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Os orgãos da Basílica de Mafra num relatório de Francisco de Lacerda (1927)

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OS ÓRGÃOS DA BASÍLICA DE MAFRA NUM RELATÓRIO DE FRANCISCO DE LACERDA (1927)

Por José Bettencourt da Câmara

Quis o acaso que a circunstância – efectivamente, digna de grande nota – da conclusão do restauro dos seis órgãos da Basílica de Mafra e da sua inauguração moderna, por assim dizer, coincidisse com o lapso de tempo em que o responsável por estas linhas se encontrava a rever as provas tipográficas da sua edição dos textos de conteúdo musicográfico que encontrou no espólio de Francisco de Lacerda e reuniu sob o título de Escritos sobre música. Da recolha, de que apenas alguns textos haviam sido publicados como artigos em vida do autor, achou que não devia excluir, pelo seu significado, os dois Relatórios redigidos no verão de 1927, após alguns meses de investigação em diversas instituições portuguesas. Desde o primeiro momento, quando em 1983, cerca de meio século após a morte de Francisco de Lacerda, começou a compulsar o seu espólio, se apercebera do significado do facto de uma das mais importantes figuras da música portuguesa das primeiras décadas do século XX se haver ocupado do que, no contexto de um dos maiores complexos arquitectónicos portugueses de todos os tempos, se havia desenvolvido no domínio da sua arte, a música.

Muito antes, no início da década de 1970, ainda estudante da Faculdade de Letras de Lisboa e do Conservatório Nacional, o encontro de interesses diversos, neste caso pela história da arte e pela história da música portuguesa, levara-o à elaboração, no âmbito de uma das unidades curriculares do Curso de História, de um trabalho sobre os órgãos de Mafra. Em visitas de estudo em que lhe foi dada a oportunidade de verificar o estado dos órgãos, constatara a situação de abandono a que os poderes públicos, ao longo de cerca de dois séculos, haviam votado aquele vasto conjunto de instrumentos musicais, único no mundo, como se vem acentuando, em confrangedor contraste com o brilho artístico que era possível adivinhar no período em que permaneceram em funcionamento. Naturalmente, não podia então imaginar que o seu conterrâneo, de cuja vida e obra se viria a ocupar como investigador, experimentara certamente o mesmo, décadas antes. Possivelmente, uma investigação aturada revelará outras vozes que igualmente exprimiram a sua admiração pelas dimensões daquele património que, ao cimo das paredes de um espaço arquitectónico verdadeiramente esmagador, parecia apelar à perenidade da crença que havia servido, como que desafiando a caducidade do tempo.

Dos dois documentos referidos, o “Relatório N.º 2 – Porto, Braga, Guimarães, etc.”, segundo o título que figura na sua primeira página, consiste apenas na lista das obras musicais (manuscritas e impressas) existentes em arquivos e bibliotecas do norte do País, visitados de Agosto a Outubro de 1927;

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o “Relatório N.º 1 – Mafra”, além de enumerar as obras musicais da Biblioteca de Mafra, inclui as observações resultantes da inspecção levada a cabo pelo autor, apoiado por seu filho João de Lacerda, aos carrilhões e órgãos da Basílica. É mais evidente neste último documento o alcance da cultura e formação musical de Francisco de Lacerda, então com cinquenta e oito anos de idade, o que lhe permite pronunciar-se com relativa pronunciar-segurança sobre dois domínios em que não podia aprepronunciar-sentar-pronunciar-se como especialista, emitindo parecer em vista a decisões a tomar por entidades oficiais, ao que supomos. Relativamente à execução do órgão, contudo, não devemos esquecer que este fora o instrumento que, além da composição musical, o levara a Paris em 1895, após estudos de piano no Conservatório de Lisboa: no Conservatório da capital francesa, fora aluno durante dois anos de Charles Widor, uma das grandes figuras de intérprete, compositor e pedagogo do orgão, e na Schola Cantorum, a partir de 1897, de Alexandre Guilmant, nome igualmente importante na história do instrumento.

Não temos informação sobre decisões oficiais tomadas na sequência da entrega dos dois Relatórios, tal como desconhecemos, aliás, que instituição terá cometido a Francisco de Lacerda a tarefa que lhes deu origem, a qual talvez mereça referência numa história da investigação do património musical português, constituindo mais um exemplo dos vários domínios por que derivou o director de orquestra e compositor de origem açoriana. Não custa admitir que, no País saído há pouco da revolta militar que a 28 de Maio de 1926 instaurara a ditadura, dando origem a um regime que cairia, muito mais tarde, por força de outra revolta militar, a 25 de Abril de 1974, País de que ele já não esperava, seguramente, receber o reconhecimento que uma carreira europeia lhe permitia esperar, a ideia e a proposta de investigar a situação dos órgãos e carrilhões da Basílica de Mafra, além do acervo musical da Biblioteca, partira do próprio Lacerda, encontrando eventualmente apoio em figura que conhecia nalguma das instâncias do poder.

O que talvez primeiro ressalte no texto do “Relatório N.º 1” é o juízo sobre as características dos órgãos da Basílica, juízo que hoje nos poderá surpreender, mas que nem por isso deixa de compreender-se: “Todos estes órgãos, considerados sob o ponto de vista dos seus recursos artístico-musicais, são, e foram sempre, bastante deficientes. Sem um segundo teclado, sem “caixa de expressão” e sem um jogo completo e independente de pedais – elementos indispensáveis para a execução, correcta e artística, das obras organísticas dos melhores mestres – eles são, na verdade, extremamente pobres como número e qualidade de registos (sobretudo graves) e como variedade de timbres, fornecendo uma sonoridade excessivamente estridente e mal equilibrada.” É o evidente critério do orgão moderno, como Aristide Cavaillé-Coll o havia desenvolvido no século XIX, e menos o dos órgãos coevos da Europa barroca, que condiciona, nesta matéria, o olhar de Francisco de Lacerda, em parte incapaz de entender os de Mafra por si mesmos e no contexto ibérico a que pertencem.

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Vemos, também aqui, como somos sempre do nosso tempo e, nele, das circunstâncias que enquanto indivíduos nos fizeram. Aquele que na história da música portuguesa é, em todo um caso, um dos primeiros representantes de concepções que apontam para a restauração do que actualmente chamamos, de forma lata, música antiga, concepções por ele bebidas na Schola Cantorum de Paris, de seus mestres Charles Bordes e Vincent d’Indy sobretudo, depende ainda de modelos oitocentistas, que lhe determinam opiniões e juízos de valor. O que não significa todavia que, mesmo sem a informação de que hoje dispomos sobre a tradição organeira ibérica e, mais restritamente, portuguesa, ele deixe, de todo, de aperceber-se da especificidade do que avaliava, como verificamos na sequência da citação anterior: “As suas características sonoras diferem inteiramente das dos orgãos modernos, e mesmo contemporâneos, dos outros Países, parecendo, por serem voluntárias e constantes – obedecer a um gosto nacional da época ou a imposição de quem ordenou a sua fábrica.”

Não deixa de ser quase irónico que as reticências que a Lacerda suscitam os órgãos de Mafra se prendam com as suas características enquanto instrumentos musicais, ao passo que, na sua dimensão visual, dele recebem a mais calorosa expressão de admiração: “No que respeita, porém, à sua arquitectura, escultura ornamental e às ricas matérias de que foram feitos, estes instrumentos são de uma rara solidez, harmonia e perfeição e, certamente, dos mais notáveis que existem.” Do Órgão do Evangelho, por exemplo, afirma: “Este instrumento é particularmente notável como factura e detalhes de construção. As caixas e “montras” (muito semelhantes) destes dois órgãos da capela-mor, são as mais luxuosas de todas. Os embutidos de buxo, pau-santo e ébano são primorosos.” De todos, em geral, releva a qualidade artística da caixa, acrescentando que nesse aspecto se encontram “bem conservados”, ao contrário do que constata relativamente à sua capacidade de produção de som.

Compreende-se assim que, prevendo os elevados custos inerentes ao restauro dos seis instrumentos musicais, ele proponha a recuperação integral de apenas quatro, mas que de todos seja cuidada a parte exterior: “Feitas, muito ponderadamente, todas as considerações necessárias, que me foram pedidas – julgo dever dizer que a restauração completa dos seis orgãos se me afigura materialmente difícil, demorada e onerosa e, artisticamente, inútil ou supérflua. Penso, porém, ser bastante possível e praticável a reparação de quatro destes instrumentos (os n.os 1, 3, 5 e 6) aproveitando, para tal fim, uma boa parte da tubagem dos outros dois, e bem assim algum do material que se encontra, arrumado por mim, na casa de arrecadação.

Insistentemente peço e aconselho a conservação exterior de todos – tarefa relativamente fácil e pouco custosa – por serem estes órgãos, tanto pela sua beleza como pela sua disposição no cruzeiro e na capela-mor, um elemento decorativo verdadeiramente admirável e rigorosamente necessário à estética geral da sumptuosa basílica de Mafra.”

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Acentue-se que aquilo que acaba afinal de ser conseguido, isto é, a devolução de todos os seis órgãos às condições originais de funcionamento (dados os critérios por que parece ter-se regido o seu restauro), foi entendido por Francisco de Lacerda não só como economicamente excessivo, mas mesmo desnecessário de um ponto de vista artístico. O que nos poderá levar a concluir, banalmente, que os tempos de facto mudam, não necessariamente para pior, sem por isso termos de ignorar as razões que o levaram a propor o restauro de quatro instrumentos apenas. Entre o que seria melhor e aquilo que é possível fazer-se, o que não devemos aceitar é a atitude de tantos – liberais oitocentistas e seus herdeiros da Primeira República, ou inimigos do liberalismo, no Estado Novo – que nada fizerem, condenando verdadeiros tesouros às previsíveiss consequências da incúria, desde a degradação progressiva ao crime da depradação. Sobre o Órgão da Conceição, o autor do Relatório de que partimos ainda ouviu, em 1927, que fora “saqueado em 1911 ou 1912.” Agora, com os seis órgãos de novo em condições de funcionamento, que deverá fazer-se para que não se tornem em mais seis elefantes brancos, cujos custos de manutenção não sabemos justificar?

Não é apenas um conhecimento da vida musical europeia no Antigo Regime a desaconselhar, talvez, a hipótese de que só agora, após o restauro recentemente concluido, os seis órgãos terão soado conjuntamente pela primeira vez: mesmo que a sua construção, como diremos, tenha ocorrido em circunstância histórica pouco favorável a um regular funcionamento daquelas estruturas musicais, outros factos parecem apontar para que várias obras, entre as muitas que desde 1805 foram compostas expressamente para a Basílica de Mafra, envolvendo pelo menos dois, muitas vezes quatro ou mesmo os seis órgãos, ali foram realmente executadas, com particular frequência ao longo do ano de 1807.

Convém não esquecer que, no século XVIII (e em Portugal temos de esperar pela revolução de 1820 e, particularmente, por João Domingos Bontempo, para que sinais evidentes de outro modo de entender a função da música na sociedade se configure), as obras musicais, com alguma significativa excepção, eram concebidas para uma determinada circunstância, no caso, religiosa: matinas, vésperas solenes deste ou daquele santo, missas, Te Deum... As necessidades do culto impunham uma produção regular aos compositores, os mestres de capela, tornando um verdadeiro anacronismo, em que podemos incorrer, a ideia de que compunham primeiro para produzir arte, admitindo mesmo fazê-lo, como também hoje diríamos, “para a gaveta”. Pelo contrário, não se escusavam a produzir música para uma circunstância única como a da Basílica de Mafra, o que necessariamente limitaria, ou inviabilizaria mesmo, as possibilidades da sua execução em noutros lugares, ainda que, como acontecia, um eficaz sistema de cópia das obras dos compositores portugueses as fizesse circular por quase todo o território nacional, como hoje diríamos, incluindo, além das igrejas do Reino, as das ilhas atlânticas e da colónia brasileira.

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As datas que encontramos nos frontispícios dos manuscritos musicais setecentistas que enxameiam os arquivos portugueses significam quase sempre uma primeira execução, geralmente no contexto da celebração litúrgica para que a obra foi composta, como se verifica no caso de grande parte dos manuscritos que se encontram na Biblioteca de Mafra. Destas, algumas terão sido destinadas inicialmente a outras instituições, mas as cópias que ali subsistem deixam supor que também lá chegaram com uma precisa finalidade prática, não apenas para integrarem um conjunto de obras disponíveis para eventuais necessidades do culto, e ainda menos, como em raros casos aconteceu, para corresponder a um gosto de coleccionismo musical.

Continuemos a reflectir a partir da informação prestada pelo Relatório de Francisco de Lacerda, a quem não podia escapar, naturalmente, a particularidade do repertório musical composto para um espaço religioso que, pela concentração dos seis órgãos, é de facto único no mundo. Sobre as obras musicais compulsadas em Mafra, o compositor escreveu: “Todas estas obras foram evidentemente compostas expressamente para a Basílica de Mafra, atento o número dos órgãos indicados nas partituras ou nas cópias. As composições vocais são, na sua totalidade, para vozes de homens (2, 3, 4) soli (ou concertino) com outras tantas de ripieno e mais uma (ordinariamente o 2.º Baixo) a que os autores chamam coro (em uníssono).

Existe (sic), não catalogados, um grande número de livros grandes do coro, com missas copiadas por um sistema que julgo ser privativo do Convento de Mafra, em que são empregadas as quatro linhas, as claves de fá e dó e as notas quadradas, causadas e os losangos da notação do cantochão para reproduzir música dos séculos XVIII e XIX.

Existem, também não catalogados, outros livros, ainda maiores, em que figuram muitas das composições já descritas, copiadas pelo mesmo processo, mas já em linhas, ornadas com capitais e vinhetas variadas.”

Trata-se, quase sempre, de peças para solistas vocais, coro e conjuntos de dois, quatro ou seis orgãos; encontra-se contudo, na mesma lista de Francisco de Lacerda, outro grupo, muito mais reduzido, de obras exclusivamente instrumentais, no caso, para os órgãos apenas: de António Leal Moreira, Sinfonia para a Real Basílica de Mafra, em ré maior, para os seis órgãos, e de Frei Filipe (Francisco de Lacerda anota se se trata de Frei Filipe de Carvalho), Cinco sinfonias para a Real Basílica de Mafra, (1.ª em ré maior), para órgãos concertantes. Aponta esta raridade de obras instrumentais para o que parece uma característica de todo o património musical português do Antigo Regime, efectivamente centrado na música religiosa, nas formas litúrgicas, mas também para essa dimensão prática, por assim dizer, que não devemos esquecer neste repertório musical. Porém, entendendo-as positivamente, temos de reconhecer que, mesmo numa circnstância sócio-musical porventura pouco aberta aos valores da música

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instrumental, um inabitual conjunto de instrumentos iguais, de órgãos, que foi reunido apenas em Mafra, não deixou de suscitar, se bem que algo marginalmente, esses valores.

Por não se encontrarem datadas, não incluímos essas obras na lista seguinte, em que ordenámos cronologicamente apenas as que na de Francisco de Lacerda apresentam data (naturalmente, de acordo com as partituras compulsadas pelo compositor), incluindo simultaneamente participação vocal e instrumental, isto é, dos orgãos, em um, dois ou três pares de instrumentos, segundo a tradição da policoralidade. Com ela visamos sobretudo confirmar o que o conhecimento da história geral (quando dele dispomos...) nos permitia talvez supor, ou seja, que os tempos muito difíceis que passou a viver o País alguns meses após a inauguração dos seis órgãos não podiam levar já ao seu silenciamento definitivo. Parece-nos, portanto, de concluir que, entre 1805 e 1819, foram compostas para a Basílica de Mafra e ali executadas as obras que a seguir se enunciam, ou pelo menos algumas destas, além de outras cuja data se desconhece.

1805 – João José Baldi, Benedictus, em lá maior, para duas vozes, coro e quatro órgãos. 1806 – João José Baldi, Missa, em dó maior, para três vozes, seis coros e quatro órgãos.

– Frei Bernardo José da Conceição, Matinas de N.ª S.ª da Conceição, em dó maior, para dois tenores, dois baixos, dois coros (ripieno) e seis órgãos.

1807 – João José Baldi; Salmo 109, “Dixit Dominus”, em dó maior, para quatro vozes e seis órgãos; Salmo 112, “Laudate pueri Dominum”, em dó maior, para quatro vozes e e seis órgãos; Missa breve, em ré maior, para quatro vozes e seis órgãos; Salmo 147, “Laudate Jerusalem”, em lá maior, para quatro vozes, coro e seis órgãos.

– Frei José Marques e Silva, Te Deum, em dó maior, para solos, duetos, coro e dois órgãos. – António Leal Moreira; Missa reduzida para dois órgãos, em si bemol maior, para vozes e dois órgãos; Missa, em si bemol maior, para três vozes e seis órgãos.

– Marcos António da Fonseca Portugal; Magnificat, em fá maior, para quatro vozes e seis órgãos (Outubro de 1807); Matinas de Santo António, em ré maior, “Para se cantarem na Real Bazilica de Mafra a 12 de Junho de 1807”, para quatro vozes (dois coros) e cinco órgãos obrigados; Salmo 109, “Dixit Dominus”, em dó maior, para quatro vozes, coro e seis órgãos; Salmo 111, “Beatus vir qui timet”, em si bemol maior, para quatro vozes e seis órgãos (Outubro de 1807).

1812 – Anónimo; Te Deum, em dó maior, para três vozes, coro e dois órgãos.

Salmo 147, “Laudate Jerusalem”, em lá maior, para quatro vozes, coro e dois órgãos.

– Vários autores (Frei Bernardo José da Conceição, Frei João da Soledade e António José Soares), Matinas do Natal, para três vozes, dois coros e orgãos.

– Frei José Marques e Silva, Te Deum, em dó maior, para três vozes, coro e dois órgãos.

1813 – Frei Bernardo José da Conceição, Responsórios de Quinta-feira Santa, para três vozes, dois coros e dois órgãos.

– Frei José Marques e Silva, Responsórios do Domingo de Páscoa, em dó maior, para três vozes, coro e dois orgãos (Lisboa, Março, 1813); Salmo 113, “In exitu israel”, em lá maior, para quatro

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vozes, coro e dois órgãos; Salmo 131, “Memento Domine”, em lá maior, para três vozes, coro e dois órgãos (Mafra, Dezembro de 1813).

1814 – Frei José Marques e Silva, “Moteto concertato, para três cantores, coro e três orgãos obrigados. P.ª se cantar na Real Bazilica de Mafra. / Na ocazião de Acção de Graças, pella Restauração / destes Reinos e da pas Geral. / Original em Lx.ª de Fr. José Marques e S.ª /Anno de 1814”.

1815 – Frei José Marques e Silva, Salmo 118, “Domine probasti me”, em ré maior, para quatro vozes, coros e dois órgãos (Lisboa, 1815).

1817 – Frei José Marques e Silva, Salmo 110, “Confitebor”, em lá menor, para quatro vozes, coro e dois órgãos.

1819 – Marcos António da Fonseca Portugal, Salmo 110, “Confitebor”, em ré maior, para quatro vozes, coro e seis órgãos.

Numa leitura historicamente contextualizada desta lista, verificamos que datam do período de construção dos órgãos as primeiras obras que a integram, devidas a alguns dos mais prolíficos compositores portugueses pertencentes à que podemos certamente definir como a geração de transição do século XVIII ao século XIX, geração que assiste ao expirar do Antigo Regime musical (com efeito, Frei Marques e Silva, João José Baldi e António José Soares, além de Marcos Portugal, são os nomes de compositores desta época que surgem mais frequentemente nos arquivos musicais portugueses). O Benedictus em lá maior de João José Baldi é, já em 1805, escrito para quatro órgãos, mas a sua Missa em dó maior, datada de 1806, inclui ainda o mesmo número de instrumentos. São as Matinas de N.ª S.ª da Conceição de Frei Bernardo José da Conceição, também de 1806, a primeira obra, ao que parece, a exigir seis órgãos. Do que não podemos concluir que teria sido a 8 de Dezembro daquele ano, por ocasião da celebração da festa de Nossa Senhora da Conceição (a que a Casa Real portuguesa sempre deu, desde o fundador da última dinastia, D. João IV, grande solenidade), que se ouviram pela primeira vez todos os seis novos instrumentos, visto sabermos que alguns deles foram concluidos meses depois, em 1807.

Obra de dois dos melhores organeiros activos em Portugal nas décadas finais do século XVIII e nas primeiras do século seguinte, deve a Basílica de Mafra os seus órgãos ao gosto pela música do futuro rei D. João VI, figura a quem a historiografia liberal, que moldou em grande parte a visão ainda hoje dominante da história nacional, não podia fazer justiça. É esse bisneto de D. João V, construtor da imensa mole do Convento, Palácio e Basílica de Mafra, quem vem dotar esta última dos seis orgãos, parecendo assim seguir, de algum modo, o gosto pelo desmedido que, nalgumas opiniões, desde o século XIX, terá caracterizado seu bisavô. Como é geralmente sabido, cerca de dois meses após a conclusão dos órgãos, Napoleão decretava a invasão de Portugal, cuja família real acabaria por fugir, apavorada, à frente das tropas francesas, já às portas de Lisboa, para a longínqua colónia sul-americana, onde se presumia a salvo.

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Um dos fervorosos amantes de música da história da monarquia portuguesa, o ainda príncipe regente (por doença de sua mãe, a raínha D. Maria I) fez-se acompanhar, para o estabelecimento da corte no Rio de Janeiro, dos músicos e instrumentos de que precisava para ali satisfazer esse prazer – visto já não poder ir a Mafra ouvir cantochão, como dizia uma das “cantigas da rua” da altura. Sabe-se que chegou a ser desmontado um órgão duma das igrejas da capital que, algum tempo depois da corte, seguiu também para o Brasil, o que não aconteceu – e algum significado talvez possamos atribuir a este facto – a nenhum dos de Mafra, que acabavam de ser construídos.

Enquadra-se a construção dos seis órgãos da Basílica de Mafra nas transformações que, sobretudo na parte do complexo arquitectónico destinada a residência real, o Palácio, foram determinadas pelo interesse do príncipe D. João em Mafra, que o levou a ali viver permanentemente, por largos meses, antes da repentina partida para o Brasil. Talvez não possamos concluir que a escolha de Mafra para residência real, em detrimento de Lisboa (a que, pelo menos desde os tempos de D. João V, os visitantes estrangeiros geralmente apontavam a falta de meios de distração para a aristocracia cortesã), ou de Salvaterra de Magos (onde existia um teatro de ópera, o que nunca chegou a ser construido em Mafra, eventualmente devido à natureza do voto que está na origem do grande empreendimento joanino), se prende antes de mais com esse gosto do príncipe regente pela música. Sabemos, em todo o caso, que havia em Mafra, à sua disposição, um vasto número de músicos, que garantiam ao extraordinário espaço religioso que é a Basílica adequada dignidade musical. Já muito antes, por meados do século XVIII, após um longo processo de construção que se arrastou desde 1717 até depois de 1730, data da inauguração, o imenso complexo albergava, com as mais de três centenas de frades arrábidos, um elevado número de músicos, que incluía sobretudo algumas dezenas de cantores, podendo a eles juntar-se outros provenientes da Real Câmara. O que torna mais evidente a impossibilidade de os seis órgãos mandados construir pelo príncipe D. João não terem sido precedidos na Basílica por um ou mais instrumentos eventualmente idênticos aos que subsistem, até porque os custos da sua construção estariam longe dos da aquisição, em Antuérpia e Liège, dos carrilhões encomendados pelo seu antecessor para as duas torres.

No limiar do século XIX, que transformaria o orgão naquilo que os românticos, com outra sensibilidade e visão do mundo, dele esperavam, no Portugal a que esse romantismo efectivamente tardará, a tradição seiscentista e setecentista do orgão ibérico deixou-nos na Basílica de Mafra, pelas mãos do português António Xavier Machado e Cerveira (construtor dos Órgãos do Sacramento, Conceição e Evangelho, na Basílica, entre mais de uma centena que deixou pelo País, incluindo as ilhas e o Brasil) e do galego Joaquim António Peres Fontanes (autor dos Órgãos de S. Pedro de Alcântara, Santa Bárbara e Epístola, igualmente entre muitos outros espalhados pelo País), um legado de que, justamente, não devemos ufanar-nos tão só pela quantidade, mas ainda pelas qualidades mesmas que um Francisco de Lacerda não pôde devidamente apreciar. Próxima a conclusão dos seis órgãos, compreende-se que ao

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longo de 1807 se multipliquem as obras compostas para a Basílica, devidas aos compositores portugueses de maior nomeada na época.

Apesar das nuvens negras que o expansionismo napoleónico vinha, já há alguns anos, adensando sobre a Europa, e em particular, naquela altura, sobre a Península Ibérica (decretado em fins de 1806, Portugal fora forçado, meses depois, a acatar o Bloqueio Continental), é em Novembro de 1807 que ocorre a primeira invasão francesa, sob o comando de Junot, levando à decisão da transferência da corte portuguesa para o Brasil. Até estes infaustos acontecimentos, a composição de muitas obras para a circunstância específica de Mafra mostra que a “festa de igreja” barroca teve na Basílica quase todo um ano de especial brilho, em parte possibilitado pela nóvel estrutura dos seis órgãos. Mas mesmo durante o período de ocupação pelas tropas francesas, da instabilidade também decorrente da intervenção inglesa (que abre toda uma história de utilização de uma parte do complexo arquitectónico de Mafra como quartel militar, tradição que se prolongou até à actualidade), das duas invasões subsequentes, não quer isto dizer que se tivesse apagado completamente a vida litúrgica da Basílica, ainda que, como parece, tenha efectivamente esmorecido. Talvez possamos tomar a composição das obras que na lista acima apresentada têm a data de 1812 e 1813 como significando isso precisamente. A “paz geral”, ali celebrada pela execução do Moteto concertato de Frei Marques e Silva, só chega à Europa em 1814, mas já no final de 1811 os exércitos franceses haviam sido definitivamente escorraçados de Portugal para Espanha, pelo exército aliado sob comando de Wellington. Embora sem a abundância do ano de 1807, a pena dos compositores portugueses volta a ser solicitada por Mafra, incluindo um que, na peugada da família real, demandara o Brasil, donde não chegou a regressar: em 1819, Marcos Portugal compõe ainda um Salmo 110, “Confitebor”, que, além das quatro vozes solistas e do coro, requer para a sua execução os seis órgãos da Basílica.

Se todos estes factos levam a que no iníco da década de 1820 – quando ocorre a revolução liberal, que acaba por forçar o posterior regresso da corte portuguesa do Rio de Janeiro a Lisboa – o número de frades que permaneciam no Convento de Mafra seja de algumas dezenas apenas, é só a revolucionária abolição das ordens religiosas em Portugal, na sequência da vitória definitiva do movimento liberal após a guerra civil, em 1834, que transfere o complexo de Mafra para o Estado português, levando à degradação progressiva dos orgãos da Basílica, transformada, de grande capela real e conventual que já fora em mera igreja paroquial da localidade. Até ao limiar do século XXI, nem vozes como a de Francisco de Lacerda conseguiram o que só mais tarde, pela associação duma generalizada consciência da necessidade de valorizar o património artístico à disponibilidade de largos meios financeiros, finalmente se obteve.

Compreende-se, de alguns pontos de vista, que do que podemos considerar os dois grandes domínios do património histórico-musical associado à Basílica de Mafra, isto é, o dos seis órgãos e o da literatura musical que para eles, com a sua participação, foi produzida (poderia, aqui, acrescentar-se um

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terceiro domínio, o dos carrilhões, que não podem ser excluidos do âmbito artístico, produzindo, como produzem, também uma arte dos sons), as decisões oficiais, apoiadas financeiramente por parcerias privadas, tenham contemplado primeiro o sector dos instrumentos, dos órgãos (e, mesmo antes destes, o dos carrilhões). Apesar de também anunciada oficialmente a recuperação da própria música – que significará, no caso, a edição escrita e sob forma sonora, das obras musicais – este segundo desiderato ainda não foi levado a cabo, a não ser pela integração de algumas peças em concertos já efectuados na sequência da recuperação de conjuntos dos seis órgãos. O que não basta, seguramente. Mesmo que não se justifique a publicação de todas as obras musicais que sabemos terem sido escritas para a Basílica de Mafra, poderíamos, também aqui, repetir o que disse Francisco de Lacerda acerca da recuperação dos órgãos: justifica-se, pelo menos, publicar um número representativo das melhores obras compostas para aquele espaço único, que, sendo um impressionante espaço religioso, é também um extraordinário templo consagrado à arte musical.

Referências

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