R E L A T O D E C A S O
Tutorial 378
Quebra de agulha espinhal
Anne Moll
1e Gertie Filippini
21
Anestesista residente, Radboudumc, Holanda
2
Especialista em anestesia, Bernhoven, the Holanda
Editado por
Isabeau Walker
Especialista em anestesia, Great Ormond Street Hospital, Reino Unido
Endereço para contato: gertie@filippini.nl
O caso
Uma paciente de 86 anos foi agendada para hemiartroplastia de quadril sob anestesia espinhal. Foi classificada como ASA III e tinha uma história de câncer de colon e mama, diabete, hipertensão e obesidade classe II (IMC 36 kg/m2). Com a paciente sentada, um anestesista experiente procedeu com a anestesia espinhal. Houve dificuldade na palpação das referências pélvicas e vertebrais. Um anestésico local foi injetado na pele. Tentou-se uma punção lombar com uma agulha ponta-de-lápis de calibre 25G (0.5 x 88 mm) através de um introdutor de calibre 20G (0.9 x 35 mm), inicialmente usando uma abordagem mediana, depois paramediana. Após contato com o osso, a agulha + estilete + introdutor foram recuados para o tecido subcutâneo e reposicionados. Durante a quinta tentativa, o estilete foi retirado até uma profundidade de 6 cm, enquanto a agulha foi avançada um pouco mais ( 7 cm), até tocar novamente no osso. Em nenhum momento foi usada força excessiva. A agulha espinhal foi então retirada de dentro do introdutor, o qual permaneceu in situ. A ponta distal da agulha acabou quebrando, deixando um fragmento de 4 cm dentro da paciente.
Antes de prosseguir, responda as perguntas abaixo. As respostas serão discutidas em seguida. 1. Que fatores contribuem para a quebra de agulha?
2. O que deve ser feito se a agulha quebrar? 3. Qual seria o seu manejo nesse caso?
Introdução
Existem muitos fatores de risco associados com a deformação ou quebra de agulhas espinhais durante anestesia subaracnóide. Descrevemos um caso do nosso serviço e oferecemos algumas dicas práticas sobre como evitar esta complicação, e como manejá-la, caso aconteça.
1. QUE FATORES CONTRIBUEM PARA A QUEBRA DE AGULHA?
Existem vários fatores bem reconhecidos que aumentam o risco de quebra de agulha espinhal.
A escolha de agulha
As agulhas espinhais modernas foram desenhadas para simplificar seu uso e minimizar as complicações. O aumento da força tênsil dos materiais usados na sua fabricação (ferro, carbono e crômio) possibilitou a redução de seu diâmetro, com importantes benefícios na diminuição da incidência de cefaleia pós-punção dural. O diâmetro mínimo de uma agulha espinhal é limitado pelo aumento da probabilidade de danos durante a inserção e pela redução no fluxo do líquido cefalorraquidiano e resultante demora na confirmação da punção subaracnóide.
1º de maio de 2018
Pontos-chave
Quebra de agulha espinhal é uma complicação anestésica rara, porém séria.
A técnica, o tipo de agulha e as características do paciente podem afetar o risco de quebra de agulha.
Fragmentos de agulhas quebradas devem ser removidos o mais rápido possível para prevenir sintomas graves e complicações.
Inscreva-se para receber os tutoriais ATOTW no site: www.wfsahq.org/resources/anaesthesia-tutorial-of-the-week ATOTW 378 – Relato de caso: Agulha espinhal quebrada
Agulhas menores tem maior risco de entortar na haste ou na ponta, dobrar e causar trauma [1]. Ao investigar agulhas espinhais com microscopia ótica, Benham (1996) percebeu que mais de 15% estavam danificadas após o uso. Não houve diferença significante entre agulhas com e sem dano quanto ao impacto sobre o osso ou o número de tentativas de punção dural, mas era menos provável haver danos quando o introdutor especificado pelo fabricante era usado no lugar de um introdutor alternativo. O padrão de dano dependeu do tipo de agulha: as do tipo Sprotte e ponta-de-lápis ficam mais frequentemente lascadas ou ásperas, enquanto agulhas Quinke são mais fáceis de deformar. Mesmo um pequeno dano à agulha é importante porque é possível que, ao retirar-se do espaço subaracnóide uma agulha de ponta torta, ela rasgue a dura-máter, aumentando o risco de cefaleia pós-punção dural [2]. Um estudo recente de Pilai comparou a força de agulhas de diferentes marcas e contribuiu para a literatura sobre a transição de agulhas Luer para agulhas não-Luer [3].
Técnica
Houve muitos relatos de deformação e quebra de agulhas espinhais de calibre fino. A mais frequente causa de quebra é o impacto sobre o osso ou resistência por parte de ligamentos/cápsulas rígidos, mesmo na ausência de força excessiva. As práticas que aumentam o risco de quebra ou desprendimento de lascas incluem [4]:
Redirecionar a agulha sem ela ter sido antes recuada para os tecidos subcutâneos superficiais
Retirar e redirecionar a agulha sem mudar o introdutor de lugar
Manipular a agulha depois de ter sido removido o estilete
Quando houver necessidade de reposicionamento da agulha, deve-se puxar o conjunto agulha + estilete + introdutor para o tecido superficial. Na maioria dos casos publicados, a agulha espinhal quebrou-se porque estava danificada e foi puxada de volta através do introdutor, perdendo com isso a sua ponta [5]. Testes in vitro mostram que uma agulha espinhal oca sem estilete tem maior risco de entortar or quebrar quando está sob pressão axial excessiva; deixar o estilete dentro da agulha faz com que ela funcione como um eixo sólido de metal, tornando-a mais resistente à fratura. O estilete pode também influenciar a deflexão da agulha espinhal (no caso de um bisel angular) [6,7,8].
Se houver dificuldades com as agulhas mais finas, pode-se usar a técnica ‘agulha-através-de-agulha’. Agulhas espinhais de calibre fino, especialmente as mais longas, são difíceis de usar, sobretudo em pacientes obesos. Pode-se usar a agulha espinhal através de uma agulha epidural para ter maior suporte: a agulha epidural Tuohy guia a agulha espinhal até a dura-máter [2,5].
Se o procedimento for difícil e precisar de várias tentativas, substitua a agulha espinhal regularmente [4].
Posicionamento do paciente e fatores do paciente
Para uma punção lombar bem sucedida, o paciente deve estar posicionado cuidadosamente. Contudo, não se sabe ao certo de que forma a posição afeta o risco de quebra de agulha. Não identificamos relatos sobre a influência do posicionamento do paciente (decúbito lateral, sentado, decúbito ventral) durante a anestesia espinhal, ou da trajetória da agulha (linha mediana ou paramediana). É razoável supor que uma punção lombar fácil seja menos propensa a gerar complicações. De Filho identificou os seguintes preditores independentes de bloqueio neuroaxial bem sucedido na primeira tentativa [9]:
A qualidade das referências anatômicas do paciente
A adequação do posicionamento do paciente
O nível de experiência do operador
Em pessoas com IMC alto, os marcos anatômicos são difíceis de identificar, mas obesidade não foi um fator de risco independente de dificuldade na punção lombar. O IMC parece ter uma relação fraca com dificuldade no bloqueio neuraxial, mas os pontos de referência anatômicos e tipo físico podem ter alguma associação. Certifique-se de que o paciente está na posição ideal antes de fazer a punção espinhal. Se tiver dificuldade com as referências anatômicas, considere a opção de bloqueio guiado por ultrassom [10].
2. O QUE FAZER SE A AGULHA ESPINHAL QUEBRAR?
As possíveis consequências de quebra de agulha espinhal ou da presença de outro corpo estranho na coluna (p.ex. um fragmento de uma agulha epidural ou catéter) incluem:
• A migração do corpo estranho
• Infecção ou fibrose do tecido circundante • Complicações neurológicas
O risco de complicações neurológicas depende da posição da agulha, especialmente se estiver próxima ao canal medular ou se estiver migrando nessa direção. As potenciais complicações incluem dano aos nervos (dormência, parestesia ou fraqueza), dor, infecção e perda de líquido cefalorraquidiano.
Idealmente, a agulha quebrada deve ser removida o mais rápido possível (normalmente na mesma sessão cirúrgica) por um cirurgião de coluna, ou por um neurocirurgião, caso o fragmento esteja alojado em tecidos mais profundos. Em um caso relatado na literatura, o fragmento passou despercebido e foi encontrado por acaso quando o paciente apresentou dor lombar persistente [5]. Em todos os outros casos relatados não houve sintomas neurológicos, graves ou
agudos e a cirurgia prosseguiu conforme programada, ou com anestesia espinhal (outro nível lombar) ou com conversão para anestesia geral. A literatura atual sobre quebra de agulha espinhal sugere que, se o fragmento for removido rapidamente, o paciente provavelmente não terá sintomas. No nosso serviço, criamos um ‘guia de decisão’ para facilitar o manejo de casos desse tipo (Figura 1).
3. COMO RESOLVEMOS O CASO
O anestesista informou a paciente sobre o ocorrido e marcou a área de inserção. A paciente não tinha sintomas associados com o fragmento e os achados neurológicos eram normais. O anestesista e o cirurgião ortopedista decidiram prosseguir com a cirurgia programada. A paciente consentiu com o procedimento sob anestesia geral e foi posicionada em decúbito lateral. O fragmento de agulha espinhal foi inicialmente removido pelo cirurgião ortopedista usando guia por fluoroscopia, seguido diretamente pela cirurgia programada. O cirurgião fez uma incisão cutânea de 5 cm e identificou o fragmento de agulha em uma camada subcutânea profunda, saindo pela fáscia toracolombar posterior. O fragmento foi removido com uma pinça. O procedimento de remoção durou 20 minutos. A paciente se recuperou completamente após a cirurgia e foi seguida por um ano. Nenhuma sequela neurológica foi relatada.
Uma análise do fragmento mostrou que, quando a agulha foi retirada através do introdutor, a ponta da agulha havia sido quebrada (Figuras 2 e 3).
Foreign body in spine, e.g. broken spinal needle or epidural catheter:
inform patient and treating specialist
Neurological/ physical examination
Abnormal (neurological) symptoms
Obtain neurology consultation
Normal physical examination
Proceed with scheduled surgery under spinal or general anaesthesia
Make plan to remove needle as soon as possible
-use medical imaging
Re-examine patient after needle removal
Report broken needle or catheter to regulatory authority In general: preserve damaged product,
batch number/ product specifications
Inscreva-se para receber os tutoriais ATOTW no site: www.wfsahq.org/resources/anaesthesia-tutorial-of-the-week ATOTW 378 – Relato de caso: Agulha espinhal quebrada
Figura 2: Estilete com ponta laranja, agulha tipo ponta-de-lápis (25G) quebrada, e introdutor (20G) com canhão
amarelo.
Figura 3: Fluoroscopia para visualizar o fragmento de agulha.
RESUMO
Dicas para a prevenção e manejo de fratura de agulha
1. Certifique-se de que o paciente esteja na posição ideal antes de realizar a punção espinhal. Se houver dificuldade com a identificação dos marcos anatômicos, considere guiar o procedimento com ultrassom [10].
2. Se a punção for difícil, pode-se usar uma agulha espinhal (ponta-de-lápis) atraumática, com calibre maior que 27G para facilitar a punção intratecal e evitar quebra da agulha in situ. Calibres de números menores indicam agulhas de diâmetro maior e menos propensas à fratura [observação histórica, 11].
3. Nunca manipule ou reposicione uma agulha espinhal com o introdutor posicionado; recolha sempre o conjunto agulha espinhal + estilete + introdutor para os tecidos mais superficiais antes de redirecionar a agulha [4].
4. Sempre avance a agulha espinhal de pequeno diâmetro com o estilete em seu lugar. Só remova o estilete quando considerar que a agulha está no espaço subaracnóide [6].
5. O introdutor recomendado pelo fabricante é mais seguro que os introdutores alternativos, com a seguinte exceção: Em caso de dificuldades com uma agulha mais fina, pode-se usar a técnica de “agulha-através-de-agulha”. Agulhas espinhais de pequeno diâmetro, especialmente as mais longas, são mais difíceis de usar, sobretudo em pacientes obesos. A técnica de “agulha-através-de-agulha” serve para apoiar a agulha espinhal (a agulha epidural Tuohy guia a agulha espinhal até a dura-máter) [2,5].
6. Se tiver dificuldade no procedimento e precisar de várias tentativas, substitua a agulha espinhal regularmente por uma nova [4].
7. Se a agulha espinhal quebrar in situ, a sua remoção deve ser planejada sem demora por uma equipe multidisciplinar, escolhendo a técnica anestésica em conformidade com fatores de risco específicos para o paciente.
8. A literatura atual sobre quebra de agulha espinhal sugere que, se o fragmento for removido rapidamente, o paciente provavelmente não terá sintomas.
REFERÊNCIAS E LEITURA ADICIONAL
1. Tsen L, Hepner D. Needles used for spinal anesthesia. Expert Rev Med Devices 2006, 3:4, 499-508 2. Benham M. Spinal needle damage during routine clinical practice. Anaesthesia 1996, 51, 843-845.
3. Pilai A, Monteiro R, Choi W et al Strength of commonly used spinal needles: the ability to deform and resist deformation. Anaesthesia 2017, 72, 1125-1133
4. Martinello C, Rubio R, Hurwitz E et al. Broken spinal needle: case report and review of the literature. Journal of Clinical Anesthesia 2014, 26, 321-324
5. Lonnee H, Fasting S. Removal of a fractured spinal needle fragment six months after caesarean section. Int J of Obstetric Anesthesia, Feb 2014, 23, issue 1, 95-96
6. Dunn S. Do not withdraw stylets when advancing spinal needles. Anesthesia & Analgesia, Jan 2011, 112, issue 1, 250
7. Mahvash M, Dupont P. Mechanics of dynamic needle insertion into a biological material. IEEE Trans Biomed Eng. 2010 Apr; 57(4): 934–943. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3021974/
8. Rand E, Christolias G, Visco C et al. Comparison of spinal needle deflection in a ballistic gel model. Anesth Pain Med, Oct 2016: 6(5): e36607
9. De Filho G, Gomes H, da Fonseca M et al. Predictors of successful neuraxial block: a prospective study. Eur J Anaesthesiol. 2002 Jun;19(6):447-51.
10. McDonald A, Murgatroyd H, Russon K, Derby R. Anesthesia Tutorial of The Week 349 ‘Ultrasound Guided
Neuraxial Anaesthesia’ World Federation of Societies of Anaesthesiologistst www.wfsahq.org
11. Pöll J.S., Historical note: The story of the gauge, Anaesthesia 1999, 54, pp 575-581
This work by WFSA is licensed under a Creative Commons Attribution- NonCommercial-NoDerivitives 4.0 International License. To view this license, visit https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/