecido na época ser insuficiente.

Com base nos relatórios referentes ao Rio Grande do Norte, pretende-se explorar a questão da saúde e mortalidade da população daquela Província, integrada na discussão mais ampla que se desenvolveu nas diversas Províncias do Império Brasileiro sobre a salubridade pública e higiene e como tais medidas impactaram (se impactaram) no cotidiano dos distintos segmentos populacionais.

Métodos

A partir da análise crítica dos discursos proferidos pelos presidentes de província, exploram-se os dados quantitativos que esses documentos trouxeram

3 A Inspetoria de Saúde Pública do Rio Grande do Norte tinha como base o decreto aprovado em 1850 da criação da Junta Central de Higiene Pública do Brasil (ARAÚJO, 2015).

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sobre a saúde e mortalidade da população. Procura-se identificar a possível existência de crises de mortalidade, provocadas pelas doenças infectocontagiosas que estavam disseminadas no território do Rio Grande do Norte ao longo do século XIX. Do ponto de vista metodológico, alguns autores que analisam a mortalidade em perspectiva histórica, como Jacques Dupâquier, Massimo Livi Bacci, Lorenzo Del Panta, que desenvolveram procedimentos para calcular a intensidade das crises de mortalidade (Dupâquier, 1979; Del Panta, 1980; Livi-Bacci, 1984)4. Nesta proposta de comunicação, ainda não foi aplicado

nenhum destes métodos de identificação de crises de mortalidade, mas pretende-se aplicar no desenvolver do estudo. A decisão sobre a escolha será feita, levando em consideração a qualidade dos dados, muitos deles provenientes dos relatórios de presidentes da Província, que estão sendo analisados neste momento.

Resultados

A Tabela 1 demonstra o número de óbitos do Rio Grande do Norte em 1839, 1845, 1846 e 1852. Os resultados permitem analisar a variação do volume de óbitos na população, o que pode indicar a presença de crises de mortalidade. Partindo dos dados relativos ao ano de 1839, o volume de óbitos era bem mais baixo, se comparado aos anos seguintes, tanto para a população livre como para a escrava. Em 1845 e 1846 o volume de óbitos cresce consideravelmente nas duas populações. Mas para uma análise eficaz sobre o impacto da mortalidade na população, é preciso atentar para o total da população indicada nos relatórios (Tabela 2) e a Taxa Bruta de Mortalidade (Tabela 3).

Tabela 1 - Óbitos, Rio Grande do Norte, 1839-1852

Livres Escravos

Ano Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total

1839 362 328 690 53 38 91

1845 1086 980 2066 136 144 280 1846 1092 985 2077 159 140 299 1852 853 962 1815 127 129 256

4 De acordo com a concepção dos autores, é possível identificar uma crise de mortalidade quando há modificação de curta duração do regime normal de mortalidade, em que reduz o efetivo das gerações, não sendo mais possível garantir a sua reprodução (DEL PANTA, L. LIVI-BACCI, M., 1979).

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Fontes: Relatórios de presidentes da província do Rio Grande do Norte, 1839, 1845, 1846 e 1852.

Na Tabela 2 apresenta-se o total populacional dos anos de 1839, 1846 e 1872. Infelizmente não há informações de população para os anos de 1845 e 1852. Por sua vez, em 1872 também não dispomos de informações de óbitos. Desta forma, só foi possível realizar o cálculo da TBM para o ano de 1839 e 1846, os resultados são apresentados na Tabela 3.

Tabela 2 - População, Rio Grande do Norte, 1839, 1846 e 1872

Livres Escravos Total

geral Ano Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total

1839 36619 33722 70341 4974 5215 10189 80530 1846 65309 66108 131417 8675 9478 18153 149570 1872 103984 99446 203430 6133 6009 12142 215572 Fontes: Relatórios de presidentes da província do Rio Grande do Norte, 1839 e 1846; Censo Imperial de 1872.

Tabela 3 - TBM (Taxa Bruta de Mortalidade, Rio Grande do Norte, 1839 e 1846

Livres Escravos Total

geral Ano Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total

1839 9,89 9,73 9,81 10,66 7,29 8,93 9,70 1846 16,6 14,8 15,7 15,7 15,2 15,4 15,7 Fontes: Relatórios de presidentes da província do Rio Grande do Norte, 1839 e 1846.

Sabe-se que a TBM é uma medida sintética de relação entre o total de óbitos e o total de população. Representa o risco de morrer de cada pessoa de determinada população em determinado ano (CARVALHO, et al., 1980). Os resultados obtidos revelam problemas com as fontes, que podem ter sido gerados tanto pelo subregistro do número de óbitos, quanto pela sobrenumeração da população total.

Alguns estudos têm avançado na discussão das Taxas Brutas de Mortalidade, para o caso brasileiro, especialmente para os finais do século XVIII e século XIX. Lembra-se aqui o recente número temático da Revista Brasileira de Estudos de População, sobre a demografia no período colonial e primeira metade do século XIX. Há tentativas de calcular essa taxa, apesar dos problemas inerentes às fontes, para diversas partes do território. Entre os

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trabalhos apresentados nesse número temático, destaca-se aquele relativo ao Rio Grande de São Pedro (região meridional do Brasil) em que as taxas brutas de mortalidade calculadas para o período entre 1780 e 1810 ficaram entre 21 e 29 por mil (Scott, 2017:627). Embora elas se refiram ao final do período colonial, estão dentro dos parâmetros indicados por José Eustáquio D. Alves para o Brasil em 1872, ano do primeiro recenseamento geral do Império, que ficavam abaixo de 30 por mil.

Os dados trazidos por José Eustáquio D. Alves (2008), sobre a estimativa das taxas brutas de mortalidade para o Brasil, para o ano de 1872, podem ser um bom ponto de partida para refletir criticamente sobre os dados trazidos nos Relatórios de presidentes de província, não apenas para o caso do Rio Grande do Norte, como para outras províncias do Império, como a região estudada por Nikelen Witter, que explorou a questão da saúde pública no Rio Grande do Sul, ao longo do século XIX (Witter, 2007).

Fonte: Alves, 2008.

Infelizmente, temos poucas informações sobre o impacto do cólera e da febre amarela sobre a mortalidade no Rio Grande do Norte, e mesmo sobre as doenças que passaram a ser reportadas nos relatórios a partir da segunda metade do século XIX5. Certamente, como mencionamos, devido ao

5 Para mais informações sobre o assunto consultar: DIAS, D. J. C., O comportamento da mortalidade no Rio Grande do Norte entre 1801 e 1870. Dissertação, mestrado, 1 jul, 2016 e ARAUJO, A. I. C. Curar, fiscalizar e sanear: as ações médico-sanitárias no espaço público da cidade de Natal (1850-1889). Dissertação, mestrado, 22, jul. 2015.

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registros das informações sobre as mortes, seja devido aos problemas de sobreregistro para determinar-se a população total.

Especialmente no que diz respeito ao volume de óbitos no momento das epidemias, é possível conjecturar que o número tenha sido tão alto, que os párocos ou as autoridades laicas não tenham tido condições de registrar antes do enterramento. Um caso concreto se refere à Freguesia da madre de Deus de Porto Alegre, província do Rio Grande do Sul, na época da epidemia de cólera (1855-56). No quadro estatístico que fazia referência aos casamentos, batizados e óbitos da província (de 01 de julho de 1855 a 30 de junho de 1856) havia a seguinte observação: “para a Madre de Deus não se compreende os óbitos no mapa do segundo semestre de 1855 porque com a cholera morbus no último mês não se fizeram os devidos assentamentos na parochia. Secretaria da Presidencia, Porto Alegre, 22 de outubro de 1856”.

Além disso, em alguns relatórios, os presidentes da província informavam que algumas freguesias não enviavam os mapas para a organização da estatística. No entanto, esses dados podem ser obtidos a partir do cruzamento quantitativo com outras fontes.

Como as epidemias de febre amarela e de cólera só surgiram depois de 1850, é possível que o impacto maior do volume de óbitos de 1846 seja devido à varíola. Analisar o impacto de cada doença (varíola, febre amarela e cólera) na mortalidade da população antes e depois de 1850 é um objeto de pesquisa interessante e desafiador, pois, o tom, dos discursos dos presidentes nos relatórios muda, indicando que a situação da Província se tornara crítica, a partir da segunda metade do século XIX, por causa da febre amarela e cólera, especialmente.

Não apenas no Rio Grande do Norte, mas em todo o Brasil, o impacto causado pela febre amarela e pelo cólera gerou uma abertura e incentivo para a implantação de políticas destinadas à melhoria da Saúde Pública no Brasil (WITTER, 2007). De todo modo, o impacto da varíola pode ter sido bem mais forte e recorrente, uma vez que esteve sempre presente nos relatórios, antes e depois de 1850.

Sobre a epidemia da cólera, em 1856, têm-se informações sobre o número de óbitos em oito freguesias. Conforme descrito no próprio relatório, não

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foi possível obter os dados necessários para a organização da estatística de óbitos porque o restante das freguesias não enviaram os mapas. Isso reforça a questão da dificuldade de examinar o impacto das epidemias na população, já que a presidência da província não recebia a totalidade das informações para o conjunto de freguesias A Tabela 4 apresenta o registro de 512 óbitos ocasionados pelo cólera. Se houvesse informações de toda a província, certamente esse número aumentaria, tendo em conta o impacto desta doença na população das diferentes províncias do império que vivenciaram a chegada da doença nos meados do XIX. Esclarecedora, nesse sentido, é a análise apresentada por Nikelen Witter (2007) sobre a entrada do cólera no Brasil, através de Belém, e sua disseminação para outras regiões do Brasil.

No caso do Rio Grande do Norte, os dados apresentados na Tabela 4 são relativos a freguesias rurais, sendo que a metade localizava-se no interior do Rio Grande do Norte (Assú, Acari, Mossoró e Príncipe). Arês era mais próximo do litoral e, em relação às demais, ainda devemos verificar a localização exata. É importante esse recorte espacial das epidemias, pois pode indicar se a localização geográfica influenciou na maior ou menor intensidade das doenças, conforme sua posição estar mais próxima do litoral ou, no interior, mais longe dos portos, principal porta de acesso da doença.

Tabela 4 – Óbitos ocasionados pela cólera, por oito freguesias, Rio Grande do Norte, 1856.

Freguesias Número de mortes

Campo Grande 1 Papari 36 Assú 49 Arês 53 Acari 68 Mossoró 75 Príncipe 109 São Gonçalo 121 Total 512

Fonte: Relatório de presidente da província do Rio Grande do Norte, 1856.

Os resultados apresentados até aqui são exploratórios. Este exercício de conhecer as possibilidades do uso dos relatórios para o estudo da saúde pública da província é um passo inicial essencial para avançarmos para um de um estudo mais amplo sobre a região. Em etapas futuras, esses dados serão

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sistematizados/cruzados com outras fontes, como os registros paroquiais, atendendo a disponibilidade das séries de assentos de óbito para as freguesias potiguares.

Discussão

Assim como no Brasil nas primeiras décadas do século XIX, no Rio Grande do Norte também foi difundido o discurso de boa salubridade, conforme o relato do vice-presidente da província, Dantas Pinajé, em 7 de setembro de 1838:

Esta Provincia, Senhores, situada debaixo de uma zona benigna, e bafejada da mais salubre atmosfera, não se acha, como outras partes do Globo, infecionada d’esses ares malignos, e pestiferos, que derramao sobre os viventes toda sorte de epidemias, e molestiascronicas, e contagiosas, que tem levado à sepultura em outro solo milhares de habitantes. Todavia a peste das bexigas costuma de quando em quanto visitar nossa Provincia, e por cada vez condennar a morte centenares de vidas (BRASIL, RELATÓRIO DE PRESIDENTE DE PROVÍNCIA, 1838).

Apesar do constante aparecimento de surtos de varíola, que atingiram o Rio Grande do Norte desde os tempos coloniais, o vice-presidente ainda destacava a posição da província em comparação a outros lugares que já tinham sido atingidos por graves epidemias. Mas, a partir de 1856, os discursos presentes nos relatórios do presidente de província mudaram de tom e o discurso da insalubridade entrou em cena na província do Rio Grande do Norte, conforme o trecho assinado pelo presidente Antônio Bernardo de Passos:

Hoje a ninguém he desconhecido na província o seu mao estado de salubridade: muitos viram finarem-se entes a quem mais presavam do que a própria vida, e todos tem ainda o coração sobresaltado pelo futuro, que fúnebre ameaça cidades, villas e outros lugares mais ou menos povoados (BRASIL, RELATÓRIO DE PRESIDENTE DE PROVÍNCIA, 1856).

Segundo Araújo (2015), o mau estado de salubridade era potencializado pela atuação de poucos profissionais de saúde na Província. Conforme o relatório apresentado pelo presidente José Joaquim da Cunha de 1852, só existiam dois médicos que atuavam em toda a província do Rio Grande do Norte (BRASIL, RELATÓRIO DE PRESIDENTE DE PROVÍNCIA, 1852, p. 7). Além disso, o porto de Natal também apresentava constante risco de entrada de

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doenças epidêmicas (ARAÚJO, 2015). Partindo da concepção de contágio das doenças, toda a rotina do porto foi alterada com o intuito de manter os objetos e pessoas isolados. Criou-se as quarentenas, locais para o isolamento dos doentes, para impedir que as doenças se espalhassem entre a população (ROSEN, 1994). Outros pontos que também contribuíram para o estado de insalubridade da Província foram a falta de limpeza das ruas, dos cemitérios, dos hospitais e dos matadouros (ARAÚJO, 2015).

Nos discursos dos presidentes de província foi possível identificar a tentativa de justificar as péssimas condições de saúde pela falta de médicos, ineficácia da vacina e presença da medicina popular, conforme foi escrito no relatório de 1836, pelo presidente João José Ferreira de Aguiar:

Ter-mosannualmente uma perigoza visita das crueis bexigas. (...) A pezar de que eu vos acabe de dizer, que a Provincia não é atacada de molestias contagiosas, com tudo, deveis estar certos de que no curso da existencia o omemsoffre muitas doenças, e em todo o resto da Provincia, não existe um só Medico, ou Cirurgião, que ministre os socorres da arte, seguindo-se d’esta falta os mais funestos resultados, por isso que os curiozos em Medicina são um flagello mais timivel do que o proprio mal que se soffre (BRASIL, RELATÓRIO DE PRESIDENTE DE PROVÍNCIA,1836, p. 7).

São poucos os relatórios disponíveis que apontam as condições ambientais como importantes para o aparecimento de surtos epidêmicos. Um exemplo é o relatório de 1847 escrito pelo presidente Cazimiro José de Morais Sarmento:

He incontestavel que o clima d’esta província hesalutifero, tanto que de maravilha apparecem epidemias matadoras, como acontece em outras partes. Esta capital tambemhe sadia, mas muito mais saudavel se tornaria: 1º, se porventura o matadouro publico fosse removido do lugar em que está estabelecido a sota-vento da eidade (...) 2º, se cessasse a perniciosisssma usança de enterrar os cadáveres nas igrejas, ou pelo menos se as sepulturas fossem dobradamente profundas 3º, se fosse desecado o pantano da campina da ribeira, cujas agoas rebalsadas e impregnadas de matérias vegetaesputrefactas fornecem exalações productivas de febres intermittentes, e de outras muitas enfermidades que se observam n’aquelle bairro da cidade: 4º finalmente, se fosse não destruido, mas desbastado, o denso bosque de coqueiros que circumda o mesmo bairro (...) Além do que fica ponderado, o calçamento e alinhamento das ruas, e o melhoramento das casas, que, baixas, acanhadas, desabrigadas e pouco asseiadas, como são em geral, não

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podem deixar de causar molestias, como em verdade causam (BRASIL, RELATÓRIO DE PRESIDENTE DE PROVÍNCIA,1847, p.11-12).

Ademais, matadouros públicos, o enterro de cadáveres nas igrejas, águas poluídas, rua sem calçamento, falta de saneamento básico, habitações inadequadas são exemplos de lugares insalubres citados no relatório que favoreciam o aparecimento de doenças infecciosas. O relatório de 1851 escrito pelo presidente José Joaquim da Cunha comenta a situação do bairro da Ribeira em Natal, na época considerado um foco de infecção das epidemias, devido às péssimas condições de higiene, má alimentação e pobreza do lugar. Conforme consta:

A epidemia da bexiga, que ultimamente grassou nesta Cidade, nada prova contra a bondade do seu clima; por quanto é facto verificado que ella fora importada de Pernambuco por um soldado, que de lá viera (...) deixou logo o bairro alto desta Cidade, depois de ter causado alguns estrados, para ir-se aninhar na campina da Ribeira, lugar pouco arejado (...) lugar em fim onde morão a pobreza, a indigencia, e a miséria, com todos os seus horrores; portanto é facil de achar-se na má alimentação desses miseraveis (...) sob a direcção do Medico do Partido Publico, a peste logo declinou, e a mortalidade diminuio consideravelmente pela regularidade do tratamento farmacêutico dietetico e hygienico (BRASIL, RELATÓRIO DE PRESIDENTE DE PROVÍNCIA,1851, p. 11).

Araújo (2015) afirma que era débil a fiscalização das autoridades municipais e provinciais, juntamente com a Inspetoria de Saúde Pública para com os matadouros públicos e a qualidade dos gêneros alimentícios. A pouca documentação existente não respondia se essa fiscalização era realizada de maneira regular. Além disso, na Capital da Província, assim como em outras localidades, havia o desafio de lidar com as péssimas condições sanitárias das ruas e bairros.

Dessa forma, as condições de saúde do Rio Grande do Norte no século XIX não eram diferentes das demais províncias brasileiras. O estado de salubridade da província era precário, com condições sanitárias irregulares que facilitavam a propagação de doenças infecciosas (ARAÚJO e MACEDO, 2011). Neste contexto, em setembro de 1850, a febre amarela foi registrada no Rio Grande do Norte (em Natal, Assú e outras localidades do interior) (FRANCO,

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1969). Em 1851, segundo o presidente José Joaquim da Cunha, a febre amarela chegou em setembro de 1850 na província e durou cerca de 10 meses. Conforme afirma, os locais mais atingidos foram São José de Mipibú (localizado a 38 km da Capital) e Natal (área urbana). Além do mais, apontou que o número de óbitos ocasionados pela febre amarela foi em torno de 200.

No relatório de 1856 consta a presença da epidemia de cólera na província do Rio Grande do Norte, relatada pelo presidente provincial Antônio Bernardo de Passos. Apesar das medidas tomadas pelo governo dessa província, em deter os navios que viessem do Pará, local onde se iniciou a disseminação da cólera no Brasil, a doença acabou por se manifestar na província. Segundo Cascudo (1984), em 1856 existia em Natal apenas um médico e uma botica e o total de óbitos causado pelo cólera foi de 2.563.

Nesse sentido, a disseminação de doenças infectocontagiosas impulsionou a criação do hospital e do cemitério, porém, essas medidas foram insuficientes para atender toda a população da província. As medidas tomadas pelas esferas políticas pautavam-se em ações emergenciais em momentos de seca e de propagação de epidemias, com ações de envio de poucos médicos e de alguns itens de alimentação. Dessa forma, os relatórios demonstraram que as condições de saúde do Rio Grande do Norte no século XIX não eram diferentes das demais províncias brasileiras. O estado de salubridade da província era precário, com condições sanitárias irregulares que facilitavam a propagação de doenças infecciosas.

Considerações Finais

Pode-se concluir que o impacto causado pela febre amarela e pelo cólera, a partir de 1850, gerou uma abertura e incentivo para a implantação de políticas destinadas à melhoria da Saúde Pública no Brasil. O Rio Grande do Norte fez parte desse contexto e foi somente a partir de 1850 que a administração provincial tomou medidas visando atender as questões e demandas em relação à saúde pública. Dentre as medidas destacam-se: a criação de cemitérios públicos, o Hospital de caridade e criação de um cargo de médico público (médico do partido). Apesar que mesmo antes da segunda metade do século XIX, a população da Província sofria impactos em decorrência dos surtos

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epidêmicos, sobretudo de varíola. Essa questão suscita a necessidade de analisar o impacto de cada doença (varíola, febre amarela e cólera) na mortalidade da população antes e depois de 1850. De todo modo, o impacto da varíola pode ter sido bem mais forte e recorrente, uma vez que esteve sempre presente nos relatórios dos presidentes da Província, antes e depois de 1850.

Este exercício de conhecer as possibilidades do uso das informações estatísticas disponíveis nos relatórios para o estudo da saúde pública e da mortalidade na província é um passo inicial para uma análise mais ampla sobre a população na província do Rio Grande do Norte na segunda metade do século XIX. Em etapas futuras, esses dados serão sistematizados/cruzados com outras fontes, como os registros paroquiais, atendendo a disponibilidade das séries de assentos de óbito para as freguesias potiguares.

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Referências

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