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Saúde Global: o processo saúde-doença e as práticas de cuidado em escala mundial

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TÍTULO DO TRABALHO - Saúde Global: o processo saúde-doença e as práticas de cuidado em escala mundial.

RESUMO - A globalização influencia em processos de saúde-adoecimento e na estruturação de práticas assistenciais mundiais. Quando já é realidade a interconectividade global da indústria alimentícia, a existência de doenças transnacionais, a criação internacional de padrões de saúde, a multiplicação de práticas clínicas em escala planetária, há uma constatação: novas exigências estão dadas. Nesta perspectiva, o presente estudo tem como objetivo geral apresentar de que maneira o processo de globalização mantém relação intrínseca com as condições de saúde, de adoecimento e a forma de cuidado à população, descrevendo alguns dos novos arranjos assistenciais globais. Como metodologia foi utilizada a revisão narrativa de literatura sobre globalização e saúde, explorando as principais produções da área que evidenciam situações nas quais esses processos estão inter-relacionados. Os resultados apontam que há uma crescente associação entre transtornos mentais comuns e problemas psicossociais relacionados aos novos padrões de interação social, que tem ocasionado dependências obsessivas por tecnologias digitais; multiplicação de personalidades; experiências de isolamento e sentimentos de desconexão; crescente número de laços fracos; aumento do número de intimidades móveis e à distância gerando sentimentos de solidão e abandono. Por outro lado, estão em voga: aumento das migrações médicas e das pesquisas clínicas transnacionais; a otimização do cuidado por telessaúde, robótica, tecnologias digitais e amplo investimento em biotecnologias. Como conclusão, uma maior complexidade e novos dilemas. O aprimoramento das normativas internacionais em saúde parece fundamental. E, permanece como questão recorrente para a práxis do cuidado em saúde: o saber lidar com pessoas face a face para a construção de um projeto coletivo e civilizatório.

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2 1 Introdução

Este texto tem o objetivo de apresentar de que maneira o processo de globalização mantém relação intrínseca com as condições de saúde, de adoecimento e a forma de cuidado assistencial à população. Como linha de raciocínio discute-se como as novas dinâmicas sociais globais influenciam direta ou indiretamente no processo saúde-doença e na produção de práticas assistenciais e tecnológicas de cuidado na contemporaneidade.

Inicialmente, apresenta-se uma breve explanação sobre globalização; na sequência, discute-se a expansão de determinadas doenças para o além-fronteiras das nações, bem como o aumento de determinados tipos específicos de adoecimento, para, ao final, debater sobre alguns dos novos arranjos assistenciais globais, analisando riscos e dilemas éticos.

2 Metodologia

Como metodologia foi utilizada a revisão narrativa de literatura sobre globalização e saúde, explorando as principais produções da área que evidenciam situações nas quais esses processos estão inter-relacionados, buscando desvelar dinâmicas e tendências individuais e coletivas da atualidade.

Para tanto, buscou-se bibliografia nacional e internacional atualizada, que revelasse dinâmicas transnacionais das práticas de tecnologia e cuidado em saúde à luz das novas dinâmicas sociais globais. Adotou-se referência teórica que explora perspectivas de análise dos riscos e dos dilemas éticos que o mundo globalizado enfrenta no campo da saúde.

3 Resultados

3.1 Sobre a Globalização

De acordo com Darren J. O’Byrne e Alexander Hensby (2011), a globalização está relacionada a um duplo processo: a interconectividade das pessoas e a consciência global. Nos dias de hoje, consideram que a modernidade tem catalisado o fenômeno da globalização, através do crescimento desta compreensão global das sociedades.

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3 Ou seja, o que há de novo na atualidade é a consciência bem como as ações voltadas para interesses globais, com caráter multidimensional, associadas às novas formas de relacionamentos interpessoais e interinstitucionais.

Interferências locais com reflexos mundiais, dissoluções de fronteiras políticas e econômicas, disputas sobre o papel do Estado-nação, crescimento das instituições com poderes transnacionais e aumento do que se pode chamar de elites globais são aspectos que permeiam o atual processo de globalização (idem, 2011).

É interessante ressaltar, no entanto, que a conceituação de globalização não é marcada por uma única visão e compreensão. Há discordâncias quanto à sua cronologia e impacto na sociedade. Apesar disso, é possível afirmar que se trata de um processo histórico dotado de múltiplas dimensões (MARTINS, 2017).

Neste raciocínio, pode-se dizer que a globalização inclui novas dinâmicas de organização das instituições políticas, econômicas, culturais, entre outras, e tem o potencial de afetar a vida cotidiana dos indivíduos (TURNER; KHONDKER, 2010 apud MARTINS, 2017).

No tocante às mudanças nas relações humanas, Elliott e Urry (2010) referem que há uma transformação nas dimensões do tempo e do espaço entre as pessoas e os lugares, e entre organizações, instituições, nações e culturas. Este conjunto de transformações tem relação com a expansão da escala de velocidade e a magnitude crescente de fluxos transnacionais de pessoas, objetos, informações, mensagens e imagens sobre os padrões de interação social. Como uma consequência significativa destas transformações globais, os autores apontam a morte da distância (idem 2010). O advento de tecnologias de comunicação cada vez mais móveis e portáteis – as mobilidades miniaturizadas (idem, 2010), as redes sociais virtuais, o aumento dos fluxos migratórios e do turismo, a internacionalização das atividades acadêmicas e de muitas empresas são fatores que propiciam as modificações de tradições seculares da vida social.

Alguns autores têm estudado as consequências a partir desta compressão espaço-tempo, fruto do atual processo de globalização, na vida íntima e relacional das pessoas. Segundo Elliott e Lemert (2009), a globalização mudou emocionalmente os indivíduos e a textura da vida na atualidade.

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4 Elliott e Urry (2010) descrevem três principais pontos de mudanças: nas estruturas tradicionais da intimidade, na vida familiar e no reinventar da vida pessoal. Intimidades móveis e muitas vezes à distância, vidas familiares compostas por arranjos os mais diversificados e usualmente menores do que no passado, a necessidade crescente de empreender a própria vida à parte dos coletivos são características deste processo e têm gerado um espaço propício à conformação de outras formas de viver.

Para além do potencial fascínio que é viver no mundo globalizado, onde informações, pessoas e lugares podem se conectar mais facilmente que outrora, é possível afirmar que a globalização tem modificado inclusive a visão das pessoas sobre elas mesmas e sobre o mundo e, como decorrência, isso tem afetado as suas ideologias, mentalidades, disposições e afetos (ELLIOTT; LEMERT, 2009).

Na sociedade que cultua os valores do “faça você mesmo”, onde as coisas têm cada vez menos durabilidade e a única certeza é a do impermanente, características como o individualismo e o isolamento emocional dos indivíduos passam a ser apontados como consequências desta nova forma de estar no mundo. Este contexto parece gerar um ambiente propício para ansiedades, depressões, medos e inseguranças (idem, 2009).

A globalização em andamento constitui uma realidade que deve ser observada através de múltiplos olhares, uma vez que há modos de vida diferentes dos do passado. Analisar implicações mais gerais que este processo traz para a organização mais ampla da sociedade é tão importante quanto analisar os custos emocionais ou da vida privada.

O fato é que não é mais possível pensar apenas intramuros, ou seja, dentro de uma realidade somente nacional, pois é imprescindível assumir a realidade além-fronteiras do mundo atual (TURNER; KHINDLER, 2010). É nesta linha de pensamento que este texto aprofunda a inter-relação de globalização e saúde.

Em um momento histórico em que já é realidade a interconectividade mundial da indústria alimentícia, a existência de doenças transnacionais, a criação internacional de padrões de saúde e beleza, a multiplicação de práticas e tecnologias clínicas de caráter cada vez mais globais e a macroindústria farmacêutica, há uma certeza: novas exigências estão dadas para os indivíduos e para a sociedade.

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5 Soma-se a isto a atualização constante das formas de intimidades, a modificação dos arranjos familiares e o crescente culto à individualização, com o paradoxal aumento de uma percepção de um mundo global, abrindo novas possibilidades, cujos desdobramentos futuros não são claros. Cumpre aprofundar os estudos sobre as formas como o atual processo de globalização tem influenciado no processo saúde e doença da população.

É com esta compreensão sobre globalização que o texto está delineado. A partir do entendimento de que existem macros e microfenômenos que moldam de forma mais ampla a sociedade e, ao mesmo tempo, influenciam a vida cotidiana e íntima dos indivíduos. Apresentar uma visão panorâmica sobre a inter-relação de saúde e globalização é tentar refinar o olhar sobre processos e análises já existentes, porém acrescido de outras perspectivas.

3.2 Saúde e doença para além-fronteiras

As doenças não conhecem fronteiras. Não é mais interessante estudar a doença de forma exclusivamente nacional porque o caráter da doença e seu tratamento são cada vez mais globais (TURNER; KHINDLER, 2010).

De forma sintética, pode-se afirmar que (TURNER; KHINDLER, 2010; OMS, 2014; OMS, 2015; SCHEFFER; ROSENTHAL, 2017):

• Há um envelhecimento populacional global associado a altas cargas de doenças crônicas não transmissíveis, como hipertensão, diabetes e obesidade;

• Verifica-se a persistência de doenças transmissíveis com profilaxia e tratamento já descobertos há algum tempo, como tuberculose e hanseníase, que ainda não estão controladas ou eliminadas, especialmente em países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos;

• Há uma permanência e até o surgimento de novas epidemias mundiais que desafiam internacionalmente as instituições de saúde, tais como o AH1N1 e o Zika Vírus mais recentemente, o Ebola ou ainda a dificuldade de diminuição de casos do HIV/Aids, por exemplo, em alguns países, como o próprio Brasil;

• Constata-se um crescente padrão de adoecimento, fruto das condições da vida moderna, seja em relação à violência, ao trânsito, ao narcotráfico, seja a acidentes ou

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6 ao estresse da vida cotidiana, gerando homicídios, suicídios, doenças de trabalho, depressão, ansiedades e problemas de saúde mental e psicossocial em geral.

Sobre este último, cabe complementar que (ELLIOTT; LEMERT, 2009; ELLIOTT; URRY, 2010; BORJA ET AL., 2015):

• Existe uma crescente associação entre problemas de saúde mental e psicossociais relacionados aos novos padrões de interação social, que tem ocasionado dependências obsessivas por tecnologias digitais, multiplicação de personalidades – reais e virtuais ‒, experiências de isolamento e sentimentos de desconexão com a própria vida;

• Tem-se evidenciado um crescente número de laços fracos entre os indivíduos, gerados pelos novos modos de relacionamentos ‒ especialmente através das redes sociais virtuais, que permitem contatos rápidos, fugazes e quase sempre superficiais; • Observa-se um aumento do número de intimidades móveis e à distância, em que relacionamentos amorosos e familiares acontecem entre pessoas que vivem em lugares diferentes, abrindo espaço para novas formas de amor, como o “amor online”, e novos arranjos de famílias, como aqueles que dividem duas casas em cidades diferentes. Este contexto tem propiciado o surgimento de novos sentimentos entre os pares, como inseguranças, dúvidas, solidão, falta de encontros físicos e presenciais, entre outros;

• Há evidência cada vez maior do efeito adverso da intensa mobilidade atual de pessoas, imagens e objetos, com a consequente imobilidade forçada ou obrigatória de grupos de indivíduos que, para garantir a mobilidade de outros, mantêm-se em estado estacionário, gerando sentimentos de ansiedade, desconexão e abandono. Entretanto, não são apenas as doenças que desconhecem as fronteiras. A própria saúde, ou o entendimento sobre ela, também ultrapassa fronteiras. Portanto, se é relevante observar as enfermidades, é igualmente necessário perceber que a própria condição de saúde é objeto de influência global.

Padrões de beleza e estética têm sido cada vez mais produzidos internacionalmente, o conceito de vida saudável muitas vezes é modulado pelas academias de ginásticas espalhadas em todo mundo, os alimentos e as bebidas têm sido padronizados por pirâmides alimentares com poucas diferenças entre as nações,

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7 e o próprio sentimento de infelicidade é algo a ser apagado e substituído pela ditadura do “sorriso” ou da felicidade como sinônimo de saúde.

Há ainda o que alguns estudos demonstram: estados fisiológicos que em outros tempos seriam considerados normais, atualmente são elevados ao status de doença, haja vista serem detectados por meio de exames e procedimentos tecnológicos disponíveis na contemporaneidade. São os chamados “pacientes sem necessidades”, ou, como a literatura crítica da saúde tem denominado, sobrediagnósticos e sobretratamentos (WELCH, 2011).

Este cenário bastante complexo de doenças transnacionais, novas formas de adoecimento e padrão de saúde modulados internacionalmente evidencia a coexistência de várias camadas nesta correlação entre saúde e globalização. Há em um mesmo território tanto as doenças características de ambientes de baixo desenvolvimento social e econômico, quanto aquelas que são próprias da sociedade contemporânea, aliadas a um imaginário social mais amplo sobre o que é ter e como obter saúde.

Todos os fatos retratados, sejam os obtidos pela estatística e epidemiologia ou aqueles cujos conteúdos empíricos colocam-se acima da dúvida razoável, são constituintes atuais do processo de globalização. Estudar saúde e doença além-fronteiras possibilita, assim, perceber padrões gerais globais e uniformidades na vida coletiva.

Este conjunto de fatos está correlacionado com outros fenômenos também existentes. Se saúde e doença habitam corpos, e estes corpos são móveis, em deslocamentos cada vez mais intensos ou cada vez mais estacionários, outro conjunto de fenômenos passa a existir.

A medicina e as ciências da saúde em geral estão sendo remodeladas, inovadas e reinventadas a partir desta complexa realidade. Apresentar estas dinâmicas atuais possibilita complementar a análise acerca da inter-relação de saúde e globalização.

3.3 Alguns dos novos arranjos assistenciais globais

Constituem exemplos do que se considera como novos arranjos assistenciais globais: o movimento que se intensificou na sociedade contemporânea, conhecido

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8 como o turismo médico ou migrações médicas; a globalização de pesquisas clínicas; o advento de tecnologias clínicas como o telessaúde, o telediagnóstico e a robótica; a construção de espaços virtuais de trocas interprofissionais e também para autocuidado dos indivíduos etc.

Esses exemplos citados intensificaram-se e se modificaram na sociedade globalizada, como causa ou consequência de processo de mobilidade atual, dos novos padrões de interação social e do processo de saúde-doença em se vive nos dias de hoje.

Em recente estudo publicado sobre os processos migratórios na Ásia, a pesquisadora Andrea Whittaker (2018) evidenciou que há um número crescente de pessoas em todo o continente viajando através das fronteiras transnacionais para buscar cuidados de saúde os mais diversificados possíveis, em serviços públicos ou privados.

Segundo Whittaker, este fenômeno, conhecido como migrações médicas, não é um evento singular, pois os fluxos de pessoas e as paisagens etnográficas de cuidados biomédicos são altamente complexos, multidirecionais e divididos por múltiplas diferenças de classe, etnia, corporeidade, motivações e desejos. Não necessariamente se acha relacionado exclusivamente às necessidades e ofertas de serviços de saúde, envolvendo os processos de mobilidade em geral.

Ao observar que os pacientes móveis são trabalhadores cosmopolitas, refugiados, imigrantes legais e ilegais, aposentados, profissionais e equipes de saúde que atravessam não apenas as distâncias geográficas, mas diferentes sistemas de saúde, sistemas regulatórios, sistemas econômicos dispares, culturas e línguas diferentes, a pesquisadora constata a multidimensionalidade e a inter-relação de globalização e saúde, o que reforça a necessidade do olhar além-fronteiras.

No final do seu texto, a pesquisadora complementa que compreender o fenômeno das migrações médicas possibilita rastrear as desigualdades que moldam o acesso à assistência médica a nível global e regional. Seguir o movimento dos indivíduos possibilita ver os movimentos regulatórios, os investimentos médicos do capital privado, a medicina corporativa, os sistemas nacionais de saúde e as iniquidades sociais em saúde.

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9 Ao retratar arranjos atualizados sobre assistência em saúde que ultrapassam fronteiras, a pesquisadora ilustra a conexão entre as pessoas, as instituições e a consciência global. A complexidade observada nestas inter-relações não se restringe ao campo específico da saúde, pois estes indivíduos que viajam em busca de cuidado adentram um circuito transnacional de economia médica.

De acordo com Turner e Khindler (2010), há um desenvolvimento coorporativo importante que busca captar o potencial comercial da saúde e da doença como um processo global de economia médica. É possível perceber esta correlação entre mercado e saúde na pesquisa desenvolvida por Whittaker.

Ao analisar o desenvolvimento das atuais pesquisas clínicas no mundo acadêmico, verifica-se também correlação entre saúde, mobilidade das pessoas, economia médica e globalização. Em artigo de revisão publicado recentemente (Silva RE et al., 2016), observou-se que o fenômeno da globalização das pesquisas clínicas é relativamente recente e que há um aumento significativo destas em países em desenvolvimento.

Os dados deste artigo mostram que entre os anos de 2005 e 2012 houve um maior crescimento médio anual de realização de pesquisas clínicas nas regiões asiáticas (30%), seguida pela América Latina e Caribe (12%), em detrimento da média anual mundial (8%). Evidenciou-se que o maior crescimento médio anual ocorreu em regiões de renda média baixa (33%) e de baixa renda (21%).

As economias emergentes de países como Irã, China e Egito apresentaram o maior crescimento específico. Outros países, como Coreia do Sul, Japão, Índia, Brasil e Turquia, também obtiveram um crescimento importante no período (DRAIN PK et al., 2014 apud SILVA RE et al., 2016). Estados Unidos e países da Europa, apesar de terem o crescimento anual médio inferior no período, destacam-se por serem os detentores dos maiores centros de captação de indivíduos para pesquisas clínicas (SILVA RE et al., 2016).

Estas pesquisas clínicas transnacionais têm relação com a busca das empresas farmacêuticas por novos mercados em saúde. Isso justifica, em parte, o porquê de os centros financiadores das pesquisas se encontrarem em países desenvolvidos, mas terem as fases das aplicações clínicas – os testes finais em humanos ‒ em outros países (idem, 2016).

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Isso se justifica também: pela otimização do tempo, porquanto se “capturam” de

forma rápida os pacientes para testes em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento; nestes, os indivíduos aceitam com mais facilidade participar da pesquisa, pois, por vezes, esta é a única oportunidade de entrarem em contato com uma possível solução clínica para a sua necessidade de saúde; pelos baixos custos para financiadores, além de normas regulatórias mais flexíveis, que tornam o empreendimento de uma pesquisa transnacional vantajoso para as financiadoras (idem, 2016).

Neste contexto, o fenômeno de migração dos pesquisadores ‒ que saem de um país para outro com a finalidade de garantir a sobrevivência de suas pesquisas – é relativamente comum, uma vez que buscam menos restrições normativas e menor custo (TURNER E KHINDLER, 2010).

Ao tomar como exemplo não mais a migração ou a pesquisa transnacional, mas o próprio ato cuidador, que inclui consultas, consultorias, diagnósticos, laudos, cirurgias, procedimentos diversos e até processos educativos, é possível afirmar que estes também são remodelados, considerando tais caraterísticas.

Por meio da telessaúde e da medicina robótica, o uso de tecnologias na saúde, que não é uma novidade, tem alterado as relações cuidadoras, bem como a dinâmica médico-assistencial. Um dos primeiros grandes esforços com o uso de tecnologias em saúde foi a pesquisa e o desenvolvimento da telemetria, realizada pela NASA ‒ Aeronautics and Space Administration ‒ em seu programa de voo espacial, que possibilitou o registro de dados fisiológicos a distância dos astronautas no espaço (ZUNDEL, 1996 apud BARBOSA; SILVA, 2017).

A diferença entre o passado e o presente é a disponibilidade, o acesso, a diversidade de utilização, a multiplicação das tecnologias, a utilidade e a forma como estas tecnologias moldam novas dinâmicas na relação entre indivíduos, profissionais de saúde e pacientes, e também entre os distintos profissionais.

Na atualidade, poder utilizar um aplicativo no celular e obter informações precisas sobre sintomas e tratamento de determinada doença reconfigura todo um conjunto de relações assistenciais. Para os pacientes, as teleconsultas ou as buscas em sites sobre saúde, que aumentam seus conhecimentos, otimizam o tempo e produzem novas formas de ser cuidado. Para os profissionais, as teleconsultorias com outros

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11 profissionais especializados possibilitam sanar dúvidas, realizar o cuidado compartilhado e obter o resultado de laudos a distância (BRASIL, 2012); ou ainda a robótica, que permite a execução de procedimentos com a máxima precisão e otimização do tempo.

O modus operandi na correlação profissional-paciente se modifica. Indivíduos móveis podem continuar a se comunicar com seus médicos mesmo durante longas viagens internacionais; profissionais de saúde podem esclarecer dúvidas com especialistas mesmo que estes estejam em cidades oposta; pacientes podem ampliar seus conhecimentos através de aplicativos de celulares; hipertensos podem ter seu próprio kit de aferição de pressão arterial automatizado; médicos podem aumentar sua precisão cirúrgica mediante equipamentos teleguiados etc.

Novos padrões são criados e recriados nesta complexa rede de pessoas e tecnologias móveis. O próprio ato de comer possibilita sintetizar a análise que está sendo feita. Comer hoje em dia agrega mobilidade, deslocamento, negociação, mercado, tecnologia e novas dinâmicas sociais.

A revolução agrícola e industrial que possibilitou a produção em larga escala dos alimentos teve como constante a compressão do espaço-tempo, o advento de novas tecnologias agrícolas, a mobilidade de pessoas e sementes, a otimização da produção como nunca se viu antes, que culminou na modificação em nível planetário do padrão alimentar das pessoas, ou seja, no âmbito da vida privada.

Todos os fenômenos abordados retratam dinâmicas da sociedade contemporânea. A esfera da vida privada e da vida pública conta com mudanças substanciais. Se não todos, como afirmam Turner e Khindler (2010), uma importante parcela de indivíduos está cada vez mais sofisticada e consciente. Acupuntura, homeopatia, medicina ayurvédica e integrativa, yoga, pilates e movimentos como o slow food estão crescendo.

O acesso às informações, graças às miniaturas móveis ou mobilidades miniaturizadas, através de celulares, smartphones, tablets, ipads, drones associado às facilidades de se percorrer longas distâncias em curtos espaços de tempo, juntamente com o acesso, quase como numa prateleira de mercado, a serviços, procedimentos e intervenções de saúde em ato, são causa e consequência destas novas dinâmicas médicas modernas.

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12 Abarcar a complexidade das dinâmicas atualmente existentes não é simples. À luz da globalização, é possível perceber fluxos que desvelam as dinâmicas sociais. Novas exigências e saberes estão dados. Entretanto, permanece uma questão recorrente para a práxis do cuidado em saúde: saber lidar com pessoas face a face.

Com todo o rol de novas tecnologias de ponta e terapias inovadoras a cada momento, diversidade de medicações, possibilidade de cuidado médico à distância, saúde e mercado em ampla convergência, o limiar entre a função cuidadora que agrega e a distopia está cada vez mais próximo.

São mudanças no seio da sociedade. Riscos, dilemas éticos e de poder surgem. Todos os avanços e as novas formas de mobilidade, conexão, interação e disponibilidade de serviços assistenciais em saúde apresentam riscos para a sociedade. Ademais, os benefícios nem sempre ocorrem para todos.

4 Discussão

4.1Observações sobre riscos em saúde e globalização

Podem-se destacar alguns contrapontos a esse processo de globalização e saúde apontado ao longo do texto.

As migrações médicas possibilitam a autonomia e a liberdade de escolha para buscar novos serviços em diferentes lugares do globo, para aqueles cuja imobilidade é forçada ‒ os pobres, idosos dependentes, trabalhadores precários, entre outros; entretanto, esta autonomia nas escolhas nem sempre é possível e muitas vezes revela-se inacessível.

Para aqueles indivíduos que moram nas regiões onde se recebem muitos pacientes móveis, a aproximação entre saúde e lucro é bastante frequente. Em detrimento dos que podem pagar por serviços de saúde de ponta e mais caros, os indivíduos estacionários ficam sujeitos ao mercado (WHITTAKER, 2018).

Nas pesquisas clínicas que ultrapassam as fronteiras, os riscos estão claros: onde não há regulamentação, a possibilidade de supressão dos direitos à saúde é enorme. A falta de transparência e de garantia em caso de benefícios quanto ao medicamento testado, ao final da participação da pesquisa, tem sido um fato registrado. A

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13 possibilidade de os indivíduos adquirirem o medicamento desenvolvido após o estudo, em caso de benefícios, é sempre incerta ou nula. Nem sempre há a obrigatoriedade dos centros de pesquisa de continuarem a ministrar ou fornecer os medicamentos aos indivíduos (SILVA RE et al., 2016).

Pesquisadores e indústrias, ao promoverem alianças nem sempre saudáveis e éticas para os indivíduos participantes da pesquisa, encontram-se sob o que o Ulrich Beck chama de “arena da subpolítica”, espaço no qual a medicina pode ignorar e evitar instituições políticas e normas para desenvolver sua própria base de poder, operando à margem da lei e das políticas de Estado (BECK, 1992 apud TURNER; KHINDLER, 2010). Da mesma forma, o avanço adquirido com o acesso ampliado às tecnologias acende um alerta: como conciliar inovação tecnológica com um círculo virtuoso de cuidado que não comprometa a ampliação da consciência humana na fase tecno-humanista (HARARI, 2016).

Estes fatos e interconexões apresentam dilemas e riscos importantes para a sociedade. Ressaltar a importância das normativas éticas e dos aparatos jurídicos que preservem a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos, em nível global, torna-se necessário.

Segundo Eduardo Pereira (2016), o processo de globalização, que intensificou as conexões e produziu a instantaneidade na conectividade entre as pessoas, trouxe como corolário novas problemáticas. A diminuição da capacidade dos Estados de gerirem de modo eficaz as condições de saúde está dada, uma vez que os determinantes e condicionantes são cada vez mais supranacionais.

A complexidade na forma como as pessoas têm vivido, adoecido e buscado cuidados em saúde é desafiadora para governos, estados e profissionais de saúde. O enfrentamento requer uma multiplicidade de ações, muitas vezes de caráter global. Neste contexto, Pereira (idem, 2016) aponta a urgente necessidade de revisão e criação de normas com vistas a garantir uma segurança jurídica internacional em saúde. O campo do conhecimento chamado de diplomacia em saúde cresce e diz respeito “à emergência do tema da saúde para as relações internacionais e suas implicações nos principais fóruns internacionais, como OMS, OMC e ONU, por exemplo” (p. 69).

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14 Os problemas de saúde global requerem ações multidirecionadas: acesso a medicamentos de forma igualitária, universalização de serviços de saúde, análise sobre as implicações da indústria farmacêutica e suas patentes, recrutamento de força internacional de trabalho, vigilância no controle das pandemias, conflitos étnicos e religiosos que suscitam ajuda humanitária, fome, desnutrição e pobreza (PEREIRA, 2016).

Somam-se a isso a construção de padrões metodológicos e éticos aceitáveis na realização de pesquisas clínicas multicêntricas entre os países (SILVA RE, 2016), o aprimoramento e a regulamentação do mercado de economia médica global, o fortalecimento dos códigos de éticas dos profissionais de saúde, entre outros. O melhoramento das normas jurídicas internacionais e a regulamentação do mercado na saúde são fundamentais. Apesar disso, é imprescindível retomar um dos maiores desafios ao tratar da inter-relação de saúde e globalização: o de como lidar com o face a face, considerando todos os “climas” emocionais propiciados pela globalização, indivíduos móveis, tecnologias acessíveis, diversidades de pessoas e pensamentos, assim como as novas formas de ver, viver e entender a vida.

No sistema-mundo moderno, de economia-mundo capitalista, cuja acumulação incessante de capital é uma prioridade (WALLERSTEIN, 2002), o atentar para o humano do mundo (NOAL, 2017) segue sendo uma prerrogativa fundamental.

4.2 Reflexões Finais

“A ironia da globalização é que, em muitos aspectos, o nosso mundo está se tornando mais arriscado e precário, porque os perigos das tecnologias modernas geralmente superam, ou pelo menos causam dúvidas, quanto às suas vantagens” (TURNER; KHINDLER, 2010).

Tudo leva a crer que as vantagens do processo de globalização não fizeram superar diversos problemas existentes na sociedade. Na intrincada relação entre saúde e globalização não poderia ser diferente.

As múltiplas camadas existentes neste processo incluem diferentes tipos de pessoas, formações, lugares, desejos, sofrimentos, mobilidades, imobilidades, acesso, desigualdades, múltiplas formas de inter-relação e consciência. Em recente

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15 editorial da revista científica The Lancet (2018, p. 121), ao tratar sobre saúde global e sistemas de saúde, faz-se uma pergunta: “Are we ready for a quality revolution?” Esta pergunta permite refletir como neste complexo arranjo de doenças e interesses transnacionais, com novas formas de adoecimento e a padronização da estética dos corpos e cuidado em saúde, a sociedade pode encontrar um caminho virtuoso.

Utilizar o avanço tecnológico, de conhecimento e de relacionamento existentes em direção a mudanças estruturais nos sistemas de saúde e para além destes, com vistas à garantia da qualidade e equidade em saúde para a população mundial, parece ser um esforço necessário, pois ter acesso a uma variedade de serviços, tecnologias e inovações não necessariamente significa que a utilização, o acesso e a qualidade acham-se disponíveis para todos.

Decerto, o caminho passa pelo que Ventura (2002 apud PEREIRA, 2017) aponta ao afirmar que somente quando as nações reconhecerem o primado da saúde sobre o direito comercial e o de outras disciplinas cujo fundamento não seja a proteção da vida, é que se evoluirá em direção a uma maior efetividade.

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16 Referências Bibliográficas

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Referências

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