• Nenhum resultado encontrado

R (Galera) CS5.indd 15 06/11/ :45:20

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "R (Galera) CS5.indd 15 06/11/ :45:20"

Copied!
6
0
0

Texto

(1)

U M

PArA A SeNHOrA, eLe DeVe Ter APArecIDO DO NADA. MAS todo mundo aparece de algum lugar. E nem sempre de Baltimore.

Nós dois nos conhecemos em setembro, num curso no‑ turno na Universidade de Johns Hopkins: leitura dinâmica. Eu queria aprender a ler mais rápido. Naquela noite, sentei na penúltima fileira. Ainda estava com o uniforme do colégio — um suéter de malha azul‑marinho com SMPS bordado em branco no peito.

Estava fazendo o dever de casa de cálculo enquanto esperava a aula começar. A sala foi se enchendo e a profes‑ sora entrou e começou a falar sobre leitura dinâmica, mas eu não tinha terminado o dever de casa, então continuei fazendo. Eu não entendia quase nada do que ela falava — estava tendo problemas de concentração havia um tempo; foi por isso que quis aprender a fazer leitura dinâmica. No entanto, não era só por isso que estava distraída. Também sentia certo calor atrás de mim, como se alguém me obser‑ vasse. Eu me virei um pouco para a esquerda e vi um velho de bigode que não estava prestando nenhuma atenção em mim. Virei um pouco para a direita e vi um tufo de cabelo

(2)

preto cacheado. Foi tudo o que deu para ver sem me virar completamente, o que seria falta de educação.

Este calor me distraiu a aula inteira. Finalmente, a pro‑ fessora disse para fazermos um intervalo de dez minutos. Eu me levantei e me virei casualmente, bem tranquila. Tinha um garoto sentado lá, o de cabelo preto encaracolado, e ele olhou para mim de uma maneira tão calorosa que explicou tudo o que eu estava sentindo. O rosto dele era moreno e ele tinha pele lisa, olhos castanhos bem alertas e um nariz grande que por algum motivo me lembrava um sapo. Um sapo muito bonitinho, com aquele cabelo em cima.

— Oi — disse ele. — Percebi que você estava fazendo seu dever de cálculo.

— Pois é — respondi. — Acho que seria melhor não fazer isso se quero aprender leitura dinâmica.

— Acho bonitinho. Você fazendo o dever de cálculo. — Não é nada bonitinho — rebati. — Cálculo não tem nada de bonitinho.

Eu me perguntei quantos anos ele tinha, depois imaginei rapidamente se ele havia percebido que eu ainda estava no colégio. Digo “rapidamente” porque só precisei de um segundo para perceber que, dã, ainda estava vestindo meu uniforme. E, claro, o dever de casa também deixava isso na cara. Às vezes sou tão imbecil.

— Acho que vou pegar água — falei.

Saí pelo corredor e encontrei um bebedouro. Fiquei en‑ carando‑o por alguns segundos, como se não conseguisse lembrar como um bebedouro funcionava. Tinha alguma coisa atrapalhando os circuitos no meu cérebro. Eu estava começando a ficar realmente preocupada comigo mesma.

(3)

Finalmente me lembrei de como se usava o bebedouro e tomei um pouco d’água. Em seguida, voltei para a sala de aula e me sentei. O garoto acenou com a cabeça para mim. Eu adorei o cabelo dele. Era como algodão doce de alcaçuz, se algodão doce de alcaçuz existisse.

A professora começou a falar novamente e distribuiu um artigo para que a gente testasse nossas velocidades de leitura atuais. Minha velocidade foi de 150 palavras por minuto, o que é bem baixo para uma pessoa supostamente inteligente.

Senti um tapinha no ombro.

— Qual foi sua velocidade? — sussurrou o garoto bonitinho atrás de mim.

Eu não quis dizer, pois o meu resultado foi tão baixo que fiquei com medo de ele achar que eu tinha problemas mentais. Mas contei mesmo assim. Meu primeiro instinto costuma ser a honestidade, o que, se a senhora parar pra pensar, na verdade é uma fraqueza perigosa.

— Qual foi o seu resultado? — perguntei para ele. — Quatrocentas palavras por minuto.

Soltei um palavrão — para mim mesma — porque o resul‑ tado do Cabelo de Alcaçuz era muito maior do que o meu, e além disso ele provavelmente era mais velho, devia estar no mínimo na universidade, e eu odiava começar as coisas em desvantagem.

Então percebi o que estava pensando e me perguntei: começar o quê? Por que eu estava me importando com o que um desconhecido achava da minha inteligência?

Mas eu me importava, e foi então que percebi que estava ferrada.

(4)

Quando a aula terminou, ele olhou para mim como se quisesse dizer alguma coisa mas estivesse hesitando. En‑ tão, em vez de dizer alguma coisa, só me cumprimentou balançando a cabeça e foi embora. Fiquei achando que foi o uniforme que o fez desistir. Algumas pessoas acham uni‑ formes de colégios católicos assustadores. Soltei mais um palavrão para mim mesma, por ter sido preguiçosa demais para trocar de roupa antes da aula — um curso noturno para adultos, o que eu estava pensando? —, e prometi que usaria roupas normais na semana seguinte. Também prometi que descobriria o nome dele para que não pensasse nele só em termos de cabelo.

Quando cheguei em casa naquela noite, Jane estava no meu quarto, fumando na janela. Algo que me enlouquece. No ano que vem, quando eu for para a universidade, vai ser a vez dela de ficar com o Quarto da Torre e ela vai poder fumar até os pulmões morrerem. Mas ela não para de fazer isso, não importa o quanto eu grite, então meio que desisti.

Um helicóptero policial estava circulando a vizinhança, e Jane observava o holofote.

— Está conseguindo ver alguma coisa? — perguntei. Às vezes, quando os helicópteros policiais apareciam, dava para ver alguma pessoa correndo pela rua sob o clarão do farol. No entanto, era difícil ver muita coisa do Quarto da Torre durante o verão, quando as folhas eram tantas que o quarto parecia mais uma casa na árvore. No inverno, quando as árvores estão nuas, é possível ver as casas dos vizinhos e as luzes do centro da cidade.

(5)

— Você parece diferente. — Diferente como?

Ela deu de ombros e tragou mais uma vez. — Não sei. Diferente, só isso.

— Eu estou diferente — falei. — Acho que nunca mais vou ser a Norrie de antigamente.

Ela não reagiu muito ao que eu disse, pois a família Sullivan é muito dramática, como a senhora bem sabe, Poderosa. A senhora é a Rainha do Drama. É difícil superar o strip‑tease que Jane fez no meio do musical do colégio no ano passado, ou aquela vez em que St. John avisou que partia para Paris na manhã seguinte e que moraria lá para sempre. Você sabia disso? Paizão sempre teve medo de te contar que o filho de 12 anos dele fugiu para Paris sozinho porque a senhora sempre o criticou por ser relaxado demais com a gente. Isso tudo durou uma semana. Um amigo do Paizão encontrou St. John no aeroporto, e depois de uma semana de cafés e museus ele voltou para casa dizendo que Paris era encantadora mas superestimada.

Então falar que de repente estava me sentindo “diferente” não teve muito impacto. Jane disse:

— Não sabia que leitura dinâmica mudava tanto a pessoa. É tão dinâmico! Será que a nova Norrie vai trocar de quarto comigo para eu poder fumar quando quiser?

— Não — respondi. — Nunca vai existir uma Norrie que ceda o Quarto da Torre antes de ir para a faculdade. E você nem deveria fumar em primeiro lugar.

— Eu sei que não deveria. — Ela assoprou fumaça pela janela.

(6)

Não contei para Jane sobre o garoto que eu tinha conhecido na aula de leitura dinâmica naquela noite; era cedo demais. Queria que a coisa, o que quer que ela fosse, tivesse uma chance de acontecer primeiro. Além disso, se eu contasse para alguém, o que tinha acontecido passaria a ser real, e eu ainda não estava pronta para aquilo. Sabia que algo real era sinônimo de problema.

Referências

Documentos relacionados

A partir das hipóteses presentes na literatura referente ao efeito incremental e à importância da majoração da inércia das vigas de transição para obter valores de esforços para

Mesmo nas variadas provas da vida podemos nos alegrar efusivamente, porque Deus é quem está no controle da nossa vida e ele trabalha em todas as circunstâncias

Por conseguinte, o fabricante não assume a responsabilidade por quaisquer efeitos adversos que possam ocorrer com o manuseamento, armazenamento, aplicação, utilização, utilização

PACTO (docentes, terapeutas ocupacionais, estagiários de graduação, estudantes de pós-graduação, profissionais artistas, terapeutas ocupacionais colaboradores e bolsistas)

É perceptível, desta forma, o constante aumento do aprofundamento dos personagens: os “príncipes” têm agora não só nome e falas, mas personalidades bem desenvolvidas,

A nutrição enteral (NE), segundo o Ministério da Saúde do Brasil, designa todo e qualquer “alimento para fins especiais, com ingestão controlada de nutrientes, na forma isolada

a) Seleciona um par de cromossomos genitores dentro da população atual, com a probabilidade de seleção sendo diretamente proporcional à sua adaptação. O mesmo

também, de Augusto Abelaira. Organizado por Paulo Alexandre Pereira. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2008. Grandes Romances).. Ensaio de