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Pensamento-música e a filosofia de Gilles Deleuze.

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE

PATRÍCIA BIZZOTTO PINTO

PENSAMENTO-MÚSICA E A FILOSOFIA DE GILLES DELEUZE

Ouro Preto 2017

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Patrícia Bizzotto Pinto

PENSAMENTO-MÚSICA E A FILOSOFIA DE GILLES DELEUZE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia da Arte do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura, da Universidade Federal de Ouro Preto, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre. Linha de Pesquisa: Estética e Filosofia da Arte Orientadora: Profª. Drª. Cíntia Vieira da Silva

Ouro Preto 2017

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Catalogação: www.sisbin.ufop.br

Orientador: Profª. Drª. Cíntia Vieira da Silva.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de Filosofia, Arte e Cultura. Departamento de Filosofia. Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia da Arte.

Área de Concentração: Filosofia.

1. Deleuze, Gilles, 1925-1995. 2. Música . 3. Ritmo. 4. Pensamento. 5. Criação. I. Vieira da Silva, Cíntia. II. Universidade Federal de Ouro Preto. III. Titulo.

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AGRADECIMENTOS

A todos com quem pude conversar, criar, tocar, compor, dividir espaços, casas, ideias, “cafés”, dúvidas, angústias, livros, filmes, músicas e silêncios, desde quando comecei esta pesquisa, permeada de golpes, absurdos e tropeços.

Aos mais próximos - com quem convivo intensamente -, pelo imediato e por tudo. Ao Gilson Iannini, pela força e incentivo desta pesquisa desde o seu começo. À Cíntia Vieira, minha orientadora, por todos os momentos de paciência, de risos, de carinho e pela escuta estimulante, respeitosa e atenta de todo percurso deste trabalho.

À CAPES e aos governos Lula e Dilma pelo incentivo e fomento às pesquisas dos brasileiros e dos residentes no Brasil.

Ao Thiago Borges, por assumir (com carinho e humor singulares) boa parte da revisão e da formatação deste texto.

À professora Virgínia Figueiredo, por incentivar a colaboração e trânsito livres nas universidades públicas e receber de forma acolhedora pesquisadores de outras comunidades acadêmicas nos laboratórios e grupos de estudo em filosofia da UFMG.

À Fundação de Educação Artística – colegas e alunos – com quem pude experimentar e trocar algumas ideias sobre pensamentos-música.

A todos da comunidade IFAC – professores, colegas e funcionários - com quem pude conviver em Ouro Preto, mesmo que rapidamente, ao longo dos dois anos. Agradeço, principalmente, ao Guilherme Paoliello, por todos os estímulos.

À Nathália Fragoso, pelo convite a Pulsações e suas decorrências. Ao Matthias Koole, por sua persistência com as Quartas de Improviso (e por ter me incentivado a participar).

À cidade de Belo Horizonte, por suas ruas, por aquilo que ela tem de mais acolhedor, surpreendente e político.

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(...) c’est l’idée que le temps et l’espace forment une unité (...). Autrefois, on pensait en catégories musicales telle que la polyphonie, la mélodie, l’harmonie, etc. Je pense en structures et formes musicales dans lesquelles le temporel est conçu en fait de manière spatiale – comme si tout était présent en même temps.

György Ligeti (“Changement de paradigme des années quatre-vingt”, 1988)

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RESUMO

Esta dissertação pretende apresentar a ideia de um pensamento-música. Ela parte da filosofia de Gilles Deleuze – desde algumas primeiras publicações, como Diferença e Repetição, até obras em parceria com Félix Guattari, como Mil Platôs, Kafka - por uma literatura menor e O que é filosofia? – sob uma perspectiva estética e sua relação com o musical e o sonoro. Pretende-se investigar, dentro desta perspectiva, a relação e os limites entre o sonoro-musical, a sensação, a criação e o pensamento. Para tanto, foram rastreados, no contexto do encontro de Deleuze com as artes e de seu encontro com Félix Guattari, a incidência (articulações, modulações, relações de vizinhança) de conceitos que na perspectiva desta dissertação entendem-se como “musicais”. Tais conceitos são aqui analisados e discutidos junto com a noção de movimento do ato de pensar/sentir/criar, compondo um plano que problematiza de forma subjacente alguns limites da filosofia.

Palavras-chave: Gilles Deleuze, música, dinamismos espaço-temporais, ritmo, diferença,

repetição, filosofia, criação, pensamento-música.

RÉSUMÉ

Ce mémoire de master cherche à présenter l’idée d’une pensée-musique. On part de la philosophie de Gilles Deleuze – depuis ses premiers ouvrages, comme Différence et Répétition, jusqu’aux œuvres écrites avec Félix Guattari, comme Milles Plateaux, Kafka – pour une littérature mineure et Qu’est-ce que la philosophie ? – sous une approche esthétique et son rapport avec le musical et le sonore. On prétend investiguer, dans cette perspective, le rapport et les limites entre le sonore-musical, la sensation, la création et la pensée. Pour cela, il a été investigué l’occurrence (c’est à dire, les articulations, les modulations, les rapports de voisinage) de concepts qui selon la perspective de ce mémoire sont-ils entendus comme « musicaux ». Tels concepts sont ici analysés et discutés à partir de la notion de mouvement de l’acte de penser/sentir/créer, en composant, ainsi, un plan qui problématise de manière sous-jacente certaines limites de la philosophie.

Mots-clés : Gilles Deleuze, musique, dynamismes spatio-temporels, rythme, différence,

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LISTA DE FIGURAS

Fig. 01 Sessão A de Pulsações (2015), para piano preparado e luz,

de Nathália Fragoso Rossi ... 31

Fig. 02 Exemplo de um rallentando “simétrico”... 32

Fig. 03 Exemplo de um rallentando “assimétrico”, desigual... 33

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APRESENTAÇÃO ... 11

1 PENSAMENTO-MÚSICA ... 14

1.1 Introdução de um pensamento-música ... 14

1.2 Deleuze e a música ... 16

1.3 Ritmo, velocidades e lentidões ... 20

Exemplo: Velocidades e lentidões na peça Pulsações, de Nathália Fragoso Rossi ... 30

1.4 Clusters e dissonâncias ... 34

1.5 Caos, catástrofe, material-força, plano de composição ... 35

1.6 Pequenas impressões particulares sobre audiovisual, imagético, sonoro e a confusão das multimídias ... 48

1.7 Sensação, regimes de signos, corpo, pensamento... 51

1.8 Lembranças... Lembranças e devires... Devir-música ... 70

2 ALGUNS PONTOS DE ANÁLISE PARA A PERGUNTA “O QUE É FILOSOFIA?” ... 73

2.1 “O que é filosofia?” ... 73

2.2 Diferença e Repetição ... 76

2.3 Dois, vários ou um só método? Desterritorialização e dramatização no pensamento nômade ... 84

2.4 De novo: (...). E o corpo ... 99

3 O TEMPO E OS TERRITÓRIOS: O RITORNELO ... 109

3.1 Tempo, espaço, movimento ... 109

3.2 A emancipação do tempo ... 110

3.3 Territórios, agenciamentos, expressão: a geografia sonora do ritornelo .... 116

CONSIDERAÇÕES FINAIS 125

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APRESENTAÇÃO

Esta dissertação parte da intercessão entre música e filosofia. Dizemos intercessão pois o objeto (se é que podemos definir, assim, nestes termos) que pretendo analisar parece se localizar naquilo que se pode dizer ser filosófico e musical, ao mesmo tempo. O contexto de elaboração desse objeto é móvel ou talvez dubio. É o risco que se corre quando nos encontramos nos domínios transdisciplinares e interdisciplinares. Evitarei usar estes dois termos. São empregados neste trabalho esta única vez. Falaremos de intermezzos, entre meios. Entre filosofia e música pode-se ter a sensação de que o trabalho se encontra insuficiente de um lado e do outro. Todavia, o que se procura aqui é de alguma forma percorrer, deslocar, ir e vir, confluir fronteiras que separam o território em dois lados.

Partimos, essencialmente, dos trabalhos de Gilles Deleuze, filósofo francês do século XX. Nesse sentido, pode-se dizer que nos situamos mais na filosofia do que na música. Assim, considero a possibilidade de que parte dos leitores deste trabalho serão não-músicos (ou músicos, sem saber que os são). Espero ter “dado a pensar” e tornado algumas das noções musicais aqui trabalhadas próximas e acessíveis, de alguma maneira.

O trabalho pretende apresentar a ideia de um pensamento-música. Pensamento-música começa no encontro de uma perspectiva da filosofia de Deleuze em sua relação com o musical e o sonoro; essa perspectiva, diremos já de uma vez, resumidamente, é aquela que configura a lógica da diferença e da repetição. Para tanto, será analisada uma parte do encontro de Deleuze com as artes, bem como alguns conceitos trazidos por ele, que, ao nosso ver, estão em consonância com certas musicalidades. O debate sobre a noção de movimento subjaz toda a pesquisa e nos servirá como uma espécie de ponto nodal recorrente.

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Assim, no primeiro capítulo, denominado “Pensamento-música”, serão apresentadas ao leitor algumas problemáticas e noções que irão compor um plano sonoro-musical com a filosofia de Deleuze, tendo em vista a constituição de seu conceito da multiplicidade e da diferença e a sua formulação sobre o conceito de sensação. Esboçaremos, assim, uma primeira leitura sobre as noções de dinâmica e de cinética no pensamento desse autor. Nesse capítulo, o leitor irá perceber a incidência quase incessante de outras vozes - compositores, músicos, matemáticos, pesquisadores, acadêmicos. Elas vão constituir boa parte da bibliografia secundária desta dissertação.

No segundo capítulo, o pensamento-música estará subjacente a uma localização da filosofia, enquanto objeto de pesquisa, mais explícita e emergente. A música e a análise da musicalidade na filosofia de Deleuze traçarão, de maneira mais abstrata talvez, outros lugares possíveis para a pergunta perseguida pelo filósofo ao longo de sua trajetória, a saber, “o que é filosofia?”.

Expressões relacionadas ao menor (isto é, relacionadas às ideias de intensidade, imperceptível, molecular, micropolifonia, ruídos indesejados, escapulidas) estarão presentes em toda a dissertação. O sentido de menor é compreendido através do conceito de desterritorialização e em sua ligação imediata com o político. É por este viés que menor remete ao micro, ao molecular, aos devires.

No terceiro capítulo, retornaremos à superfície o pensamento-música, em uma espécie de ritornelo, ou coda, do que fora discutido nos capítulos anteriores. É um capítulo breve e em certa medida conclusivo. A este capítulo foi dado o nome de: “O tempo e os territórios: o ritornelo”.

Trouxe para a dissertação alguns exemplos musicais e situações da vida para nos auxiliarem na formação de algumas críticas. Não pretendo formular nenhum tipo de censura com esses exemplos, tampouco traçar um caminho de redenção, mas, muito antes,

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compartilhar impressões vividas ao longo da pesquisa e tentar dividir um processo de elaboração. Alguns destes exemplos estão nas notas de pé de página desta dissertação, que ocorreram de ser muitas.

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1. PENSAMENTO-MÚSICA

1.1 Introdução de um pensamento-música

Muito provavelmente, as expressões “pensamento-(...)” nasceram depois do curso que Deleuze deu sobre o cinema, em 1984, intitulado “Cinema e Pensamento”, década em que ele publicou os dois tomos: A movimento - Cinema I (1983) e A imagem-tempo - Cinema 2 (1985). Dentro de uma densidade de questões que Deleuze buscou

aprofundar com o cinema, o curso de 1984 parece ter tido como eixo central a problemática da imagem do/no pensamento - tema que já o perseguia desde os anos 1960, quando ele publicou, em um só ano, Lógica do Sentido e Diferença e Repetição, em que aparecem submersas questões sobre o pensamento em si mesmo, a duração, o movimento e o corpo. De “Cinema e Pensamento” para um pensamento-cinema. Em uma entrevista dada em 1986, sobre Foucault, Deleuze conta que vê a obra foucaultiana como um amplo projeto sobre o ato de pensar e considera que, em seus últimos livros, Foucault passa a pensar a existência não sob uma perspectiva do sujeito, mas, usando uma expressão de Nietzsche, como uma obra de arte: “esta última fase é o pensamento-artista”1

. De qualquer forma, o que interessa nas formulações “pensamento-arte” é uma premissa de que há uma operação de pensamento que é construída com/nas artes e que as artes, às suas maneiras, nos forçam a pensar. Isso motivou minha pesquisa sobre a possibilidade de um pensamento-música, uma vez que a música é, comparando grosseiramente às artes visuais, “sem imagem”. Em determinado momento da pesquisa, encontrei um livro que havia

1 DELEUZE, Gilles. Conversações. “A vida como obra de arte”. Trad. Peter Pal Pelbart. – São Paulo: Editora 34, 2013 (3a edição). (Coleção TRANS), pp. 123, 124.

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acabado de ser publicado, organizado por Pascale Criton (compositora e ex-aluna de Deleuze), intitulado, justamente: Gilles Deleuze, o pensamento-música 2

.

A maior dificuldade em uma pesquisa em filosofia sobre pensamento-arte a partir da obra de Deleuze se encontra, ao meu ver, em uma tendência de se concentrar a pesquisa na primazia de um possível conteúdo filosófico dos artistas, ora parafraseando seus escritos, ora restringindo-se à leitura que Deleuze faz deles. Esse procedimento pode ter a sua utilidade em determinados momentos, mas acaba se distanciando um pouco da arte, isto é, as músicas, as pinturas, os filmes, mesmo que estes possam estar ali, como inspirações subjacentes. Para além disso, noto que alguns filósofos leitores de Deleuze incorrem nisso que eu vejo como uma armadilha. Ao buscarem traçar paralelos, em uma pesquisa sobre Deleuze e música, entre o pensamento do filósofo e o do compositor Pierre Boulez, por exemplo, restaurando o que este último escreveu sobre música, à sua época, retornam a Deleuze, entendendo o seu pensamento sob um princípio de semelhança e identidade. Por este motivo, busquei pesquisar junto com o pensamento deleuziano, incluindo as suas obras com Guattari e textos de seus leitores, pesquisas de compositores e outros artistas atuais, ainda vivos, que produzem com a história da música do século XX as suas próprias pesquisas e pensamentos musicais, como por exemplo Silvio Ferraz e os colegas Nathália Fragoso Rossi, Igor Reyner, Mário Del Nunzio, entre outros; na tentativa, assim, de escapar de uma análise estritamente comparativa em favor da criação de zonas de vizinhança e confluências.

Assim, de uma maneira geral e ainda introdutória, pressupõe-se uma estreita relação entre a arte, mais especificamente a música, e o lugar da filosofia deleuziana, no âmbito da crítica do pensamento representativo e de sua “imagem dogmática”. Essa intercessão entre arte e pensamento como forma de crítica à autoridade da representação já

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se esboçava em Deleuze desde seus primeiros trabalhos, como em Nietzsche e a filosofia, publicado em 1962. O que está em jogo para Deleuze é, justamente, um pensamento forçado a pensar, isto é, movido por forças intensivas, e que possa, só assim, engendrar

sensibilidades e conceitos intempestivos e inatuais, tentando por essas vias uma abertura para a escuta de outras racionalidades, dos devires-imperceptíveis da história3

.

A musicalidade que pretendemos analisar no pensamento filosófico de Deleuze possui mais de um sentido. Como pressuposto, Deleuze faz uso de determinados conceitos provindos do léxico musical como parte do seu vocabulário filosófico, como por exemplo: ritmo, ressonância, dissonância, melodia, ritornelo, timbre. Nota-se, para além disso, uma tentativa de incorporação de tais conceitos na expressão do seu pensamento, na maneira de empreender parte de sua atividade enquanto filósofo... Pensamento-música seria, por um lado, destinado a pensar operações musicais a partir da música, isto é, sobre a música e, por outro, um interesse àquilo que a música “coloca em movimento no pensamento”4

. De algum modo, esses dois sentidos parecem funcionar bem juntos.

1.2 Deleuze e a música

Sabemos que ao longo de sua vida Deleuze teve um grande interesse pela música e pelos problemas musicais. Algumas pistas biográficas mostram que, em determinado momento de seu denso percurso filosófico, o até então ouvinte de Edith Piaf e do famoso Bolero, de Maurice Ravel5

, passou a pesquisar música de forma mais intensa e imersiva,

3 « O pensador exprime assim a bela afinidade entre pensamento e vida: a vida fazendo do pensamento algo ativo, o pensamento fazendo da vida algo afirmativo. Essa afinidade em geral, em Nietzsche, não aparece somente como o segredo pré-socrático por excelência, mas também como a essência da arte ». DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la Philosophie. Paris: PUF, 1983. (6a ed.), p.116 (Tradução minha).

4 Expressão de Pascale Criton em Gilles Deleuze, la pensée-musique, p. 10 (“Avant-propos”).

5 DOSSE, François. Gilles Deleuze e Félix Guattari: biografia cruzada. Trad. Fatima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2010.

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como parte de sua investigação e metodologia filosóficas. Para tentar entender alguns conceitos musicais, Deleuze se aproximou de alunos compositores e instrumentistas (como a compositora Criton), produzindo com os seus seminários encontros diversos para debates e diálogos sobre a música6

. Passou a frequentar o repertório da música de concerto, incluindo a escuta e leituras de textos de compositores maduros, contemporâneos a ele, tais como Olivier Messiaen e Pierre Boulez, para citar alguns. Notamos, portanto, que o interesse de Deleuze pelas problemáticas ditas musicais parece ter sido progressivo, acompanhando, de certa forma, toda sua pesquisa sobre demais produções artísticas (literatura, teatro, cinema, pintura).

Então, mesmo não tendo escrito nenhuma obra específica sobre música, Deleuze incorporou, ao longo de sua trajetória, diversos conceitos musicais. Em sincronia com o aprofundamento de suas investigações, estes furtos também se deram de maneira progressiva. Talvez a suspeita de um percurso progressivo com música na obra de Deleuze proceda, para além de sua “biografia”, da análise de Anne Sauvagnargues em seu livro sobre Deleuze e a arte (Deleuze et l’art). A autora propõe uma panorâmica sobre a questão da arte na obra de Deleuze que percorre um itinerário, um tanto quanto polêmico – pois cronológico –, que parte primeiramente da literatura (momento em que Deleuze escreve sobre Zola, Tournier e publica Proust e os signos e Apresentação a Sacher-Masoch); depois, dedica-se à crítica da interpretação e à lógica das multiplicidades (a partir do encontro com Guattari e a “virada pragmática do pensamento” com Anti-Édipo, Kafka, Artaud, Rhizome e Superpositions, com o ator, dramaturgo e cineasta Carmelo Bene); e,

um terceiro momento, quando, a partir de Mil platôs, Deleuze se consagra, segundo

6 Segue link de um registro de uma aula sobre Leibniz e a harmonia, dado em Vincennes, em 1987, com a participação de Pascale Criton que à época pesquisava o cromatismo, assunto que tornou-se de significativo interesse para Deleuze: https://www.youtube.com/watch?v=_JBMX6uECxc (último acesso em fevereiro de 2017).

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Sauvagnargues, à questão da “semiótica da imagem” e da criação artística7

. O que percebemos, com Deleuze et l’art, é que há uma espécie de progressão da filosofia de Deleuze com a arte que se sustenta por um eixo que parte do discursivo ao não discursivo, às artes não discursivas, por assim dizer. Desde seu encontro com Guattari, a tensão entre discursivo e não discursivo é percorrida pelo estatuto da interpretação em defesa de uma semiótica do assignificante (como parte, certamente, de toda crítica dos dois à psicanálise)8

. Assim, poderíamos dizer com outras palavras, ainda sob a elaboração de Sauvagnargues, que o primeiro período da filosofia deleuziana inaugura uma reflexão sobre a imagem do pensamento. No segundo período, com o encontro com Guattari e os escritos de Artaud, Deleuze constitui uma crítica à linguística, transformando o estatuto da literatura; vale lembrar que é neste momento que ele escreve Lógica da sensação, a lógica do signo não discursivo, dos “traços assignificantes”9

. Depois disso, seus trabalhos se concentrariam, de acordo com Sauvagnargues, em torno do problema da criação (nas artes, nas ciências, nas filosofias), quando a semiótica da imagem toma toda a sua importância.

7 SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze et l’art. Paris. PUF. 2009.

8 DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol.1. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. - São Paulo: Ed.34, 2007, p. 85: “Assim como há expressões assemióticas ou sem signos, há regimes de signos assemiológicos, signos assignificantes, simultaneamente nos estratos e no plano de consistência. Tudo o que se pode dizer sobre a significância é que ela qualifica um regime, nem o mais interessante, nem o mais moderno ou atual, simplesmente talvez mais pernicioso, mais canceroso, mais despótico que os outros, por ir mais fundo na ilusão”. DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs: capitalismo e

esquizofrenia, vol. 3. Trad. Aurélio Guerra Neto. - São Paulo: Ed.34, 1999, p. 24: “Tomemos agora o estrato

de significância: aí ainda, existe um tecido canceroso da significância, um corpo brotando do déspota que bloqueia toda circulação de signos, tanto quanto impede o nascimento do signo assignificante sobre o "outro" CsO. Ou então, um corpo asfixiante da subjetivação que torna ainda tanto mais impossível uma liberação porque não deixa subsistir uma distinção entre os sujeitos.” DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs: capitalismo

e esquizofrenia, vol. 4. Trad. Suely Rolnik. - São Paulo: Ed.34, 2008, p. 72: “Devir imperceptível quer dizer

muitas coisas. Que relação entre o imperceptível (anorgânico), o indiscernível (assignificante) e o impessoal (assubjetivo)?”. DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 2. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. – Rio de Janeiro, Ed.34, 1995, p. 81, nota de pé de página de número 53: “Semiotize você mesmo, ao invés de procurar em sua infância acabada e em sua semiologia de ocidental”. 9 “Pois essas marcas, esses traços são irracionais, involuntários, livres, ao acaso. Eles são não representativos, não ilustrativos, não narrativos. Mas não são significativos nem significantes de antemão: são traços assignificantes. São traços de sensação, mas de sensações confusas (as sensações confusas que trazemos ao nascer, dizia Cézanne) ”. DELEUZE, Gilles. Francis Bacon - Logique de la sensation. Paris. Seuil, 2002 (L’ordre philosophique), p. 94. (A versão brasileira que esta dissertação usa é a de Annita Costa Malufe e Silvio Ferraz, documento extraído da internet, sem referências. Algumas citações do original são traduzidas por mim. (p. 51, Malufe e Ferraz).

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Mas, curiosamente, é neste mesma fase que Deleuze dedica, com Guattari, todo um platô ao conceito de ritornelo, este “cristal de espaço-tempo”, “sonoro por excelência”10

.

Alguns outros comentadores de Deleuze salientam que tenha sido justamente a partir de seu encontro com Guattari que os seus trabalhos tenham se dirigido de forma mais assumida às artes e à criação, quando ele escreveu as suas duas obras sobre o cinema, uma sobre a pintura, outras sobre o barroco, sobre Verdi, sobre Beckett e, finalmente, O que é Filosofia?, de novo em parceria com Guattari, em que o tema da criação se estabelece

como ponto nodal. Para além disso, o que notamos é que tal encontro de Deleuze com a arte, concomitante ao seu encontro com Guattari, coincide com um trabalho mais explícito e assumido sobre política.

No entanto, o presente trabalho não considera que a força de um pensamento resida necessariamente no grau de “explicitez” sobre a coisa a qual se deseja pensar. Acreditamos que o alcance de um pensamento é engendrado polifonicamente e muitas vezes se faz ali, em uma dissonância ou outra, nos microtons, nos “sons indesejados” trazidos com o acaso. Talvez seja sob tal perspectiva, a da lógica de um devir-imperceptível (devir que não é menos intensivo, ressoante e propositivo), que Deleuze leia alguns filósofos ilustres, constrangendo algumas consonâncias da história da filosofia11

.

Considero que seja sob essa mesma perspectiva, a de uma micropolifonia, digamos assim, que Deleuze “frequente” alguns pintores, dramaturgos, músicos, cineastas, escritores. De qualquer forma, na pesquisa sobre o encontro da filosofia de Deleuze com a música, os trabalhos em parceria com Guattari não exercem necessariamente uma

10 DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol. 4, pp.166-167.

11 Em mais de uma passagem Deleuze reivindica um estatuto às ideias obscuras na filosofia (lugar de um “sem fundo”, do caos, da crise, de uma instabilidade) à primazia das ideias iluminadas, « claras e distintas », sentido de Verdade para Iluminismo. Mas, para além desses termos, falaremos mais adiante nesta dissertação sobre o papel da dissonância atribuído por Deleuze, e por Guattari, na efetivação da consistência (dos planos, dos ritornelos, das criações). A dissonância presente nos “acordos discordantes”, nos devires-imperceptíveis, nas sínteses disjuntivas, nas polifonias, nas heterogêneses, nas multiplicidades.

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primazia. Pois, por mais que Deleuze tenha escrito sobre ritornelo, sobre o devir-música, Messiaen e os personagens rítmicos, Schumann, Boulez, o liso e estriado, Varèse, etc. só a partir de 1980, nota-se que desde o começo, ainda na década de 1960, Deleuze investiga o problema da duração, da multiplicidade, do movimento e da repetição (e da diferença, conceito fundamental), com Espinosa, Proust, Bergson, Simondon, Uexküll, Nietzsche... A provocação de um pensamento-música também se localiza nos limites de tais problemas, uma vez que eles são preciosos para música. Portanto, embora seja perceptível que Deleuze tenha em determinado momento se apaixonado pela música, convocando-a para suas investigações mais profundas, não adoto plenamente a leitura de Sauvagnargues, de uma progressão da filosofia de Deleuze. Em 68, ano em que ele também escreve Lógica do sentido, Deleuze publica Diferença e Repetição, obra que, na perspectiva do presente

texto, reúne e condensa muito do que propõe o “pensamento deleuziano”, as suas filosofias (como adota Sauvagnargues), ou a sua filosofia12

.

1.3 Ritmo, velocidades e lentidões

É isso que é a velocidade relativa do pensamento. A razão exige que haja um ritmo do pensamento (…). Mais uma vez, isso vai muito mais longe do que dizer-nos: « O pensamento toma tempo ». O pensamento toma tempo, Descartes o teria dito, eu lembrei disso da outra vez, Descartes o teria dito. Mas o pensamento produz velocidades e lentidões e ele mesmo é inseparável de velocidades e lentidões que ele produz. Existe uma velocidade do conceito, existe uma lentidão do conceito. O que que é isso? Então… bom. Do que falamos ser « rápido » ou « lento » habitualmente? É bem livre isso que estou dizendo agora. É para dar a vocês vontade de ir ver esse autor (Espinosa). Não sei se eu consegui, talvez eu obtive o contrário. Eu ainda não estou fazendo um comentário ao pé da letra. Eu faço de vez em quando, como acabei de fazer mas… vocês me entendem…13

12 Desta forma, tomo como um ponto de partida primeiro – referindo-me à cronologia da minha pesquisa - a investigação trazida por Silvio Ferraz em sua leitura pioneira (pelo menos no Brasil) sobre diferença e repetição e a música. Consideramos que a pesquisa deste compositor-filósofo trouxe, tanto para os estudos filosóficos quanto para as pesquisas musicológicas e composicionais, uma riquíssima contribuição.

13 Curso de Deleuze sobre Espinosa, dia 02/12/1980, Paris. Disponível em: http://www2.univ-paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=91 Último acesso em 13/02/2017. (Tradução minha.)

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Se partirmos do pressuposto que a duração, a cinética e a dinâmica compõem parte significativa do arcabouço teórico da filosofia de Deleuze, é natural que a noção de ritmo apareça em seus textos de forma recidiva. Porém, nesta recorrência temos muitas vezes a impressão que Deleuze emprega o “ritmo” para substituir algum conceito ou acrescentar sentido a alguma outra expressão. Por estas recorrências entrelaçadas, bem típicas em Deleuze, pode ser difícil identificar isoladamente o ritmo enquanto um conceito preciso ao qual ele se debruçou. Todavia, o ritmo parece exercer um papel elementar para as lógicas14

da filosofia deleuziana, além de trazer uma instigante contribuição para a música.

Ritmo e repetição. Por força de determinadas tradições, podemos associar o ritmo

àquela repetição dada por uma relação de simetria, que reproduz o retorno de elementos idênticos em intervalos idênticos de tempo. No entanto, o que percebemos com Deleuze é que o ritmo funciona como uma espécie de modulador, estando sempre atrelado às variações e à diferença, conferindo à repetição um sentido intensivo, sentido este determinante da natureza da repetição. Então, ao invés de se apresentarem como regularidades e como elementos associados a um tempo cronológico (concepção abstrata de ritmo, para Deleuze), os ritmos aparecem em sua obra, justamente, como elementos diferenciais e atualizadores; como moduladores de forças; como multiplicidade; como elementos articuladores de heterogêneos (corpúsculos, meios, espaços-tempos); como um meio para dissimetrias; como incomensuráveis; como operadores da variações contínuas;

como vetores da sensação; como marcas de coexistência de meios (transcodificação); como criadores de pontos notáveis, que marcam o desigual como uma positividade.

14 David Lapoujade, em seu mais recente livro, Deleuze, os movimentos aberrantes, identifica na filosofia deleuziana a primazia da lógica, da produção de lógicas e de todas exigências a elas inerentes. Nas palavras de Lapoujade, « Deleuze é, antes de tudo, um lógico, e todos os seus livros são « Lógicas » ». LAPOUJADE, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. - São Paulo: N-1 edições, 2015, p.11.

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Os acontecimentos rítmicos são, portanto, desigualdades, produzidas por “valores tônicos e intensivos”, em um espaço-tempo. E, segundo Deleuze, esta é a condição da duração. Ele diz que “a duração só existe determinada por um acento tônico, comandada por intensidades”15

. Mas ao considerarmos essa repetição, a repetição-duração, como a repetição do movimento verdadeiro, interrogamos sobre o estatuto do espaço na cinética e dinâmica trazidas por Deleuze. Nota-se que, com Espinosa, Deleuze recorre às velocidades e lentidões. E que ao se referir ao “espaço” ele se servirá de expressões como território, terra, meio, plano, praia, platô, diagrama, liso e estriado. Estes dois últimos são trazidos por Deleuze e Guattari, em Mil platôs, por influência do pensamento musical do compositor Pierre Boulez, que em 1968 publica o livro Pensar a música hoje16

, onde ele explora o par liso/estriado para se referir a modos de tempo na música. Um espaço é sempre povoado e ocupado por individuações intensivas. Mas, como se dá a diferença de natureza entre espaço e tempo para Deleuze?

Uma fonte possível para responder a esta pergunta é Bergson, filósofo francês, da virada do século XX, sobre quem Deleuze escreveu um livro ainda no seu primeiro momento filosófico (se formos adotar aquela abordagem de Sauvagnargues sobre as fases do pensamento deleuziano com a arte). É notável a influência de Bergson na obra de Deleuze, na sua formulação do conceito de diferença. Apesar desta dissertação não abarcar um estudo aprofundado em Bergson, arrisco dizer, através de minhas pequenas leituras de textos dele e de Deleuze sobre ele, que uma das maiores preocupações de Bergson residiu na distinção necessária entre as diferenças de natureza e de grau. Para ele, a compreensão desta diferença (natureza/grau) possibilitaria a formulação de problemas filosóficos reais; sem termos claramente tal distinção entre os elementos que compõem um problema

15 DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Tradução Luiz Orlandi/Roberto Machado. - Rio de Janeiro: Graal, 2006 (2a edição), p. 46.

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estaremos diante de um falso problema. Deleuze não vê nessa aparente clivagem um dualismo em Bergson. Pois, da divergência realizada através do então “método de intuição”, que discerne as diferenças de natureza (em contraposição às diferenças de grau), Bergson parece dizer de forma monista que: tudo o que é presença pura diverge por natureza. E tudo isto que se diferencia alterando a natureza faz parte da duração. Portanto é a duração que “altera”. Porém, para além da “viravolta” da experiência, é necessário haver um ponto de convergência que permita dar-se conta do misto, que faz do misto uma unidade: a atualização da memória – que é o ponto de encontro entre diferença de natureza e diferença de grau. Se o que cabe à matéria (em contraposição à memória e à duração pura) é a percepção, Bergson funda através da ideia de contração da memória a possibilidade de um novo monismo: no fundo da memória-lembrança existe uma memória contração mais profunda (já que o passado coexiste necessariamente com o presente)17

. Sendo a memória, portanto, também duração: “A cada instante, nosso presente contrai infinitamente nosso passado: ‘os dois termos que tínhamos separado inicialmente vão soldar-se intimamente’”18. E, portanto, poderíamos dizer que “a duração bergsoniana define-se, finalmente, menos pela sucessão do que pela coexistência”. Desta forma, com os estudos sobre Bergson, Deleuze começa o que mais tarde se chamará de lógica (ou teoria) das multiplicidades19

.

Olivier Messiaen, compositor e organista francês do século XX, realizou uma ampla pesquisa sobre ritmo, noção que lhe parecia como uma das mais complexas de definição na música. Interessado em “fazer nascer a verdade” com a música – e contra os

17Jules Lachelier, filósofo francês contemporâneo de Bergson, retoma de Leibniz uma relação entre força, multiplicidade e percepção: “O movimento concentrado na força é precisamente a percepção tal como a definiu Leibniz, isto é, a expressão da multiplicidade na unidade”. (LACHELIER, Jules. Du fondement de

l’induction. Paris, ed.1924, p.94).

18 DELEUZE, Gilles. Bergsonismo, Trad. Luis Orlandi. – São Paulo: Ed. 34. 2012. p. 58

19 Anne Sauvagnargues (2009) considera que a lógica das multiplicidades será efetiva no encontro de Deleuze com Guattari.

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hábitos –, ele foi um compositor que, como tantos outros de seu século, teve grande interesse sobre a natureza do tempo. Para além da formação em música, Messiaen era também ornitólogo e devoto da vida cristã. Para ele, uma música rítmica não é aquela em que identificamos rapidamente o seu pulso, seus períodos (com divisões simétricas), e as repetições isócronas. Em oposição às músicas de ritmos militares, por assim dizer, uma música rítmica se inspira, segundo Messiaen, nos movimentos da natureza, nas suas complexidades, e possui assim durações livres, desiguais e simultâneas. Aquilo que entendemos habitualmente por ritmo pode sugerir “um domínio” do tempo; uma falsa ordem que privilegia um certo tipo de repetição, a falsa repetição, para Deleuze. Nesse sentido, a música militar é para Messiaen a própria negação da noção de ritmo20

.

Em Mil platôs, obra de Deleuze com Guattari, a desigualdade inerente ao ritmo, já apresentada pela lógica do par Diferença e Repetição, é retomada em sua relação com o caos, de onde também nascem os meios e os códigos:

O que há de comum ao caos e ao ritmo é o entre-dois, entre dois meios, ritmo-caos ou caosmo: “Entre a noite e o dia, entre o que é construído e o que cresce naturalmente, entre as mutações do inorgânico ao orgânico, da planta ao animal, do animal à espécie humana, sem que esta série seja uma progressão...”. É nesse entre-dois que o caos torna-se ritmo (...), tem uma chance de tornar-se ritmo. Há ritmo desde que haja passagem transcodificada de um para outro meio, comunicação de meios, coordenação de espaços-tempos heterogêneos. (...) A medida é dogmática, o ritmo é crítico, ele liga os instantes críticos, ou se liga na passagem de um meio para outro. Ele não opera num espaço-tempo homogêneo, mas com blocos heterogêneos. Ele muda de direção21.

20 SAMUEL, Claude. Permanences d’Olivier Messiaen. Dialogues et commentaires. Paris. Actes Sud, 1999. Por muitos anos, Messiaen foi o organista da igreja Sainte-Trinité, em Paris, e conseguiu incorporar às Eucaristias de meio-dia a sua prática de improviso, momento onde ele experimentava também alguns materiais composicionais próprios. Devem ter sido verdadeiros concertos-happenings, visto a complexidade de suas obras e as maneiras como ele pensava ritmo, harmonia e timbre, maneiras não muito ortodoxas para os ouvidos católicos daquela tradição. Para entrarmos um pouco na obra deste compositor, tomamos como exemplo a Sinfonia Turangalîla, mais precisamente o 6° movimento “O Jardim do sono de amor”. Podemos perceber ali com muita clareza a sobreposição de dois grandes planos, desiguais e simultâneos. Em uma boa performance da obra pode-se notar que o piano não está nem ao fundo nem solista, apesar de estar de alguma forma em um outro tempo em relação à dramaticidade expressa pelo conjunto das cordas. E sempre aparece um elemento ou outro - clarineta, flauta, vibrafone - que descola daquele “todo” uniforme escoante. Mas o piano está ali independente, quase o tempo inteiro. E não creio que seria forçado dizer que sua linha nos faz pensar no canto de um pássaro. https://www.youtube.com/watch?v=0RGhq0m7bxI

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Vimos que em Bergsonismo reside uma primeira análise de Deleuze sobre a multiplicidade, noção que ele retomará com novos fôlegos em outros trabalhos, como em Mil platôs. Existe uma multiplicidade na duração que é definida por “andamentos

espaço-temporais”. Em um dos seus cursos sobre etologia, em Vincennes, Deleuze retoma o conceito de normatividade vital de Canguilhem. Em O normal e o patológico, Canguilhem relaciona “as normas da vida” com aquilo que ele chama de “allures de la vie” para se referir às doenças, considerando estas últimas não como uma negatividade, mas como uma mudança de direção. Encontramos várias traduções em língua portuguesa para a expressão

allures da vida: “modos da vida”, “modos de ser da vida”, “comportamentos da vida”,

“ritmos da vida” e “modos de andar da vida”. Segundo o filósofo francês Guillaume Sibertin-Blanc, Deleuze busca com a noção de allure de vie “designar esse novo sentido do esquematismo, produção de espaço-tempo irredutível ao conceito de um ser vivo (compreendido como organização morfológica e funcional), e assinalar sua importância para uma etologia dos modos de existência culturais”22

.

Em Diferença e Repetição determinações espaço-temporais são os “aqui-agora”, ou um “Erewhon de onde saem, inesgotáveis, os ‘aqui’ e os ‘agora’ sempre novos, diversamente distribuídos”23

. O ritmo opera, portanto, nos dinamismos que determinam espaço e tempo intensiva e simultaneamente, condições para os processos de individuação,

22 Sobre as traduções para “allures de vie”: AYRES, José Ricardo de Carvalho Mesquita. Georges

Canguilhem e a construção do campo da Saúde Coletiva brasileira. (Intelligere, Revista de História

Intelectual - São Paulo, v. 2, n. 1 [2], p. 139-155. 2016. Disponível em http://revistas.usp.br/revistaintelligere). SIBERTIN-BLANC, Guillaume. Politique et Clinique. Recherche

sur la philosophie pratique de Gilles Deleuze. Tese de doutorado sob a direção de Pierre Macherey.

Université Charles de Gaulle Lille 3. – UMR 8163 « Savoirs, textes, langage ». França, 2006. Volume 1, na nota 277, páginas 213-214, onde está transcrita uma parte da aula onde Deleuze diz: “Il y a des rythmes spatiotemporels, il y a des allures spatio-temporelles. On parle parfois du territoire d’un animal et du domaine d’un animal, avec ses chemins, avec les traces qu’il laisse dans son domaine, avec les heures où il fréquente tel chemin, tout ça c’est un dynamisme spatio-temporel que vous ne tirerez pas du concept. […] L’ethnologue construit bien des schèmes d’hommes dans la mesure où il indique des manières : une civilisation se définit entre autres par un bloc d’espace-temps, par certains rythmes spatio-temporels qui font varier le concept d’homme. C’est évident que ce n’est pas de la même manière qu’un Africain, un Américain ou un Indien vont habiter l’espace et le temps”. Aula DELEUZE in https://www.webdeleuze.com/textes/57 23 Erewhon, expressão de Samuel Butler, citado por Deleuze no prólogo de Diferença e Repetição, p. 17.

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e torna expressiva e crítica a coexistência e a interação intrínsecas à noção de multiplicidade. Os ritmos são atualizadores.

Em um texto intitulado A Heterogênese Sonora, a compositora Pascale Criton diz que “desde Diferença e Repetição a procura por um modelo dinâmico de formação de corpos - de curvaturas variáveis e não simétricas – aparece enquanto acontecimentos rítmicos”24. Vale ressaltar que o problema dos corpos, que Deleuze recupera da etologia, mas também através da noção de individuação de Simondon, “não concerne apenas o corpo vivo, nem órgãos ou objetos parciais extraídos sobre o organismo, mas toda multiplicidade corpuscular, toda matéria não formada inserida nas relações cinemáticas que determinam as posições e usos, a um nível onde as partilhas entre natural e artificial e entre vivo e técnico caem.”25

Criton chama a atenção para o fato de que a partir de Mil platôs, Deleuze e Guattari se dedicarão ao “sonoro”, qualidade trazida conjuntamente à

ideia de uma multiplicidade de “regimes de atenção” para o encadeamento do pensamento. O então projeto de uma “heterogênese semiótica transversal”, como expressa a autora, é trazido por Deleuze e Guattari sob a sensibilização/expressão de um conjunto de sinais sonoros, entendendo sonoro em seu aspecto vibratório (e oscilatório). Para ela, a introdução progressiva do musical nas obras de Deleuze está associada “ao processo de consistência, suscetível de religar o sensível, coletivo, com distribuições intensivas”26

. Outros autores que se dedicam ao, então, pensamento-música deleuziano também costumam emergir o sonoro do musical. De todo modo, o que percebemos por ora é que o “sonoro” traz consigo, aparentemente de maneira mais fidedigna que o “musical”, o

24 CRITON, Pascale. “L’hétérogenèse sonore” in Org. CRITON. CHOUVEL. Gilles Deleuze, la

pensée-musique, p.52. Tradução e grifo meus.

25 Guillaume Sibertin-Blanc sobre os estudos de Deleuze do modelo embriológico: “ne concerne pas seulement le corps vivant, ni des organes ou objets partiels prélevés sur l’organisme, mais toute multiplicité corpusculaire, toute matière non formée entrant dans des rapports cinématiques qui en déterminent les positions et les usages, à un niveau où les partages entre le naturel et l’artificiel et entre le vivant et le technique tombent ». SIBERTIN-BLANC, G. Politique et Clinique. Recherche sur la philosophie pratique

de Gilles Deleuze, p. 214.

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conceito de sensação, e a sensibilização das intensidades. O sonoro nos provocaria a sentir. Sendo o som uma espécie de vibração, sonoro é uma qualidade percebida não só pelos ouvidos, mas pelos corpos, entre os corpos – corpúsculos, moléculas... – como um meio e como elemento metaestável27

. A vibração evoca a sensação de algo que está vivo. Inclusive, a sensação em si mesma é definida por Deleuze como vibração28

. De todo modo, sonoro se diz do modelo dinâmico, ao qual se refere Criton, por onde valores diferenciais coordenam modos de vida, blocos de espaço-tempo heterogêneos. Em um texto denominado Ocupar sem contar: Boulez, Proust e o tempo29

, Deleuze observa que o pensamento musical de Boulez nos faz perceber blocos de espaço-tempo, onde corte e continuidade deixam de ser antagônicos: “Não mais uma Série do tempo, mas uma Ordem do tempo. Esta grande distinção de Boulez, o liso e o estriado, vale menos como separação do que como perpétua comunicação”30.

Para tratar das relações contínuas entre heterogêneos Deleuze utiliza o termo involução, movimento que ocorre em todo e qualquer devir. Nessas relações, não existe propriamente uma correspondência entre os elementos, eles coexistem disjuntivamente, formando zonas de vizinhança. A involução – “articulação de dentro”31

– é o movimento

27 O termo metaestável vem da pesquisa de Deleuze sobre individuação em Simondon. A não estabilidade do ser, ou sua metaestabilidade, é definida da seguinte forma: “o ser é, ao mesmo tempo, estrutura e energia”. (SIMONDON, Gilbert. L’individu et sa genèse physico-biologique, Paris, PUF, 1964, p.285). Retomaremos este conceito no subcapítulo “Sensação, regimes de signos, corpo, pensamento” desta dissertação.

28 DELEUZE. Francis Bacon – Logique (...), p. 47.

29 DELEUZE. “Ocupper sans compter: Boulez, Proust et le temp” in Deux régimes de fous. Texts et

entretiens (1975-1995). Édition préparée par David Lapoujade. Paris. Minuit, 2003 (utilizarei em parênteses

a numeração de página da edição brasileira: Dois regimes de loucos. Textos e entrevistas (1975-1995. Edição preparada por David Lapoujade; tradução de Guilherme Ivo; revisão técnica de Luiz B. L. Orlandi. –São Paulo: Editora 34, 2016 (1a edição). Coleção TRANS).

30 ibidem, p.275 (p.314). Citação completa: “Não mais uma Série do tempo, mas uma Ordem do tempo. Esta grande distinção de Boulez, o liso e o estriado, vale menos como separação do que perpétua comunicação: há alternância e superposição de dois espaços-tempos, troca entre as duas funções de temporalização, seria apenas no sentido onde uma repartição homogênea em um tempo estriado dá impressão de um tempo liso, já que uma distribuição muito desigual em tempo liso introduz direções que evocam um tempo estriado, através da densificação ou acumulação de vizinhanças. (...) E é toda a Busca que deve deve ser lida em liso e estriado, dupla leitura a partir da distinção de Boulez”.

31 “Não há uma forma ou uma boa estrutura que se impõe, nem de fora nem de cima, mas antes uma articulação de dentro, como se moléculas oscilantes, osciladores, passassem de um centro heterogêneo a outro, mesmo que para assegurar a dominância de um” (DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol.4, p. 139).

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do devir pelo qual compõe-se toda a teia comunicativa. A noção de devir, amplamente percorrida pela filosofia de Deleuze em sua parceria com Guattari, mas já presente, sob outros termos, ali em Diferença e Repetição, consolida a atração desse filósofo pelos processos de despersonalização/dessubjetivação que ao contrário do que se costuma pensar não significam processos engendradores de individuações indeterminadas ou imprecisas. É que Deleuze está mais interessado na questão do devir, na plasticidade do ser, do que no Ser fundamentado. “Não nos interessamos pelas características; interessamo-nos pelos modos de expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de povoamento”32

. Devir-imperceptível, devir-multiplicidade.

Em Mil platôs o ritmo é amplamente abordado no capítulo sobre o Devir e em “Acerca do ritornelo”, curiosamente em dois grandes momentos da obra onde a noção de território exerce fundamental papel. Consideramos que os meios devam ser também entendidos à luz da noção de território. Segundo Sibertin-Blanc, os meios são “determinações espaço-temporais de modos de existência”.33

Os blocos de espaço-tempo, presididos por relações moventes, que também aparecem na obra de Deleuze sob formas de diagrama, dizem respeito aos devires, aos rizomas, aos platôs, ao Corpo sem Órgãos, aos planos de consistência34

. A consistência nasce sempre “entre”, a consistência é expressão e se dá, então, através dos acontecimentos rítmicos35

.

E dessa mesma forma, Deleuze (com Guattari) compreenderá o pensamento; o pensamento como um modo de vida, modo de existência imanente:

32 p.20

33 SIBERTIN-BLANC, G. Politique et Clinique. Recherche sur la philosophie pratique de Gilles Deleuze, p. 219.

34 “O plano de consistência é o corpo sem órgãos” (DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol.4, p. 60). 35 Precisamente por isso, vale ressaltar aqui, que embora tais expressões (corpo sem órgãos, rizoma, plano de consistência) sejam em alguns pontos correlatas, elas não operam metaforicamente. A força dos conceitos reside, ao contrário, em seus sentidos literais. “O Plano de consistência é a abolição de qualquer metáfora; tudo o que consiste é Real”(DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol. 1, p. 87).

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O pensamento não é arborescente e o cérebro não é uma matéria enraizada nem ramificada. O que se chama equivocadamente de "dendritos" não assegura uma conexão dos neurônios num tecido contínuo. A descontinuidade das células, o papel dos axônios, o funcionamento das sinapses, a existência de microfendas sinápticas, o salto de cada mensagem por cima destas fendas fazem do cérebro uma multiplicidade que, no seu plano de consistência ou em sua articulação, banha todo um sistema, probabilístico incerto, um certo sistema nervoso.

Ao considerarmos a interação e a comunicação dos elementos (meios, códigos, corpúsculos, individuações), em um território qualquer, a partir de modelos arborescentes de organização somos inevitavelmente, segundo Deleuze e Guattari, conduzidos a uma lógica onde predominam a binaridade, o centralizante, o linear36

. Com a ideia de rizoma, em contraposição ao arborescente, Deleuze e Guattari não estão interessados em destituir toda e qualquer linearidade e forma, mas, antes, chamar atenção para o fato de que “mesmo num agenciamento territorial, é talvez o componente o mais desterritorializado, o vetor desterritorializante, como o ritornelo que garante a consistência do território”37

. Nessa dobra, ou anomalia – ressaltando que para nós as anomalias não são privadas de sentido, muito antes pelo contrário, são especialmente vetorizadas –, nas assimetrias, “densificações”, “intensificações”, “repartições de desigualdades”, “superposição de ritmos disparatados”, que os planos ganham suas consistências. O “mais desterritorializado”, que pontua a relação de repetição e diferença, este elemento essencialmente ritmador, ponto notável, é ele quem marca o signo no território, isto é, o torna expressivo. Podemos levar esta ideia para várias composições artísticas, a

36 É notável o uso da ideia de « oscilação » em Mil platôs. Suspeitamos que seja um recurso linguístico dos autores para evitarem cair na expressão de qualquer binaridade. No entanto, o termo oscilação (quando não pensada musicalmente) pode tornar ambígua a noção de coexistência que é muito importante para a filosofia de Deleuze. Talvez as expressões de binaridades, como « alternância » sejam paradoxalmente mais fieis a determinados movimentos corpóreos. Pois pode-se ter em um mesmo espaço-tempo um jogo infinito de alternação moleculares. Isto é princípio da dinâmica, lógica das forças. A alternância, ao contrário do que costumamos pensar, não é excludente quando se trata dos movimentos corporais e corpusculares.

37 DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol.4, p.138. Sob a perspectiva de uma geofilosofia, os autores dizem o seguinte, em O que é filosofia?: “Pensar não é nem um fio estendido entre um sujeito e um objeto, nem uma revolução de um em torno do outro. Pensar se faz antes na relação entre o território e a terra. (...) Ela (a terra) se confunde com o movimento daqueles que deixam em massa seu território, lagostas que se põem a andar em fila no fundo da água, peregrinos ou cavaleiros que cavalgam numa linha de fuga celeste”. DELEUZE. GUATTARI. O que é filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 113.

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composição de uma música, de uma montagem cinematográfica, de uma performance, de um improviso. A consistência é criadora38

.

Exemplo: Velocidades e lentidões na peça Pulsações, de Nathália Fragoso Rossi39

Pulsações (2015), para piano preparado e luz, é um dos trabalhos escritos pela

compositora Nathália Fragoso ao longo de sua pesquisa de mestrado que teve como referência a obra de John Cage. Para a composição de Pulsações foram utilizados diferentes métodos de sorteio (chance operations) e em sua notação são encontrados diversos elementos indeterminados. A peça relaciona música e elementos visuais: uma fonte luminosa inserida dentro do piano é controlada pela intérprete. Os gestos realizados pela luz traçam uma relação direta com as alturas e com os timbres criados pela preparação do piano. Pulsos de som, luz e silêncio se combinam e se chocam, em movimentos aleatórios que compõem, assim, a constelação da performance.

Pude estudar e tocar Pulsações algumas vezes nos anos de 2015 e 2016. A partir dos elementos indeterminados, que obrigam o intérprete a entrar em jogos de experimentação, algumas reflexões foram levantadas sobre alguns conceitos/parâmetros do pensamento musical, a saber: escritura, ritmo, densidade, velocidade, intensidade. No exemplo que se segue, irei analisar um pequeno gesto da peça através de algumas possibilidades de execução.

38 “É que o começo não começa senão entre dois, intermezzo” (DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol. 4. p. 141). E todo ritmo nasce da articulação entre (entre dois, entre três, entre partes, etc.).

39 ROSSI, Nathália Angela Fragoso. Pulsações. Belo Horizonte, 2015. Para piano preparado e luz. https://www.youtube.com/watch?v=5BdPFNOGEXs&feature=youtu.be

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Fig. 01 - Nathália A. Fragoso ROSSI. Pulsações (2015), para piano preparado e luz. Sessão A

(como trata-se de uma obra aberta, os compassos não possuem uma ordem pré-determinada, eles não são numerados).

A última linha da partitura acima corresponde à fonte luminosa inserida dentro do piano. Apesar de não estar especificado na partitura como a luz deve estar inserida, achamos mais interessante que o público não visse a fonte, mas sim a luz, como sendo parte dos harmônicos produzidos pelo piano. As cabeças de notas que estão entre parênteses correspondem a pequenos improvisos. O intérprete pode escolher qual (is) nota (s) tocar dentro do âmbito proposto. Deve-se obedecer a indicação de velocidade (+V/-V), densidade (+D/-D), dinâmica (p/pp/f) e a duração do improviso (20 segundos, 30 segundos, aproximados). Os clusters tocados junto ao improviso não são especificados no tempo do improviso. Mesmo assim, entendi que cabe ao intérprete pensar a proporção. Em um segundo momento, ocorreu-me outra pergunta. Como se distingue velocidade e densidade? Ou, velocidade e densidade podem ser inversamente proporcionais? No exemplo acima, em ambos os improvisos entre parênteses a densidade é reduzida juntamente com a diminuição de velocidade. Mas, há um outro momento na peça em que se pede o contrário. Nas conversas que tive com a compositora ela disse que pensava, na verdade, que densidade e velocidade eram a mesma coisa em música. No entanto, penso

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que não tenha sido por acaso (sem querer fazer um jogo de palavras com o pensamento de Cage) que ela tenha escrito e distinguido os dois parâmetros. Movida por tal provocação, resolvi adotar o critério de ressonância. Pensar na unidade de nuvem sonora, e não apenas nas unidades de ataque. Assim, quanto maior a participação do pedal, quanto mais harmônicos e mais ressoante for a nuvem em composição, maior será a possibilidade de se sentir um acréscimo de densidade, mesmo em dinâmica pp e à velocidade lenta. Mas, este ponto ainda não está claro para mim.

No caso da relação ritmo e velocidade (acréscimo e decréscimo de velocidade), também levei em consideração a ideia de gesto, mais precisamente a sobreposição ou mutação de gestos. Quer dizer, pensar que não necessariamente reduzir velocidade seja reduzir, de forma estritamente proporcional, os intervalos de tempo entre um ataque e o outro. Isto seria uma espécie de simetrização virtual da diminuição da velocidade. Seria pensar tempo como distância.

Fig. 02 – exemplo de um rallentando “simétrico”

Eu posso, por exemplo, selecionar um som mais brilhante, que me servirá como uma espécie de polo. Ele pode se configurar como “mais brilhante”, ou polo, na estrutura de uma repetição (ser um som um pouco menos incidente que os demais, ou o mais repetido, ou a nota de “começo”), ou um timbre (um timbre mais “distante” no conjunto de sons do piano preparado), etc. e reduzir a velocidade dele de forma mais dramática que as demais notas. Isto pode se configurar uma diminuição gradativa da velocidade e nos interrogar sobre a noção de conjunto. Posso também começar com um “bolo” de notas, indiscerníveis, aleatórias. E gradualmente uma melodia vai se formando. Esta melodia, à

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medida que a velocidade cai, vai se deformando, perdendo a relação rítmica que a configurava antes, quando se estabeleceu. Alguns ritmos mais rápidos se mantêm, outros não. Ela pode demorar cada vez mais para recomeçar, etc.

Fig. 03 – exemplo de um rallentando “assimétrico”, desigual

Dentro de infinitas possibilidades rítmicas, a compositora poderia ter criado uma para ser escrita (uma sugestão menos abstrata e menos aberta de gesto). A escrita de quiálteras complexas provocaria outros tipos de esforços e tensão, não menos interessantes e contingenciais, na compositora e na performance da intérprete. No entanto, a compositora optou por um tipo de liberdade para quem for tocar a peça que possibilita expressar tendências, impulsos, escutas e afecções de cada um e a cada momento em que ela for tocada, escapando de uma definição formal de obra.

Da mesma forma, os clusters, do trecho musical em referência, são moduladores do tempo e podem contribuir para caráter não absoluto das quedas de velocidade e densidade. Eles podem obedecer a proporção do tempo proposto para o improviso entre parênteses, ou não, obedecendo somente as suas proporções internas (entre os três clusters, e entre os dois clusters). Se por exemplo, no primeiro gesto entre parênteses, os clusters “durarem” também 20 segundos, teremos um aumento de dificuldade de execução, visto que uma das mãos deve permanecer no controle da fonte luminosa, produzindo um decréscimo de luz. Que, aliás, exerce uma função muito interessante na peça.

De toda forma, a brincadeira está em se desfazer a expectativa que criamos (nós, músicos intérpretes e ouvintes) com os decréscimos ou acréscimos, num processo constante de deformação do tempo, com permissões para alguns roubos (de repente um trilo – espécie de sobrevida, em um ponto baixo da queda de velocidade ou energia),

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surpresas, desvios. Este processo nos faz dissociar hábitos e alguns vícios (quanto mais piano, mais lento), e nos faz refletir sobre relações de tempo e som, através do

entrelaçamento dos parâmetros já esboçados, ritmo, velocidades, lentidões, ataques, notas - considerando “nota” como som, isto é, ponto notável que articula, marca, impele e impulsiona o tempo, cria dobras, elásticos.

Existem inúmeras maneiras de produzir modulações de velocidade e lentidão, modulações de densidade, modulações de expressão.

1.4 Clusters e dissonâncias

Mas ainda, na sucessão das estações, e na superposição de uma mesma estação de anos diferentes, a dissolução das formas e das pessoas, a liberação dos movimentos, velocidades, atrasos, afectos, como se algo escapasse de uma matéria impalpável à medida que a narrativa progride. E talvez também a relação com uma "real política"; com uma máquina de guerra; com uma máquina musical de dissonância. — Kleist: como, nele, em sua escrita como em sua vida, tudo se torna velocidade e lentidão. Sucessão de catatonias, e de velocidades extremas, de esvaecimentos e de flechas. Dormir em seu cavalo e galopar40.

*

“Como se algo escapasse de uma matéria impalpável”. Deleuze e Guattari analisam, assim, a constituição do plano, noção que aparece nos estudos de Deleuze sobre Espinosa (o plano de imanência) e será retomada, com Guattari, em O que é filosofia? e, também, em Mil platôs. O plano é o princípio que permite o desenvolvimento (princípio composicional) e, ao mesmo tempo, aquilo por onde e através do que “nada se desenvolve, mas coisas acontecem”41.

Velocidades, lentidões, catatonias, galopes, dissonância.

40 DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol. 4, p.57.

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1.5 Caos, catástrofe, material-força, plano de composição

Dizíamos que a consistência é criadora. Mas, este ponto ainda nos é obscuro. Numa outra passagem de Mil platôs, no capítulo sobre o conceito de ritornelo, Deleuze e Guattari dizem o seguinte: “Não se trata mais de impor uma forma a uma matéria, mas de elaborar um material cada vez mais rico, cada vez mais consistente, apto a partir daí a captar forças cada vez mais intensas.”42

Em seus cursos sobre a pintura, que preparam a escrita de Francis Bacon – Lógica da sensação (1981), Deleuze convoca a noção de catástrofe para refletir sobre a criação

pictórica e a operação do pensamento criador a ela inerente. Tal operação terá muito a contribuir não só com a pintura e as artes, mas com a filosofia. Notamos que a pergunta “O que é filosofia?” percorre toda a obra de Deleuze, inclusive nos seus textos sobre as artes, mesmo quando ela não aparece de forma explícita. Dentro desta pergunta, ele interroga o que é o conteúdo próprio da filosofia e como ela opera, como o pensamento “pensa” filosoficamente e cria conceitos. Percebemos que nessa empreitada, há um interesse sobre o movimento do pensamento em si, que, como vimos, é endossado nos estudos de Deleuze sobre diversos autores, mas sobretudo em Espinosa, resgatado também para pensar o Cinema (imagem-movimento, imagem-tempo). No entanto, ao invés de realizar um duplo pensamento, ou um meta-pensamento – o pensamento sobre o pensamento, instaurando consequentemente uma última instância para o ato de pensar – o movimento ao qual se refere Deleuze é o movimento do corpo, dos corpos, dos afectos, da lógica da sensação, dos ritornelos. Deleuze está interessado nos processos produzidos por uma “heterogênese”, tendência que também caracteriza os campos operatórios do pensamento.

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Segundo a filósofa Cíntia Vieira, em Diagrama e catástrofe: Deleuze e a produção de imagens pictóricas, a relação entre pintura e catástrofe, caracterizada por Deleuze nas

referidas aulas sobre pintura

é não apenas produtiva, mas, de maneira ao menos aparentemente paradoxal, condiciona seu sucesso. Isso quer dizer que um quadro que tenha perdido a relação com a catástrofe é um quadro fracassado. Ao entreter uma relação com a catástrofe, a pintura empreende uma luta contra os clichês, e a ausência de tal relação marcaria a recaída na reprodução de imagens-clichê43.

Em 1976 foi ao ar, na França, uma maravilhosa série televisiva de seis programas – divididos em dois episódios de 50 minutos cada um – dirigidos por Jean Luc Godard e intitulados “6x2”. É notável que Godard tenha trazido contribuições preciosíssimas para Deleuze. Em um dos episódios da série, o diretor apresenta, à sua maneira, o matemático francês Réné Thom, nome que se destacou entre os matemáticos da época quando publicou a sua “Teoria das Catástrofes”, em 1972. Nessa emissão, Thom explica que a catástrofe é uma “modificação da forma que conduz à aparição de uma descontinuidade. Por exemplo, aquela de uma dobra quando fechamos uma folha sobre ela mesma”. Deste conflito, geram-se (outras) formas. Para o matemático Jean-Pierre Bourguignon, boa parte da obra de Thom consiste em um “estudo das singularidades. Compreender porque uma coisa não é lisa, comporta arestas, pontos de cúspide. Ele estabeleceu uma ligação entre as singularidades e o nascimento das formas, aquilo que batizamos de ‘morfogênese’”. Thom enxerga uma necessidade de perceber as coisas enquanto formas/situações geométricas. Toda a ideia de morfogênese contida na teoria das catástrofes passa pela geometria. A linguagem também é resultado de um conflito e deve ser entendida assim, segundo o

43 VIEIRA, Cíntia. Diagrama e catástrofe: Deleuze e produção de imagens pictóricas. Viso · Cadernos de estética aplicada. Revista eletrônica de estética. No 15, 2014. http://revistaviso.com.br/visArtigo.asp?sArti=141

Referências

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