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A arquitetura nas cantigas de Santa Maria

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Academic year: 2021

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Teoria e História da Arte

Estudos em História, Teoria e Crítica da Arte

Bárbara Dantas Batista Covre

A Arquitetura nas

Cantigas de Santa Maria

Vitória 2017

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A Arquitetura nas

Cantigas de Santa Maria

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) como requisito final para obtenção do título de Mestre em Artes.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Luiz Silveira da Costa.

Vitória 2017

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Agradecimentos:

Minha eterna gratidão ao professor Ricardo da Costa. Este trabalho é uma homenagem à mamãe, por sempre acreditar em minha vocação.

Também dedicado à tia Natália e sua prática da solidariedade cristã.

Um agradecimento especial ao meu querido fornecedor de queijos e café. Sem ele, nada disso seria possível.

Por fim (e não menos importante) dedico este labor e toda minha vida aos meus tesouros, Caio e Laila.

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Des oge mais quer' eu trobar pola Sennor onrrada, en que Deus quis carne fillar beỹta e sagrada, por nos dar gran soldada no seu reyno e nos erdar por seus de sa masnada de vida perlongada, sen

avermos pois a passar per mort' outra vegada.

De hoje em diante quero mais é trovar pela Senhora honrada, na qual Deus quis conceber carne abençoada e sagrada para no

Seu reino grande recompensa nos dar e, aos de sua mesnada, com uma vida prolongada presentear sem

que precisemos passar pela morte uma vez mais. Afonso X, o Sábio

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que entregou a trovadores. Na obra, há três expressões artísticas: a Literatura, a Pintura e a Música. O mundo medieval está representado nas Cantigas, protótipo artístico de uma realidade plenamente vivida. Submissos à temporalidade da fonte, a pesquisa principiou com a leitura das Cantigas e a seleção dos suportes artísticos mais citados. Dezesseis cantigas e suas iluminuras correspondentes que fazem menção à Arquitetura estão presentes neste trabalho. Para analisar as iluminuras historiadas, utilizou-se o método de análise iconográfica de Erwin Panofsky. A proposta de Jean-Claude Schmitt de articulação entre imagem e texto foi primordial para a construção desta dissertação. O objetivo deste trabalho é mostrar que a Arquitetura foi a expressão artística escolhida pelos artífices do códice afonsino para externar tanto peculiaridades artísticas do movimento gótico. A hipótese central se fundamenta na ideia de que, nas Cantigas, os elementos arquitetônicos representam a dimensão mental do culto mariano, fé na qual a arquitetura gótica dignificou aqueles que trabalharam para tal fim, do camponês ao rei, mas, sobretudo, o trabalho dos mestres construtores, “doutores em pedra”, os arquitetos.

Palavras-chave: Cantigas de Santa Maria. Arquitetura. Arte medieval. Iluminura. Idade Média.

Resumen: el rey Alfonso X creía en el poder de la Virgen María para se sobreponer al mal. Mandó eruditos y

artesanos produciren las Cantigas de Santa María, un compendio con más de cuatrocientos relatos de milagros y alabanzas a la Virgen versificados en gallego-portugués. Iluminadores de libros enriqueceron su oferta con centenas de iluminaciones y miles de letras capitulares. Además, los versos fueron acompañados por notaciones musicales, obra que dio a trovadores. En la obra, hay tres expresiones artísticas: la Literatura, la Pintura y la Música. El mundo medieval está representado en las Cantigas, prototipo artístico de una realidad vivida plenamente. Sumiso a la temporalidad de la fuente, la investigación comenzó con la lectura de las Cantigas y la selección de las expresiones artísticas más citadas. Dieciseis canciones y sus iluminaciones correspondientes que hacen mención a la Arquitectura están presentes en este trabajo. Para analizar las iluminaciones historiadas, se utilizó el método de

análisis iconográfica de Erwin Panofsky. La propuesta de Jean-Claude Schmitt de relación entre imagen y texto fue

esencial para la construcción de esta obra. El objetivo de este trabajo es mostrar que la arquitectura fue la expresión artística elegida por los artífices del códice afonsino para exteriorizar tanto las peculiaridades artísticas del movimento gótico cuanto la propagación de la fe en la Santa María en varios reinos medievales. La hipótesis central se basa en la idea de que, en las Cantigas, los elementos arquitectônicos representan la dimensión mental de la devoción mariana, fe donde la arquitectura gótica dignificó los que trabajaron para este propósito, del campesino al rey, pero sobre todo, el trabajo de los maestros constructores, "doctores en piedra”, los arquitectos.

Palabras clave: Cantigas de Santa María. Arquitectura. Arte Medieval. Iluminaciones. Edad Media.

Abstract: the king Alfonso X believes in the power of the Virgin Mary to overcome the evil. He order scholars

and craftsmen to produce the Cantigas de Santa Maria, compendium with more than four hundred reports of miracles and praises to the Virgin, versed in galician-portuguese. Book illuminators have enriched your offering with hundreds of illuminations and thousands of capitular letters. In addition, the verses were accompanied by musical notations, labor that handed to troubadours. In the work, there are three artistic expressions: the Literature, the Painting and the Music. The medieval world is represented in the Cantigas, an artistic prototype of a fully lived reality. Submissive to the temporality of the source, the research began with the reading of the Cantigas and the selection of the most cited artistic supports. Sixteen cantigas and their illuminations make mention of Architecture are present in this work. In order to analyze the historical illuminations, the method of iconographic

analysis of Erwin Panofsky was used. Jean-Claude Schmitt's proposal of articulation between image and text was

essential for the construction of this dissertation. The objective of this work is to show that Architecture was the artistic expression chosen by the craftsmen of the alfonso´s codex to express both artistic peculiarities to the gothic movement and the spread of the faith in Santa Maria in several medieval kingdoms. The central hypothesis is based on the idea that, in the Cantigas, the architectural elements represent the mental dimension of the marian cult, faith in which the gothic architecture dignified those who worked for this purpose, from the peasantry to the king, but above, the work of the Master builders, "doctors in stone", the architects.

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1. Introdução 06

2. As Cantigas e seu tempo 18

3. Arquitetura nas Cantigas de Santa Maria 52

3.1 Os textos e as molduras arquitetônicas 56

3.2 (Louvor 01) Belém: a Virgem é boa e bela 60

3.3 (Cantiga 26) Santiago de Compostela e as igrejas/fortificações 67 3.4 (Cantiga 45) O mosteiro e a função social da arquitetura religiosa 76

3.5 (Cantiga 53) Soissons: a pedra edifica a fé mariana 88

3.6 (Cantiga 65) A abóbada como o céu do santuário 96

3.7 (Cantiga 84) As Ordens Religiosas e as aedificationes 107

3.8 (Cantiga 93) Capitel, escultura ou arquitetura? 132

3.9 (Cantiga 103) Do românico ao gótico: o portal 154

3.10 (Cantiga 205) Arquitetura da guerra: muralhas, torres e ameias 167

3.11 (Cantiga 208) Toulouse e as cidades na Idade Média 183

3.12 (Cantiga 226) A Inglaterra e o mosteiro como espaço autônomo 198

3.13 (Cantiga 242) A eternidade e a arte de lidar com a cantaria 212

3.14 (Cantiga 266) Castrojeriz e a onipresença da madeira 220

3.15 (Cantiga 273) Huelva, o islã e o triunfo da Virgem 234

3.16 (Cantiga 276) Arquitetura e música no santuário de Segóvia 263

3.17 (Cantiga 316) O mármore colorido de Portugal 251

4. Conclusão 281

5. Fontes 287

6. Referências 289

7. Índices 294

7.1 Índice de figuras, mapas e tabelas 294

7.2 Índice arquitetônico 298

7.3 Índice de cidades 299

7.4 Índice de personagens 300

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1. Introdução

Este não é um trabalho somente a respeito de Arte, é sobretudo um trabalho de História da Arte. Porque a Arte não existe alheia ao seu meio, tem suas funções (social, religiosa, etc.) e a apreciação estética também é uma função, uma expressão da sensibilidade do homem.1

Desta forma, abordarei a relação existente entre três manifestações artísticas contidas no códice de Afonso X: a imagem, a literatura e a música. E quando uso o termo imagem para identificar as figurações contidas nas iluminuras historiadas de página inteira, relembro as palavras de Hans Belting (1935-) e de Jean-Claude Schmitt (1946-) a respeito das obras medievais.

Imagem (termo com muitos significados tanto para a historiografia quanto para as pesquisas em Artes)

aqui é usado segundo a ideia de Hans Belting, visível logo no título de sua basilar obra: Image e culte. Une

histoire de l’image avant l’époque de l’art (2007). Para o autor, as obras anteriores ao período Renascentista

(as medievais, sobretudo) são ligadas ao conceito de imago (termo latino que significa a imagem como a figuração de um personagem).

Nesse sentido, para o autor, as imagens medievais são o material visual da imagem cultual em sua heterogênea e profusa união com a religiosidade. A partir de fins do séc. XV surge a Arte como a conhecemos devido ao paulatino desvio de parte da produção voltada ao culto religioso rumo a uma vertente na qual se sobrepuseram as ideias de artistas, de obras de arte e de obra-prima.2

Imago também é o substrato conceitual da imagem para o medievalista Jean-Claude Schmitt. Ele escreve

mais: salienta que as obras medievais têm uma intrínseca ligação com uma funcionalidade.3 Ou seja,

nenhuma obra medieval está alheia a uma função (seja cultual, para uso cotidiano, entre outras). Diferente das ideias envolvidas em grande parte das posteriores obras renascentistas e românticas, por exemplo, nelas, a função se desprendeu do objeto e este se tornou uma obra para admirar estética e formalmente.

Tanto Hans Belting quanto Jean-Claude Schmitt não deixaram de enfatizar que o termo arte também tem a mesma ambiguidade e um pouco de anacronismo presente no termo imagem. Então, nas minhas análises e considerações a respeito das Cantigas de Santa Maria, de seu tempo e de outras obras do período, utilizarei o termo imagem a respeito do material visual (pintura e escultura, principalmente) e

1 PULS, Maurício. Arquitetura e filosofia. São Paulo: Annablume, 2006, p. 79.

2 Avant perdu leur rôle religieux, eles reçoivent de nouvelles fonctions de représentation de l’art. [Antes de perder seu viés religioso, elas

adquiriram novas funções de representação da arte]. BELTING, Hans. Image et culte: une histoire de l’image avant

l’époque de l’art. Paris: Les éditions du cerf, 2007, p. 617.

3 SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru, SP: EDUSC,

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7

arte quando explanar a respeito das manifestações sensíveis expressas abstrata ou materialmente pelo

homem, a Arquitetura inclusive.

***

A ênfase na interdisciplinaridade já está na Introdução por meio de uma breve revisão das pesquisas em História, Artes e História da Arte do séc. XIX até as correntes artísticas e historiográficas atuais, pois a Arte se associa ao meio histórico que a produz.4Como as pesquisas atuaram e, na atualidade, qual

relação existe entre estas áreas de pesquisa? Não são mais disciplinas fechadas em si mesmas, pelo contrário, dialogam.

E desta conversa surgem análises mais abrangentes e, sobretudo, mais saborosas de ler. Ainda há muito que avançar, mas as novas abordagens desde fins da primeira metade do séc. XX nos presenteiam com trabalhos não apenas interdisciplinares, mas generosos com a totalidade das expressões humanas.5

Ser interdisciplinar é relacionar, valorizar outras formas de análise de uma mesma fonte. Assim é o estudo da Música, uma análise dos símbolos, pois, “o símbolo medieval é a maneira de acesso ao divino”.6 As notações musicais são emblemas de uma linguagem universal e um estudo das Cantigas de Santa Maria que não contemple, brevemente, uma análise musical, não é completo. Por isso, dentre as

análises contidas neste trabalho, reservei uma seção à música medieval (Cantiga 276, p. 263) na qual realizo a associação entre os sinos e as torres onde estão abrigados, entre a melodia do Ângelus e a Arquitetura.

Harmoniosa como uma canção, a poética galego-portuguesa, sistematizada pela métrica do zéjel, foi a base da poesia no códice de Afonso X.7 Selecionei alguns extratos de cantigas e louvores para nos

deleitarmos com sua beleza, sem esquecer a premissa do frade dominicano Giordano Bruno (1548-1600) na sua obra Eroici Furori: o estudo estético da poesia é anterior ao estudo de suas regras, o olhar sobre o pensamento subjetivo deve anteceder o pensamento objetivo na análise de obras artísticas.8

4 “Foi no século XIX, na Alemanha, que a história da arte nasceu como uma disciplina científica [...] Mas a necessidade de

fundar a disciplina sobre bases científicas também conduziu os historiadores da arte a se fecharem em limites às vezes demasiados estreitos, considerando particularmente que a ‘vida das formas’ – para citar o título de uma obra de Henri Focillon de 1934 – podia se desenvolver numa quase autonomia em relação às forças profundas que regem o conjunto da sociedade.” SCHMITT, Jean-Claude. Imagens. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do

Ocidente medieval. V I. Bauru, SP: EDUSC, 2006, p. 591.

5 “No Ocidente Medieval, as imagens adquirem uma importância que cresce incessantemente. Elas dão lugar a práticas cada

vez mais diversificadas e tem papéis múltiplos no seio da complexidade das interações sociais.” BASCHET, Jéròme. A

civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p. 481.

6 ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Globo, 1989, p. 79.

7 LEÃO, Ângela Vaz. As Cantigas de Santa Maria de Afonso X, O Sábio: Aspectos culturais e literários. São Paulo:

Linear B, 2007, p. 38.

8 Ver nas notas de fim de: PANOFSKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito de belo. São Paulo: Martins Fontes, 1994,

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8 As mensagens subjetivas encontradas neste caminhar pelo universo das Cantigas de Santa Maria conduzirão nossos passos para as centenas de iluminuras historiadas do códice. De acordo com a tradição medieval de “iluminar” (do latim illuminare) o texto com desenhos e pinturas, o recorte e ponto de partida serão as formas arquitetônicas presentes nos textos e representadas nas iluminuras.

A Arquitetura, de modo geral, é o exemplo mais evidente do sincretismo cultural e artístico dos habitantes da Península Ibérica durante a Idade Média. Assim, ao encontrar vestígios de um lugar e de um tempo, enfim, de uma História a partir da Arte, a Arquitetura muito nos revela a respeito não apenas do lugar no qual surgiu, mas também do tempo que representa e, sobretudo, da vida dos homens que participaram direta ou indiretamente da sua construção, função e utilização.9

O primeiro passo da pesquisa, contudo, é revisar a bibliografia relacionada com o tema deste trabalho. Enquanto analisei os livros e artigos, tentei construir minha abordagem porque a teoria e a metodologia são reflexões necessárias em uma área do conhecimento que pretende ser universal, ou seja, que aborde as diferentes marcas da sensibilidade humana no mundo: a História da Arte.10

A História da Arte ensina que devemos nos abrir para outras fontes, a imagem, por exemplo. Por isso, os historiadores George Duby (1919-1996) e Jean-Claude Schmitt afirmam que toda e qualquer fonte merece atenção para o entendimento do contexto e da mentalidade de um determinado período e sua inextricável ligação com o tempo presente. A era do texto como única fonte de estudos para os historiadores ficou no passado positivista.11 Para as pesquisas em História, é importante associar o papel

das fontes literárias em relação às oficiais e incluir as representações imagéticas do período.

O determinismo positivista também atuou no domínio das Artes. A obra de Henry Focillon, Art d’ Occident:

le moyen Age Gothique (1938), é um exemplo de pesquisa fechada em si, que pouco dialogou com outros

saberes. Mesmo assim, foi o texto no qual pude compreender melhor as formas e funções dos muitos e complexos elementos da Arquitetura medieval para, nas análises das cantigas, encontrá-los em outras obras e compará-los. Isso expressa duas coisas: a primeira é o valor que os textos tradicionais têm na construção do conhecimento; a segunda indaga se a prática de uma linha de pesquisa do passado (a positivista, por exemplo) deve se perpetuar pelas décadas e séculos seguintes se não supre mais as necessidades das pesquisas pósteras.

9 ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 17.

10 “Tanto o processo quanto os resultados da pesquisa devem ser vistos criticamente e com um certo grau de precaução.”

CALEFFE, Luiz Gonzaga; MOREIRA, Herivelto. Metodologia da pesquisa para o professor pesquisador. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008, p. 19.

11 “Conceitualização vira textolatria.” FLUSSER, Vilém. “Texto/imagem enquanto dinâmica do Ocidente”, in Cadernos

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9 A produção literária em prosa ou verso também tem seu viés nos estudos em História da Arte, sobretudo, em uma obra como as Cantigas de Santa Maria. Na poesia (neste caso, a galego-portuguesa medieval) está a representação sensível daquela mentalidade.12 O texto (fonte primária) não é mais

importante que a imagem (também fonte primária). Segundo as pesquisas que realizei no códice afonsino, as formas arquitetônicas encontradas nas iluminuras são, de modo geral, representações imagéticas da linguagem textual, ou seja, as formas arquitetônicas representam na imagem o conteúdo textual. Linguagem que, no Capítulo 2 (As Cantigas e seu tempo), dedica-se a dar um panorama daquele mundo em torno de Afonso X para explicar historicamente a presença de certas manifestações arquitetônicas. Temporalidade na qual a Europa medieval foi um continente pleno de intolerâncias e desavenças, mas também de um rico sincretismo cultural e religioso.13

As cantigas previamente selecionadas para este trabalho serão analisadas no Capítulo 3 (Arquitetura nas Cantigas de Santa Maria). Para enriquecer e bem fundamentar minhas propostas, tomei a liberdade de incluir belas figuras de outras obras em pintura, escultura ou arquitetura que (pelo método de análise

comparativa) ajudar-nos-ão a visualizar melhor os conceitos estéticos e artísticos ligados aos contextos históricos.

No Capítulo 2 demonstrarei quais foram alguns fatos históricos ocorridos nos reinos que compunham a Península Ibérica Medieval. O lento caminhar de uma região que teve, sob diversos aspectos, uma história diferente da europeia, mas que em fins do séc. XIII, associou-se ao desenvolvimento histórico do resto da Europa. Afinal, o Ocidente europeu e os reinos cristãos da Hispania conheceram algumas relações de homogeneidade e, dentre elas, a principal: formavam a Cristandade.14

A Cristandade medieval produziu todo tipo de Arte. Como a Arte não vive sozinha em uma ilha de criatividade e emoções, torna-se uma das marcas da presença do Homem no mundo e sempre está associada ao seu contexto histórico. Este trabalho, portanto, propõe relacionar a arte com a sociedade que a produziu e a relação existente entre as diferentes expressões artísticas.15

As análises iconográficas e arquitetônicas interagem com a textual e nos enleva a uma esfera na qual a realidade não precisa estar presente. Nos textos e nas imagens das Cantigas de Santa Maria, a realidade é superada pela imaginação sem limites. No códice de Afonso X, a relação da poesia com as outras duas formas artísticas (música e imagem), torna-o o suporte literário no qual os temas das Cantigas se

12 “Sabe-se que a língua das Cantigas de Santa Maria não é o galego popular falado pelo povo da Galiza, mas o

galego-português erudito, espécie de koiné supradialetal, verdadeiro idioma literário, tão bem manejado pelo rei Dom Afonso.” LEÃO, op. cit., 2007, p. 21.

13 “De ese modo, cortesanía, delicadeza poética, refinamiento artístico parecen convivir sin dificultad con la violencia y la

opresión señorial que, en parte procurarán a sus protagonistas rentas y ocio.” GARCÍA DE CORTAZÁR, José Angel.

Historia de España: la época Medieval. V. 2. Madri: Alianza editorial, 1988, p. 336.

14 RUCQUOI, Adeline. Historia Medieval da Península Ibérica. Editorial Estampa, Lisboa, 1995, p. 11.

15 “[...] podemos citar em todos os países vários críticos de arte que se ocupam quase que exclusivamente de arquitetura, e

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10 formaram. Música e imagem compartilham com a poesia uma sensibilidade capaz de exprimir por diferentes formas determinado relato de milagre ou louvor à Virgem.16 Na análise da Cantiga 103 (p.

154), por exemplo, destaquei as trocas artísticas entre diferentes culturas e localidades. Elas sempre ocorreram, empréstimos estéticos e técnicos entre os produtores de Artes (pintores, escultores e arquitetos) foram uma constante no decorrer da milenar história da Idade Média.

A iconografia das Cantigas de Santa Maria se submete aos elementos arquitetônicos, está rodeada por eles. Expõe pelas formas o que, na escrita, apreende-se pelas palavras e, na música, pelas notações musicais. A Arquitetura está nos textos e nas imagens, poesia e iluminura unidas por um tema e por uma necessidade de expressão, ao mesmo tempo, individual e coletiva.17

O resultado do levantamento realizado nos textos das 420 cantigas do códice de Afonso X está no

Capítulo 3: um recorte temático no qual procurei menções a formas arquitetônicas nos textos das Cantigas.

São dezesseis canções nas quais a Arquitetura aparece nos textos. Como nossa proposta é mostrar a

relação entre o texto e a imagem, salientarei o paralelo entre cada um dos extratos textuais que mencionam

elementos arquitetônicos com a representação imagética da forma arquitetônica na sua iluminura correspondente.

O paralelo entre a linguagem e a visualidade não ocorre de forma continuada e homogênea.18 A aparente

organização espacial e formal na estrutura das cantigas é, por vezes, um véu sobre as rupturas e díspares propostas existentes entre o que está escrito e o que é plástico (Louvor 01, p. 60). Por isso, algumas análises terão maior ênfase no texto (Cantiga 226, p. 199), na iluminura (Cantiga 26, p. 67), serão a base para explanações adjacentes (Cantiga 276, p. 263) ou para análises comparativas com outras obras medievais ou da Antiguidade (Cantiga 93, p. 132). Ainda assim, na maioria das cantigas selecionadas, os estudos se debruçarão sobre as similaridades entre o que é comunicado tanto por palavras quanto pelo ato de figurar pessoas, lugares e construções.

Apresentarei em cada análise alguns conceitos ligados à Arquitetura na Idade Média, suas conexões com o passado greco-romano e com a arte árabe, além de sua presença no tempo medieval. As formas remanescentes da Antiguidade tardia; a convivência e o cruzamento entre a estética românica, a gótica e

16 DANTAS, Bárbara. “A música nas Cantigas de Santa Maria.” In: IV SEMANA DE PESQUISA EM MÚSICA DA

FACULDADE DE MÚSICA DO ESPÍRITO SANTO – FAMES, 2014, Vitória. Revista de Pesquisa em Música da FAMES. V. 6, no 6 (jul/dez 2014). Vitória – ES: DIO/ES, 2015, p. 13-19. Ver em: www.barbaradantas.com.

17 FLUSSER, op. cit., janeiro de 1986, p. 66.

18 Para saber mais a respeito da relação entre imagem e texto no decorrer da História, ler: DANTAS, Bárbara. Imagem e

texto na arte: conexões e distanciamentos. In: ANAIS DO CONGRESSO/I CONGRESSO DO NÚCLEO

INTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS DA IMAGEM NINFA/UFMG – O Borboletear do Método; Organização: Denise Aparecida Sousa Duarte; Gislaine Gonçalves; Weslley Fernandes Rodrigues – Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2016, p. 159-141. Disponível na internet em: http://ninfaufmg.wix.com/ninfa#!anais-do-i-congresso/vmb7j e www.barbaradantas.com

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11 a muçulmana; as peculiaridades formais da Arquitetura; o entrelaçamento entre a Arquitetura e as outras artes, particularmente a pintura e a escultura. Detalhes contextuais importantes para o esclarecimento acerca de determinadas escolhas formais e estéticas, além de demonstrar o desenvolvimento de técnicas e materiais. A relação entre a Arquitetura com a sociedade e a intelectualidade do período porque a Arte integra o mundo.19

***

Os manuscritos das Cantigas de Santa Maria que pesquisei estão nos fac-símiles de dois códices: o Códice

Rico e o Códice de Florença, 20 dois manuscritos, uma obra. O primeiro ganhou este adjetivo por sua

profusão de imagens: centenas de iluminuras, letras capitulares e ornamentos marginais associados aos textos e às notações musicais dos relatos de milagres e louvores à Virgem.21

O Códice de Florença está abrigado na Biblioteca Nacional de Florença e não está completo: textos, notações musicais e imagens, em sua maior parte, não estão finalizados. Contudo, este é seu maior valor: esta obra nos dá uma ideia de como foi a produção de códices não apenas no scriptorium afonsino, mas também a prática comum das oficinas de produção de manuscritos medievais. Na análise da Cantiga 226, um folio do séc. XII sugere como era a sistemática para a produção de um manuscrito iluminado: desenho, seguido da pintura e, por fim, a produção do texto (Figura 132, p. 203).22

Um códice medieval é um desafio para os pesquisadores da atualidade. Séculos nos separam daquela tradição dos livros manuscritos e o tempo se torna um obstáculo a mais. Noções de paleografia e de

diplomática são importantes para o pesquisador de textos centenários, pois, a “paleografia é a ciência da

decifração dos manuscritos” (Jesus Muñoz y Rivero).23

Inicialmente, deparamo-nos com a obra basilar de Walter Mettmann (1926-2011), o pesquisador alemão, especialista em filologia românica, realizou um minucioso trabalho paleográfico e linguístico em todos os textos dos manuscritos que formam a compilação de milagres e louvores do rei Afonso X, as

Cantigas de Santa Maria.

19 Des images médiévales, on dirá qu’elles sont dans l’histoire. Non parce qu’elles reflètent la réalité ou témoignent des mentalités d’une époque,

mais parce qu’elles sont engagées dans des actes sociaux. [As imagens medievais, diríamos, estão dentro da História. Não porque

refletem a realidade ou testemunhem as mentalidades de uma época, mas porque estão envolvidas nos atos sociais]. BASCHET, Jérôme. L’iconographie médiévale. França: Gallimard: 2008, p. 9 (tradução nossa).

20 Em seu artigo, a pesquisadora espanhola nos apresenta as características e o destino de cada um dos manuscritos das

Cantigas de Santa Maria produzidos a mando do rei Afonso X: FERNÁNDEZ, Laura. “Cantigas de Santa Maria: fortuna de sus

manuscritos.” In: Alcanate: revista de estudos alfonsíes. Sevilha. Ano VI. 2008-2009, p. 323-348. Ver em: http://editorial.us.es/es/alcanate-revista-de-estudios-alfonsies/num_6.

21 DOMINGUÉZ RODRÍGUEZ, Ana. “El arte de la construcción y otras técnicas artísticas en la miniatura de Alfonso X

el Sabio.” In: Alcanate: op. cit., 2008-2009, p. 76.

22 CÓMEZ RAMOS, Rafael. “La arquitectura en las miniaturas de la corte de Alfonso X el Sabio.” In: Alcanate: op. cit.,

2008-2009, p. 209.

23 BERWANGER, Ana Regina; LEAL, João Eurípedes Franklin. Noções de paleografia e de diplomática. Santa Maria:

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12 Obras como a de Mettmann facilitam os labores investigativos, no entanto, a pesquisa se enriquece caso o pesquisador tenha acesso à fonte primária in loco. Porque nada substitui o cuidadoso folhear dos fólios, o manuseio da obra como assim fizeram aqueles que a produziram e aqueles para os quais a obra se destinava. Além disso, é prazeroso reconhecer pelos sentidos as dimensões, o peso e o volume da obra, para, ao cabo, decifrar seus símbolos (textuais e imagéticos). Na sucessão das indagações feitas, contei tanto com a edição crítica de Mettmann quanto com o prazer do olhar encantado, mas científico, sobre os fac-símiles abrigados na Biblioteca Central da PUC- Minas (Figuras 1 e 2).24

Quantificar e classificar. Antes de tudo, a análise de uma fonte tão extensa como o códice de Afonso X,

exige, além da leitura atenta, uma simultânea atividade de sistematização das ideias encontradas.25 O

pesquisador deve pensar como um cientista, mas também como um leitor apaixonado. No entanto, uma prática não é submissa à outra.26

Figura 1: fac-símiles, Códice Rico e Códice de Florença. Biblioteca da PUC-Minas. 2014-2016. Fonte: arquivo pessoal.

24 A Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) abriga os fac-símiles do “Códice Rico” e do “Códice de

Florença”. Aquisição originada pelos esforços da profa. Ângela Vaz Leão. São os únicos fac-símiles da obra de todas as Américas.

25 CERTEAU, Michel. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 69.

26 COSTA, Ricardo. Las traducciones en el siglo XXI de los clásicos medievales – tensiones, problemas y soluciones: el Curial e Güelfa. In: eHumanista/IVITRA, 3 (2013) University of California at Santa Barbara, USA, p.

325-346. Ver em: http://www.ricardocosta.com/artigo/las-traducciones-en-el-siglo-xxi-de-los-clasicos-medievales-tensiones-problemas-y-soluciones.

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13

Figura 2: fac-símile do Códice Rico. Biblioteca da PUC-Minas. 2014-2016. Fonte: arquivo pessoal.

As Cantigas é a fonte que escolhi para mergulhar na mentalidade medieval.27 Obra (ao mesmo tempo)

profana e religiosa.28 Nas Cantigas de Santa Maria está representado uma visão particular sobre o

universo da Idade Média. Nela, o textual e o imagético se unem para apresentar o ambiente que a

27 “Sabe-se que cada época desenvolve uma percepção própria do devir humano e dos eventos a ele relacionados, o que

confere à concepção da história o caráter de um dado cultural, com variações no espaço e no tempo. A Idade Média cristã, nesse caso, desenvolvia um sentido de história apoiado, principalmente, no aspecto religioso ou, mais exatamente, teológico, que funcionando como um denominador cultural comum no período, constituía o fundamento das práticas de vida e das múltiplas formas de representação.” MACHADO, Heloísa Guaracy. “Sobre a concepção medieval e cristã da História nas Cantigas de Santa Maria.” In: LEÃO, op. cit., 2008, p. 149.

28 “É inegável que existe uma história da Espanha mudéjar, como existe uma história da Espanha judaica, na qual, para além

das relações institucionais e quotidianas com as outras comunidades, se elaborou um pensamento intelectual e religioso totalmente específico”. RUCQUOI, op. cit., 1995, p. 301.

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14 produziu em prol de um motivo: exaltar a fé no Poder da Virgem Maria. Esta compilação de milagres e de louvores à Virgem nos remete aos aprofundamentos da Teologia e da Filosofia medieval e, logo depois, do Renascimento. Umberto Eco (1932-) e Erwin Panofsky (1892-1968) nos apresentam algumas correntes metafísicas associadas às práticas artísticas.

A subjetividade que Giordano Bruno defendeu adentra a Teologia e a Filosofia medievais e requer uma capacidade de extrair emoções do texto. Afastemo-nos, portanto, do olhar duro e irascível do pesquisador positivista ou do formalista porque o texto não é a expressão absoluta de uma verdade histórica.29 Do mesmo modo, a imagem não se resume às suas características formais. O texto é, na

verdade, uma determinada interpretação de um tempo e lugar históricos e a imagem representa um determinado olhar sobre aquele mesmo tempo e lugar.

Temporalidade que tinha uma linguagem nas Cantigas de Santa Maria: a nossa língua-mãe, o galego-português medieval. Próximo do galego-português atual, a língua das Cantigas tem muitas formações linguísticas hoje desconhecidas ou pouco usuais e, por isso, seu estudo exige uma atividade de tradução com muita atenção e pesquisa. Prática essencial para ter uma visão mais ampla e fidedigna a respeito da relação entre as características formais, literárias e estilísticas desta magnífica fonte de estudos.30

Ao ler a íntegra das Cantigas de Santa Maria (cerca de 420 canções), identifiquei e selecionei os extratos com menções à Arquitetura e, por fim, traduzi (com a orientação do Prof. Dr. Ricardo da Costa) os títulos e os extratos textuais selecionados. Nota-se que a tradução facilita a apreensão do leitor acerca do conteúdo textual e, dessa forma, pude identificar com maior clareza as formas arquitetônicas nos textos da fonte.31

***

A Arquitetura e seu entorno: a cidade e o campo. Nas catedrais medievais, o homem se isolava do mundo caótico das cidades. Reduzia-se a um ínfimo ser vivo frente à monumentalidade da fé materializada pela magnificência da catedral.32 Por sua vez, o lugar dos mosteiros era em meio à

natureza pouco alterada dos campos. Afinal, era do meio rural que vinha o sustento, não só das cidades, como de toda sociedade medieval. Os reinos sob o domínio de Afonso X formavam uma “Grande Fazenda”.33 Ou seja, era no campo, na natureza, que o homem se aproximava da obra divina, porque

29 BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 142.

30 MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Cancioneiros medievais galego-portugues: fontes, edições e estrutura. São Paulo:

WMF Martins Fontes, 2007.

31 “A história está, pois, em jogo nessas fronteiras que articulam uma sociedade com o seu passado.” CERTEAU, op. cit.,

2011, p. 29.

32 DUBY, Georges. O tempo das catedrais: a arte e a sociedade (980-1420). Lisboa: Estampa, 1979, p. 51. 33 TEIXEIRA, Geraldo Magela. Prefácio. In: LEÃO, op. cit., 2007, p. 9.

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15 “Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele descansou depois de toda a sua obra de criação. Essa é a história do céu e da terra quando foram criados” Gn 2: 3-4.34

Dentre as menções à iconografia, o interessante paralelo entre textos e imagem nas Cantigas de Santa

Maria. Obra realizada a pedido de Afonso X, idealizador, patrocinador e supervisor da obra. A

Arquitetura das Cantigas está presente, sobretudo, na cidade. Nesse sentido, se para Jacques Le Goff “tudo começou na cidade”,35 para a arquitetura gótica, tudo começou na cidade e na arte românica,

como pontuou Henri Focillon.36

Assim, a partir de qual tipo de fonte histórica esta pesquisa se apresenta ao leitor? Por imagens. As atividades de leitura e de classificação partiram dos textos, mas os resultados são representados pelas imagens, sempre. A análise de cada iluminura no Capítulo 3 possibilitará a abordagem de diversas questões históricas, artísticas e outras mais que, no final deste trabalho, serão complementares.37 Nunca

se explica uma obra fora de seu contexto, em contrapartida, representações da História podem se realizar pela Arte.

A História e a Arte se entrelaçam nas Cantigas de Santa Maria, Afonso X e seus colaboradores transformaram um projeto inicial de cerca de 100 cantigas em uma monumental obra composta de canções em louvor às virtudes da Virgem e de relatos de milagres da santa.38 A metodologia panofskyana é a

que melhor se adapta às análises propostas neste trabalho e para o estudo de imagens medievais em geral, pois são obras que necessitam representar algo: são relatos visuais.39

34 BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2013, p. 35.

35 “A cidade respeita a Igreja e com frequência se coloca a seu serviço.” LE GOFF, op. cit., 1998, p. 95.

36 “Pour bien comprendre l’art gothique du XIIe siècle, il faut lui conserver cette qualité vivante qu’est la qualité expérimetale. On peut dire que le

XIIe siècle est la grande époque des expériences gothiques, comme le XIe est celui des grandes expériences romanes. [Para compreender bem a

arte gótica do século XII, é preciso conservar esta viva qualidade que é a qualidade de experimentar. Podemos dizer que no séc. XII está a época das grandes experiências góticas, assim como o XI é aquele das grandes experiências românicas]”. FOCILLON, Henri. Le moyen age gothique. Paris: Libraire Armand Colin, 1965, p. 09 (tradução: Bárbara Dantas).

37 “Que historiador das religiões se contentaria em compilar tratados de teologia ou coletânea de hinos? Ele sabe muito bem

que as imagens pintadas ou esculpidas nas paredes dos santuários, a disposição e o mobiliário dos túmulos têm tanto a lhe dizer sobre as crenças e as sensibilidades mortas quanto muitos escritos.” BLOCH, op. cit., 2001, p. 80.

38 AFONSO X, op. cit., 1986-1989, 3 v; “Duas espécies poemáticas ou dois gêneros integram a coletânea das Cantigas de

Santa Maria: as cantigas de loor, manifestações claras do gênero lírico, e as cantigas de miragre, que pertencem ao gênero narrativo, mas não excluem frequentes traços de lirismo laudatório, sobretudo nos refrãos finais.” LEÃO, op. cit., 2007, p. 23.

39 COSTA, Ricardo. GONÇALVES, Alyne dos Santos. Codex Manesse: quatro iluminuras do Grande Livro de

Canções manuscritas Heidelberg (séc. XIII) – análise iconográfica. Primeira Parte. In: LEÃO, Ângela, e

BITTENCOURT, Vanda O. (orgs.). Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais - IV EIEM. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003, p. 266-277. Ver em: http://www.ricardocosta.com/artigo/codex-manesse-quatro-iluminuras-do-grande-livro-de-cancoes-manuscritas-de-heidelberg-sec-xiii.

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16 Nesse viés, Erwin Panofsky (1892-1968) frisou que existiu na Idade Média uma relação muito saudável entre a figuração pictórica e as formas arquitetônicas.40 O suporte plano da pintura recebeu

cordialmente a tridimensionalidade arquitetônica e as Cantigas de Santa Maria são a prova disso.

Contudo, cabe inserir aqui um aporte do estudioso da metodologia panofskyana, o português Luís Casimiro. O professor de História da Arte da Universidade do Porto enfatiza que a análise

iconográfica/iconológica é um tipo de estudo diferenciado da análise arquitetônica, pois os

elementos estudados são díspares em suas funções e formas, apesar de terem, por vezes, o mesmo papel na representação dos símbolos ou da temática. Para um estudo de elementos arquitetônicos, é obvio, supõe-se algum conhecimento prévio desta área do conhecimento, saber que não é essencial para a análise da iconografia, apesar de complementá-la.41

E assim seguirá este trabalho... as análises iconográfica e arquitetônica se fundem para descobrirmos os segredos das iluminuras historiadas das Cantigas de Santa Maria.

A metodologia panofskyana na análise da Cantiga 273 (p. 234), por exemplo, torna o encontro com o cristianismo medieval, seus crentes e sua relação com as outras religiões uma tarefa mais agradável; a

análise iconográfica da Cantiga 208 (p. 183) nos remete à vida cotidiana; a ligação entre o celeste e o

terrestre encontrada no estudo da Cantiga 65 (p. 96) é o desenrolar do método em sua fase iconológica. Ou seja, a análise da iconografia e da arquitetura nos leva às quimeras humanas, aos desejos individuais que se tornaram leis e às necessidades coletivas que se tornaram ideias.

A sistemática foi estabelecida por Panofsky, mas o conteúdo das análises é adquirido com o estudo (em especial) de outras fontes do período. Para isso, apresento-lhes os resultados de minhas buscas: os trabalhos de três estudiosos de Arquitetura que viveram em épocas diferentes. Visões da ars aedificationes semeadas por um apreço comum, os elementos arquitetônicos do gótico medieval.

Villard de Honnecourt (séc. XIII), Viollet-le-Duc (séc. XIX) e David Macaulay (séc. XX) é o trio que fundamentou minhas análises a respeito do modus operandi da Arquitetura gótica. Os trabalhos, instrumentos e técnicas em torno do processo de elevar os edifícios, imperceptíveis nas obras já concluídas, são revelados nos desenhos realizados por esses três arquitetos de temporalidades diferentes. Representações dos labores por trás da obra.

40 “Não havendo de fato nenhuma diferença entre o exemplo da arte figurativa e o da arquitetura.” PANOFSKY, op. cit.,

1994, p. 43.

41 CASIMIRO, Luís Alberto. Mini-curso intitulado “Iconografia e Iconologia: a imagem e seu significado”. In:

CONGRESSO DO NÚCLEO INTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS DE IMAGEM (NINFA) O BORBOLETEAR DO MÉTODO. Belo Horizonte. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. 2016.

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17 Labores que inspiraram empolgados elogios de outras duas célebres figuras do meio artístico. Nos derradeiros anos do séc. XIX, Auguste Rodin (1840-1917) percorreu o interior da França à procura dos mais encantadores santuários medievais que o inspirariam a produzir esculturas de puro equilíbrio. E, nas primeiras décadas do século seguinte, o crítico de arte italiano, Giulio Carlo Argan (1909-1992), escreveu palavras elogiosas ao se referir às catedrais góticas tanto como obras de uma coletividade quanto como emblemas de um período no qual a Arquitetura tinha um vínculo maior com a espiritualidade das pessoas.

Os panegíricos de Rodin e de Argan serão encontrados em algumas partes deste trabalho. Penso que, sem eles, eu não penetraria na dimensão artística da iconografia e da Arquitetura nas Cantigas de Santa

Maria.

Iconografia e Arquitetura medieval – de uma divindade, palácio ou nobre – que se entregavam a uma estilização fundamentada na ideia platônica de que a arte é uma cópia imperfeita de um ser divino, de um lugar ou de um personagem, ou seja, um simulacro do real. Por mais que um rico material ou hábil e criterioso artífice transformassem uma obra em pura beleza e complexidade, ela nada mais era do que um protótipo, pois “até mesmo aquilo que antes parecia feio, o ornamento do ouro lhe dá beleza”.42

Somente a partir da segunda metade do séc. XII (e muito lentamente assimilada) as ideias aristotélicas suplantaram as platônicas e as Artes iniciaram um processo de individualização e de maior contato do objeto representado com sua fonte de inspiração. Religiosas ou não, as obras dos séculos XIII e XIV pretendiam se aproximar da realidade por meio de formas menos idealizadas e, sobretudo, mais humanizadas. “A razão é divina em comparação com o homem, a vida conforme a razão é divina em comparação com a vida humana” (Aristóteles).43

Por fim, ressalto que apresentarei as premissas gerais a respeito da análise das cantigas selecionadas na

Conclusão deste trabalho. Premissas ao invés de conclusões, porque penso esta atividade, o objeto de

estudo e o recorte iconográfico, como um suporte paralelo na formação de um entendimento melhor da obra afonsina em toda a sua complexidade. Muitas mentes e corações trabalharam nessa obra grandiosa, seria presunção crer que somente um trabalho pode dar conta daquela miríade de ideias e sentimentos que transbordavam dentre os partícipes da produção das Cantigas de Santa Maria, afinal, nenhuma profissão tem o monopólio interpretativo do material visual na História das Imagens.44

42 PLATÃO. Hípias Maior. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 289e.

43 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In: Aristóteles: Poética. Ética a Nicômaco. Tópicos. Dos argumentos

sofísticos. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 1177b.

44 GASKELL, Ivan. “História das imagens.” In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas. São

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18

2. As Cantigas e seu tempo

Aquele foi um tempo voraz, os embates eram ferozes.45 Do mesmo modo, foram tempos de

sensibilidade e de espiritualidade. No séc. XIII, as nações europeias começaram a se distinguir: França, Inglaterra, Espanha... os reinos se entregavam a embates militares para demarcar suas fronteiras. Construíram suas identidades, enalteceram sua cultura, favoreceram a prática e a disseminação dos conhecimentos, das religiões e das artes.46

Compreendia-se o mundo de uma forma distinta da nossa. Seu centro era Jerusalém, Terra Santa para as três maiores religiões do período: cristianismo, judaísmo e islamismo. Nos mapas medievais, em Jerusalém estava o ponto a partir do qual tudo irradiava, para todos os cantos do mundo – de Leste a Oeste, de Norte a Sul.47 Roma na Antiguidade, Jerusalém, no medievo.48

A primeira canção que analisarei neste trabalho, o Louvor 01 (p. 60), tem como marco geográfico a pequena vila de Belém, cidade próxima a Jerusalém. Foi lá que nasceu o cristianismo. Na cidade dos ancestrais de José, marido de Maria, Jesus Cristo veio ao mundo. Logo após o nascimento, José tomou Maria com Jesus nos braços e fugiram depressa das perseguições do governador romano da Judéia. Assim nos conta o Evangelho de Mateus: “Levanta-te, toma o Menino e a Mãe e foge para o Egito. Fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o Menino para o matar” (Mt 2, 13).49

A Sagrada Família encontrou nas cidades a perseguição e, por vezes, o abrigo: no Egito, terra da qual os judeus haviam fugido sob a liderança de Moisés (Ex 3, 10)50, permaneceram por quatro

anos, até a morte de Herodes. Nota-se que, nas cidades da Antiguidade e nas futuras cidades da Idade Média, as contradições já eram uma constante.

45 “As lutas entre a nobreza, a Igreja e os príncipes por suas respectivas parcelas no controle e produção da terra

prolongaram-se durante toda a Idade Média. Nos séculos XII e XIII, emerge mais um grupo como participante nesse entrechoque de forças: os privilegiados moradores das cidades, a ‘burguesia’.” ELIAS, Norbert. O processo

civilizador: formação do estado e civilização. V. 2. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p. 15.

46 “O historiador mostra aqui a implicação da arte nas relações sempre ambíguas que a sociedade mantém com seus

ideais.” DUBY, Georges. História artística da Europa: a Idade Média. Tomo I. São Paulo: Paz e Terra, 1995, p. 9.

47 “Os mappae mundi e as geografias medievais escrevem inevitavelmente um mundo que restava do mundo romano

[...] Segundo esta concepção tradicional do espaço, Jerusalém e Roma ocupam um lugar mediano.” RUCQUOI, op.

cit., 1995, p. 13-14.

48 “Quando o cristianismo medieval recuperar a Antiguidade pagã, será para marcar os méritos excepcionais do

Império Romano e definir uma nova linha de progresso: desde Roma a Jerusalém.” LE GOFF, Jacques. Para um

novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1980, p. 314.

49 BÍBLIA, op. cit., 2013, p. 1705. 50 Ibid., p. 106.

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19 Tanto a fé quanto as desavenças conviviam nas cidades medievais, centros cosmopolitas e, ao mesmo tempo, plenos de religiosidade. A riqueza fluía nas urbes,51 os reinos que lentamente se

formaram no primeiro período da Idade Média, entre os séculos V e XI, usufruíram nos séculos XII e XIII de tal abundância e fertilidade que toda a sociedade do período se tornou testemunha de mudanças espetaculares.52

Contudo, antes de apresentar-lhes o séc. XIII das Cantigas de Santa Maria (centúria marcada pelo “otimismo cristão”)53, contarei um pouco a respeito dos lugares, personagens e influências

artísticas que, no decorrer da Antiguidade e da Idade Média, tornaram-se a base para a produção do códice afonsino. Afinal, nas Cantigas, não existiu limites territoriais, temporais, formais ou estéticos. Nem mesmo impedimentos de ordem legal, canônica, teológica ou filosófica. Não existiram limites para os desejos de Afonso X em sua mais pessoal obra.

***

Começarei esta narrativa em uma fria e nebulosa ilha, a Bretanha...

Figura 3: escudo celta. Inglaterra, c. 300-200 a.C.

Fonte: BRITISH MUSEUM. Internet: https://www.britishmuseum.org/whats_on/exhibitions/celts/art.aspx

51 “A cidade na Idade Média é uma sociedade abundante, concentrada em um pequeno espaço, um lugar de

produção e de trocas em que se mesclam o artesanato e o comércio alimentados por uma economia monetária. É também o cadinho de um novo sistema de valores nascido da prática laboriosa e criadora do trabalho, do gosto pelo negócio e pelo dinheiro.” LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: UNESP, 1998, p. 25.

52 “Nos séculos XI, XII e XIII, a luta pela terra, a rivalidade entre um número cada vez menor de famílias de

guerreiros, era o principal impulso por trás da formação de territórios maiores. A iniciativa coube às poucas famílias de guerreiros em ascensão, às Casas Principescas, sob cuja proteção floresceram as cidades e o comércio.” ELIAS, op.

cit., 1993, p. 117.

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20 A Inglaterra, região menos romanizada da Europa durante o Império Romano54, tinha uma clara

(embora diferente) noção do belo e da arte. Os bárbaros nórdicos eram perspicazes na composição de desnorteantes entrelaçamentos de figuras animais, florais e de seres fantásticos na ourivesaria e na madeira55, como este escudo de bronze com ornamentos entrelaçados de ramos e

folhas da Figura 3, abrigado na British Library – Londres.

Figura 4: detalhe do folio do Evangelho de Lindisfarne. Nortúmbria – Inglaterra, c. 700 d. C. Fonte: BRITISH LIBRARY. Internet: http://www.bl.uk/collection-items/lindisfarne-gospels

Os nativos ingleses e irlandeses começaram a se render ao proselitismo cristão no séc. VI. A cultura pagã associou-se à cristã e criou obras de arte nas quais existia um único propósito: enaltecer o cristianismo. Os motivos entrelaçados das obras celtas e saxãs, nas iluminuras cristãs,

54 COSTA, Ricardo; OLIVEIRA, Bruno. “A destruição britânica e sua conquista: são Gildas.” In: COSTA, Ricardo

(org.). Testemunhos da História: documentos de História Antiga e Medieval. Vitória: EDUFES, 2002, p. 111.

55 “Arte abstrata, símbolos mágicos entrelaçados em que às vezes se inserem as formas estilizadas do animal e da

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21 criaram um pacífico ecletismo artístico como vemos no “Evangelho de Lindisfarme” da Figura 4, abrigado na British Library – Londres.56

O cristianismo, lentamente, conquistou para si as almas pagãs e, após a junção de vários reinos sob o mando de Carlos Magno (742-814), viu-se novamente em perigo, pois o Império Carolíngio (800-924) foi invadido por todos os lados por outros povos bárbaros nos séculos IX e X. Os eslavos vieram do leste, os árabes vindos do sul, os normandos desceram do norte e “o reino dos cristãos se despedaça”, nas dramáticas palavras do religioso francês Ermentário (séc. IX).57 Mas, com o cessar das vagas invasoras, os habitantes da Europa puderam, enfim, respirar

aliviados.

Figura 5: mapa do Ocidente no ano mil. Fonte: PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000, p. 333.

O Império de Carlo Magno se fragmentou após sua morte, tornou-se um conglomerado de reinos fundamentados política e economicamente em senhorios feudais autônomos e afeitos à guerra (Figura 5). Mas, nem tudo estava perdido, a unidade se manteve naquele mundo, então, regido pelo descentralizado Sistema Feudal. Unificação por meio da religião cristã, sobrevivente da

56 “É excitante procurarmos abrir caminho através desse espantoso labirinto de formas sinuosas e acompanhar as

espirais desses corpos inextricavelmente entretecidos.” GOMBRICH, Ernest Hans. História da arte. São Paulo: Círculo do livro, 1972, p. 115-117.

57 ERMENTARIUS. Miracula S. Filiberti. In: Monumenta Germaniae Historica. Scriptores XV: Hannover, 1887,

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22 queda do Império Romano no séc. V. O cristianismo era condição sine qua non dos reinos do Ocidente medieval, reinos que formavam a Cristandade.58 A Figura 6 mostra um mapa do período,

nele, o corpo do Cristo como o mundo: no alto, sua cabeça; abaixo, seus pés; nas laterais, as mãos esquerda e direita.

Figura 6: Gervais de Tilbury. Mapa Mundi de Ebstorf. Alemanha, c. 1208. 3,5 m de diâmetro. Fonte: BIBLIOTECA DO VATICANO. Internet: http://www.mss.vatlib.it

A manifestação material mais evidente daquela premissa religiosa unificadora de povos cristãos e, portanto, dos servos do Senhor Jesus Cristo, foi realizada por meio da Arte. A partir do séc. XII descortinou-se uma paisagem mais amena e próspera aos medievais. Surgiu o ambiente ideal para o acúmulo de riquezas, o crescimento populacional, a invenção e para a utilização de novas técnicas no campo para aumentar a produtividade. Aquele contexto promissor liberou parte da

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23 população campesina para atividades outras, como o comércio, o artesanato e os labores ligados à Arquitetura.59

Comércio, atividades manuais ou ligadas à construção possibilitaram o advento da arte como unificador da Cristandade. A prosperidade do séc. XI ocorreu em paralelo com o surgimento do primeiro movimento artístico considerado universal, o românico e, em fins do séc. XII, a criação do segundo movimento artístico universal, o gótico que analisarei mais detalhadamente na análise da Cantiga 103 (p. 154).

O gótico foi um movimento artístico logo assimilado pelos ingleses. Eles produziram edifícios emblemáticos que mostrarei no Capítulo 3. No séc. XIII, a Inglaterra era uma potência insular que estendia seus tentáculos sobre o Canal da Mancha até chegar ao continente. Todos os reinos continentais sentiram, em algum momento, o peso da espada inglesa: o rei João Sem Terra (1199-1216), por exemplo, não satisfeito em possuir diversos senhorios na França, confiscou mais terras e castelos em território francês para aumentar suas rendas.60

Na época da produção das Cantigas de Santa Maria, a Inglaterra travou batalhas diplomáticas e militares pelo domínio de ricos senhorios no reino de França e, ao mesmo tempo, importou o modelo gótico da arquitetura francesa de catedrais, prática que remontava à centúria anterior.61

Na análise da Cantiga 316 (p. 251), a relação entre a Espanha e a Inglaterra na Idade Média envolveu o interesse comum de explorar as possibilidades construtivas e estéticas das pedras nos moldes inaugurados pela França.

Por sua vez, os franceses verteram boa parte de suas riquezas acumuladas para as obras religiosas. Neste aspecto, foram sem precedentes. Tamanha foi a atenção dada às obras arquitetônicas que, o abade Suger (1081-1151) em particular, e a França de modo geral, iniciaram uma nova cultura: a gótica.62 Tudo começou em 1144, quando sagrou-se a solenidade pública e religiosa que celebrou

o início dos trabalhos de reforma e ampliação da Abadia de Saint-Denis (séc. VII). Aquela construção, decadente no séc. XII, porém com um simbolismo político/religioso importante, ganhou luz por meio de paredes envasadas por enormes vitrais multicoloridos. O abade Suger

59 Para Duby, nos anos entre 1150 e 1220, “o ritmo do progresso se acelera”. DUBY, Georges. História da vida

privada. V 2. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 13.

60 FRANCO JÚNIOR, op. cit., 2004, p. 62.

61 “Junto dos mestres parisienses formaram-se os bispos de Alemanha e Inglaterra. Nestes dois países, novas

catedrais, Cantebury, Bamberga, imitam as de França.” DUBY, op. cit., 1978, p. 129.

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24 escreveu palavras quase proféticas a esse respeito: “Toda a igreja brilhará com maravilhosa e ininterrupta luz de muitas janelas sagradas iluminando a beleza interior.”63

As catedrais francesas são emblemas arquitetônicos grandiosos desta vertente artística, mas o gótico não se restringiu à construção de catedrais. No interior dos santuários, esculturas de formas sinuosas, bem naturais, enriqueceram o tesouro das igrejas. Nas Letras, tanto os filósofos quanto os teólogos aderiram ao aristotelismo para tentar explicar a cada vez mais estreita relação entre Deus e o homem por meio do pensamento analógico64 e da Escolástica. Exponho um breve

panorama do universo analógico medieval na análise da Cantiga 65 (p. 96).65

Da França (especialmente das regiões circundantes de Paris) difundiu-se uma série de influências técnicas e culturais que foram absorvidas pelos reinos vizinhos:66 pela Inglaterra (como vimos),

Espanha, Itália e Germânia.67 A França do tempo das Cantigas de Santa Maria foi o local do qual

fluíam os termos da guerra e da paz. Naquela centúria, as últimas expedições de cruzados ainda partiam da Europa para o Oriente,68 últimos suspiros de uma guerra centenária dos reinos

cristãos contra o domínio muçulmano na Terra Santa.69

Obedientes a uma devoção similar às dos cruzados, magníficos edifícios e obras de arte se materializaram pelas mãos humanas. Desde o início do séc. XII, a arquitetura protagonizou a construção das catedrais conhecidas como Notre-Dames, que brotaram em todos os recantos do reino de França. Toda urbe de alguma importância construiu seu santuário em honra à Santa Mãe

63 ABADE SUGER. Euvres Complètes de Suger. Ed. e anot. de A. Lecoy de la Marche. Paris: Société de l’Histoire de

France, 1867.

64 FRANCO JÚNIOR, Hilário. Os três dedos de Adão: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: USP, 2010, p.

98.

65 Les scolasthiques du XIIIe siècle apportent des développements très valorisants pour les images, qui confortent alors leur pleine

justification théologique. Os escolásticos do séc. XIII conduziram um desenvolvimento significativo para as imagens e,

em seguida, reforçaram sua plena justificação teológica. BASCHET, op. cit., 2008, p. 30. Os escolásticos do séc. XIII conduziram um desenvolvimento significativo para as imagens e, em seguida, reforçaram sua plena justificação teológica (tradução: Bárbara Dantas).

66 “A importância de Paris decorre da justaposição de várias populações. De um lado, uma população às vezes ainda

agrícola, artesã e comerciante, e de outro, uma população aristocrática. Essa população aristocrática dispõe de um forte poder de consumo: pode-se dizer que uma das principais industrias parisienses é a indústria suntuária.” LE GOFF, op. cit., 1998, p. 26.

67 “É interessante ver como se comporta a arte do século XIII, quer se trate da arquitectura de Chartres, da

arquitectura de Bourges ou do estilo radiante, quando atravessa os limites do território onde se formou, onde deu os seus tipos exemplares, o domínio real e a Champagne, para se espalhar pelas províncias francesas e pelo resto da Europa.” FOCILLON, Henri. Arte do Ocidente: a Idade Média Românica e Gótica. Lisboa: Estampa, 1978, p. 209.

68 BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal. São Paulo: Globo, 2006, p. 35.

69 “A expedição de 1204 que acaba com a tomada de Constantinopla foi frequentemente apresentada como um

monstruoso desvio da Cruzada do Oriente, que levou os francos a tomarem a cidade cristã mais do que atacar as regiões do Islão.” HEERS, Jacques. História medieval. São Paulo: Difel, 1977, p. 165-166.

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25 de Deus.70 O caminho a seguir era o da unicidade, de uma prática construtiva e ornamental que a

França solidificou e compartilhou com outros reinos.71

Formou-se uma “cultura visual” singular na Idade Média do Ocidente, a produção de imagens não se submetia a regras ortodoxas como as da Igreja Cristã Oriental, com sede em Constantinopla. Os saltérios, Livros de Horas e Bíblias iluminadas produzidas nas oficinas francesas no séc. XIII contém tantas imagens e ornamentos que, por vezes, o conteúdo imagético superou o textual.72 As obras em marfim e os livros iluminados foram outras dádivas da França

medieval para a cultura gótica e sua beleza foi o motivo para a expansão daquela formatação rumo a outros domínios.73

A tradição no Ocidente medieval se travestiu de criatividade, o passado se fundiu com o presente. Porque não era possível aos medievais ver o passado assim como hoje o vemos, historicamente.74

As cópias de manuscritos antigos poderiam conter “acréscimos e correções” do copista medieval como sugere este extrato de uma carta do rei Carlos Magno (742-814): “Todos os livros do Antigo e Novo Testamento estão desfigurados pela imperfeição dos copistas: com a ajuda de Deus, que nos assiste em tudo, nós os temos corrigido inteiramente.”75 No entanto, ao

recomendar este prática, estes copistas também intervieram nas obras...

Dentre os acréscimos, as imagens. Foi comum um extrato das Sagradas Escrituras (que remonta à Antiguidade Tardia) ter sua cópia manuscrita medieval iluminada com imagens nas quais a iconografia e o tema estavam mais associados à Idade Média do que ao período histórico do principal livro religioso dos cristãos.76

O mais importante livro dos cristãos, a Bíblia, tinha seu lar e patrono: a cidade de Roma e o Papa. Roma foi uma das poucas cidades do Ocidente a sobreviver às invasões bárbaras do fim da Antiguidade e primeiros séculos da Idade Média. Mesmo após sua tomada catastrófica em 476

70 GOMBRICH, op. cit., 1972, p. 143.

71 L'étude des grandes cathédrales du XIII siècle offre de moindres variétés que cell des cathédrales du XII. Il y a moins de différences

essentielles entre Chartres, Reims et Amiens qu' Sens et Paris et même qu'entre Paris et Laon. O estudo das grandes catedrais do

século XIII oferece menos variedade que o estudo das catedrais do XII. Há diferenças menos essenciais entre Chartres, Reims e Amiens que Sens e Paris e, até mesmo, entre Paris e Laon. FOCILLON, op. cit., 1968, p. 88 (tradução: Bárbara Dantas).

72 L'image servait à enseigner l'histoire sainte à ceux qui ne pouvaient lire l'Écriture. A imagem utilizada para ensinar a História

sagrada para aqueles que não puderam ler a Escritura. BASCHET, op. cit., 2008, p. 25 (tradução: Bárbara Dantas).

73 BASCHET, op. cit., 2006, p. 490. 74 PANOFSKY, op. cit., 1955, p. 22.

75 CARLOS MAGNO. Carta circular aos leitores das igrejas. In: TESSIER, G. (org.) Charlemagne. Verviers: Marabaut,

1982, p. 293 (Le Mémorial des Siècles).

76 “O grande sistema de referência simbólica do Ocidente medieval, o da Bíblia, e mais particularmente do Antigo

Testamento e do simbolismo tipológico que estabelecia uma relação essencial entre o Antigo e o Novo Testamento, forneceu, nomeadamente, imagens simbólicas do rei David, mobilizado, pela primeira vez, se não me engano, a favor de Carlos Magno.” LE GOFF, op. cit., 1980, p. 325.

(29)

26 pelo rei dos Hérulos, Odoacro (435-493), a cidade manteve sua aura.77 No decorrer dos séculos

das invasões de bárbaros pelo continente, Roma se manteve de pé.

E o Papa também. Em Roma habitava o chefe da Igreja Católica Romana, líder da Cristandade.78

O primeiro guardião das chaves da Igreja de Cristo, foi o discípulo de Jesus, Pedro (entre os anos 30 e 67 d. C.).79 A análise da Cantiga 45 (p. 76) sugere que a Igreja Católica tentou impor normativas

para tentar controlar os excessos dos cavaleiros. Estabeleceu, por exemplo, a Paz de Deus:

Podeis matar-vos entre vós, mas não mais devereis, doravante, brigar nos arredores das igrejas, locais de asilo onde qualquer um pode refugiar-se. Não podereis brigar em determinados dias da semana, em memória à Paixão de Cristo. Nada de guerra na sexta-feira, portanto, nem no domingo.80

A mais abrangente e longeva iniciativa eclesiástica foi o chamado às Cruzadas, elas desviaram as potências guerreiras do Ocidente medieval para o Oriente próximo. Aos presentes no Concílio de Clermont-Ferrant – França, no ano de 1095, o papa Urbano II (1042-1099) clamou, pela primeira vez, para que os cristãos do Ocidente ajudassem os cristãos do Oriente, pois estes estavam proibidos de visitar o túmulo de Jesus em Jerusalém por imposição dos turcos muçulmanos que controlavam a cidade desde 1071:81

Por isso eu vos apregoo e exorto, tanto aos pobres como aos ricos – e não eu, mas o Senhor vos apregoa e exorta – que como arautos de Cristo vos apresseis a expulsar esta vil ralé das regiões habitadas por nossos irmãos, levando uma ajuda oportuna aos adoradores de Cristo. Eu falo aos que estão aqui presentes e o proclamo aos ausentes, mas é o Cristo que convoca.82

Bem, os cristãos do Oriente passavam por dificuldades, como alardeou o papa: desde o início do séc. XI, os muçulmanos dominavam a Terra Santa, também ameaçavam Constantinopla, centro da Igreja Católica Ortodoxa oriental. Partes dos labores da guerra se voltaram, dessa forma, para o Oriente, moveram uma Guerra Santa contra o Islã que durou dois séculos com 08 Cruzadas.83

77 JORDANES. Romana et Getica in Monumenta Germaniae Historica – Auctorum Antiquissimorum, t. v, pars prior, Berlim,

1882.

78 “A Igreja, por sua vez, tornou-se claramente uma personalidade política desde que se corporificou com a Doação

de Pepino. Isto é, ao receber do chefe franco em 754-756 os territórios que ele conquistara aos lombardos, nascia o Estado Pontifício. Contudo, tal fato trazia em si uma submissão implícita da Igreja ao poder monárquico, de quem recebia aquelas terras. Contra isso é que se forjou o documento conhecido por Doação de Constantino. Por este texto apócrifo, o imperador romano Constantino teria supostamente transferido para o papado, no século IV, o poder imperial sobre todo o Ocidente.” FRANCO JÚNIOR, op. cit., 2004, p. 57.

79 BÍBLIA, op. cit., 2013, p. 1733-1734.

80 Citado em: DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. São Paulo: Editora UNESP, 1999,

p. 102.

81 FRANCO JÚNIOR, Hilário. As Cruzadas. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 26.

82 CHARTRES, Foucher de. “O Concílio de Clermont.” In: PERNOUD, Régine. Les Cruzades. Paris: s.n., 1960, p.

17-18.

83 “A Primeira Cruzada só conseguiu capturar Jerusalém, devido à desunião do mundo árabe. Graças exatamente à

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