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Uma teologia da recepção?: os censores (em desacordo) contra a superstição, Portugal 1770-1771

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U M A T E O L O G I A DA R E C E P Ç Ã O ?

O S C E N S O R E S ( EM D E S A C O R D O ) C O N T R A

A S U P E R S T I Ç Ã O . P O R T U G A L 1770-1771 *

RUI TAVARES ••

1. Im p líc ito / e x p líc ito

O trab a lh o do ce n so r sem pre lidou com o p od er d as p alav ras, sob m ú ltip las fisio n o m ia s - ptxler de persuadir, de arg u m en tar, de d esviar, de tran sp o rta r v ários sen tid o s ao m esm o tem po. etc. M as só ra ram en te teve de se d e te r d ian te d os poderes " físic o s” (ou “m ág ico s”, co m o talv ez lhes c h a m a ríam o s h o je) das palavras; um tipo de poder que levantava q u estõ es inesp erad as. P oderão as palavras escritas ou faladas d e te r efeito s sobre fen ó m en o s físicos tais co m o terrem o to s, fogos c tem p estad e s? A lguns livrinhos im pressos, que era hábito usar co m o am u leto s, d efen d iam que era de facto possível:

“...Esta Oração ensinou Sancta Barbara a huma devota sua. c o Papa Urbano a mandou ao Bispo de Cochim D. Miguel Rangel, que a levou comsigo á sepultura; e deu vida a muitas pessoas. Tem especial virtude

• Esic texto tem a sua origem num a palestra apresentada no colóquio da Society for Spanish and P ortuguese H istorical Studies (Santa Fé. EU A . Abril 2001), d ep o is reto ­ m ada no I C olóquio Sobre o Livro e a Im agem , cm O uro Preto. Brasil (O utubro 2001). cm cu jas actas (coord. G uiom ar de G ram m ont e M yriam Bahia Lopes, O uro Preto. UFOP. no prelo) será tam bém publicada um a versão resum ida do texto que aqui se apresenta. R oger C h artier (e. posteriorm ente, Judy B ieber) fizeram extensos com entários a um a prim eira versão deste texto, c devo outras sugestões valiosas a A ndré Belo, A ngela B arreto X avier, C arla Faria A raújo e Júnia F erreira Furtado. C hristianc M achado C oelho leu a versão final e corrigiu-lhe diversos defeitos, ao passo que m uitos outros, esses da m inha resp o n sab ili­ dade. terão ficado. A Iodos quero agradecer.

*• Doutorando da Écolc des H autes Etudes en Sciences Socialcs (Parts).

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contra os trovoens, raios, peste, e ar corrupto. Succedeo matar hum rayo a huma pessoa, que não trazia esta Oração, não fazendo mal algum a vinte, e tantas, que comsigo a trazião, estando no mesmo lugar

Por vezes afirm avam ainda deterem poderes con tra o contágio de d eter­ m inadas doenças, ou conseguirem para o seu portador a isenção de m orte súbita; dependendo tais efeitos de determ inados critérios de utilização:

“Adevertencia: Deste Compendio de Orações devem todos os Fieis Christãos fazer uso não somente em rezallas, mas ainda mesmo em tra- zellas comsigo; e muito especialmente as Pessoas, que não sabem ler; que a estas lhes valem, trazendo-as comsigo, e tendo quem lhas leia para as ir rezando; e quando isso lhes falte, rezando os Padre-Nossos (...)3” L uís de M onte C arm elo, d eputad o da R eal M esa C e n só ria \ d efen d ia que tudo isto era im possível: as palavras ditas, para este cen sor, não eram

' Lisboa, Arquivos N acionais / Torre do Tombo (daqui cm diante A N/TT), Real M esa C ensória |R M C ], cx. 405, doc. 6847: Exercitium devotum, tal pro prw paratione Sacerdotis a d M issam celebrandam. quam pro gratiarum A ctionem p o st M issam celebra- tam; tuI ex m issali romano, tiim ex altis coUectum, cum verbis sanctissim is, & hym no B. Barbarte V. & M. contra fulftura, tempestates, et terreemotus. O pera, & industria Etnm a- nuelis dos Sanctos Teixeira.. Conim bricae,. Ex Typ. In Regaii A rtium C ollegio Societ. Je s u,

A nno Dni. 1752. Cum superiorum paco.

3 L isboa, AN/TT, Real M esa C ensória, cx. 405 doc. 6844b: C om pendio de orações contra o m a l da Peste, e M ortes repentinas. M ales contagiosos, e o M al de Sezões, offe- recido a todos os Fieis Christãos, que com o uso destas O rações quizerem alca n ça r de D eos N osso Senhor o serem livres destes terríveis m ales. Por hum D evoto. Lisboa, lm pressam Regia, 1809. T rata-se de uma reedição de um livro de que existem várias ver­ sões ao longo do século XVIII e inícios do XIX.

1 A Real M esa C ensória foi fundada por lei de 5 de A bril de 1768, durante o re i­ nado de D. José I e consulado do M arquês de Pom bal, então ainda C onde de O eiras. Segundo o seu R egim ento (de 18 de m aio do m esm o ano), a nova instituição deveria guar­ dar ju risd ição exclusiva e privativa sobre todos os papéis im pressos no reino, e ainda sobre outro tipo de form atos, com o peças de teatro e conclusões académ icas. A instituição da Real M esa C ensória representou a abolição de facto do regim e de censura que vigorara durante m ais de dois séculos, e que por vezes se cham a de “tripartido” por ob rig ar as obras im pressas a fazerem -se acom panhar de três licenças, conseguidas através das censuras da Inquisição, do D esem bargo do Paço e do bispado local (censura do O rdinário). Para m ais porm enores, ver Rui Tavares, O Labirinto Censório. A R eal M esa C ensória sob Pombal (1768-1777), Lisboa. Instituto de C iências Sociais da U niversidade de Lisboa, lese de m estrado, 1998; e M aria A delaide Salvador M arques, A R eal M esa C ensória e a cultura nacional: aspectos da geografia cultural portuguesa no século X V III, C oim bra. Im prensa U niversitária, 1963; cf. tam bém M anuela D. D om ingos, "P ara a história da biblioteca da Real M esa C ensória", Revista da Biblioteca N acional |L is b o a |. série 2, vol. 7.

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U M A T E O L O G IA DA R E C E P Ç Ã O • 2 1 3

m ais d o que “hum m o v im en to trem u lo e vibrato rio do ar. im p ellid o d ear- ticu lad am en te pela L in g u a e o u tras partes da b o ca” ; as p alavras esc rita s m era "tin ta d elin ead a, e im pressa no pap el” . Q u an to aos sig n ific a d o s das palavras, não passavam de “ hum a denom in ação to talm en te ex trín sec a, com que liv rem en te d ep u tarão os hom es esta ou aq u ella voz para e x c ita r a idea ou co n h e cim en to de o b jecto s d eterm in ad o s". C o m o co n se q u ên cia, exp licav a M onte C arm elo , as palav ras “carecem de virtu d e física, ou natural ac tiv id ad e para p ro d u z ir os effeitos, que p ro m ettem os m esm o s L iv ro s" \

H avia co n tu d o o u tro s ce n so res qu e discord av am de M onte C arm elo , buscand o um a terceira via que pudesse re co n ciliar estas d iferen ça s. A rgum entavam que as p alavras possuem efectivam en te p o d eres físicos, se bem que de um a natu reza indirecta. O elo que p o ssib ilitaria a e fic iê n c ia d estes p o d eres seria a ex istên c ia de leitores de esferas su p erio res ou in fe ­ riores. c e le stia is ou in fern ais (dem ón ios, anjos, san tos, e, em últim a a n á ­ lise. D e u s) q u e in te rp re ta ria m as p a la v ra s à sua m a n e ira e q u e in terfeririam en tão co m o s fen ó m en o s físicos.

Tentarei descrever em detalhe esta polém ica entre censores, e recup erar algum as das questões im plícitas que ela nos coloca sobre a n atureza da ce n ­ sura: quais são os lim ites do trabalho do cen sor? Podem ju lg ar-se os livros apenas a partir dos seus conteúdos, independentem ente dos usos que se lhes dá? Será que um livro continua a ser um livro, m esm o quando não é lido? E. finalm ente: com o se pode deter poder sobre os poderes das palavras?

F oram estas as co m p licad a s q u estõ es que o cu param os d e p u ta d o s da Real M esa C e n só ria p o r d iv ersa s vezes nos anos de 1770-71 a p ro p ó sito de livros e am u leto s, e em m uitas o u tras ocasiõ es ain da, po is m esm o q u an d o não as tratavam d irectam en te elas co n stitu íam as fro n teiras da ju risd ição e das am b içõ es da censura. C om o tal. elas serão tam bém as n o ssas q u estõ es, balizad as co m o vim os por dois term os: o p rim eiro c la r a ­ m ente a ce n su ra; o segundo, a superstição ’. M as devo aqui d e ix a r claro

* l.isboa, AN/TT. Real M esa C ensória, cx. 6. 1770, doe. 109.

’ Na verdade, poder-se-ia dizer que é de religiosidade popular que se trata, mas a lín i de essa ser um a categoria de circunscrição com plicada, prefiro ater-m e àq u ilo que preocupava prim eiram ente aos censores: e aquilo de que os censores andam atrás é da superstição Veremos adiante, aliás, que não existe entre os censores discordância a respeito da inadm issibilidade da superstição. As suas discordâncias centram -se em que objectos devem ou não ser incluídos nessa categoria. Esforçar-m e-ei. portanto, para restringir-m e a categorias endógenas, usando tanto quanto possível os term os dos censores.

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que as m inhas priorid ad es se colocam no p rim eiro e não no seg u n d o term o. O que prin cip alm en te m e interessa é a ce n su ra - só que, co m o a ce n su ra se exerce sem pre sobre q u alq u er co isa, te r-se-á in ev itav elm en te que c o n sid erar essa q u alq u er coisa sobre que a ce n su ra se ex erce, m esm o qu an d o as preo cu p açõ es essen ciais do h isto riad o r g rav itam m ais à volta da análise em si do que da coisa que é an alisad a. Em co n se q u ên cia, o tem a das p áginas seguintes não será a su p erstiçã o no P ortu gal do sécu lo X V III, m as antes a su perstição tal com o foi vista p o r alg un s ce n so res p o r­ tu gueses do século X V III e, em últim a an álise, sob re a cen su ra em p ro ­ c e sso sobre um caso de putativa superstição.

M as p ara ser com p letam en te sincero, devo re co n h ec er que o caso d a su p erstição subverte parcialm ente e sta m inha ab o rd ag em da censu ra. É que a su p erstiçã o nos alicia a fa la r não ap enas do p o d er que se ex erce

sobre as

p alavras (i.e.. a censura) m as tam bém e m uito p artic u la rm en te do

p o d er que em erg e

das

palavras. D ito isto, é ev id en te que os cen so res sem ­ pre tiveram de lid ar com o poder das p alavras e qu e isso está no cern e do seu trabalho. M as ao en carar a sup erstição, a ce n su ra é fo rçada a lidar com um o u tro poder das palavras, um tipo de p o d er m ais tangível e aind a m enos antecipável, um poder que não se circ u n scre v e à e sfera da leitu ra e da in terp re taçã o m as que transbo rd a para o ca m p o a que hoje c h a m a ­ ríam os “m ág ico ” e que verem os ser d esc rito de form a bem m ais evo cativ a e rig o ro sa co m o as “virtudes físicas” das p alavras, d as vozes e dos c a ra c ­ teres. C om o verem os adiante, isto levou os d e p u tad o s da Real M esa C en só ria a ter de co lo ca r - e ten tar resp o n d er a - alg u m as p erg u n ta s c o m ­ p lexas sobre os pod eres das palavras fora da su a esfera m ais hab itu al (já de si bastan te traiço eira) da discu rsiv id ad e e d a interp retação . P odem as p alav ras, esc rita s ou ditas, d eter um a tem p estad e ? A p ag ar um fogo ? Ise n ta r alguém de m orte súbita?

Se co n sid erarm o s q uestões com o estas, p o r h ip o tétic as ou irreais que nos pareçam , terem o s tam bém de co n c ed er que o p o d er

das

palav ras se possa v irar co n tra aqueles que su p ostam en te d etêm o p o d er

sobre as

p a la ­ vras. Em p rin cíp io (quero dizer, nos p rincípio s legislativo s qu e regiam a p rática d os censores, bem com o na d o u trin a im p lícita qu e tal p rática revela) a esfera da censura é m ais am p la do q u e q u a lq u e r o u tra no d o m í­ nio dos livros. E suposto que a cen su ra c o n ten h a (n o d u p lo sen tid o de ab a rca r e tam b ém de d eter ou im pedir) todas as re sta n te s esferas d is c u r­ sivas. M as se as palavras, tal com o são usadas nos m o do s su p ersticio so s, podem d e te r efeitos sobre o m undo físico e ex tra-d iscu rsiv o , en tão talvez o círc u lo da censura não seja, no fim de co n tas, tão universal - tão “c a tó ­ lico ” — com o previsto.

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U M A TEOLO GIA DA RECEPÇÀO» 2 1 5

Q ue as p alav ras precedam hierarq u icam en te, na h iera rq u ia física da n a tu re /a . os hum anos, rein an d o sobre eles e ce rtam en te sobre os cen so res lam bem , ao invés de serem os cen so res a rein ar sobre as p alav ras, su b ­ verteria o trab a lh o d os cen so res. E sta p ossibilid ade co n d ic io n a p or sua v e / o trab a lh o de alguém que. hoje, estud a a censu ra, p o rqu e c o lo c a um a in sid io sa q u estão q u e d esa n im a os propósitos do p ró p rio p ro c esso c e n s ó ­ rio. A d iscu ssão de hoje (e a de ontem ) será sobre que c írc u lo co n tém o o u tro se o d a cen su ra, ou seja, o do po d er p o lítico so bre as p alav ras; se o da su p erstiçã o , ou seja, o d o poder das palavras sobre o m u nd o físico.

É pois fácil de ver com o, ao colocarem -se pela prim eira ve/, as q u e s­ tões de que falava acim a (as palavras podem apagar fogos ou im p edir a o corrência de terrem otos?) a tentativa de lhes dar resposta tenha levado aos censores (e a nós) m uito longe e em direcções inesperadas. E stas perguntas revelar-se-iam cruciais para o seu próprio trabalho, talvez m ais cru ciais do que eles próprios poderiam prever quando tudo com eçou, com a sim ples aprovação de um p eq u en íssim o livro de orações cham ado

Hreve santíssimo

de Marca contra feitiços e infestos do demónio,

que degenerou num a po lé­

m ica que lavrou den tro da instituição durante uni período considerável. M esm o se tais p o lém icas representam som ente um a p eq u en a parte, qu an titativ am en te falando, da p rodução da Real M esa C en só ria (a ideia de disco rd â n cia é co n o tad a de form a fortem ente negativa elas p ró p ria s p a la ­ vras d o s c e n so res e a ap a rên c ia de desaco rd o é ev itad a a todo o tran se no in terio r da in stitu içã o ), creio que m erecem toda a nossa aten ção . E q u an d o os c e n so res se d istraem com co n tro v érsias no in te rio r da sua casa que m elh o r se iden tificam nos seus textos re p resen taçõ es im p lícitas ou e x p lícitas sobre o seu próp rio trabalho en q u an to cen so res. P oderem o s en tão ver e m e rg ir v isões co n flitu ais, do interio r da ce n su ra, so bre a sua p rópria n atureza.

2. Verdadeiro / falso

Em O utubro de 1770, Luís do M onte C arm elo um censor, g ram ático e académ ico, frade da O rdem dos C arm elitas d escalço s - en trego u n a Real M esa C en só ria um a censura sobre um livrinho ch am ad o

Hreve santíssim a

de Marca contra feitiço s e infestos do demónio novamente accrescentado

com o escudo impenetrável aos trovoens, raios, peste, e ar corrupto.

O seu

trab alh o de ca sa e n q u a n to ce n so r incluía a realização de alg u m a p esqu isa filo ló g ica sobre o esp é cim e em consideração. A d e sc rição co m qu e ele inicia a sua ce n su ra é tam bém o m elh or lugar por o nde co m e ç a r p ara nos

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fa m iliariza rm o s co m um tipo de o b jecto q ue já em 1770-71 tin ha o rig en s e c a rac te rístic as difíceis de identificar:

*'(•••) mandei dous Rcligiozos doutos e prudentes ao Convento dos Capuchinhos do Sítio de Sta. Apollonia. que distribuem nesta Corte todos os Breves de Marca, para que perguntassem ao Prelado e mais Religiozos. qual fosse o motivo, a benção, e todas as mais qualidades dos Breves, que costumão distribuir. Respondeo-lhes o Prelado. Religiozo de provecta idade, e virtude, como pareceo. Io Que havia tempo immemorial que nos seus Conventos de Marca de Ancona. Província dos Estado Ecclcsiastico, sc-cosiumavão fazer aqucllcs Breves, nos quaes sc-imprimião as palavras dos Exorcismos, de que u/.ão os Ministros da Igreja, o principio do Evangelho de S. João, que se-lc no fim da Missa c o Responsorio com a Oração de Sto. Antonio, o que logo mostrou abrindo hum: 2" Que outras Províncias da sua Congregação concorrião para a factura destes Breves com alguma cousa das que o Pai he abundante, fazendo huma anticipada solução daquelles Breves que de Marca rccebião: porque da Província de Hespanha se-remettia ouro e prata; da de Veneza Coral, da de Roma algum pó de Cemeierios, cm que se-dizião ser sepultados alguns Martyrcs (...) 3o Respondeo o sobredito Prelado, que os Breves crão bentos por tres Bispos; mas que cllc. c os Rcligiozos de seu Convento, não sabião, nem tinhào Livro, cm que se-incluisse a ben­ ção: 4o Que o pó. ou particular, que se-encontravão incluzas no pape­ linho separado, suponhão elles que erão pedacinhos do Agnus Dei, ou dos ossos que se achavão nos referidos Cemeterios: 5o Que aos ditos Breves se-attribuião admiraveis effeitos, como v.g. a exempção de muitas enfermidades, principalmente das epidemicas; de qualquer perigoza ou mortal percussão de raios, de terremotos, de tempestades, c de vexações do demonio (...)” *

A pós a ap resen tação do espécim e, a ce n su ra de L uís do M onte C arm elo tom a um a direcção um pouco insólita. P ois se é re lativ am en te com um que um ce n so r reprove um a obra, já é com alg u m a estra n h e z a q ue o v em os d ec la rar que aquela era em p articu lar tão in dig na de ap ro v ação

* Luis do M onte C arm elo, C ensura. “ Breve S an tíssim o da M arca co n tra feitiços c infestos do D em onio. novam ente accrescentado com o E scudo im penetrável aos tro- voens. raios, peste, e ar corrupto” (ANTT, RM C, 6. 1770, 109). S eguindo cm parte o hábito d o s próprios censores, referir-m e-ci de form a m ais sim plificada a este livro com o Breve de M a n a . U tilizarei lam bem neste texto a expressão “ breves de M arca", com ou sem aspas, para me referir a este género de livros globalm ente, em bora não particular­ m ente áquelc que iniciou a polém ica.

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U M A TE O L O G IA DA RE C E PÇ Ã O ’ 2 1 7

que ele p ró p rio não c o n se g u ia acred itar que algum d os seus co leg a s tivesse sido cap az de lhe ter co n c ed id o licença E com m aior estra n h e z a ainda o vem os av a n çar com a, segundo ele. única ex p lica ção p ossív el para tal facto, a saber: que o livro, d ada a sua peq u en ez, se tiv esse m istu rad o co m o u tro s pap éis do ex p e d ie n te da Real M esa e assim tivesse p assa d o sem exam e. Vale a pena re p ro d u zir a veem ência com que L uís d o M onte C arm elo faz q u e stã o de d e ix a r reg istad o o seu esp an to:

" E u c o n h e ç o c o m e v id e n c ia , q u e fa ria a m a is n e g ra , m a is a t r o / , e in e x c u z a v e l in ju r ia a to d o s e c a d a h u m d o s S e n h o r e s D e p u ta d o s d e s ta S a p ie n tis s im a e R e a l M e / a . se im a g in a s s e , a in d a p o r s o n h o , q u e a lg u m d e ll e s v io . e a p p ro v o u e s te L iv ro , p a ra q u e fo s s e r e i m p r e s s o ; p e lo q u e in te ir a m e n te m e - p e r s u a d o , q u e p e la s u a p e q u e n e z , o u m is ­ tu r a c o m o u tr o s p a p e is , o u p o r o u tr o in c id e n te e s c a p o u a o e x a m e . P o r q u a n to p r e s c in d in d o d o s e r r o s G r a m m a tic o s *

C heg ado a este ponto, é natural que o leitor se p ergunte que m otivos, afinal, levaram L uís do M onte C arm elo a tantos e tão cau telo so s p re lim i­ nares? P odem os e sp e cu lar se não terá sido, em p rim eiro lugar, a in tu ição de que p oderia h aver d iferen ça de o piniões no seio da p rópria instituição , o que talvez exp licasse e sta singular hipótese que sugere de qu e o livro pudesse ter sido in advertidam ente aprovado por um cap rich o da fortuna, ao m isturar-se com outros papéis; se adoptarm os um m odo cép tico na lei­ tura desta passagem , poderem os interpretá-la com o um a táctica de evasão, um a form a de p rever e d e sv ia r con flitos entre pares da m esm a instituição. Por ou tro, e ind epen d en tem en te do ponto anterior, a m aior parte d a e x p li­ ca ção terá de ser atribuída à própria substância de tais livros - e logo v ere­ m os co m o para Luís do M onte C arm elo ela é pern icio sa e g erad o ra dos piores efeito s, com graves co n sequências sociais, p o líticas e religiosas:

E fectivam ente, não se encontra no fundo docum enial da Real M esa C ensória nenhum a oulra censura a livros que lenham por título Breve de M arca ou sem elhante. Isto não qu er d izer que a licença não lenha sido concedida (com o o próprio Luís do M onte C arm elo confirm a) a 10 de m aio de 1770. num procedim ento a que a legislação cham ava a "conferência sim ples" ou "verbal", ou seja. uma decisão sum ária que não necessitava da realização de um a censura, e que era norm alm ente utilizada para im pressos de pouca im portância ou que já tivessem sido ob jecto de um a decisão anterior |cf. A NTT, RM C . 6.

1770. 109. f. Iv.J.

* Idem. A propósito da identificação e elim inação dos erros gram aticais com o la /e n d o p an e das atribuições correntes dos censores, ver Rui Tavares, "A Real M esa C ensória c a dem anda de u n ifo n n id ad e". in C am inhos do H ortuxuês | co o rd. M aria H elena M ira M ateus). L isboa. B iblioteca N acional, 2001, pp 119-125.

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)todas as cousas, acçoens, cercmonias, e palavras propriamente taes, isto he. proferidas, ou impropriamente taes, isto he. escritas, aindaque sejão próprias das Escrituras Divinas, applicadas para algum effcito, para o qual não tem natural virtude ou intrínseca acti­ vidade (...) são certamente invenções de formal, ou material supers­ tição. ou de huma fraudulente |sic] embustice de execrandos avarentos, que illudindo a gente pia c ignorante, intentão satisfazer a seus depravados intentos com gravissimo detrimento espiritual dessa gente muito crédula (...)” *

E ntram os a partir daqui no m iolo d esta ce n su ra, qu e se e sten d e rá aind a por um a tn eia-dúzia de fólios na sua fase m ais argu m entativ a, in trin cad a e ch e ia de po rm en ores in teressan tes, in felizm en te im p o ssív eis de d esc rev e r aqui em detalhe. N ote-se. tod avia, a seq u ê n cia da a rg u m e n ­ tação do ce n so r na passagem anterior: a im p o ssib ilid ad e de as palav ras deterem pod eres sobre o m undo físico im plica que a u tiliza ção de livros com o am u leto s seja um a u tilização n ecessariam en te su p ersticio sa; além de su p ersticio sa, a d istrib u ição e (im p lic ita m e n te) a vend a d estes o b jecto s tem graves c o n se q u ên cias para a co m u n id ad e, um a vez qu e b en e ficiará os seus negociantes, eventualm ente in form ado s m as c e rtam en te sem e s c rú ­ pulos (os “execran d o s avarentos” ), às cu stas das pessoas bem in te n c io ­ nadas m as sem co m p etên cia in telectual, ca b ed ais de in fo rm ação ou d iscern im e n to suficien te para co n h e cer a verdade - com as co n se q u ên cias facilm ente im agináveis para os laços de co n fia n ça q ue devem su ste n ta r um a so cied ad e bem o rdenada ,0. Ou seja, tod o este ed ifíc io está assen te na falsidade da prem issa segundo a qual as p alavras p o deriam d e te r p od eres sobre os fenóm enos físicos. Este ra cio cín io é co n firm a d o pela passag em seguinte, que utilizarei com o um sum ário da d o u trin a d e M onte C arm clo no que diz resp eito aos putativos poderes físicos das p alavras.

* Idem.

10 Pode encontrar-se algum a reflexão sobre o estatuto social e político da confiança na recente (e já extensa) bibliografia sobre o utnor com o fundam ento da ordem nas so c ie ­ dades de A ntigo Regim e, reflexão que. do m eu ponto de vista, m antém algum a da sua v ali­ dade no quadro do pom balism o. quanto m ais não seja com o doutrina adquirida (neste caso ) pelos censores. Ver. a este. propósito, a obra de A ntónio M anuel H espanha e ta m ­ bém Pedro C ardim . O po d e r dos afectos: ordem am orosa e dinâm ica p o lítica no Portugal d o A nti/to Re/tim e.tese dout. H istória. Lisboa. Univ. Nova de L isboa. 2000. Do m esm o autor, dois ariigos que fornecem um a excelente introdução ao tem a: "A m or c am izade na cultura política dos séculos XVI c X VH", in Lusitania Sacra. 1999. p. 21-57; e "R eligião e ordem social: cm to m o dos fundam entos católicos do sistem a político do A ntigo Regim e” in R evista de H istória das Ideias 22. 2001, p. 133-174.

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U M A TE O L O G IA DA RECEPÇ ÀO? 2 1 9

as palavras emquanto são vozes, e muito menos sendo escritas, ou se considerem no material ou em sua forma, carecem de virtude física, ou natural actividade para produzir os cffeitos. que promettem os mesmos Livros. A palavra própria ou formal, enquanto á matéria he huni movimento tremulo e vibratorio do ar. impcllido dcarticula- damente pela Língua, e outras partes da bocca: e emquanto á forma he huma denom inarão totalmente extrinscca, com que livremente deputarão os homes esta ou aquclla voz para excitar a idea ou conhe­ cimento de objectos determinados. A palavra escrita he a tinta deli­ neada, e impressa no papel, se fallannos da matéria: c emquanto á forma he houtra denominação extrínseca igual, comque estes ou aquelles caracteres se deputarão para signal arbitrario, ou para signi­ ficar immcdiatamentc algumas vozes, e conscguinlemcnte os objec­ tos. Ora he cousa evidente que nenhuma destas palavras pode eximir aos homens de morte subita, etc." "

As p alavras não podem , em co n seq u ên cia, ter ou tro s po d eres q u e não os que deriv em da su a natu reza p uram ente lin gu ística c cu ltu ral. D ito de o u tro m odo, as e n tid ad e s rep resen ta cio n ais co m o os ca rac te res ou m o rfe ­ m as não d etêm q u a lq u e r co n tin u id ad e com as en tid ad e s reais d o m undo físico, e q u an d o c o n sid erad as na sua realidade física carecem da força necessária à o b ten çã o de efeito s co m o os que tais livros prevêem . M esm o que estiv esse no p o d er das p alav ras o b ter tais efeito s, tal su ced eria ap en as por força d as suas c a rac te rístic as, caso no qual serem p alav ras ou sím b o ­ los não teria tido in flu ên cia algum a. Em resu ltad o d estas p re m issas, o seu uso en q u a n to ferram e n ta s de interv en ção no m undo físico não pode ser o utra co isa sen ão um uso puram en te su p ersticio so ' \

3 . In tr ín s e c o / e x trín s e c o

V im os através do resum o da censura de Luís do M onte C arm clo com o era im possível que as palavras detivessem poderes sobre os fen óm eno s

" Idcm.

IJevo dizer que a utilização que neste texto sc tem feito do term o "su p erstição " é estrita e utilitária, significando com cie o uso de palavras ou sím bolos para o b ter de form a d irecta efeitos que aparentem ente são exteriores ã esfera típica de leitura e de in terp re ta­ ção. tal com o efeitos de que já falei, sobre terrem otos, tem pestades, etc. N ão me ocuparei aqui de outro tipo de usos supersticiosos, principalm ente porque os próprios censores, no decurso desta polém ica, se em penharam essencialm ente em discussões precisam ente sobre os lim ites destas noções.

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físicos. C on firm ám o s tam bém que. para e ste cen sor, o facto de tal p re ­ m issa ser falsa d eterm inava com o co n clu são irrefragáv el q ue o uso de livros co m o as

Breves de Marca

da form a com o eles m esm o se a p re se n ­ tam e aco n selh am fosse um uso supersticio so . E ssa co n c lu sã o ac arretaria por sua vez a inevitável con d en ação de tais o b jecto s po r um trib un al co m o a Real M esa C ensória.

V ejam os agora que tipo de posição p erm itiria que o p o d er físico das palavras fosse não só possível, com o tam bém

pensável.

Será prod utivo co m p arar a cen su ra de Luís do M onte C arm elo com um p en sa m e n to que d efen d a de form a clara e bem estru tu ra d a a re alid ad e do p o d er físico das palavras. A sua autoria é herética, e o am b ien te de que p rovém é bem d is­ tin to do da Real M esa C ensória, m as esta d ig ressã o p e rm itir-n o s-á ac ed er a um term o de com p aração in teressante, tan to em term o s ideológ ico s com o cro n o ló g ic o s, com a d escrição d etalh a d a da d iscu ssão d os cen sores. P or um lado, aju d ar-m e-á a ju sta p o r à tem p o ra lid ad e breve da po lém ica en tre cen so res um a co n tinuidad e tem poral m ais larga, que é, no fundo a da re alizaç ão d estas práticas. Por o utro lado, aju d ará a e la b o ra r a d is tin ­ ção en tre um a n atureza in trín seca e ex trín sec a das co isas a que L uís do M onte C arm elo faz tanta referência e q ue será um pon to crucial na c o n ­ tro v érsia en tre os cen so res da Real M esa C en só ria. O q u e é en tão o in trín ­ seco e o ex trín seco das coisas?

“In genere duplex est efficiens: natura et voluntas. Voluntas mox tri­ plo x est: homo. humana, daemonis et divina. Natura in proposito est duplex: intrínseca et extrínseca. Intrínseca adhuc est duplex: matéria seu subiectum, et forma eum virtute naturali. Extrínseca quoque duplex: quae potius naturae effigies dicitur, vestigium et umbra seu lux, et illa quae manet in re et in superfície subiecli, sicut lux et calor in sole et in aliis calidis. et illa quae emanat et effluil e subiecto. sicut lux quae funditur a sole et rcpcritur in rebus illuminatis, et calor qui cum luce in sole et reperitur in rebus calefactis.” 15

| A força eficiente é dupla na sua essência: natureza e vontade. A von­ tade é tripla: humana, demoníaca e divina. A natureza é dupla: intrín­ seca e extrínseca. A natureza intrínseca é, em si mesma, dupla: a matéria ou sujeito, e a forma com a sua virtude natural. A natureza extrínseca é também ela dupla: é tanto a imagem da natureza, vestí­ gio, sombra ou luz, como aquilo que sobra ou está à superfície do objecto (como o calor e a luz no Sol e noutros corpos quentes), e

13 G iordano Bruno. De M agia, in Tocco & Vitelli |e d s .|, lordano B runo N olani O pere latine conscrípta, Florença. Typis S ucccssorum le M onnier, 1891.

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U M A T E OLO GIA DA RECEPÇÃO* 2 2 1

ainda aquilo que do sujeito emana e se escapa (como a luz, que espa­ lhada pelo Sol, se encontra nos corpos iluminados, c o calor, que associado à luz no Sol. se encontra também nos corpos aquecidos).) Este ex c erto foi re tira d o do tratado

De M agia

de G io rd a n o B runo (c. 1591). No p arág ra fo seguinte verem os com o estas n o çõ es se podem a p li­ car üs p alavras ou rep resen ta çõ es de palavras:

“Similiter et omnes scripturae non sunt eius momenti. cuius sunt cha- racteres illi. qui certo ductu cl figuratione res ipsas indicant. unde quaedam signa in inviccm inclinata. se invicem rcspicicntia. amplec- tentia. constringentia ad amorem; adverse vero declinantes. disiectac ad odium et divortium; concisae. mancae, disruplae ad perniciem; nodi ad vincula, explicati charactcres ad dissolutionem." 14

|De modo análogo, nem todas as escritas detêm tanta influência quanto os caracteres que, por meio de um determinado desenho e figuração, revelam as próprias coisas; assim como certos signos que se inclinam uns para os outros, olhando-se mutuamente e cingindo- se. e que compelem ao amor; outros, pelo contrário opostos e disso­ ciados, suscitam o ódio e o divórcio; amputados, estropiados, interrompidos, invocam a ruína; com nós se criam laços que com caracteres desligados são desfeitos.) **

Ou seja: as p alavras o peram sobre as coisas po rq ue po ssuem um a certa co m u n id ad e com as co isas

(com m unio

ou

consortia return)

que lhes p erm itirá afe c ta r d irec tam en te o m undo físico. N ão ex iste um a fro n teira clara en tre re p resen ta çõ es e o bjectos. Pelo contrário: um as e stã o em c o n ­ tin u id ad e co m o s outros.

Em

The Art o f M em ory.

F rances Yates descreve de fo rm a m ais clara

o fu n cio n am en to d esta m ecân ica da interacção entre os sím b o lo s (aqui ch a m ad o s de “ im ag en s") e a realidade, ex p licitan d o as in teracçõ es e x is ­ tentes en tre estes níveis:

"(...) the images of stars are intermediaries between the ideas in the supercelestial world and the sub-celestial elemental world. By arran­ ging or manipulating or using the star-images one is manipulating forms which are a stage nearer to reality than the objects in the infe­ rior world, all of which depend on the stellar influences. One can act

14 Idem.

" A tradução dos excertos de G iordano Bruno

é

m inha (cf. G iordano Bruno. D a M unia. A lm ada. ím an Edições, no prelo).

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in lhe inferior world, change lhe stellar influcnces on it. if one knows how to arrange and inanipulatc the star-images.” “

|as imagens das eslrelas são intermediárias entre as ideias do mundo super-celestial e os elementos do mundo sub-celestial. Ao combinar, manipular, ou utilizar as imagens das eslrelas. estão a manipular-se formas que se encontram um grau mais próximo da realidade do que os objectos do mundo inferior, que por sua vez depende por inteiro das influências estelares. Pode actuar-sc sobre o mundo inferior, mudando as influências estelares de que ele padece, se se souber como combinar e manipular as imagens das estrelas.] 17

Em bora a form ulação não tenha que ser rigorosam ente esta. e o c o n ­ teúdo doutrinário da ciência bruniana tenha detalhes que com tod a a prob a­ bilidade não pudessem ser partilhados pelos autores e utilizadores da

Breve

</e

M a n a ,

o que me interessa de m om ento retirar deste exem plo e da sua contraposição com Luís do M onte C arm elo,

é

que para as palavras, sím bo­ los, im agens ou caracteres serem efectivos, eles não podem ser circunscritos à sua natureza discursiva, linguística ou im agética. com o q u er Luís do M onte C arm elo. Pelo contrário, as palavras ditas ou escritas detém vínculos que estão em continuidade com o m undo físico, de tal form a que intervir neles é necessariam ente provocar alterações no m undo exterior. N ão existe, na verdade, um a distinção intransponível entre o que

é

intrínseco e o que é extrínseco num sím bolo - estes são apenas m odos diferentes de a m esm a realidade se declinar, sem pre ein com unicação entre os seus diversos níveis de um a form a que é passível de conhecim ento e utilização e que perm itirá constituir um a ciência, talvez m esm o

a

ciência. N um tal pensam ento, é a noção de superstição com o a entendia M onte C arm elo que não c adm issível.

4. Terrestre / celeste

A ntes de reg ressarm o s à Real M esa C en só ria de 1770. co nv ém c o n ­ c retizar um pouco m elh or o tipo de o b jecto de que estam o s a falar. R eproduzo na figura 1 um livrinho que, não se trata n d o da

Breve

Santíssim a de Marca

an alisada por Luís d o M onte C arm elo , c o rresp o n d e

em b astan te d etalh e à tip o lo g ia por ele d esc rita T rata-se de

Palavras

'* Francês Yates. The A n O f M emory (H annondsw orth. Penguin books. 196‘). p. 212). '' T radução minha.

" N ão encontrei até ao m om ento este original. Em bora tenha encontrado dois exem plares tardios com o título Breve Santíssim o de M arca (cf. nota abaixo), am bos se afastavam m uito da descrição de l.uís do M onte C an n elo .

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D M A T E OLO GIA DA R E C E P Ç Ã O ’ 2 2 3

Santíssim as e Arm as da Igreja contra os Rayos, Tempestades e Trovões

(L isbo a. O fficin a de Ig n a cio N og ueira X isto. 1760. C om to d as as licen ças n e c e ssá ria s|. um liv rin h o de cerca de 4x2 cm que foi lo caliza d o cm G oa. na casa de um a fam ília local convertida ao cristian ism o . E n co n trav a-se ainda d en tro de um a bolsa de veludo verm elho que prov av elm en te terá sido p e n d u rad o num fio usado ao pescoço. Junto ao livro en c o n trav am -se três pap cletes d o b rad o s que rep ro d u zo tam bém na im agem ; um co n tin h a terra, o u tro um ped aço de m ad eira e o ú ltim o um a série de in iciais p ro te ­ gid as po r cru zes. C o m o se vê. trata-se de um ex e m p lo m uito ap ro x im a d o do d e sc rito acim a. O facto de te r sido im presso em L isboa e e n c o n tra d o em G oa testem u n h a da ex ten sa d ifu são deste tipo de livrinhos. M ais e lo ­ q uentes ainda são as en c o m e n d as deste género de livros para o B rasil, de que um a o ra ção a S anta B árbara terá co n stitu íd o a m aior e n c o m e n d a de um só títu lo de q u a lq u e r g én e ro de livros

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1

-Fig. 1 - Palavras Santíssim as, e A rm as da Igreja ILisboa, I7 6 0 |. C olecção particular.

Devo a A ngela B arreto X avier a indicação de Palavras Santíssim as Júnia Furtado c A ndré B elo indicarain-nie alguns títulos sem elhantes, respectivam ente entre bibliotecas particulares de M inas G erais e nos títulos anunciados na G azeta d e Lisboa. Ao

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A ban alização do uso d estes livrinhos n ão terá sido alh eia ao s p ro ­ blem as que a po sição de L uís do M onte C arm elo provocou na p ró pria Real M esa C en só ria, com o verem os adiante. E ntretan to , a sua cen su ra m ereceu três respostas por parte de o u tro s c e n so res da Real M esa. Ju n tas, e stas q u atro cen su ras co n stitu irão o

corpus

co m p leto d esta discu ssão . E cada um a dessas respostas tenta um a abo rdag em de “terc eira via" à o p o ­ sição irredutível entre as visões de M onte C arm elo (que até nova ce n su ra co n stitu ía m a única d ecisão form al da p ró pria R eal M esa C en só ria) e o uso d issem in ad o e crença g en eralizad a no uso d este tip o de o b jectos.

F ran cisco de Sá, na sua cen su ra de 15 de A bril de 1771 co m p a ra as

breves

de m arca, não a livros, m as a o b jecto s dev ocio n ais. Eis um a d is ­

tinção interessante, pois d eix a bem claro qu e os lim ites e o âm b ito da c e n ­ sura de livros dependem cru cialm en te d a q u ilo qu e en ten d e rm o s co m o “ livros". D esta form a, en contram os a p róp ria ca te g o ria “ livro" em d is c u s ­ são no in terio r d a Real M esa C ensó ria. Para M onte C arm elo o facto de as breves serem m aterialm ente sem elh an tes a livros era o bastan te para os co lo ca r sob a ju risd iç ã o da Real M esa C en só ria, pois este “sap ien tíssim o trib u n al" detin h a, segundo o seu regim ento, ju ris d iç ã o privativa e e x c lu ­ siva sobre “q u aisq u er livros ou pap éis im p resso s". P ara F ran cisco de Sá, no en tan to , esta defin ição não é sustentável. O s livros servem para se ler: se as

breves

se deviam usar ju n to ao co rp o , d eb a ix o da roupa, elas não deveriam ser tecn icam en te co n sid erad as livros. E las seriam antes co m o q u a isq u e r o u tro s o b jecto s d evocion ais. e tal co m o o s ro sário s, m ed alh i- nhas, b entinhos, escapulários, etc.. d ev eriam e sta r sob a ju ris d iç ã o da igreja e não da Real M esa C ensória.

“Advirto que se reprovamos a piedade, com que os povos trazem con­ sigo os breves de Marca, devemos por illação legitima c natural.

todo, foram identificados, para os finais do século X VIII e inícios do XIX, cerca de três d ezenas de títulos diferentes neste género de livros. Esta prospecção lido foi. contudo, continuada, pelo que é possível que este tipo de livros sejam bastante m ais diversos e num erosos. Para as leituras no Brasil colonial.veja-se Luiz C arlos V illnlta. “O que se fala e o que se lê: língua, instrução c leitura", in: l.aura de M ello c Souza & Fernando N ovais (org.), H istória da Vida P rivada no Brasil; cotidiano r vida p riva d a na A m érica p o r tu ­ guesa,São Paulo. C om panhia das Letras, 1997. Veja-se tam bém , sobre esta encom enda de orações, o seu artigo a ser publicado nas A ctas I C olóquio Sohre o Livro e a Im agem (coord. G uiom ar de G ram m ont e M yriam Bahia L opes), O uro Preto, IJFOP. no prelo. Sobre a utilização de textos m anuscritos com o form a de o b ter efeitos físicos, é indispen­ sável Rita M arquilhas. A Faculdade das Letras, Lisboa, Im prensa N acional C asa da M oeda, 2000. V ejam-se. nom eadam ente, os exem plos das páginas 60-65.

(15)

U M A TEOLO GIA DA REC EPÇÃO? 2 2 5

reprovar da mesma sorte, o uzo de trazer escapulário. Cordoens, medalhas, Rozarios, Coroas, Cruzes, e as mesmas Imagens de Santos que materialmente vistas não são mais. que hua matéria grosseira combinada desta ou daquella forma e consideradas pelo que extrinsi- camente, e arbitrariamente mostrão, não tem mais virtude alguma para produzir o que delias esperão os fieis( ...)** "

A lém d esta in terp re taçã o d o corp o de prova, a in terp re taçã o de F ran cisco de S á tam b ém d ifere da de M onte C arm elo no q u e diz resp eito ao tem a ce n tral em discu ssão . E xiste de facto um m odo de as p alav ras poderem o b ter efeito s físicos, em bo ra esse m odo seja ind irecto: elas actuam atrav és da interv en ção de leito res n ão-hum an os, n o m ead a m en te d os dem ó n io s. A pós provar, com recurso a um a co n sid eráv el eru d iç ã o bíblica e p atrística, que os d em ó n io s causam efectiv am en te tem p estad e s e o u tro s fenó m en o s m eteo ro ló g ico s, e não só

“...sendo certo, que aquelles maos espíritos andão. dispersos em gran­ des exercitos por toda esta região como dizem comumentc os Stos. Padres, e chega a dizer Sto. Agostinho De Gen. ad Litt. L. 3o Cap. II. que nesta caliginoza Atmosfera tem muitos o seu cárcere, athe o dia de juizo = eis pro suo genere quidam quasi carcer est usque ad tempus ludicii = Conforme ao que dis S. Jeronimo adv Vigil. C. 2. que os Demonios andão vagabundos por toda a terra com huma incrível velo­ cidade = cum Diabolus, et dsm ones tot vagantur orbe. et celeritate nimia ubique. pra:sentes sunt = quem ha de duvidar, que estas malig­ nas intelligencias se disvellão em fazemos todos os prejuizos, que lhes permitte o todo poderozo, ja corrompendo o ar. ja infestando o com mil artes, ou fazendo tempestades, ou comovendo trovoadas, ou revol­ vendo tudo para nos cauzar incessantes detrimentos. Como pondera o muito Sto. Agostinho no lugar citado = non mirum si post peccatum in istam detrusi sunt caliginem. ubi tamem et Aer sil, et humore tenui contexatur, qui Comotus ventos, et velementius Concitatus etiam ignes, et tonitrua; et contractus nubila; et conspissatus pluviam; et congelantibus nubilis nivem;et turbulentius congelantibus densioribus nubilis grandinem; et distentus serenum facit = tanto he verdade, que ha no mundo estas horríveis influencias do abismo, que o Apostolo chama reitores das trevas, e que o Psalmo nomeia por espíritos de tem­ pestades. que com tudo estão sujeitos á palavra do Senhor...”

F rancisco de Sá. C ensura: "B reve Santíssim o da M arca contra feitiços e infestos do D cm onio. novam ente accrescentado com o Escudo im penetrável aos trovoens, raios, peste, e ar co rru p to " (A NTT. RM C . 7. 1771. 29).

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d em o n stra en tão que o b jecto s do tip o das

breves

p o deriam de facto im p e ­ d ir que o s d em ó n io s de em penhassem neste tipo de actividad es:

"Se estão pois esses maos espíritos subordinados á palavra do Senhor, não podera esta palavra escritta reprimir os seus impetos? Enfraque- cerschião aquellas sagradas exprcssocns, que em outro tempo fa/ião estremecer os ermos, e fugir delles os demonios. para que ja hoje não tenhão a mesma virtude? (...) que direi eu do sagrado nome de Jesus, que em repetidas partes se acha escritto nos Breves que chamamos da Marca? Quem podera negar a virtude, c a efficacia áqucllc Divino nome sobre todo o nome. e que ate no inferno se fas temer, constran­ gendo essas infelices creaturas a que o respeitem, e o adorem dobrando o seu joelho ao ouvilo proferir? ,l"

A estratégia de Francisco X avier de Santana, num a censura de 10 de Junho de 1771, foi diferente, e porventura m ais difícil. A sua m issão era a de. por um lado. evitar toda a espécie de conflitos sub-institucionais. m esm o quando ao fazê-lo tivesse de dizer coisas em que os seus colegas e polem is­ tas não poderiam de form a algum a acreditar. For outro lado. Francisco X avier de Santana contribuirá tam bém num alargam ento da doutrina de Francisco de Sá: além da intervenção sobre os dem ónios, acrescenta ainda a intervenção da parte de santos, de anjos e. em últim a análise, de Deus. A m bas as estratégias são patentes no seguinte excerto, de que cham o a aten ­ ção para a sua últim a e reveladora frase m ais tarde voltarem os a ela.

“Depois de ver com a applicação. que me foi possível as doutas cen­ suras dos senhores Fr. Luis do Monte Carmelo e Fr. Francisco de Sá sobre hum livrinho. que se pertende imprimir com o Titulo: Breve Sanctissimo de M arca... tirei da sua lição, não só o conhecimento da vasta erudição, viveza de engenho, c rectidão de juizo. que nellas se admiram, mas tãobem a inocente vaidade de me conformar com os dois sapientissimos Censores, c de conhecer, que clles são uniformes entre si. (...) como nos nossos Paizes há huma sufficiente inslrucçào nesta matéria, e o zelo com que os Excmos. Pastores cuidam nos Rebanhos sem juizo temerário, suppor. que os deixariam chegar a tão deplorável ignorancia, não se deve prohibir o u /o dos taes Breves, porque os Fieis não confiam nellcs. como em cauzas intallivcis daqucllcs prodígios, mas sim como em huns memoriaes. que apre­ sentam a Deos para moverem a sua infinita piedade (...) as reformas excessivas costumam ter consequências péssimas, pois que querendo

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UM A TE O LO G IA DA R E C E P Ç Ã O ’ 2 2 7

precaver os abuzos não só se cortam os ramos supérfluos mas tãobcm se arrancam as raizes necessárias."

22

A últim a c e n su ra d esta po lém ica, en tregue na Real M esa C e n só ria a 15 de ju n h o de 17 7 1 p elo ce n so r Joaq uim de S antana, não ir a / m uita n o v i­ d ade ã d iscu ssão . M as é interessan te notar co m o c h e g a a insinuar, co m a ajuda de S an to A g o stin h o e S ão Tom ás, e de auto res m ais re cen tes co m o Tom ás de V illanueva e D aniel C o n cin a e de alg un s ex e m p lo s ilu stres

-“A Historia da Igreja nos fa/ certos, que o Apostolo S. Barnabe escre­ veu de sua própria mão o Evangelho de São Mathcos. c o trazia sem­ pre eomsigo junto ao peito, c com elle mesmo foi enterrado na Ilha de Chypre, cujo sagrado codigo achado por Antemio Bispo de Salamina, este o remeteo como preciozo donativo ao Empcrador Zenón. Este mesmo uso se propagou depois por homens literatos, e pios: hum des­ tes foi o cardeal Henrique de Cluni. que nunca apartou de si o primeiro capitulo do Evangelho de São João. escrito com letras de ouro; cujo primeiro capitulo he huma das partes, de que se compoem os Breves chamados de Marca. Tão pio he o uso das orações santas escritas, ou estampadas: S. Alberto Magno trazia sempre eomsigo o symbolo dos Apostolos; e o Papa Benedicto XIII a oração Angélica da Ave Maria: não refiro outros exemplos, que são innumeraveis."

24

- que no fim de c o n ta s é real a p ossibilidade de as p alav ras d eterem e fe i­ tos físicos. E stes efeito s não podem ser certificad o s a p o n to de se to rn a ­ rem in evitáveis, m as são de todo o m odo possíveis. Em co n se q u ê n c ia , o uso de am u leto s co m o as

breves

só é supersticio so no ca so de haver, co m o ele m esm o define, “ um a co n fia n ça cega na c e rteza d o re su ltad o ". Se alguém usar o am u leto de um a form a m eram ente ten tativa, este uso não será su p ersticio so m as. bem pelo co n trário , um uso piedoso. E m b o ra não beba em q u a isq u e r fontes heréticas, esta posição é, do p o n to de vista prag m ático , q u asi-b ru n ia n a.

u F rancisco X avier de Santana. C ensura: “ Breve S antíssim o da M arca contra fe iti­ ços e infestos do D em onio, novam ente accrescentado com o E scudo im penetrável aos tro- voens. raios, peste, c ar co rru p to " (A NTT. RM C. 6. 1770. 109).

1 Joaquim de S antana, C ensura: "B reve Santíssim o da M arca contra feitiços e infestos do D em onio, novam ente accrescentado com o E scudo im penetrável aos Irovoens. raios, peste, c ar co rru p to " (AN/TT. RM C. cx. 7. 17 7 1. 62). C uriosam ente. D aniel C oncina viu a sua Theologia C hristãa D ogm ático M oral proibida pela Real M esa C ensória, entre o utras razões pelas suas referências à Arte M ágica (cf. AN/TT, RM C, cx. 9, 1775. 23).

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F inalm ente, e para facilitar a localização nesta p olém ica, que c o n su ­ m iu quase um ano e m uito papel e tinta na vida da Real M esa C en só ria, as posições dos quatro cen sores encontram -se resum idas no q uadro seguinte, a que foi tam bém acrescentada com o term o de co m p aração a p o sição de G iordano B runo no tratado

De M agia

a que anterio rm en te fizem o s alusão. N este quadro, necessariam ente esquem ático , en co n tram -se ex p licitad o s na colu n a central os tipos de nexo causal que cada um a d estas p o sições c o n ­ sid era poder (ou não poder) existir entre as palavras intrin secam en te e n te n ­ didas e os fenóm enos do m undo físico. N a últim a co lu n a en u n c ia -se a con clu são (necessariam ente associada a esta p o sição inicial) no pon to fu n ­ dam ental da questão: o uso de livros ou palav ras d itas ou escritas com o form a de atin g ir determ inados efeitos físicos é ou não su persticio so ?

Au t o r/ Ce n s o r [ Pr e s u m í v e l Ca u s a] Nf.x o Ca u s a l [ Pr e s u m í v e i s Ef e i t o s] Co n c l u s ã o Luís do M onte C arm elo (outubro 1770)

Pa l a v r a s não podem causar Ef e i t o s f í s i c o s o uso é seinpre supersticioso F rancisco de Sá (abril 1771) Pa l a v r a s podem assustar os

dem ónios, im pe­ dindo-os de causar Ef e i t o s f í s i c o s não há supers­ tição F rancisco X avier de S an tan a (junho 1771) Pa l a v r a s podem m otivar a intervenção de "lei­ tores celestiais”, ou seja, santos, anjos ou até Deus que podem por sua vez causar ou prevenir Ef e i t o s f í s i c o s não há supers­ tição Jo aq u im de S an tan a (julho 1771)

Pa l a v r a s podem (ou não)

causar

Ef e i t o s f í s i c o s

só há supersti­ ção se o uso for d e m a s i a d o confiante G io rd an o liru n o

(c. 1591)

Pa l a v r a s partilham uma com unidade (con- sortio, com m unio) com Ef e i t o s f í s i c o s não se trata de s u p e r s t i ç ã o mas de ciência

Vemos assim de novo que, segu nd o um dos cen so res (L uís do M onte C arm elo ) o nexo causal entre palavras e fenó m en os é

im possível

, ao passo que para outros dois (F rancisco de Sá e F rancisco X a v ie r de S antan a) ele

(19)

U MA T E O LO G IA DA REC EPÇÃO? 2 2 9

é

indirecto

; p ara Jo a q u im de S antana, este nexo ca u sal é de n atu reza

incerta

, sen d o co n tu d o um a p o ssib ilid ad e sob várias form as, ta n to in d i­ rectas co m o e v e n tu a lm e n te directas m as sem pre in cog no scív eis. No final d este esp e ctro en c o n tra r-se -ia a p o sição que aqui e m b lem atizá m o s atrav és de G io rd a n o B runo, e que postu la não só a realid ad e d este nexo causal co m o um a v erd ad eira co n tin u id ad e en tre sím bolo s e co isas, c o n tin u id ad e essa que é possível e desejável co n h e cer e c o n tro la r - estan d o este c o n h e ­ cim en to , nobre en tre todos, bem longe de p o d er c o n stitu ir-se co m o su p erstiçã o .

5. Círculo / espiral

A ú ltim a citaç ão de F ran c isc o X avier de S antana atrás re fe rid a d á-n o s um a ex c elen te p ista sobre as razões im plícitas d esta co n tro v é rsia. A o su g e rir que “ as re fo rm as excessiv as costum am ter c o n se q u ên cias p é ssi­ m as, pois que q u eren d o p recav er os abuzos não só se co rtam os ram os su p érflu o s m as tão b em se arrancam as raizes n ec essária s” , aq u ilo q u e ele p arece tem er é q u e a natu reza radical das reform as de P om bal p o ssa vir a pôr em ca u sa a e sta b ilid a d e das cren ças religiosas dos sú b d ito s d o Rei de P ortugal. E é v erdade que verem os nesta ocasião ap a rec ere m p ela p ri­ m eira vez alg u m as fissuras no ed ifíc io até en tão só lid o do siste m a de c e n ­ sura de P o m bal, e isto três anos apenas após a sua fu nd ação. N um a das ex tre m id a d es d o esp e ctro en co n tram -se cen so res co m o Luís d o M onte C arm elo (m as tam bém M anuel do C enáculo e A n tó n io P ere ira de F ig u eired o , q u e não tiveram papéis im p o rtan tes na h istó ria de hoje, m as que foram am bos p ro tag o n istas decisivos na traje ctó ria da Real M esa C en só ria) que ac red itam neste p rojecto ilustrado e no papel ce n tral do ce n so r co m o m o to r dele. Do lado o posto, cen so res co m o F ran c isc o de Sá, F ran c isc o X av ier de S an tan a e Jo aq u im de S antana, que talv ez se p e rg u n ­ tassem se estas re fo rm as n ão estavam no fim de co n tas a ser levadas d em asia d o longe.

Em sim u ltân e o p o dem os tam bém aperceb er-n o s das au to -re p re se n ta - çõ e s do c e n so res, q ue aqui em erg em em negativo nesta polém ica. N o p ri­ m eiro dos cam p o s, um a visão vo lu n tarista e g eo m étric a da ce n su ra, seg u n d o a qual a tare fa do ce n so r é a de d istin g u ir as p ro p o siç õ e s falsas d as v erd ad eiras e su p rim ir as falsas, ab rin d o cam in h o ao p ro g resso d a n ação sem ter de to m ar em co n ta q u aisq u er eq u ilíb rio s (so c ia is, sim b ó li­ cos ou trad ic io n a is) anterio res. Do o utro lado. um tipo de ce n so r m ais d efen siv o e p atern alista , de ce rta form a h erdeiro d o sistem a " trip a rtid o ” de ce n su ra que p re ced e ra a Real M esa C ensó ria por 250 an o s e da sua

(20)

visão m ais pactista e parcelar do papel do cen so r - e dos poderes. Para este tipo de ce n so r (que ganhou a batalha de que falám os hoje m as cu ja n atu ­ reza se en co n tra essencialm ente em perda no interior d a própria lógica em que se funda a R eal M esa C ensória) o cen so r não é um a esp écie de Juiz Suprem o de D iscurso 2S. A estratégia de F ran cisco de Sá, p o r exem plo, é d upla e sem pre defensiva 1) as

breves

não são livros e 2) o co ntro le das in terpretações teológicas cabe à igreja e não à R eal M esa C ensó ria. Para Luís de M onte C arm elo, bem pelo contrário, en q u an to as

breves

fo ssem co n sid erad as objecto s im pressos, a tarefa do ce n so r seria sem pre a de e li­ m inar todas e q uaisquer falsidades que elas pudessem conter.

Para Finalizar, g ostaria de d izer qu e o q u e é in tere ssa n te no estu d o à esc ala m icro de um a in stitu ição com o a R eal M esa C e n só ria é aq uilo que ele revela das ten sõ es su b -in stitu cio n ais a qu e e la é su bm etida. P or ex e m ­ plo, a m an eira com o argu m entações o po stas são d efen d id as com e x a c ta ­ m ente o m esm o vo cabulário, ou (com o no caso de ho je) a m an eira com o arg u m en taçõ es o postas são d efendid as com v o ca b u lário o p o sto m as tão cedo q u an to possível g arantindo um a ilu são de co n fo rm id ad e.

E stes cen so res, h abituados a trab alh arem sob re o b ras em v ários v o lu ­ m es, prenhes de delicadezas e p orm en ores eru d ito s, foram na verdad e (com o nós) levados bem longe po r este livrinho de tal p eq u en ez que fa c il­ m ente se po d eria p erd er entre outros papéis m ais im p o rtan tes, de tal s im ­ p licid ad e que não era seguro se as pessoas o liam ou não, e tão d u v id o so que não se p o d eria sab er ao certo se era um livro de verd ade. M as esta ínfim a prega no liso territó rio do vasto d o m ín io in telectual dos cen so res acabo u por forçá-los, através de um a cad eia um tan to in co n tro lad a de asso c ia çõ es, a co lo carem -se a p erg un ta en tre to d as m ais d ecisiv a para o e statu to da p ró p ria censu ra. E a qu estão é: terem o s nós, cen so res, a últim a palavra sobre as p alavras? Ou m elhor: po derem os nós p o rv en tu ra fech ar o círc u lo em to m o da produção e in terp retação de tex to s, d elim ita n d o -o s? L uís do M onte C arm elo parece ac red itar que tal é po ssível, ou no m ínim o que tal ideal pertence às estritas o b rig açõ es do censor, no qu e aliás está em pleno aco rd o com a própria legislação qu e fu n d a e reg u lam en ta a Real M esa C en só ria “ . Já os restantes cen so res perm an ecem m ais d ub itativo s.

25 Esta categorização cntrc censores “ legisladores” c censores de estratégia mais defensiva deve m uito às ideias de Zygm unt Baum an (L egislators a nd Interpreters. On m odernity, p o st-m o d ern ity a n d intellectuals. C am bridge, Polity Press, 1987) e A ntónio H espanha, nom eadam ente o artigo “O s ju ristas com o couteiros. A ordem na E uropa o ci­ dental dos inícios da idade m oderna” , in A nálise S ocial [Lisboa, IC S], x x x v i, 161.

(21)

U M A TF- Ol . OGI A DA R E C E P Ç Ã O ’ 2 3 1

T alvez, parecem eles q u e re r dizer, que aquilo que ten tam o s c o n te r com o círc u lo da ce n su ra fu ja através da espiral da in terp retação e

-Post-scriptum: deixei este texto term inar abruptam ente, com o term i­

nam às vez.es os docum entos que lemos nos arquivos. Chega-se ao fim de

um fó lio e - nada. Som os fo rçad o s a perguntar-nos que haveria para lá

daquele salto no vazio. Porque é que o texto acaba assim abruptam ente?

Ou seja, que escreveria eu se não tivesse deixado o texto inacabado? Vou

tentar responder a esta pergunta.

Enquanto este f o i um texto inédito estive muito tentado a m anter o

fin a l assim, sem qualquer justificação. Isto porque, ao finaliza r-se a d is­

cussão sobre qualquer livro, aquilo que os censores se perguntam entre

si, ou o próprio censor a si mesmo, no diálogo interior que certam ente

m anteria durante o processo decisório, é o que acontecerá ao livro depois

de lançado à interpretação dos leitores exteriores à Real M esa Censória.

A interpretação é a grande incógnita e ao mesmo tem po a grande condi­

cionante dos censores, e como vemos a maneira de cada um responder a

esta incógnita tem vastas implicações políticas. A questão de Luís do

M onte Carm elo era saber se um censor poderia deixar passar um erro ou

uma fa lsid a d e para a “luz p ú b lic a ”, com consequências fu n esta s a vários

níveis. Francisco X avier de Santana, por outro lado, perguntava-se: esta ­

remos cortando os ramos supérfluos ou as raízes necessárias? Outros

censores avisavam Luís do M onte Carmelo de que a tentativa de circuns­

crever todo e qualquer discurso constituía uma missão inglória, sem pre

sujeita à indeterm inação das utilizações pessoais do escrito <pias ou

supersticiosas, no caso em apreço). A imprevisiblidade destas utilizações

constitui o âm ago da decisão, e a decisão fin a l é quando o censor salta

no vazio. D aí a minha intenção: este salto no vazio do censor seria,

então, o salto no vazio do próprio texto, que se calaria a meio de uma

frase, um pouco à maneira da última fra se de Wittgenstein no

T ractatu s

L o g ico -P h ilo so p h ic u s:

“Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que

se fic a r em silêncio ”

21.

V. ainda Rui Tavares, O Labirinto Censório. A Heat M esa C ensória sob Pom bal (176H- -77), L isboa. IC S-U L , tese de m estrado, 1997, pp. 9-26; Id., “ L em brar, esquecer, cen su ­ rar", in E studos A vançados 27. São Paulo, USP, 1999, pp. 125-154.

22 Ludw ig W ittgenstein, Tractatus, 6.54 | in Tractatus L ogico-P hilosophicus / Investigações Filosóficas, trad, de M .S. Lourenço. Lisboa, F undação C alouste G ulb en - kian, 3* ed.. 20021.

(22)

Não me passou despercebido que este desejo de uma continuidade

entre o texto e o mundo exterior a ele (quando o texto fa la do desconhe­

cido, deve ele próprio calar-se) se encontrava sob a influência dos p ró ­

prios livros-am uleto tratados pelos censores nesta polém ica. Não devo

então term inar sem acrescentar algum as notas, necessariam ente breves,

sobre estes textos.

Uma prim eira característica notória deste tipo de textos é a sua na tu ­

reza vinculativa.

Segundo o

Vocabulário Português e Latino

de Bluteau

am u leto

é

um termo médico. A sua etimologia não está comprovada, mas a hipótese

que se levanta em primeiro lugar é que a origem do termo esteja na pala­

vra grega para “lia m e” ou "atadura”, “porque de ordinário os amuletos se

trazem atados

A ideia de que um amuleto é algo que “ata

",

que alcança,

une e congrega realidades distintas e que, de certa form a, é ele mesmo um

elemento que se encontra entre dois mundos, aparecia também em

Giordano Bruno resumida pela noção de “vínculo”, apresentada no tratado

De M agia

e explorada em pormenor no subsequente

De V inculis in genere.

A noção de “vínculo" é de fa cto a ideia-chave deste pensam ento. Os

textos que pertencem à tipologia das Breves de Marca, e que se encon­

tram no próprio fu n d o da Real Mesa Censória, propõe diversos tipos de

vinculação ao mundo extra-textual. Sugere-se através da utilização do

texto uma intermediação, que se efectiva com o se as práticas associadas

a estes livros pudessem ser uma espécie de ganchos que, a p a rtir do

mundo humano, alcançassem e fixassem (atassem, ligassem ) o mundo

natural, divino ou infernal, constituindo entre todos fe ix e s de com unica­

ção e poder. Estes vínculos podem ser cronológicos, corporais, físic o s ou

outros. Alguns exem plos breves de vinculação

c ro n o ló g ica :

“Ouvindo as horas dirá o seguinte /

Ja c u lató r ia

/ Pelas

vossas Chagas, / Pela vossa Cruz / Livrai-nos da Peste, / Divino

JE SU S ”

Esta indicação promove a ideia de que a repetição de

•’* “ Am u l e t o. T erm o de m édico. D ão-lhe os E tym ologicos varias derivações, G regas. & Latinas. Os que o fazem vir do G rego, o derivão de A nim a, que he Liam e, ou A ta d u ra , porque de o rdinário os A m uletos se trazem atad o s ( ...] " . Cf. B luteau. Vocabulário P ortuguês e Latino, C oim bra, N o C ollegio das A rtes da C om panhia de Jesu, 1712-1728. Interessante tam bém a entrada referente à palavra talism ã (grafada “ talis­ m an") à qual. diversam ente de am uleto, é dado um sentido ím pio de “ vã crença".

* Rem edio Celestial, e D ivinam ente R evelado contra a Peste. D istribue-se no M osteiro, do Sm o. Sacram ento em A lcantara de Lxa., enriquecido com hum a D evotíssim a

Imagem

Fig.  1  -  Palavras  Santíssim as,  e A rm as  da  Igreja  ILisboa,  I7 6 0 |.  C olecção particular.

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