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Corpos do Corpo: Permeabilidade, degeneração e mutação do corpo na prática escultórica

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Academic year: 2021

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CORPoS DO CORPO

Permeabilidade, degeneração e mutação

do corpo na prática escultórica

Bárbara Marques do Rosário

Relatório de Projeto de Mestrado apresentado à Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto em Artes Plásticas- Escultura

Orientação: Professora Doutora Rute Rosas Setembro de 2019

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À Professora Doutora Rute Rosas pelo apoio e pela aprendizagem que me proporcionou nos últimos quatro anos.

À Professora Doutora Filipa Cruz pela motivação.

A todos os técnicos da FBAUP pelo apoio e ensinamentos extraordinários que dão, em especial ao Alcides Rodrigues e ao Carlos Lima.

Aos meus colegas pelo estímulo, pelo espírito de entreajuda e pela amizade. Ao meu irmão e ao meu pai pelo apoio incondicional.

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SOBREVIVÊNCIA

CORPO

TECNOLOGIA

SILÊNCIO

REGENERAÇÃO

ESCULTURA

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Partindo de reflexões e características ontológicas, procura-se, neste

relatório de projeto, analisar o que tem caracterizado a condição humana. Numa perspetiva mais centrada em questões terrenas, mundanas e corporais podemos observar, ou mesmo constatar, diferentes dimensões constituintes do ser: seja pela permeabilidade no modo como estas se constroem e são construídas por si mesmas e pelas relações com o seu entorno. Numa fase posterior, contrapondo às noções iniciais, reflete-se sobre novas ideias e conceitos motivados pelo contexto adjacente à inovação científico-tecnológica. Por um lado, trata-se de uma análise especulativa e crítica, e por outro lado relacional, sobre mudanças de paradigmas que os resultados das inovações tecnológicas poderão representar para o ser humano. No contexto desta investigação materializa-se também uma espécie de fuga e alternativa à inexorável e efémera corporalidade do ser. Estas inquietações são centrais nas concretizações plásticas: nas esculturas que sustentam este projeto. Conceitos como simulação, ficção e representação, em estratégias da materialidade e da composição de corpos-esculturas, procuram servir como diálogos de escape/fuga e/ou alheamento à sobrevivência silenciosa e à distopia.

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This project report seeks to reflect on the characteristics of the human

condition, taking an ontological review as its starting point. From a perspective largely centred on earthly, mundane and corporeal issues, we can observe, or even verify that there are different dimensions to human existence: be it through the juxtaposing fluidity with which these dimensions are shaped and shape themselves, or through their very surroundings. In contrast to this initial perspective, new ideas and concepts brought to the fore by scientific and technological innovation are further reflected upon. On the one hand, this analysis is speculative and critical, but on the other it is also relational, covering paradigm changes that may affect human beings as a result of technological innovation. This research further presents an escape and alternative to the inexorable and ephemeral corporeal nature of human existence. Such restless concerns are at the core of plastic expression: manifest in the sculptures that embody this project. Concepts such as simulation, fiction, and representation embodied by an approach to sculptural composition that seeks to engage the urge to escape and/or become apathetic as a silent means of survival in the face of dystopia.

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RESUMO/ABSTRACT INTRODUÇÃO E ENQUADRAMENTO I. CORPO NO ENTORNO I.1 Evolução e Transcendência- Karl Popper I.2 Homeostasia e Sobrevivência- António Damásio I.3 O “Lugar da Alma”- José Gil II. CORPO-COBAIA II.1 Corpo-cobaia (Registos Médicos) II.2 Nazareth Pacheco- Corpo Congénito e Degenerativo II.3 Efemeridade e Constrangimento III. CORPO-MÁQUINA III.1 Corpo-máquina e Corpo-objeto III.2 Rebecca Horn- Da Potência do Corpo ao Controlo da Máquina III.3 Regeneração e Especulação III.4 Marguerite Humeau- Repensar o Passado para Pensar um Futuro: Identidade e Ficção IV. PROJETO E PROCESSO IV.1 Projeto Prático (fichas destacáveis) IV.2 Reflexões e Considerações Gerais IV.3 Processo e outras imagens do projeto CONSIDERAÇÕES FINAIS BIBLIOGRAFIA

CONTEÚDO

5 11 15 17 22 25 31 34 39 46 51 52 60 68 74 81 83 85 87 113 115

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“42) O corpo é o inconsciente: os germes dos antepassados sequenciados nas suas células, e os sais minerais ingeridos, e os moluscos acariciados, os pedaços de madeira rachados e os vermes que o devoram cadáver debaixo da terra ou então a chama que o incinera e a cinza que daí se retira e resume a impalpável pó, e as pessoas, plantas e animais com quem ele se cruza e ao lado de quem caminha, e as lendas das amas de antanho e os monumentos esboroados cobertos de líquenes e as turbinas enormes das fábricas que lhe fabricam ligas metálicas extraordinárias de que lhe farão próteses e os fonemas rudes ou ciciados que a língua transforma em ruído falante, e as leis gravadas em estrelas e os secretos desejos de assassínio ou de imortalidade. O corpo toca em tudo com a ponta secreta dos seus dedos ossudos. E tudo acaba por fazer corpo, até ao corpus de poeira que se junta e que executa uma dança vibrante

na fina pincelada de luz em que se finda o derradeiro dia do mundo.”1

1 . Jean-Luc Nancy, “Cinquenta e Oito Indícios sobre o Corpo,” Revista de Comunicação e Linguagens- Corpo, Técnica, Subjectividades, nº33 (junho de 2004):20

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A crise do corpo, proporcionada pelos avanços científicos e tecnológicos,

torna-se uma questão proeminente e persistente na contemporaneidade. É necessário pensar sobre o que constitui o humano, pois os conceitos que o definem encontram-se em mutação e as noções clássicas colocam-se em causa, podendo mesmo vir a tornar-se obsoletas. Neste sentido, este relatório desenvolve-se a partir de uma análise inicial de teorias de três autores sobre uma dicotomia que tem apoiado a visão de ser humano: corpo/mente (e alma). São analisadas, nomeadamente, as teorias do filósofo e professor Karl Popper, do médico, neurocientista e professor António Damásio e do filósofo, ensaísta e professor José Gil. Como pensar e definir a ideia de corpo, de mente (consciente e inconsciente), de alma ou de espírito? Apesar de serem de matérias e dimensões de abordagem diferentes, como pensar nas relações que existem entre estas noções do ser que o constituem como indivíduo? Acompanhando teorias que visam uma unidade entre as diferentes dimensões humanas, aborda-se a ideia de indivíduo como um todo que se organiza em partes, cada uma com uma função específica para um objetivo comum. Essas partes interagem entre si e com aquilo que lhes é exterior, construindo-se em concordância com o seu envolvente. De seguida, reflete-se sobre o corpo orgânico como efémero e degenerativo e no constrangimento que decorre daí para o sujeito. Podemos pensar que o corpo, por vezes, sobrepõe-se à vontade da mente? Perante isso, quais são as consequências para o sujeito e as suas reações? O avanço científico-tecnológico como potenciador da mudança de paradigmas corporais: seja pelas próteses mais avançadas, como pela biotecnologia e engenharia genética, entre outras que visam uma hibridação entre orgânico e tecnologia. Que consequências negativas o uso da tecnologia para modificar o corpo pode trazer para o ser humano? Será a humanidade capaz de se adaptar e controlar

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estas transformações? Será um caminho para uma evolução do ser humano – progresso – ou para uma destruição? Utopia ou distopia?

Para investigar estas problemáticas, recorre-se à visão de vários autores que se debruçam sobre a dicotomia corpo/mente, mas também sobre sujeito/corpo-objeto, orgânico/sintético, humano/máquina, humano/não-humano, abordando conceitos como liberdade e felicidade. Embora algumas considerações sejam de um campo ainda especulativo, tenta-se ponderar os efeitos que advêm destes novos paradigmas do corpo. Deste modo, apresentam-se breves revisões sobre autores que analisam esta problemática e que servem às concretizações plásticas deste relatório de projeto como conteúdos e territórios investigativos.

Como complemento dos conteúdos a serem desenvolvidos, surgem, intercalados com o texto, três breves casos de estudo de artistas de referência (Nazareth Pacheco, Rebecca Horn e Marguerite Humeau), das quais os trabalhos plásticos refletem preocupações semelhantes. Estes casos funcionam como ligação à minha prática autoral nas artes plásticas dos conceitos desenvolvidos, relacionando-se não só com os conceitos deste relatório de projeto como também com o projeto prático que lhe é originário. Este último, aparece, por sua vez, referenciado ao longo do texto através de símbolos. Para promover um diálogo entre as diferentes vertentes deste projeto de mestrado (prática e teórica), estes símbolos remetem para fichas destacáveis que apresentam cada trabalho plástico. Na secção “IV.1 Projeto Prático” encontram-se essas fichas, que devem ser destacadas para serem convocadas cada vez que o símbolo correspondente surja. Na versão em PDF, de forma equivalente, os símbolos correspondem a links clicáveis que encaminham para a página onde se encontra a imagem do

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objeto correspondente. Em concordância com a orientação, optou-se por uma escrita que, por vezes, utiliza figuras de estilo, metáforas, por exemplo, mas também, por se tratar de um relatório de projeto, pela inclusão de discurso na 1ª pessoa (eu) em várias situações. Trata-se de um trabalho de investigação em artes plásticas que integra inevitavelmente trabalhos e relatos autorais de carácter pessoal.

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INTERAÇÃO E PERMEABILIDADE

I.

CORPO NO ENTORNO

“O par conceptual soma/psique é antes de mais o eixo em torno do qual gira a gama, não infinita embora variada, dos modos como os diversos sistemas culturais representam aos seus membros relações, analogias e equilíbrios entre diferentes níveis de realidade: níveis que não são apenas os do corpo e do pensamento, da matéria e do espírito, mas também do objeto e do sujeito, do real e do imaginário, do individual e do coletivo, do estático e do mutável etc...”2

2 . Ruggiero Romano, Enciclopédia Einaudi XXXII: Soma/Psique- Corpo (Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1995), 10

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Pensar o corpo biológico como um conjunto de elementos interligados,

interdependentes que constituem um todo é semelhante a afirmar que se tratam de elementos que têm cada um uma ordem e função específica: um todo em partes reguladas umas pelas outras, que existem e se constroem coletivamente.

As partes físicas e as outras entidades reguladoras pertencentes a um corpo vivo, partes não-físicas que lhe são intrínsecas, implicam refletir sobre a existência da mente, psique, do espírito ou alma. Corpo como um sistema que funciona através de um processo resultante da interação entre as partes constituintes e o todo; que interage, constrói e é construído por outros sistemas à sua volta. O Ser Humano como sistema sempre integrado e resultante do seu entorno (físico, social, político) e da experiência vivencial.

Para observar esta questão, é importante considerar o que dizem alguns teóricos sobre a matéria. Quanto ao corpo humano, na sua vertente mais física e observável, já muito foi investigado e comprovado, mas, no que toca a aspetos mais metafísicos e não verificáveis do ser humano – por exemplo a existência da alma – o campo torna-se mais escorregadio e especulativo. Não irão ser analisadas perspetivas dualistas que visam aumentar a separação entre as diferentes dimensões do ser, mas sim perspetivas que visam uma unidade. No entanto, para algumas reflexões realizadas poder-se-á dizer que procurou-se isolar alguns dos elementos constituintes desta problemática (corpo/psique) como estratégia reflexiva.

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Karl Popper (Viena, 1902- Londres, 1994), em O Conhecimento e o

Problema Corpo-Mente (1996), faz uma análise da relação entre corpo e mente,

passando pela ideia de evolução da linguagem e de como é uma necessidade biológica do ser humano o contacto com o conhecimento objetivo (autónomo da mente humana) para resolver problemas essenciais de sobrevivência.

Para introduzir estas ideias, explica a sua teoria dos três mundos, na qual oferece mais destaque e importância ao terceiro mundo. Segundo Popper, o mundo pode organizar-se em três mundos/ três estágios de substâncias. Ao primeiro mundo, designado de mundo 1, atribui o local das matérias físicas e objetos onde se incluem todos os corpos e/ou organismos (corpo). No segundo mundo – o mundo 2 –, localizam-se todos os estados e processos mentais e comportamentais (mente). Para explicar as relações que ocorrem entre estes dois mundos, insere o mundo 3, que é o mundo onde se localizam as ideias, teorias (conhecimento objetivo) e os produtos da mente humana (mas que mantém desta última autonomia). Estes produtos da mente humana que pertencem ao mundo 3 podem, por vezes, pertencer simultaneamente ao mundo 1. Desta situação pode ser exemplo um objeto escultórico ou uma pintura. Em oposição a este, o autor dá o exemplo de uma sinfonia que é escrita em papel e pode ser interpretada de várias formas sendo que, na sua essência, a sinfonia existe apenas no mundo 3 (enquanto o papel onde está registada e a sua interpretação pertencem ao primeiro e ao terceiro mundo). Assim, o mundo 2 interage com a sua “base material” - de onde surge- que é o mundo 1, mas interage também com o mundo 3. A interação do mundo 2 (mente) com o mundo 3 é recíproca na medida em que o ser humano produz objetos para o mundo 3 e recebe também deste último objetos que se formaram

I.1 Evolução e Transcendência

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Figura 1

Esquema que ilustra as relações entre os três mundos de Popper. Retirado de O Conhecimento

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autonomamente (quase como se fossem descobertos por ele depois- pensar na matemática como exemplo). O mundo 3 acaba por interagir com o mundo 1 através do mundo 2, sendo este o agente intermediário entre os dois:

“A teoria em si, a própria coisa abstracta, tenho-a como real porque nos possibilita interagir com ela – podemos produzi-la – e porque ela faz o mesmo connosco. Basta isso para considerá-la real. Pode agir sobre nós

– concebemo-la, utilizamo-la e, por meio dela, modificamos o mundo.” 3

Baseado em algumas afirmações da tese Darwinista4, Popper sustenta

que a consciência/mente foi uma evolução no organismo humano para dar respostas a problemas de sobrevivência. Distingue ainda diferentes níveis de consciência sendo que a mais elevada- consciência plena – pertence apenas aos seres humanos.

Estas afirmações são conclusão de Popper para perceber a evolução

da consciência nos organismos ditos mais evoluídos, sugerindo olhar a questão numa perspetiva que visa pensar esta necessidade como uma questão biológica. Ou seja, perceber que vantagem poderia trazer ao organismo, na sua dimensão física e biológica, o aparecimento de uma mente. Para ir de encontro a esta ideia, o autor faz uma breve análise do comportamento animal. Constata que as ações dos organismos animais se regem por entidades reguladoras que funcionam numa base de sobrevivência – como a regulação do batimento cardíaco ou a procura de alimento(instinto). Afirma ainda, que estas são demasiado rígidas e que se baseiam em sistemas de interpretação básicos que em conjunto com

3 . Karl Popper, O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente (Edições 70, 1996), 63

4 . Charles Darwin (Shrewsbury,1809-Downe,1882) naturalista que com o seu livro “A origem das Espécies” de 1859 contribuiu amplamente para a visão moderna do desenvolvimento dos organismos com base na ideia de seleção natural

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os órgãos dos sentidos não são suficientes em algumas situações inesperadas. Como exemplo, mostra o caso de insetos que se dirigem a vidros, não tendo capacidade interpretativa para discernir melhor como reagir. Desta forma é vantajoso para organismos mais complexos a evolução desse sistema interpretativo (que se torna consciência) juntamente com os órgãos sensoriais. Isto permite antecipar o resultado de situações e expectar as consequências dos mesmos, ou seja, distinguir se estas são positivas ou negativas para o funcionamento do organismo. Isto sugere a emergência da mente (mundo 2) para resolver problemas do corpo (mundo 1). Subsequentemente, o mundo 3 emerge para aprimorar e resolver melhor os problemas do mundo 2, que são problemas mundo 1.

Em relação ao si/self, afirma que este é indissociável do mundo 3 pois formam-se mútua e simultaneamente. Atribui a formação do sujeito consciente à evolução da linguagem nas suas vertentes descritiva e argumentativa que levam ao processo de raciocínio. Separando esta linguagem da que cumpre outras funções de sobrevivência mais básicas e imediatas que coloca no mundo 2 – linguagem que os animais(não-humanos) também possuem. É esta relação de interpretação do mundo 2(mente) sobre o mundo 3 que faz com que haja progressão e evolução seja no trabalho (onde se inclui o processo artístico criativo) ou como em todos os outros campos da vida. Popper chama-lhe “processo de autotranscendência” e refere que este é

conseguido “por meio de um mútuo desenvolvimento e transferência”5

resultante das interações entre os 3 mundos:

“O mundo 3 actua sobre nós num permanente circuito de transferência

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energética. E o aspecto mais activo desse mundo é o nosso próprio trabalho, o produto que reverte a favor dele. A autocrítica consciente pode ampliar em muito tal transferência. A evolução, a coisa mais incrível da vida, e o desenvolvimento mental constituem esse método de dádiva e recebimento, essa interacção entre os nossos actos e os respectivos resultados, por meio dos quais nos transcendemos constantemente a

nós próprios e aos nossos talentos e dons.”6

Assim, sumariamente, salienta-se a ideia de podermos olhar para as

interações corpo-mente-entorno como fluxos entre esses diferentes “mundos”, que se constroem mutuamente entre si. Deste modo, a relação entre organismo e entorno (onde também se inserem outros organismos) constitui uma interação mútua: o ser humano é construído e constrói-se em parceria com o mundo 3, formando uma indissociabilidade entre as três dimensões/substâncias do mundo de forma genérica.

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Numa abordagem diferente, mas com esta ideia de continuidade com que se terminou a análise a Karl Popper, António Damásio (Lisboa, 1944) oferece também a sua visão sobre as interações entre o organismo e o ambiente. Sendo um neurologista, a sua visão foca-se mais nessa perspetiva científica da questão. Vai de encontro à teoria anterior tomando a mesma perspetiva evolucionista, na medida em que observa a formação gradual e evolutiva da mente nos organismos e assume a emergência da mesma como uma necessidade de resposta a problemas de ordem biológica- visando sempre a sobrevivência e o melhoramento da espécie.

A essa necessidade de sobreviver e melhorar, Damásio apelida de

Homeostasia. De forma sucinta, a Homeostasia consiste num princípio básico presente em todos os organismos vivos. É o motor regulador que faz com que surjam outras formas mais evoluídas desses organismos se constituírem internamente e de se relacionarem com o ambiente em que estão inseridos. Segundo este autor, a homeostasia existe desde que existe vida, mas os sistemas nervosos só se formaram muito mais recentemente. Esses sistemas nervosos é que posteriormente evoluíram e passaram a formar uma interação com o resto do organismo. Dessa forma “(…) viriam gradualmente a permitir um processo de mapeamento multidimensional do mundo em seu redor, um mundo que tem o seu início no interior do organismo, de modo a que as mentes – e os sentimentos

nessas mentes – fossem possíveis.”7 Para esse mapeamento foram fulcrais os

órgãos sensoriais (visão, tato, audição, …) que permitem essa interação com o mundo exterior ao corpo.

7. António Damásio, A Estranha Ordem das Coisas- A vida, os Sentimentos e as Culturas

Humanas (Temas e Debates, 2017), 45

I.2 HOMEOSTASIA E SOBREVIVÊNCIA

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Quanto aos sentimentos, o autor considera-os essenciais nesta

perspetiva homeostásica, uma vez que considera que eles são os melhores indicadores do estado do organismo. Desta forma o indivíduo tem indicações sobre o seu próprio bem-estar, na forma de noções positivas ou negativas, de prazer ou de dor e estas formulam assim os motivadores do organismo. A capacidade de antecipação destes sentimentos e raciocínio posterior é que faz o indivíduo agir. Deste modo, semelhantemente a Popper, Damásio afirma que todas as criações intelectuais do ser humano como a Arte, a Filosofia, a Ciência (que na teoria de Popper são parte do mundo 3) foram motivadas pela base genética/biológica, através dos estímulos resultantes do princípio da homeostasia. Ou seja, da manifestação dos sentimentos como motivadores da criação pois antecipam as consequências (sejam positivas ou negativas) para o organismo e fá-lo, através do raciocínio, resolver problemas e criar novas hipóteses. Voltando à ideia anterior, o corpo não existe separadamente da mente

e do cérebro. A mente “emerge do organismo inteiro como um conjunto”8

e é inteiramente dependente da existência de uma rede neuronal que conecta o corpo ao cérebro. É essa rede que passa informação sobre os estímulos corporais apreendidos pelos “portais sensoriais”.9

Depois desta perspetiva mais objetiva e científica, fica a questão de

como poder pensar e localizar no corpo (ou em volta dele) a alma. Será que esta perspetiva deixa menos espaço para conceber partes mais transcendentes relacionadas com o ser? Embora não se debruce muito sobre a questão da alma, Damásio afirma que a sua ideia de mente interligada ao seu conjunto corpóreo

8. António Damásio, O Erro de Descartes- Emoção, Razão e Cérebro Humano (Temas e Debates, 1994), 222

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não depõe a ideia de alma e espírito. Reflete que o local de espírito terá de ser repensado, mas que emerge na mesma do organismo como um todo.

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Em Metamorfoses do Corpo (1997), José Gil (Muecate, 1939) questiona e

debruça-se sobre o lugar da alma e do outro. Começa por constatar que o que vemos no outro é sempre vedado e mediado pelo seu corpo, pelo seu exterior- sendo que o Self é identificado como algo interior que permanece encapsulado no anterior. Temos acesso a esse interior através do corpo que revela amostras corporais, permitindo assim a perceção de manifestações externas do interior (mediadas pelo corpo). Assim, “(…) a experiência vivida de outrem escapa à minha vista, esgueirando-se por entre os sinais que vai animando no visível – expressões do rosto, gestos, palavras, movimentos do corpo”.11 O autor alerta para este engano

de tomar o interior pelo seu exterior: chama a este processo “esquematização”12

(do interior no exterior) e denomina esse engano como “equívoco”13

, mas assume que estes não são necessariamente totais e que as suas noções formam um limiar entre as duas entidades (interior e exterior), o que as torna de certa forma autónomas. Esse equívoco constitui um problema porque, como o autor menciona, o que queremos perceber do outro é o seu íntimo, o seu interior- os seus pensamentos, vivência, emoções/sentimentos – por outras palavras, a sua alma/espírito.

De seguida, chega à questão primordial sobre a localização desse

interior(alma). Se este é ‘interior’ porque pertence a um ‘exterior’ (objetivo e concreto -corpo) que conseguimos localizar no espaço físico, também ele terá de se encontrar algures na mesma zona. Mas, como esse interior é espírito imaterial, não ocupa espaço concreto nem tem limites finitos. Embora tenha lugares onde

10. José Gil, As Metamorfoses do Corpo (Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1997), 148 11. Ibid.

12. Ibid., 149 13. Ibid. 

josé gil

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se manifesta, é assumido, pelo senso comum, que a alma tem esta localização contraditória. Por um lado, quando observamos um ser humano sabemos que no corpo que vemos se encontra uma alma, mas, por outro, sabemos que não se localiza concretamente nele nem se organiza na mesma dimensão.

Assumindo que não será possível definir exatamente o lugar objetivo da

alma, José Gil parte para tentar identificar situações em que há perceção da mesma. Seja num olhar, ou num toque mais íntimo, como o abraço ou numa relação sexual, há uma aproximação ao local da alma. Quando se olha um olhar, não se vê apenas os olhos, as pestanas e as pálpebras. Vê-se e olha-se o outro- vislumbra-se a essência, a profundidade. José Gil destaca ainda que todos os orifícios do corpo, e também a pele (correlação com os sentidos), permitem uma aproximação à essência interior, sendo o rosto uma maior concentração destes – o que o torna mais proeminente nesta questão. Mesmo se pensarmos na perceção individual de cada sujeito, a localização do “eu” torna-se mais fácil de imaginar se for pensada como contida no interior da cabeça (sem ser necessariamente o cérebro). Os olhos, de onde se perceciona o exterior, permitem ver o revestimento corporal à sua volta (pestanas, nariz, …). O autor

encontra assim a sua ideia de “espaço limiar”14, o espaço do sujeito da perceção

que é um espaço-atmosfera, que se situa entre o espaço exterior e o interior, que interage e comunica com ambos (permitindo-os também interagir um com o outro). É, assim, uma zona “que em parte se abre para o exterior, e em parte se estende para trás, nas trevas do interior. Este espaço recebe, pois, a luz indireta da paisagem e ensombra-se na escuridão em que se prolonga. É um espaço intersticial, de sombras, mas de sombras vivas, com luz própria (a que uma certa

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Figura 2

Representação gráfica interpretativa da teoria de José Gil sobre como localizar a alma no espaço interior do corpo.

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filosofia chamou «consciência») – que ilumina pensamentos, sensações, imaginações.”15

É também este espaço limiar que faz a mediação da interação do interior com o exterior-corpo e com o exterior-entorno. O espaço limiar é o sujeito da perceção (consciente), e, portanto, não medeia todas as interações entre interior/ alma e exterior-corpo físico pois há interações inconscientes. Dentro deste espaço interior delimitado pelo espaço limiar onde se situa o sujeito da perceção, é que se poderá, segundo o autor, situar a ideia de mente (que comporta não só o sujeito consciente, mas também inconsciente). Posto isto, conclui que o que procuramos num ‘outro’, quando tentamos comunicar, é esse interior que se localiza entre o espaço exterior e físico do corpo e o espaço interior espiritual, na continuidade da atmosfera do espaço limiar. Este fundo interior é construído por vários níveis de profundidade –criados pela “expansão e fractalização”16

do espaço limiar– que estão agregados uns aos outros e que convergem num ponto do infinito (que se estende para dentro) que é onde, segundo o autor, se situa a alma. A alma está, então, nesse lugar do infinito que não é um lugar, mas “um movimento para. Os diferentes níveis de profundidade a que se situam as emoções, desejos, imagens, não correspondem a uma verticalidade objetiva,

mas a uma tipologia de velocidades de expressão”.17

Em toda a sua reflexão fica clara uma perspetiva de unidade entre corpo

e alma (psique e soma), sendo que as suas considerações se debruçam sobre as relações entre ambas. São essas últimas que constroem um ser como um todo e que fazem com que não possa existir um corpo que não esteja ocupado por um

15 . Ibid., 155 16 . Ibid., 161 17. Ibid. 

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interior/espírito. José Gil reflete ainda sobre esta ideia de corpo vazio, desabitado, perante o qual sentimos repulsa e incapacidade de nos relacionarmos por não ter um outrem idêntico a nós no seu interior – certas doenças criam um afastamento da alma ao corpo e a morte esvazia o mesmo: “Este afastamento sempre possível da alma do corpo é o que permite que «não estejamos bem na nossa pele»; que «não se viva bem o corpo» e, no limite, o que leva à «fortaleza vazia» de que falava Bruno Betelheim referindo-se aos psicóticos.”18

Esta alma descrita por Gil pode ser interpretada como uma alma

ambulante que absorve do exterior-entorno e também escoa por lá ou para lá através de movimentos do corpo. De certa forma, esta é semelhante à perspetiva de Karl Popper (apresentada anteriormente), na medida em que ambas as ideias descrevem as interações entre os diversos elementos constituintes da realidade quase como fluxos de energias e essências multidirecionais. A alma que se pensa aqui não é aura. É algo mais da verdade do que da aparência, não é percecionada nem atribuída social e culturalmente como a aura pode ser. As questões sobre a alma ficarão por responder de forma clara e conclusiva. Será como algo que não tem uma explicação, mas que existe e até poderá ser essencial. Não é o self, mas está no self.

Ainda sobre a relação interior/exterior do corpo, Gil afirma que a ideia

de espaço interior é paradoxal e apoia-se no conceito de corpo-sem-órgãos de Gilles Deleuze (Paris, 1925- 1995) e Félix Guatarri (Villeneuve-les-Sablons, 1930- La Borde Clinic, 1992). Esse espaço interior do corpo é dito de interior apenas porque é contido dentro do espaço exterior-corpo e porque não é

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percecionado do exterior. A pele esconde esse interior no corpo, mas assim que aberta esse interior deixaria de existir. Nem um corpo próprio “vivido do interior” nem um “corpo de outrem «percepcionado do exterior» (…) se dão à percepção de uma presença”.19 O autor refere um “inconsciente do corpo”20

, por ser inconscientemente vivido e pensado desta forma, como se estivesse vazio de algo corporal, sem o organismo visceral que lá se aloja. Essas vísceras, quando se fazem notar, criam uma sensação de desconforto que denunciam esta visão inconsciente:

“Este viver do corpo faz-me senti-lo como «a mais», como uma coisa, como se eu fosse reduzido precisamente a um organismo. O que significa que a percepção «normal» do espaço interno é

a de uma não-presença, ou melhor de uma impresença.”21

19. Ibid., 178 20. Ibid., 183 21. Ibid., 179

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31

II.

CORPo-cobaia

“34) Na verdade, «o meu corpo» indica uma posse, não uma propriedade. Quer dizer, uma apropriação sem legitimação. Possuo o meu corpo, trato-o como quero, tenho sobre ele o jus uti et abutendi. Mas ele possui-me por sua

vez: ele puxa-me ou tolhe-me, ofusca-me, detém-me, empurra-me, afasta-se. Somos um par de possessos, um casal de dançarinos demoníacos.” 22

(34)

32

O corpo físico é um limite permeável. Tem limitações materiais, está

sujeito às leis físicas como todos os outros corpos; tem um espaço que ocupa, tem movimentos próprios, mas finitos. Está sujeito a contingências próprias que o restringem e que não se alteram, quanto muito aumentam- com o envelhecimento ou a doença, por exemplo. Como pensar a relação entre o corpo físico com a mente e outras dimensões do ser? Pode-se pensar o controlo da mente sobre o corpo como limitada, sendo que o corpo físico tem uma autonomia e assim retira alguma liberdade da mente se manifestar através dele, afetando assim as suas possíveis interações com o seu entorno? “(…) as long as the body is healthy and the mortality is beyond the horizon of consciousness, associating the self with the body comes easily.”23 Na sequência da ideia de corpo-sem-órgãos, tal como José Gil e Arthur Frank (EUA, 1946), Ieda Tucherman24 afirma que apenas quando “é danificado ou quando adoece, o corpo se faz presente, sendo percebido pela consciência como um outro. Simbolicamente o corpo presente na experiência [é] a rutura do sujeito.”25

Assim, seja por envelhecimento ou por situações de doença ou debilitação repentina ou progressiva, podemos pensar que o corpo vai ganhando poder sobre a mente? Se isolarmos mente/consciência e corpo físico,

23. Arthur Frank, “The Body’s Problems with Illness,” The Body: A Reader, ed. Mariam Fraser e Monica Greco (Routledge, 2005)

24. Ieda Tucherman (da qual não se encontra disponível a data de nascimento) é atualmente professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Conta com vários artigos publicados e um livro Breve História do Corpo e dos seus Monstros publicado pela primeira vez em 1999. É também coordenadora do grupo de pesquisa “Imaginário Tecnológico” que pertence ao programa de pós-graduação na universidade onde leciona.

25. Ieda Tucherman, Breve História do Corpo e dos seus Monstros (Lisboa: Nova Vega, 2012), 91

(35)

33

podemos pensar que o corpo com a sua parte autónoma, contraria, desobedece e obriga a mente a ser limitada por ele? O ser consciente não tem controlo totalitário sobre o corpo, ele tem expressões próprias. Gonçalo

M. Tavares (Luanda, 1970) aborda esta questão da “vergonha do corpo”26

afirmando que “o corpo tem reações exteriores autónomas. O corpo é um animal. Aquilo que o corpo faz, ele fá-lo sozinho.”27

Se por um lado se pode pensar nesta “limitação” da mente pelo corpo

físico, também se pode observar o inverso. Se o corpo deixa de funcionar “corretamente” a mente sofre alteração. Quando o corpo deixa de funcionar (por completo ou parcialmente) e é forçado a adaptar-se e a moldar-se a esse novo modo de existir no mundo físico. Será que o inverso é igualmente ‘problemático’? Se o sujeito-consciência se debilita o que acontece ao corpo? Será esta uma perspetiva de valorização da mente sobre o corpo? E quando acontece o que se classifica como uma relação psicossomática em que a mente interfere (maioritariamente) de forma inconsciente no corpo e “lhe dá comandos” para certas funções que não deseja. Culpa o corpo? – Relações psicossomáticas: quando a mente consciente ou inconscientemente interfere no funcionamento orgânico interno do corpo.

26. Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação (Editoria Caminho, 2013), 223 27. Ibid.

(36)

34

Como parte do processo de investigação relativo a este relatório

de projeto, registei vários procedimentos médicos a que fui submetida- rinolaringoscopia, endoscopia, colonoscopia e exames ginecológicos. Os vários procedimentos materializam a ideia de inspeção/análise do interior do corpo físico e que para isso implicam necessariamente a ideia de invasão e penetração. Algo exterior que entra no interior e interage com ele, tocando-lhe, causando-lhe dor. Objeto externo que entra no espaço desconhecido e toca lugares nunca tocados. O interior do corpo, que em estado normal de ausência de dor não é vivido, passa a ser sentido, causando uma sensação de estranheza. Os cheiros, os sons, as temperaturas e as texturas do espaço médico/hospitalar percecionadas pelo utente. A frieza dos objetos médicos externos que entram no interior corporal quente.

Este processo investigativo regista a experiência vivenciada por mim,

permitindo a visualização de partes do meu corpo que nunca tinham sido visualizadas. Através das imagens conseguidas, há uma exteriorização de movimentos e comportamentos do organismo interno. Os registos realizados permitem também a observação dos reflexos automáticos do corpo em situações de invasão que o sujeito consciente não controla nem tem capacidade de interferir. Esta visita ao interior físico e visceral possibilita igualmente refletir sobre as contingências da organicidade do corpo humano, o seu caráter e funcionamento “autónomo”, mutável e degenerativo. Para além destas questões, a experiência simboliza ainda o abandono necessário do sujeito ao controlo do seu corpo para o “dar” a terceiros que o passam a manipular e a “arranjar”, mexendo nele, alterando-o e podendo melhorá-lo ou piorá-lo. Trata-se do uso do meu próprio corpo como cobaia, como objeto de experiências - no sentido médico e científico mas também enquanto paciente. O meu corpo que

registos médicos

II.1 corpo-cobaia

(37)

35

Figura 3

Fotograma de registo vídeo de endoscopia digestiva, março de 2018

(38)

36

Figura 4

Fotograma de registo vídeo de rinolaringoscopia, 2017

(39)

37

Figura 5

Fotograma de registo vídeo de endoscopia março de 2018

(40)

38

sente, é tocado e é manipulado e depois exterioriza essa vivência. Experienciar na primeira pessoa e analisar o vivenciado como base e estímulo conceptual para as concretizações plásticas. As concretizações plásticas que surgem destas experiências, em geral, não contêm referências diretas ou visuais do processo de investigação, mas remetem para o mesmo através de uma estratégia metafórica- simulando ambientes, formas e sensações guardadas na memória, ou melhor, na recordação dos momentos experienciados.

(41)

39

Nazareth Pacheco, artista plástica brasileira, nasce em 1961 em São

Paulo. Devido a ser portadora de uma doença congénita degenerativa, desde nascença, a artista teve de ser múltiplas vezes sujeita a operações cirúrgicas, com posteriores operações plásticas de reconstrução. O seu percurso artístico manifesta fortemente um carácter autobiográfico, que decorre, essencialmente, dessa sua vivência com a doença. Se nos seus trabalhos iniciais era menos evidente essa relação, nos seus trabalhos posteriores começa a ser cada vez mais explícita. Por exemplo, em alguns trabalhos seus de 1990(figura 8), usa borracha vulcanizada em contraste com elementos metálicos em que as formas criadas remetem para objetos de tortura, de uma forma mais geral e abstrata. Mais tarde aborda as mesmas questões de uma maneira mais objetiva e acutilante, com as suas séries de objetos para o corpo- colares, vestidos, adornos de beleza- feitos com materiais nocivos para o mesmo (figura 6). Perante esta série de objetos que apresenta, todos eles usualmente usados pelo corpo, há uma primeira sensação de atração e sedução provocada pelos materiais que utiliza como missangas e pérolas. Só depois, quando o observador se aproxima, é que se torna visível a presença de lâminas e outros materiais cortantes nocivos ao corpo no caso de serem utilizados. Ao mesmo tempo que servem ou adornam e embelezam o corpo, também o mutilam. Deste modo, sugere uma reflexão crítica sobre a manipulação do corpo feminino na tentativa de atingir determinados ideais de beleza, para além de se referir ao seu próprio percurso e sofrimento pessoal.

“Mas como denominar de «colares» essas hipóteses ornamentais, feitas de agulhas de sutura, lâminas de bisturi e giletes, entremeadas de miçangas e cristais? Além do fato de previligiar uma parte do corpo, elevando o pescoço a uma região fetichista, é curioso observar que a veia jugular se situa perto da garganta e que, portanto, qualquer corte seria fatal. A artista aproxima perigosamente o prazer e a agressão até

corpo congénito e degenerativo

(42)

40

Figura 6

Nazareth Pacheco

Sem Título, 1997

Cristal e agulhas de sutura, 90 x 16 x 6 cm

Imagem retirada de Catálogo 24ª Bienal de São Paulo-

(43)

41

uma fusão dos dois instintos.”28

As temáticas que aborda podem ser vistas como uma transposição para o contexto sociológico da sua experiência pessoal (do individual para o coletivo), onde o lugar do corpo, especialmente o da mulher contemporânea, se torna muito presente. Este inserido num contexto de questionamento dos padrões de beleza vigentes, potenciados, por exemplo, pela cultura de massas (aos quais as mulheres sofrem uma pressão acrescida para se enquadrarem, muitas vezes recorrendo a adornos estéticos ou a cirurgias plásticas). Ainda neste sentido, a autora aborda também várias situações de transformação do corpo feminino, por exemplo em casos como na gravidez ou em processos de prevenção da mesma. Embora os seus trabalhos sejam sobre o corpo, a grande maioria não apresenta uma representação explícita e concreta do corpo. Trata-se de um corpo ausente com uma estética de limpeza aparente. A referência ao corpo é feita, geralmente, através de objetos que estabelecem uma relação com o corpo, normalmente para serem usados por ele ou agirem sobre ele -cadeiras, baloiços, vestidos, colares, instrumentos hospitalares, ou seja, “o corpo visto através dos instrumentos que

são utilizados para examinar seus órgãos, ou para abordá-lo cientificamente”.29

Segundo a artista, esses objetos materializam a ideia de “invasão e manipulação”

do corpo, remetendo para “corpos que foram muito invadidos”.30 Objetos frios,

exteriores ao corpo que o invadem e tocam o seu interior, causando dor.

28. Lisette Lagnado, “Uma Lógica do Adorno,” Catálogo da 24ª bienal de São Paulo-

Nazareth Pacheco, 1998

29. Aracy Amaral, “Espelhos e Sombras,” Catálogo 24ª Bienal de São Paulo- Nazareth

Pacheco, 1998

30. Nazareth Pacheco, Gilete Azul, vídeo, 16 min., realizado por Miriam Chnaiderman, 2003

(44)

42

Figura 7

Nazareth Pacheco

Sem Título, 1995

Saca miomas, saca-rolha e borracha, 30x 25 x 3 cm

Imagem retirada de Catálogo 24ª Bienal de São Paulo-

(45)

43

Figura 8

Nazareth Pacheco

Sem Título, 1989

Cobre e borracha, 140 x 50 x 2 cm

Imagem retirada de Catálogo 24ª Bienal de São Paulo-

(46)

44

Figura 9

Nazareth Pacheco

Sem Título, 1994

Espéculos, Coleção mamsp

Imagem retirada de Catálogo 24ª Bienal de São Paulo-

(47)

45

O trabalho de Pacheco pode ser visto numa perspetiva de busca de

prazer, numa tentativa de viver bem com o sofrimento e prosseguir em vista à sobrevivência, focando-se no “questionamento das normas que definem o bem-estar do organismo”, criando uma “negociação sem fim entre saúde física e saúde mental”31. Nas palavras do pedagogo, médico e crítico de arte Paulo

Cunha e Silva (Beja, 1962- Porto, 2015) os trabalhos da artista “[s]ão sedutoramente repulsivos e repulsivamente sedutores. Por isso, apesar de estranhos, são-nos extremamente conviviais. A história da Dor, do Sofrimento é uma história coletivamente individual. Todos nós sofremos, mas o sofrimento de cada um (podendo ser comunicável) não é partilhável. A artista precipita e clarifica essa

comunicação através da manufatura destes espelhos da dor”.32

No contexto deste relatório de projeto, é de salientar a grande ligação ao contexto médico e hospitalar que o trabalho de Nazareth Pacheco traz ao espetador. Juntamente com essa questão, a ideia de degeneração, dor física e frieza, aliadas à doença e ao sofrimento individual numa situação de sobrevivência. Comunicação de dores pessoais, materializadas e “cristalizadas” em objetos plásticos que surgem de uma experiência pessoal vivida, analisada e posteriormente exteriorizada. Também pertinente comparar, em relação à componente prática deste relatório, a abordagem plástica que vem de uma temática sobre o corpo que não apresenta o mesmo de forma direta, como previamente mencionado.

31. Lagnado, “Uma lógica do adorno”

32. Paulo Cunha e Silva, “Cristais de dor,” Catálogo Galeria Canvas- Nazareth Pacheco, 2000

(48)

46

No percurso natural de um corpo é esperada uma evolução e

transformação ao longo do tempo que, num processo mais ou menos progressivo, leva à morte. Por vezes esse percurso é “interrompido”/ antecipado por certas doenças ou por fatores externos (ex.: acidentes, acontecimentos). A doença pode levar à morte, em caso último, ou pode limitar o ser (seja limitação física ou mental). Para se refletir sobre a falência do corpo físico, orgânico, podemos separar duas situações distintas: Em caso de doença provisória, leve, passageira, em que é visada uma recuperação total das funções perdidas é feita uma pausa e uma espera; noutra situação diferenciada, no caso de doença aguda prolongada, em que pode ser expectável a recuperação parcial das funções normais do organismo ou pode ser uma situação irreversível. Uma situação em que o organismo se continuará a deteriorar e, eventualmente, levar a uma antecipação/ aproximação da morte – o que pode ser um processo mais ou menos prolongado, mais ou menos sofrido. Em caso de mau funcionamento é necessário, por sobrevivência, tentar resolver o problema. É procurada a cura, a desaceleração para a morte ou melhoramento da vida. O apoio médico/medicina é vulgarmente o caminho para uma solução mais proeminente e o contexto hospitalar é o espaço onde ocorre a recuperação, a espera, mas também a morte. Atualmente, o ser humano comum continua sem conseguir resolver sozinho os problemas de saúde a que eventualmente estará sujeito (até por invalidez

33. Nancy, “Cinquenta e Oito Indícios sobre o Corpo”, 15

II.3

efemeridade e constrangimento

10) O corpo é também uma prisão da alma. Ela expia nele uma pena cuja natureza não é fácil de discernir, mas que foi muito grave. É por isso que o corpo é muito pesado e muito penoso para a alma. É-lhe necessário digerir, dormir, excretar, suar, sujar-se, ferir-se, adoecer.” 32

(49)

47

por exemplo). É, portanto, uma necessidade recorrer a terceiros (profissionais de saúde) que possam ajudar a reparar o funcionamento do corpo ou tornar mais confortável a existência. Isto implica uma crença no sistema que oferece esse serviço e dar crédito às pessoas constituintes que nele operam. Implica também depositar confiança e entregar o corpo às falhas de outros sujeitos/ corpos. Invasão do corpo por outro corpo- permissão para outro corpo tocar o primeiro. Invasão e Penetração: quando o corpo é tocado em áreas internas que nunca foram “tocadas” por corpos exteriores.

“A rudez da carne surge no corpo que falha, e que o faz porque a carne fica doente ou é tocada pelo não-conhecido não-humano. Quando isto se dá, como invasão da physis na experiência, vivida como sofrimento e como dor, todos os conhecimentos e todos os esforços são convocados para reinstaurar a imagem do corpo, “alma secularizada” que deve impor-se à presença da carne, expulsando-a da visão. O corpo é assim

uma idealização da carne, espécie de outra pele invisível.”34

O constrangimento e a dor provocados no sujeito pela manifestação

ou falha do corpo são sempre processos individuais. A impossibilidade da partilha da dor prende-se com o caso de não ser possível sentir o mesmo que outro ser. Apesar de poder ser representada e comunicável, não é partilhável. Isso torna a dor um processo individual e solitário, embora possa haver empatia e compaixão por parte de um outro. “A dor como

o que mais nos empurra para fora do mundo e para dentro do corpo.”35

A dor atinge a sua dimensão por ser impartilhável o que é garantido pela sua resistência à linguagem36 :

34. Tucherman, Breve História do Corpo e dos seus Monstros, 92 35. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação

(50)

48

“Physical pain does not simply resist language but actively destroys it, bringing about an immediate reversion to a state anterior to language, to the sounds and cries a human being makes before language is learned (…)”37

Refletir sobre esta questão da falência do corpo (e do constrangimento

adjacente) num sentido mais amplo. Ver a mesma não só num contexto de confronto individual com a falência do próprio corpo, mas pensá-la no contexto da alteridade e inserção sociocultural. Como reagir à questão quando observada num sujeito próximo? A sociedade não está (na sua prioridade) formulada e organizada para corpos/seres disfuncionais que apesar de serem situações naturais, expectáveis, inevitáveis e frequentes não são a ‘norma’. Um corpo de um ser é esperado socialmente que esteja em funcionamento pleno e otimizado- quando está doente é esperada a sua recuperação o mais depressa possível. Segundo Norbert Elias (Breslávia, 1897- Amesterdão, 1990), a sociedade ocidental é marcada por uma geral regulação de “impulsos emocionais” e

por uma “reticência quanto às funções corporais de outras pessoas” 38, Ambas

podem ser vistas como falhas indesejadas de um corpo que não é controlado e otimizado. Isso demonstra uma individualidade inerente e uma frieza quanto ao outro visto de uma forma coletiva, que Elias identifica como sendo uma

“característica dos últimos estágios de um processo civilizacional”.39

É também pertinente contrapor que, apesar das questões acima

Fraser e Monica Greco (Routledge, 2005), 325 37. Ibid.

38. Norbert Elias, “Civilization and Psycossomatics”, The Body: A Reader, ed. Mariam Fraser e Monica Greco (Routledge, 2005), 96

(51)

49

descritas se focarem numa perspetiva talvez mais negativista, houve uma significante melhoria e avanço civilizacional nesta questão de apoio, inserção e melhoria do corpo disfuncional. Por exemplo, num contexto da natureza animal(irracional) selvagem, indivíduos disfuncionais têm muito menos possibilidades de sobrevivência comparativamente a outros da mesma espécie. Numa outra perspetiva, tendo em conta a evolução tecnológica e civilizacional, Yuval Noah Harari (Qiryat Atta, 1976) chama-nos à atenção para um crescimento de consciência e responsabilidade humanitária, notando que isso se deve ao progressivo desenvolvimento cientifico-tecnológico do último século. Afirma que, no contexto ocidental atual, se há uma falha ( inclusive a morte) é se pensada uma causa para essa mesma e encontrado um responsável, ou é feito um esforço em tentar perceber o que provocou essa falha “técnica” no sentido de a superar:

“Atendendo ao que conseguimos alcançar no séc. XX, se as pessoas continuarem a ser afetadas pela fome, pelas epidemias e pela guerra já não poderemos culpar Deus ou a Natureza. Melhorar as coisas e reduzir ainda mais o sofrimento são objetivos ao nosso alcance. Mesmo as pessoas comuns que não estão envolvidas em investigação científica habituaram-se a pensar na morte como um problema técnico. Quando uma mulher vai ao médico e pergunta se tem algum problema, o profissional de saúde poderá dizer-lhe que tem uma gripe, tuberculose ou um cancro. Mas o médico jamais lhe dirá que o problema dela é a morte. Toda a gente sabe que a gripe, a tuberculose e o cancro são problemas técnicos para os quais talvez um dia seja encontrada uma solução técnica.” 40

Da condição humana fazem parte o erro/falha, a degeneração e a

(52)

50

inexorável e, até agora, irreversível morte. Pertence-lhe assim uma noção de duração e efemeridade que lhe é indissociável da qual o tempo é agente. Estas condições criam no sujeito um constrangimento e angústia por ser algo para a qual não há concretamente uma explicação, uma falta que as diferentes crenças culturais e religiões vêm colmatar. O medo da ideia de um fim. Harari afirma que, ao longo dos tempos, as religiões mostraram-se bastante tolerantes em relação à morte pois perspetivavam sempre uma existência posterior além da terrena, o que fazia com que não se “[consagrasse] a vida enquanto valor

supremo”.41 Recentemente, como vimos anteriormente, a cultura moderna, a

tecnologia e a ciência propiciam uma abordagem diferente sobre a doença e a morte, tornando-as “um problema técnico que pode e deve ser resolvido”.42 Estas perspetivas possibilitam o sujeito de se libertar das falhas desagradáveis do seu corpo. No seguimento desta ideia, segundo Jean Baudrillard (Reims, 1929- Paris, 2007), “[a]penas no espaço infinitesimal do sujeito individual da consciência a morte adquire um sentido irreversível” e que, portanto, “há que esconjurar esta morte que está por toda a parte na vida, (…) [e] localizá-la num ponto preciso no espaço e no tempo: no corpo”.43 41. Ibid., 33 42. Ibid.

(53)

51

“15) O corpo é um invólucro: pois serve para conter aquilo que depois há que desenvolver. Desenvolvimento interminável. O corpo finito contém o infinito,

que não é a alma, nem o espírito, mas antes o desenvolvimento do corpo.”44

44. Nancy, “Cinquenta e Oito Indícios sobre o Corpo”, 16

(54)

52

O ser humano sempre teve curiosidade em superar as suas condições ontológicas que o constituem e definem/delimitam. Perante situações como a morte, a doença ou o sofrimento, tem vontade de as contornar e de se melhorar, numa busca de prazer e felicidade- característica do instinto de sobrevivência. Uma procura de “um corpo perfeito ou glorioso que escape à fragilização que o tempo desfere nos corpos”45

Harari, na sua análise da contemporaneidade e de previsões para

o devir46, sugere uma possibilidade do alcance da imortalidade num

período relativamente próximo. Contextualiza que esta vontade do ser humano de se suplementar deste modo virá da exponencial melhoria de condições de saúde e bem-estar (já observável nos países ditos mais

desenvolvidos) que define como “saúde, prosperidade e harmonia”47

anunciando que as mesmas deixam espaço para querer alcançar outras mais ousadas ambições.

“Ao procurar a felicidade e a imortalidade, os humanos estão, na verdade, a tentar ascender ao nível dos deuses. Não apenas porque estas são qualidades divinas, mas também porque terão de adquirir um controlo quase divino do seu próprio substrato biológico, a fim de vencer o envelhecimento e a infelicidade. Se alguma vez tivermos o poder para eliminar a morte e a dor do nosso sistema, esse mesmo poder será provavelmente suficiente para redefinir a bel-prazer o nosso sistema e para manipular de inúmeras maneiras os nossos órgãos,

45. José Bragança de Miranda, “Corpo utópico,” Cadernos Pagu, nº15 (2015):251, https:// periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635583/3364 (acedido em junho de 2019)

46. Conceito de Gilles Deleuze e Felix Guatarri anunciado em diversos textos e publicações dos autores.

47. Harari, Homo Deus: História Breve do Amanhã, 32

(55)

53

emoções e inteligência. Se assim o quiséssemos poderíamos adquirir a força de Hércules, a sensualidade de Afrodite, a sabedoria de Atena ou a loucura de Dionísio.”48

Argumenta ainda que “o nosso compromisso ideológico para com a

vida humana nunca nos permitirá a mera aceitação da morte (…), seja qual for a causa, nós tentaremos dominá-la” e prevê que “os novos objetivos da humanidade

sejam a imortalidade, a felicidade e a divindade”49. O autor, mantendo

maioritariamente uma posição analista, contra-argumenta que acha pouco viável certas futurologias feitas por alguns investigadores da área, mas assegura que pelo menos um aumento da esperança de vida gradual (em vez da imortalidade) é bastante provável, credível e que por si só trará mudanças de paradigmas culturais profundamente significantes num futuro bastante próximo.

A contemporaneidade é descrita amplamente como um período de crise do corpo e alguns autores mencionam mesmo o “fim do corpo”50

ou a “morte do corpo”51. Este período de passagem é constituído por grandes

transformações e permite observar o que outrora foi a conceção de corpo, a que tem vindo a ser e a que poderá vir a ser. É já conhecido que as novas tecnologias, que se têm desenvolvido exponencialmente, abalaram a conceção de corpo e têm vindo a expandir cada vez mais as suas potencialidades. É através da ciência e técnica que o ser humano determina a sua transformação e desenvolvimento.

48. Harari, Homo Deus: História Breve do Amanhã, 33 49. Ibid., 31

50. Maria Augusta Babo, “Do corpo protésico ao corpo híbrido,” Revista de Comunicação e

Linguagens- Corpo, Técnica, Subjectividades, nº33 (junho de 2004):32

(56)

54

“O mundo contemporâneo é testemunha do desenraizamento das arcaicas matrizes de sentido – fim das grandes narrativas (marxismo, socialismo, etc.), dispersão das referências da vida quotidiana, fragmentação dos valores. Neste contexto de desorientação, é o próprio indivíduo quem traça os seus limites, para o melhor ou para o pior, quem erige de forma volúvel e deliberada as suas próprias fronteiras de identidade, a trama de sentido que norteia o seu caminho e lhe permite

reconhecer-se como sujeito.”52

De forma semelhante a David Le Breton (Le Mans, 1953), José Bragança de

Miranda (Lisboa, 1953), denomina esta condição contemporânea de “corpo

utópico”53, afirmando que ocorre uma passagem do lugar da utopia do mundo

para o corpo. O corpo passa a ser o espaço da utopia, lugar de transformação e projeção de desejos, idealização e mudança. Nesse sentido, o corpo já não é visto como lugar de fronteira onde se localiza a identidade do sujeito, que se diferencia

de todos os outros objetos que o rodeiam.54 O corpo torna-se também um objeto

passível de ser utilizado, manipulado, construído pelo sujeito – torna-se “processo

(…) [e] projeto”55 do sujeito. O ser humano toma as rédeas da sua existência e

evolução, e “além de objecto de evolução passa a ser também sujeito. Além de produto é agente do seu destino evolutivo.”56

52. David Le Breton, “O Corpo Enquanto Acessório da Presença,” Revista de Comunicação e

Linguagens- Corpo, Técnica, Subjectividades, nº33 (junho de 2004):67

53. Miranda, “Corpo utópico”, 251

54. António Fidalgo e Catarina Moura, “Devir (In)orgânico- Entre a Humanização do Objecto e a Desumanização do Sujeito,” Revista de Comunicação e Linguagens- Corpo, Técnica,

Subjectividades, nº33 (junho de 2004):199

55. Ibid.

56. Luís Archer, “Tecnologias biológicas e liberdade,” Revista de Comunicação e Linguagens-

(57)

55

Na mesma sequência de ideias, o corpo pode ser visto como “acessório

da presença”57 do sujeito, permitindo a este último redefinir-se, reinventar-se e

reposicionar-se no seu entorno, “para se tornar enfim si mesmo”.58 É esta “actual

afirmação do corpo [que] leva paradoxalmente à crise do corpo moderno”59.

Deste modo, em vez do dualismo clássico corpo e mente/alma (conforme foi desenvolvido no primeiro capítulo) pode-se pensar que a contemporaneidade é mais marcada pela oposição entre o ser humano/sujeito e o seu corpo físico.

“A pós-modernidade assume a carne como material de trabalho e suporte dos avanços da técnica. Penetrada, modificada, desintegrada, a carne é o palco das fusões que anunciam não o fim, mas as possibilidades

do humano no futuro evolutivo da espécie.”60

Algumas das razões que estão na base desta tendência à construção

do corpo são potenciadas pela cultura de massas e pelos media, motivados por interesses económicos na exploração da mesma. Esta vontade do sujeito de se autoconstruir, é observável em situações atuais como a frequência excessiva do ginásio ou do culturismo, o uso crescente de piercings e tatuagens, a cosmética e as cirurgias plásticas e estéticas, entre outros exemplos. Segundo Ieda Tucherman, esta esteticização do corpo já se fazia notar na antiguidade grega, em que o corpo era treinado e aprimorado para chegar a um ideal. Este ideal de corpo grego alia-se a “princípios de uma estética da existência, que nos convida a uma existência da estética.”61

A estas práticas estetizantes aliam-se também uma crescente adesão a políticas

57. Breton, “O corpo enquanto acessório da presença”, 67 58. Ibid.

59. Miranda, “Corpo utópico”, 258

60. Fidalgo e Moura. “Devir (In)orgânico”, 199

(58)

56

de género, na defesa dos direitos de diferentes “corpos” em minoria. Para Le Breton, a transexualidade corporaliza esta questão contemporânea:

“O corpo do transexual é um artefacto tecnológico, uma construção cirúrgica e hormonal, um retoque plástico apoiado numa vontade de ferro. Senhor da sua existência, o transexual pretende assumir por uma vez uma aparência sexual adequada ao seu sentimento pessoal. O seu sexo de eleição é resultado de uma decisão própria e não de um destino anatómico”62

Como vários dos autores previamente citados63 observam, o corpo

torna-se objeto quando é rompida a pele que o encapsula e protege, revelando o interior do corpo como um conjunto de sistemas interligados em funcionamento sistemático. Atribui-se, como causa desta, as primeiras experiências dos anatomistas, que ao realizarem autópsias e análises começaram a desmistificar o interior do corpo e a analisar o seu funcionamento, contribuindo progressivamente para a criação de uma imagem coletiva do mesmo. Posteriormente, devido a avanços tecnológicos na área, torna-se possível ter uma visão acessível do interior do corpo – em alguns casos, como a endoscopia, sem ter de o abrir ou perfurar, através do uso de variados dispositivos ópticos (câmera endoscópica, Raio-X, Ressonância magnética, …). Assim, cria-se no imaginário coletivo uma visão suficientemente consensual que altera/interfere na conceção de corpo próprio.

“a dissecação, revela o seu funcionamento mecânico, substituindo a alma pelo fluxo sanguíneo e pelas reações nervosas como fonte de

62. Breton, “O corpo enquanto acessório da presença.”, 71

63. Gil, Miranda e Breton mencionam a questão segundo a mesma perspetiva, enquanto Fidalgo e Moura o fazem, citando Breton.

(59)

57

animização do corpo.” 64

Devido a esta imagem sobre o corpo orgânico, nasce uma noção de corpo

como uma máquina, sendo este um conjunto de elementos interdependentes. Partes de um todo que funcionam para um objetivo em comum. René Descartes (La Haye en Touraine, 1596-Estocolmo, 1650), ‘pai’ desta corrente mecanicista do corpo, comparava-o a um relógio ou a um sistema hidráulico, afirmando que as suas “funções biológicas (…) [poderiam,] então, ser reduzidas a operações quantitativas, ao choque de forças e tensões e a funções de causalidade”.65

Esta conceção leva à vontade de substituir estas perecíveis partes da máquina por outras ‘peças’ mais eficientes, mais duradouras ou até com outras capacidades. Através dos desenvolvimentos da bioengenharia e da biotecnologia, as perspetivas de melhorar a ‘máquina’ tornam-se cada vez mais reais. Aliada a esta temática surge o plano da prótese- um elemento que vem complementar ou colmatar uma falha do corpo ou suplementá-lo – a prótese como reconstrução e melhoramento do corpo com falhas e como superação dos limites do corpo. Não sendo já apenas para substituir um membro ou uma capacidade perdida, a prótese passa a ser suplemento daquilo que constitui o Ser Humano – o que implica que este vê como falha, que pode ser retificada, certos dos seus limites constituintes (morte,

doença, …). A evolução do ser humano, passa por uma “libertação do corpo”66

progressiva, que transforma gradualmente o corpo, ampliando e potenciando

64. Fidalgo e Moura. “Devir I(n)orgânico”, 201

65. Cláudia Murta, “O Autômato: Entre o Corpo Máquina e o Corpo Próprio.”

Natureza Humana, v.17, nº2 (2015):76, http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_

arttext&pid=S1517-24302015000200004 (acedido em julho 2019) 66. Babo, “Do Corpo Protésico ao Corpo Híbrido”, 39

(60)

58

as suas capacidades. Essa libertação é feita através de “peças” externas, numa

“evolução exógena”67 que pode ir desde o uso de utensílios diários ao uso do

telemóvel, do carro, do computador, etc... Por conseguinte, o corpo “acolhe a

técnica”68 deixando de ser um corpo limitado, unitário e fechado. A considerar

como prótese são também os medicamentos em crescente consumo, num ritmo de vida e sociedade para a qual o corpo não se encontra suficiente- são exemplo os antidepressivos, os ansiolíticos, suplementos, entre outros. São “próteses químicas (…) para regular matizes afectivos da relação ao mundo (…) contemporâneo, para manter-se à tona num sistema cada vez mais ativo

e exigente.”69 Atualmente a prótese externa como suplemento (em oposição

a complemento) não se restringe apenas a agrupar ou manipular objetos externos. A verdadeira evolução está-se a tornar a manipulação do orgânico em conjunto com o inorgânico, criando um híbrido, um outro, um humano depois

do atual: um “pós-humano”.70

“É a capacidade de explorar, acoplando, o inorgânico que acaba por definir o orgânico. O processo conhecido por hominização não se caracteriza pelo aparecimento de uma espécie nova mas antes pelo aparecimento de uma nova forma de vida.(…) incorporar ou interiorizar a técnica que opera uma transformação no corpo e ainda na própria ideia de sujeito ligada a um corpo mutável, num ser híbrido e mutante(no sentido de aberto, na sua existência mesma, à mutação) (…) [o] sujeito

deixa de ser o lugar do eidos imutável para se dar em constante devir.”71

67. Popper, O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente, 44 68. Babo, “Do Corpo Protésico ao Corpo Híbrido”, 31

69. Breton, “O corpo enquanto acessório da presença”, 71 70. Babo, “Do Corpo Protésico ao Corpo Híbrido”, 34 71. Ibid., 30-31

Imagem

Figura 10 Rebecca Horn Measure Box, 1970
Figura 11 Rebecca Horn
Figura 12 Rebecca Horn
Figura 13 Rebecca Horn El Rio de la Luna, 1993
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Referências

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