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Pré-natal e direitos reprodutivos: dinâmicas e experiências de mulheres gestantes negras

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Pré-natal e direitos reprodutivos: dinâmicas e experiências de mulheres gestantes

negras

Kauara Rodrigues Dias Ferreira1

Resumo: Neste trabalho, examino contribuições de duas correntes intelectuais, o feminismo negro e

a sociologia, para o estudo das desigualdades raciais no campo da saúde reprodutiva das mulheres brasileiras, buscando compreender quais são as visões de conexões entre corpo, raça, gênero e classe social nas quais elas se baseiam. Apesar da sociologia das relações raciais ter produzido, nas últimas décadas, uma quantidade considerável de dados empíricos sobre desigualdades e discriminação racial, a descrição das dinâmicas que produzem estas desigualdades é ainda uma lacuna a ser enfrentada. Contudo, as análises sociológicas carregam, necessariamente, ideias implícitas sobre as formas como as desigualdades são produzidas, reproduzidas e resistidas nos corpos portadores de gênero e raça, as quais delimitam as compreensões de Direitos Reprodutivos que elas endossam. Ao me deter sobre estas ideias, procuro identificar tendências, abordagens predominantes e lacunas nas reflexões acerca das dinâmicas que produzem as desigualdades. Em um segundo momento, volto-me a indagações e formulações propostas pelo movimento feminista negro, apontando como o refinamento de seu olhar analítico e propositivo pode ser incorporado às pesquisas sociológicas.

Palavras-chave: Direitos Reprodutivos. Gênero. Raça. Racismo.

Introdução

Há no Brasil uma considerável produção de estudos quantitativos e qualitativos sobre desigualdades de gênero2, bem como acerca de desigualdades de raça3 com diferentes enfoques teórico-analíticos. No entanto, conforme aponta Azerêdo (1994, p.207), a produção acadêmica e intelectual no país é marcada por dificuldades em analisar a categoria gênero considerando simultaneamente outras categorias de subordinação, em especial raça e classe social.

No que se refere ao estudo das relações raciais no país, é notório que trata-se de um campo constituído por uma produção profícua e complexa, que mobiliza pesquisadores/as brasileiros/as e estrangeiros/as pelo menos desde o início do século XX. Contudo, apesar destes estudos terem motivado a produção de um conjunto considerável de dados empíricos sobre desigualdades e discriminação racial, o conhecimento das vivências produzidas por estas e a descrição das dinâmicas que produzem estas desigualdades é ainda uma lacuna a ser suprida, especialmente aquelas inscritas nos corpos de mulheres negras4.

1Mestranda em Sociologia pela Universidade Brasília – UnB, Brasil. Email: kauaraf@gmail.com 2 Ver Heleieth Saffiotti, Lourdes Bandeira, Mireya Suárez, Lia Zanotta, Maria Bethânia Ávila etc. 3 Ver Carlos Hasenbalg, Nelson do Valle Silva, Marcelo Paixão etc.

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Antônio Sérgio A. Guimarães (2004, pp. 28-29) aponta para o fato de que o campo ainda não dispõe de um corpo teórico capaz de, ao mesmo tempo, compreender as especificidades das relações raciais brasileiras; explicar como as desigualdades raciais são reproduzidas; e fornecer uma definição mais precisa do racismo.

Sueli Carneiro afirma que o discurso clássico sobre a opressão das mulheres não tem reconhecido a experiência histórica diferenciada das mulheres negras, bem como “não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade feminina das mulheres negras” (Carneiro, 2003, p. 49.). Embora orientem a inserção social deste grupo, pouco foi pesquisado sobre os estereótipos e as representações mobilizadas nas interações cotidiana das mulheres negras na contemporaneidade.

Importante ressaltar que o presente trabalho apresenta e privilegia ideias e considerações ainda iniciais acerca de objeto de projeto de mestrando em andamento. A identificação de tendências, abordagens predominantes e lacunas nas reflexões acerca das dinâmicas que produzem as desigualdades raciais, bem como as visões a respeito das conexões entre corpo, raça, gênero e classe social nas quais tais desigualdades se baseiam serão aprofundados em trabalhos futuros. Direitos reprodutivos e mortalidade materna: desigualdades raciais na saúde

O horizonte de questões trazido pelo tema da saúde reprodutiva e dos direitos reprodutivos5 parece ser particularmente propício para o estudo das desigualdades raciais e dinâmicas que produzem tais desigualdades no campo da saúde reprodutiva das mulheres negras. Em primeiro lugar, a literatura médica ressalta que a maior parte das mortes maternas é considerada evitável a partir de intervenções pré-natais e peripartais oportunas e adequadas (Volochko, p.111). Além disso, o acompanhamento adequado da gestação requer o contato mensal das gestantes de baixa renda (em sua maioria, negras) com as instituições de saúde pública, conformando períodos de interação repetida que favorecem a reflexão das mulheres sobre as práticas e discursos que marcam a garantia ou o desrespeito a seus direitos reprodutivos.

Em segundo lugar, o governo federal tem se dedicado a fornecer alguns dados sobre desigualdades raciais, reconhecendo em pronunciamentos oficiais que, no campo da saúde, a variável intersecionada “raça/cor” define desde as condições gerais de vida de uma determinada população – a partir das quais se pode estimar qual o grau de vulnerabilidade e a que tipo de riscos à saúde este grupo está exposto – até a qualidade do tratamento oferecido pelo Sistema Único de

5 Por direito reprodutivo entende-se aqui “o direito subjetivo de toda pessoa decidir sobre o número de filhos e os intervalos entre seus nascimentos, e ter acesso aos meios necessários para o exercício livre de sua autonomia reprodutiva, sem sofrer discriminação, coerção, violência ou restrição de qualquer natureza” (Ventura, 2009, p.21).

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Saúde. Este posicionamento motivou a criação em 2006 da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que tem por objetivo combater a discriminação étnico-racial nos serviços e atendimentos oferecidos no SUS, bem como promover a equidade em saúde deste segmento populacional (PNSIPN, 2010).

Embora insuficientes6, os dados sobre saúde reprodutiva da população tendem a corroborar esta percepção: conforme aponta Volochko sobre a mortalidade materna, “a mortalidade é sempre maior para as mulheres pretas em todas as idades, alcançando o triplo da de mulheres brancas entre 30 e 39 anos” (2010, p.119). Martins, ao utilizar os dados de óbitos maternos presentes no “Estudo da Mortalidade de Mulheres de 10 a 40 anos com Ênfase na Mortalidade Materna”, concluiu que “as mulheres negras, as pardas e as pretas, em relação às brancas, apresentaram, respectivamente, risco 1,7 e 1,8; 1,5 e 1,6; 5,5 a 7,4 vezes maior de óbito” (Martins, 2006, p.2476).

Estudos sobre cuidados médicos durante o pré-natal e o parto também indicaram uma diferença significativa no tratamento fornecido a gestantes brancas e não-brancas. Uma pesquisa realizada na cidade do Rio de Janeiro entre 1999 e 2001 mostrou que as mulheres brancas contavam com maior acesso à anestesia no momento do parto, tiveram o batimento cardíaco fetal auscultado e o útero medido com mais frequência, receberam mais informações sobre alimentação adequada e sinais do parto e foram autorizadas com mais frequência a ter acompanhantes durante e depois do parto. Estas assimetrias persistiram mesmo com o controle das variáveis classe social e escolaridade (Petry, 2002).

Segundo dados do Ministério da Saúde de 2009, 73% das gestantes brancas realizam sete ou mais consultas de pré-natal, enquanto a proporção cai para 46% quando as gestantes são negras. A chance de uma mulher negra morrer por causas relacionadas à gravidez, parto e pós-parto pode ser 80% maior do que para as brancas e estas desigualdades têm se mantido ao longo das duas últimas décadas (ONU, 2011).

A interpretação desses dados - que revelam que as mulheres negras sofrem discriminação durante o pré-natal - esbarra na ausência de descrições e análises dos mecanismos cotidianos de produção das desigualdades raciais e das representações sociais que norteiam as interações cotidianas raciais no Brasil. Isso faz com que a vivência do racismo pelas mulheres negras ainda esteja por ser problematizada com maior profundidade. Embora a literatura e os discursos militantes e governamentais indiquem a necessidade de se dar atenção ao cruzamento entre os recortes de gênero com os de raça, ainda não há um arsenal teórico-conceitual operacionalizável para se ter

6 Sobre a ausência de dados adequados, ver: Ministério da Saúde, 2007:

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conhecimento, dar visibilidade e realizar acompanhamento diferenciado às especificidades internas do fenômeno geral.

Importante ressaltar que a utilização do conceito de raça para a análise das desigualdades e iniquidades verificadas na saúde de pessoas e grupos sociais não afasta outras variáveis também importantes na produção de diferenciais e injustiças nesse campo, tais como os fatores socioeconômicos, geracionais, de gênero etc. Tais fatores atuam de forma concomitante com a raça/cor e determinam a ampliação ou redução dos diferenciais. Na vigência do racismo, por exemplo, outras formas de inferiorização social a ele se associam, aprofundando e intensificando sua ação e seus efeitos.

Interseccionalidade e Feminismo Negro

Para análise e abordagem da forma de vivência e acesso das mulheres negras aos seus direitos reprodutivos, em especial durante o período do pré-natal nos serviços públicos de saúde, é importante a abordagem interseccional dos diferentes eixos de opressão. Neste sentido, a produção das feministas negras norte-americanas tem dado enfoque na discussão sobre a presença do racismo e o entrecruzamento entre as categorias gênero, raça e classe como elemento representativo das diferenças nas experiências das mulheres.

Kimberlé Crenshaw desenvolveu a ideia de interseccionalidade que “busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação”. Nesse sentido, trata da “forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições de mulheres, raças, etnias, classes e outras”. Trata também da “forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.” (Crenshaw, 2002, p.8). A noção de interseccionalidade pode ser considerada uma alternativa à ideia de dupla e tripla discriminação, pois trata de diferentes eixos que se entrecruzam de forma dinâmica, estruturando a vida social de forma a hierarquizar a posição de indivíduos.

Tal conceito explora as desvantagens, vulnerabilidades, opressões e desempoderamentos vivenciados por mulheres situadas nos chamados pontos de encontros de dois ou mais eixos de poder. Por isso, trata-se de uma ferramenta analítica importante para entender a experiência de mulheres negras gestantes em sua relação com a maternidade, corpo, os serviços públicos de saúde, bem como os/as profissionais de saúde durante o período pré-natal.

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Para o feminismo negro – tanto norte-americano como brasileiro - é importante, ainda, considerar as experiências das mulheres negras como fonte de formulações sobre a vida social. Para essas autoras, a condição subalterna vivenciada pelas mulheres não-brancas instiga várias delas a produzir interpretações bastante refinadas sobre a sociedade em que vivem a fim de desenvolver estratégias que assegurem sua sobrevivência e dêem vazão a sua criatividade e felicidade. Por isso, as percepções do grupo racialmente subordinado constituiriam uma fonte importante para as Ciências Sociais (Collins, 2000).

Collins enfatiza a necessidade de se explorar essas representações sociais ao tratar da dimensão ideológica da opressão das mulheres negras afro-americanas, constatando que “certas qualidades atribuídas às mulheres negras são utilizadas para justificar a opressão” (Collins, 2000, p.5). Tais estereótipos negativos fazem parte de ideologias racistas e sexistas hegemônicas, que são vistas e nomeadas como naturais e inevitáveis.

As feministas negras brasileiras, por sua vez, tiveram um papel central no desenvolvimento do conceito de saúde reprodutiva. Sua atuação no campo da saúde e dos direitos reprodutivos consolidou-se por meio de denúncias sobre políticas de controle de natalidade que teriam como alvo principal a população negra (Damasco; Maio; Monteiro, 2012). A explicação dessas assimetrias passou a ser atribuída por elas a um controle diferenciado do corpo das mulheres negras por parte do Estado e da sociedade, uma vez que a discriminação é baseada em uma concepção ontológica animalizada, que associa seus corpos à “natureza que deve ser dominada”. Além disso, é importante considerar também que “pela especificidade da experiência da escravidão, as mulheres negras tiveram mais intenso o controle físico imposto sobre seus corpos e, desprovidas de sua condição de ‘sujeito’, foram marcadas tanto racial quanto sexualmente” (Ribeiro, 2012, p.190).

O passado escravista do Brasil provocou o que Sueli Carneiro denomina “subalternização do gênero segundo a raça”. Segundo ela

As imagens de gênero que se estabelecem a partir do trabalho enrudecedor, da degradação da sexualidade e da marginalização social, irão reproduzir até os dias de hoje a desvalorização social, estética e cultural das mulheres negras e a supervalorização no imaginário social das mulheres brancas, bem como a desvalorização dos homens negros em relação aos homens brancos. Isso resulta na concepção de mulheres e homens negros enquanto gêneros subalternizados, onde nem a marca biológica feminina é capaz de promover a mulher negra à condição plena de mulher e tampouco a condição biológica masculina se mostra suficiente para alçar os homens negros à plena condição masculina, tal como instituída pela cultura hegemônica (CARNEIRO, 2003).

Assim, as noções de que a variável “raça” é fundamental para a interpretação dos dados sobre saúde pública e de que o racismo e o sexismo são fenômenos centrais para explicar as desigualdades têm origem entre intelectuais negras e aparece de forma recorrente em seus discursos

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e formulações teóricas. No mais, suas constatações inspiraram pesquisas empíricas com recorte de gênero e raça, que começaram a se desenvolver nos anos 1960 e ganharam visibilidade na década de 1980 com os estudos dos sociólogos Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva. Na medida em que se dá a configuração de um novo marco interpretativo sobre a saúde pública no Brasil e que os esforços políticos de grupos de mulheres negras foram decisivos para a inclusão do tema dos direitos reprodutivos na agenda pública governamental, suas interpretações devem ser consideradas imprescindíveis nesses estudos.

“Ideologia da miscigenação” e branqueamento

A chamada “ideologia da miscigenação” tem ocupado lugar central na auto-imagem nacional e tem influenciado fortemente a produção das Ciências Sociais no Brasil. Tal ideologia se materializou com uma política de branqueamento do país no final do século XIX, com o incentivo da imigração européia como forma de promover a assimilação gradual pela população brasileira de características (somáticas, mentais e psicológicas) atribuídas à branquitude, consideradas superiores (Guimarães, 2004, p.11). A despeito da violência que pautou esse processo, a ideologia da miscigenação ainda persiste no imaginário social, apresentando o Brasil como uma nação onde o racismo e a discriminação racial não existem, uma vez que há uma crença generalizada e constantemente reforçada de que miscigenação e racismo seriam fenômenos contraditórios.

No que se refere à experiência das mulheres negras em relação ao processo de miscigenação, Costa ressalta que “essa miscigenação foi fruto, primeiramente, da dominação e exploração sexual dos homens brancos sobre as mulheres negras (e índias)” (Costa, 2009, p. 97). Corrêa considera que:

É como se fosse impossível tratar de raça sem tratar de sexo ou de sexualidade: produto de relações sexuais (espúrias) o mulato trazia já no nome escolhido para designá-lo a marca de sua origem. (Durante algum tempo discutia-se na literatura médica se os mulatos, como o seu nome indica, eram ou não estéreis – como as mulas, produtos do cruzamento entre éguas e jumentos). (CORRÊA, 1996, p.43)

Teorizações acerca da ideologia da miscigenação e do branqueamento favorecem a compreensão da dinâmica das relações raciais. Assim, uma vez que a miscigenação integra uma estratégia de atingir a branquitude, a referência para a classificação racial é a cor da pele, somada a aspectos como a textura do cabelo e a fisionomia. Tal classificação é feita de forma relacional, provisória e flexível, em combinação com outros aspectos, como, por exemplo, gênero e classe social.

Iray Carone (2009) ressalta que, enquanto no período pré e pós-abolição da escravatura, o branqueamento convinha às necessidades, desejos, preocupações e medo das elites brancas, hoje ele

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assume outras conotações, sendo um discurso que atribui às/aos negras/os o desejo de embranquecer e de obter privilégios da branquitude com base em sua inveja, imitação ou falta de uma identidade étnica positiva. Dessa forma, manifestações concretas de racismo, ao serem denunciadas por pessoas negras, são vistas como exageradas e auto-vitimistas, resultando em uma espécie de censura cultural em torno do assunto (Sheriff, 2001), ao mesmo tempo em que práticas cotidianas de discriminação perpetuam uma estrutura social racista (Goldstein, 2003, p. 105).

Goldstein observa ainda que, nesse contexto marcado pela interdição cultural em torno do racismo e pela vigência de leis contra o racismo e discriminação racial mais rígidas, formas indiretas de comunicação são usadas como um escape: em vez de ofensas raciais deliberadas, predominam piadas sobre negras/os e silêncios subentendidos, mecanismos que se prestam menos à descrição e à sua eliminação.

Essa visão sobre as interações raciais converge com a noção de Segato de que a “raça é signo”, cujo significante é dado pelo contexto histórico em que ele opera. Em suas análises, a autora defende que as interações sociais, em geral, baseiam-se em uma classificação binária de incluídas/os e excluídas/os, no interior da qual a cor é fundamental (Segato, 2005, p. 46), um signo que se refere a um lócus histórico que é polarizado entre vencidas/os – não-brancas/os – e vencedoras/es – brancas/os. Para ela, a realidade do que chamamos de raça é uma seleção cognitiva de traços físicos que é transformada em traços diacríticos, de forma a marcar grupos populacionais e atribuir a eles um destino como parte da hierarquia social (Segato, 2010, pp. 31-40).

Assim, as reclassificações, seja no sentido de enegrecer ou de embranquecer, são fruto de estratégias sociais em contextos específicos que visam acesso a determinadas vantagens sociais, políticas ou econômicas.

Embora a constatação de que as práticas sociais são alimentadas por um imaginário no qual a negritude aparece como marca de inferioridade possa parecer óbvia, poucos estudos têm se dedicado a identificar representações sociais e dinâmicas que as fundamentam.

Historicamente, o Estado brasileiro se negou a nomear oficialmente a categoria raça, configurando um anti-racialismo. No entanto, a postura adotada não significou e não tem garantido um anti-racismo no país. Nesse sentido, pode-se afirmar que ainda há resistências por parte dos poderes públicos tanto em reconhecer e identificar a ocorrência de discriminação racial/racismo como em adotar mecanismos de coibi-la e puni-la.

Para designar a forma como os poderes públicos produzem e reproduzem dinâmicas racistas nas instituições, cunhou-se o conceito de “racismo institucional”, que pode ser verificado “por meio

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de normas, práticas e comportamentos discriminatórios naturalizados no cotidiano de trabalho, resultantes da ignorância, da falta de atenção, do preconceito ou de estereótipos racistas” (PR/SEPPIR, 2011, p.8). Assim, nas instituições o racismo se manifesta de diversas formas, tais como ausência da produção e uso de dados desagregados, ausência de mecanismos de responsabilização e punição de atitudes discriminatórias etc. Tal conceito - e práticas decorrentes dele - ainda que necessitem ser aprofundados, explorados e ganhar mais visibilidade nas instituições, são também instrumentos importantes para avançar em uma pesquisa acerca das dinâmicas das desigualdades raciais no campo da saúde.

Considerações finais

Desde a década de 1930, a temática das relações raciais vem sendo uma das mais exploradas pelas Ciências Sociais brasileiras (Guimarães, 2008). Sem dúvidas, tais estudos e pesquisas constituem uma referência central na exploração de alguns aspectos particulares do racismo e da discriminação racial no Brasil e podem ajudar a compreender a dinâmica complexa das interseccionalidades e das desigualdades raciais, bem como as resistências de parte considerável da opinião pública, da burocracia estatal e da academia em reconhecer sua existência no país.

A partir da percepção de que não existem estudos sistemáticos com enfoque sobre a dinâmica das relações raciais no acesso das mulheres negras aos seus direitos reprodutivos nos serviços de saúde, entende-se que é fundamental a produção de pesquisas e estudos com tal recorte. Nesse sentido, privilegiar a adoção de uma perspectiva interseccional nesses estudos é fundamental para identificar representações sociais sobre as mulheres negras vigentes na sociedade brasileira, buscando compreender como tais representações geram consequências nas experiências individuais e coletivas dessas mulheres ao acessarem serviços públicos de saúde, especificamente durante o período pré-natal. Ademais, utilizar categorias e análises trazidas pelas mulheres participantes das pesquisas para criar interpretações sobre a interação racial também é relevante.

Por fim, identificar, compreender e problematizar tais dinâmicas e sua possível relação com os diferenciais raciais na mortalidade materna podem vir a subsidiar e contribuir diretamente para o enfrentamento do fenômeno pelo Estado brasileiro, bem como contribuir a melhor desenhar as políticas públicas voltadas ao combate à mortalidade materna no país.

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