• Nenhum resultado encontrado

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA"

Copied!
153
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA

LUÍS ANTONIO SEGADAS DE ARAUJO

Resto Banal:

Experiências Ecosóficas

com Arte Contemporânea

Cuiabá, MT 2017

(2)

LUÍS ANTONIO SEGADAS DE ARAUJO

Resto Banal:

Experiências Ecosóficas

com Arte Contemporânea

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea na Área de Concentração Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa Poéticas Contemporâneas.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Thereza Azevedo

Cuiabá, MT 2017

(3)
(4)
(5)

RESUMO

Na experiência artística com restos da sociedade, escolhi a tampa plástica das embalagens como o agente poético e com ela mergulhei num processo criativo, em múltiplas práticas nos domínios da arte contemporânea. A tampa possibilita uma reflexão sobre a cidade, consumo, relações sociais, sucata e sobre o trabalho de artistas que produzem suas obras a partir do que é chamado de “lixo”. O conceito de “ecosofia” de Félix Guattari, que aponta em três perspectivas de uma nova ecologia; ambiental, social e mental, apoia a discussão.

(6)

ABSTRACT

In artistic experience with remains of the society, the author chooses the lid of plastic bottles as the poetic agent and, with it, immerses in a creative, restless process, in multiple practices in the realms of contemporary art. This object is legitimized as an artwork inside and outside the gallery and leads to a reflection on cities, consumption, social relations, scrap, and the work of artists who produce their works from what is called "garbage". "Felix Guattari's concept of "ecosofia ", which points to three perspectives of a new ecology: environmental, social and mental, supports the discussion."

(7)

Lista de imagens:

Figura 1. Ala da penitenciária agrícola de Monte Cristo 12 Figura 2. Colagem de tampinhas sobre chapa de acrílico 18 Figura 3. Marcel Duchamp, “Why not Sneeze?” 25 Figura 4. “Bild mit Raumgewächsen - Bild mit 2 kleinen Hunden” Kurt Schwitters 27

Figura 5. Arte de Mimmo_Rotella 29

Figura 6. Arman – Le Plein - 1960 30

Figura 7. Andy Warhol - video 32

Figura 8. Andy Warhol Robot 33

Figura 9. Prateleiras minimalistas 33 Figura 10. Simulacros de Sherrie Levine 34 Figura 11. Auto retrato de Ashley Bickerton 34 Figura 12. Arte de Felix Gonzales Torres 35 Figura 13. Arte de Thomas Hirschhorn 35 Figura 14. Instalação de Rirkrit Tiravanija 36

Figura 15. Estética de Rhoades 37

Figura 16. Bispo do Rosário na Bienal de Veneza / 1995 38

Figura 17. Arte de Georges Adéagbo 39

Figura 18. Arte de Vick Muniz 41

Figura 19. Arte da Desmontagem” de Todd Mclellan 42 Figura 20. Felipe na piscina – arquivo pessoal 45 Figura 21. Casa de Geraldo em Cuiabá 51 Figura 22 Amauri na Prainha em Cuiabá 53 Figura 23. Intervenção Urbana na Prainha, com Amauri 54 Figura 24. Hélio Augusto o “Fiscal do Lixo” 55 Figura 25. Quadro “Des glaneuses” / JeanFrançoisMillet, 1857 59 Figura 26. Apropriações de Van Gogh e Banksy 60 Figura 27. Casa de Bodan Litnianski 61

Figura 28. Arte de Louis Pons 62

Figura 29. Arte de Gino Rizzi 62

Figura 30. Arte de Sarah Sze 63

Figura 31. Crianças no Congo 74

Figura 32. Reboque de sucata em Cuiabá 80 Figura 33. Terreno dos catadores em Várzea Grande 85 Figura 34. Mapa do Google streetview 88 Figura 35. Coletor de garrafas pet em Jerusalém 89

Figura 36. DRONEART 91

Figura 37. #QRpost 95

Figura 38. Instalação no MACP 2013 96

Figura 39. Obra #NAOHUMANOS no Shopping Goiabeiras 98 Figura 40. Performance no Shopping Pantanal 99

Figura 41. Retrato Clovito 101

Figura 42. Retrato Clovito 2 102

Figura 43. Retrato Felipe 103

Figura 44. Retrato Frida 104

Figura 45. Salão Jovem Arte Mato-Grossense / vinheta 106 Figura 46. Projeto do Salão Jovem Arte 108 Figura 47. Obra “Espaço Coletor de Tampas Plásticas” 109 Figura 48. Instalação no saguão do MACP 113

(8)

Figura 49. Instalação eqÜevo31dias MACP / vinheta 114 Figura 50. Panorâmica galeria MACP 116

Figura 51. Logomarca Eqüevo31dias 118

Figura 52. Espaço / Sala Negra / vinheta 120

Figura 53. Cartaz Sinop 2016 122

Figura 54. Instalação eqÜevo31dias / Sinop / vinheta 123

Figura 55. Arara em Sinop 126

Figura 56. Instalação eqÜevo31dias / Sinop / 129 Figura 57. Cartaz Rondonópolis 2016 131 Figura 58. Instalação eqÜevo31dias / Rondonópolis / vinheta 132 Figura 59. Instalação eqÜevo31dias / Rondonópolis / 133 Figura 60. Intervenção Urbana / eqÜevo31dias / Rondonópolis / 135

Figura 61. Obra Rizoma na FIEMT 138

Figura 62. Obra Rizoma na UFMT 139

Figura 63. Primeira flutuação da obra “Rizoma” no lago em Sinop 140 Figura 64. Tampas de água e do adoçante líquido 146 Figura 65. Criações do público durante a Instalação Eqüevo 31 dias 147

(9)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPÍTULO 1 – RESTOS DE UMA ERA 19

1.1 – Readymade 23

1.2 – Tampas Banais 43

1.3 – Artivistas do resto 50

1.4 – Os Catadores e Eu 57

CAPÍTULO 2 – ECOSOFIA ? 65

2.1 – Sucata – Prática Dissimulada 75

2.2 – Flaneur da Sucata 82

2.3 – Google Streetview 87

CAPÍTULO 3 – EXPERIÊNCIA CRIADORA 93

3.1 – #QRPOST 94 3.2 – Instalação MACP - 2013 96 3.3 – #NAOHUMANOS 97 3.4 – Retrato Clovito 100 3.5 – Retrato Felipe 103 3.6 – Retrato Frida 104

3.7 – 25 º Salão Jovem Arte Mato-Grossense 106

3.8 – #Eqüevo31dias 110

3.8.1 – Estética Relacional 110

3.8.2 – Museu de Arte e Cultura Popular / MACP 114

3.8.2.1 – Sala Negra 119

3.8.3 – Sinop – Cidade Cenográfica 123

3.8.4 – Rondonópolis – Cidade Universitária 132

3.9 – Modo Rizomático 137

CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS 140

Catador de(s) contexto 150

REGISTROS / MÍDIA 151

(10)

Introdução

“Arte contemporânea não é um campo especializado como foi a arte moderna”, afirma Cocchiaralle (2006). Quem já se perguntou: “Isto é arte?” Hoje, diante de tantas práticas, que não pretendem só a contemplação ou busca por beleza, a arte se aproxima das relações sociais quando propõe a participação necessária do público, atribui novas funções à sua fruição e por isso causa estranhamentos. Este desconforto diante de uma obra de arte é causado pelo pensamento da arte moderna, ainda vigente, e um bom exemplo é a, usual e gasta, palavra “entender” na tentativa desta posse do novo. Cocchiarale sugere a substituição pela palavra “sentir” quando na presença das obras de arte contemporânea. Nesta entrega, na relação com a obra que busca atravessamentos com outras disciplinas, até imprevistas ou improváveis, confunde e anula a figura dos especialistas que se perdem diante de sucessivas e inovadoras formas que dissolveram as fronteiras, entre pintura e escultura, por exemplo. Aliás, as fronteiras não interessam. Na esfera das relações humanas, por exemplo, a sucata pode catalisar a matéria do resto em reflexões desta vida orientada ao consumo que violenta singularidades e quer classificar, primeiro os corpos, depois indivíduos. A arte torna visível estes modos de produção nas consequências próximas da vida e a sucata é um repertório disponível, de fácil acesso, que permite novas formas de pensar, ou melhor, experienciar singularidades e inevitavelmente, a criação do novo.

O objeto de estudo desta dissertação é a experiência poética do precário, os restos em práticas urbanas, observadas e anotadas, na contemporaneidade. É a arte vista de dentro do processo criador, contínuo e também, ocioso em pausas de observação atentas às convergências nos encontros de um infinito novelo emaranhado onde a criação se expande invisível. O tema propulsor é a degradação, ambiental, social e da subjetividade humana. É a desafiadora imersão num processo criativo, também de reinvenção desta ação criativa na transformação do cotidiano e o ponto de partida é a escolha de um objeto, um agente poético que direcione estas experiências: a tampinha de plástico PVC.

Certeau (1994) problematiza a "arte de fazer" quando rastreia modalidades específicas de práticas "enunciativas" diferentes dos modelos dominantes. Escreveu antes da reciclagem ser a indústria instalada hoje e se configurando numa cadeia

(11)

autônoma à cadeia de produção. Afirma que a ressurgência das práticas "populares" na modernidade industrial e científica mostram caminhos válidos de transformação. Como no caso da sucata, por exemplo. Este fenômeno é uma resistência de anônimos sociais, em suas astúcias, porque opera uma nova ordem, representada pela criação e arte, longe de um discurso ideológico porque se alimenta da diversidade dos acasos. Se manifesta espontânea nas ruas ou escondida nas casas e se organiza por atribuir valor ao que o capitalismo condena como banal ou imprestável. A sucata é a impureza necessária que alimenta a arte contemporânea em suas tentativas e erros, na vida como ela é. A sucata permite “sincretismos industriais, subversões, adaptações em suas possibilidades da continuidade funcional; híbrida, eclética, multidisciplinar e contaminada” Cocchiaralle (2011) que, por isso, pergunta: “Quem tem medo da arte contemporânea?”

Vi nas rebeliões dos presídios no início de 2017 a engenhosidade dos detentos em Roraima na ala da penitenciária agrícola de Monte Cristo1, na ausência estatal que apenas fez um muro, constroem seus espaços (os alojamentos ficam a céu aberto) com sucatas, e usam as tampas de isopor das embalagens de comida “quentinhas” ou “marmitex” (este geralmente é de papel alumínio) na forração das paredes erguidas com diferentes materiais, principalmente madeira. Amarrada por linhas azuis, uma tampa de isopor transforma-se num revestimento, por exemplo, que certamente nem o inventor previu, e assim parte-se para experiências motivadas por aprisionadas tendências materiais que subvertem a função industrial utilizando o cotidiano das refeições e na ausência de riscos, cortantes ou contundentes, do isopor. Um material permitido, acessível e abundante naquele lugar.

1

Fonte: https://noticias.bol.uol.com.br/fotos/imagens-do-dia/2017/01/09/penitenciaria-em-rr-tem-setor-construido-com-barracos-de-madeira-e-marmitex.htm

(12)

Figura 01. Ala da penitenciária agrícola de Monte Cristo

Esta mesma engenhosidade noto nos passeios pelo google Earth/streetview2

e nas áreas mais carentes do planeta aparece a inventividade diante das necessidades primárias. Mostra que a sucata é um fenômeno global, uma prática que ainda esconde tecnologias não compartilhadas. É um imenso campo aberto às práticas enunciativas em renováveis modalidades na arte do fazer. Na sucata, o universo das peças propõe o infinito campo de experiências criativas na ressignificação de objetos banais, as sobras do excesso capitalista que fastia. Procurar estas práticas é um bom motivo para usar esta ferramenta do google.

As grandes cidades estão saturadas, visivelmente, em sua mobilidade e ambiência. A cidade cresce e acelera enquanto nascem milhões de pessoas que não existiam antes. A sociedade moderna urbana criou classes de desperdício operando por padrões nocivos que não explicam a lógica do descarte, por exemplo, de embalagens, eletrodomésticos ou móveis jogados por toda a cidade. Não faltam insumos espalhados à espera do resgate que os elevem à condição de “obra de arte” e assim garantam uma sobrevida digna no contexto social. O aspecto precário é apontado por quem descarta qualquer coisa. Este olhar inquieto para a cidade de

(13)

Cuiabá, chegou, por exemplo, no bairro “Morada dos Nobres”; encontro as Princesas Leopoldina e Isabel, os Viscondes de Barbacena e Taunay, o Marquês de Pombal, a Marquesa de Santos e Dom.João VI. Mas na esquina das ruas Condé D´Eu e Barão do Rio Branco está a curiosa contradição entre a nobreza dos nomes das ruas e a pobreza do pensamento do descarte. Vejo o luxo passado no lixo presente, nas linhas do sapato feminino que repousa sobre um livro escolar, fundamental de química, na diversidade, impura e perigosa, dos restos de uma sociedade. Nos fundos de um condomínio de luxo, nesta paisagem banal, vejo uma subida de cascalho repleta de material jogado. Muitos sacos de lixo misturam-se ao cerrado e vemos ao fundo os telhados das casas do condomínio. Parece um depósito de lixo clandestino. Duas cadeiras; azul de escritório e a outra de fio verde com um travesseiro sobre ela, sapatos femininos, uma mochila, uma pasta 007, um armário sem gavetas, uma lata de tinta, livros escolares, placas de hardware, um telefone de mesa, duas gavetas e mais incontáveis objetos. Neste espaço perigoso e insalubre grandes pedaços de vidro alastram-se no chão. Sacos de lixo doméstico derramados misturam papéis molhados e embalagens plásticas. Neste sítio, dia 14 de julho de 2014, registrei3 na descida da R. Condé D´Eu - no cerrado que ainda

habita a cidade.

Percebo que estes lugares repletos de resíduos são alimentados por detritos de outros locais distantes, ou seja, há uma busca e circulação por espaços de descarte. E não faltam terrenos cheios de objetos, móveis e eletrodomésticos abandonados, formam arranjos aleatórios em composições precárias ao ambiente que as recebe. Esta paisagem revela o pensamento escondido com que convivemos na cidade. Este panorama confuso foi descrito por Guattari em 1989, indica a relevância desta pesquisa diante de um mundo deteriorado, em crescentes conflitos por todos os lados. Em maio de 2017 a nova gestão da prefeitura da cidade, com Emanuel Pinheiro, começou uma ação de coleta de “cacarecos” como foi divulgado pelo carro de som que passou na minha rua no dia 13 de junho de 2017.

Esta pesquisa é um trecho de um percurso para a reinvenção de um modo de vida criativo. Mas esta imersão não é tranquila, e desde a chegada em uma nova cidade move-se um processo inesperado diante da missão criadora que aguarda a

(14)

ação. A nova cidade inspira em encontros transformadores, motivadores pela necessária reinvenção que se instala no dia a dia. Será lembrado o encontro com o Coletivo à Deriva, que ofereceu a vivência fundamental às questões urbanas; estar na cidade e sentí-la no improvável. Esta tendência, em olhar a cidade, é antiga e a percebo nos meus desenhos guardados da infância, é tema recorrente, na linha do horizonte recortada por edifícios.

O artista precisa buscar referências teóricas que o auxiliem no entendimento da própria poética no mundo artístico que pratica, transita e habita; a encontro com a palavra “experiência”, na perspectiva de Larrosa, a qual converge com as três articulações ecosóficas que aqui serão discutidas. A experiência do espaço/ambiente, a experiência das relações sociais/encontros e a experiência da subjetividade/criação, dessa forma pensar a vida próxima da arte a partir do par experiência/sentido. Esta pesquisa é um rastro de vestígios poéticos do autor pelo mundo, que o envolve numa travessia atenta ao pensamento da “ECOSOFIA” de Felix Guattari e alinhada ao significado da palavra “experiência”.

O texto descreve a travessia que aponta para a vida, sempre inédita, criativa. Esta dissertação é um lapso de uma experiência. Do latim “experiri”, Larrosa lembra este sentido, na raiz indo-européia “per”, com a qual se relaciona antes de tudo à idéia de travessia, e secundariamente, à idéia de prova. O radical é periri, “que está em periculum, perigo”. Uma experiência, motivada pela tendência, amadurecida e inquieta na criação artística junto com a prática acadêmica, em que ambas se observam, se orientam e ajustam em críticas e auto-críticas, formadoras de um ambiente interno no artista que transita fora do mundo que habita. O cruzamento da arte com a academia é convidativo e motivador na aproximação, no acolhimento, e a vivência com professores e outros artistas/pesquisadores é contaminante, potencializa o processo pessoal, singular e poético e amplia o alcance nas esferas destes pensamentos; acadêmico e artístico.

Uma experiência que se confirma perigosa, insalubre, em seus domínios empíricos. Podem ocorrer muitos acidentes, tropeços, cortes nas mãos ou inalação de gases nocivos, levando a exigir um aprendizado particular em cada situação ou material que se apresenta no processo. Mas esta experiência com a sucata, não pretende descobrir novas tecnologias ou práticas inovadoras que possam ser aplicadas no cotidiano. A experiência aqui descrita tenta perceber a cultura do resto antes da cadeia de reciclagem, que opera quase invisível, enquanto o descarte é

(15)

notado em qualquer esquina de uma grande cidade. Esta pesquisa é um recorte do objeto em estudo e mostra a potência ilimitada das práticas artísticas com sucata. “Experiência” é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova” (LARROSA, 2014).

O trabalho com a sucata é um processo repleto de descobertas curiosas, que ficam silenciosas e escondidas, aguardando a sua vez de entrar no jogo; ter sua chance de falar com as demais na linha dirigida pelo artista em sua função de observador, interventor, interferente e diretor do processo singular oferecido por um modo de vida criativo. Reparo nos materiais diante de sua potência para reaproveitamento e não mais como matéria descartável. Por exemplo, o universo da embalagem é um espetáculo, brinquedos infantis preferem a caixa com alguma parte transparente para que o produto seja visto. Este recurso combina papelão e foha de PVC ou a caixa totalmente transparente em plástico duro. Caixas de papelão podem, facilmente, virar folhas e serem empilhadas às centenas sem ocupar muito espaço desde o momento da escolha, da compra, a destinação do material que vai sobrar, o produto, a embalagem ou restos orgânicos. Deste modo de vida novo, experienciado e proposto, surgem novas práticas, novo olhar, nuances não percebidas antes e ocultas na propagada cultura do descarte. O inevitável acúmulo de material a ser reutilizado exige reflexão do processamento, que pode ser criado por cada pessoa na sua rotina.

Não há aqui qualquer preocupação com técnicas ou linguagens existentes. “O artista contemporâneo inventa a sua técnica” (COCCHIARALLE, 2006), e “..as próximas revoluções deverão criar suas linguagens” (DEBORD, 2000). A prática artística é sempre em relação ao outro, ao mesmo tempo em que constitui um relacionamento com o mundo. São convergências que se desenham e outras se efetivam em encontros coincidentes às poéticas aqui apresentadas, que podem ser comparadas aos rastros de um percurso pessoal imerso num processo criativo com objetos banais, como a tampinha plástica.

Esta dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro volta na linha de tempo dos acontecimentos artísticos no século XX, em busca de referências de práticas com restos ou objetos reutilizados. Trago alguns artistas que se apropriaram dos restos e criaram suas narrativas com sobras da sociedade de consumo. Desde Marcel Duchamp o uso de materiais estranhos é notado nos mais improváveis acontecimentos artísticos, cumprindo bem a função de sugerir reflexões no tempo

(16)

presente, lugar em que a chamada arte contemporânea hoje acontece. Volto ao início do século XX para tentar entender, cem anos após o primeiro readymade, o sistema vigente na arte e sua relação com objetos fora dos simbolismos industriais. Antes, sinalizo o trabalho de LAGROU (2009) que define a perspectiva ocidental no que chamamos e entendemos o que seja arte: um sistema hegemônico instalado legitimado por entes financeiros que tentam apresentar a obra de arte como um bem de consumo.

Neste contexto apresento a tampinha de plástico como agente poético para minhas experiências e logo a alinho com a ecosofia quando percebo o movimento social que atrai no envolvimento criador, como na coleta, por exemplo, surgem interações e situações de subjetividade por parte dos doadores. Esta atividade exerce forte apelo lúdico nos adultos e nas crianças diante da diversidade de formas e cores industriais. O caráter educativo é notado, nas aplicações em sala de aula ou no diálogo aluno/professor agenciado pela coleta deste cotidiano. Nesse percurso, conheci a Professora Cecília no campus da UFMT Rondonópolis, que usa tampinhas coloridas em suas atividades pedagógicas. Cada aluno traz 120 tampinhas para as aulas de metodologia da matemática, no curso de pedagogia.

O segundo capítulo problematiza a sociedade contemporânea e a crescente capacidade de produção e consumo em nível global, seus efeitos sociais, ambientais e na subjetividade humana. O texto busca compartilhar o pensamento de uma nova ecologia: social. Apresenta a palavra “ecosofia” do livro “As três ecologias” que propõe a articulação ético-política, “na relação da subjetividade com sua exterioridade – seja ela social, animal, vegetal, cósmica..” (Guattari,1989,p.08). Ajusto o meu olhar para o modo social/estético na cidade e descubro personagens singulares que aproveitam um modo criativo de viver e criam reflexões sobre os restos no contexto em que se manifestam. Destaco Geraldo, Amauri e Hélio como “artivistas”, artistas ativistas nas ruas em Cuiabá, que transformam a paisagem com singularidades estéticas nas diferentes reflexões que propõem, cada um no seu território. É a sucata como potência tática social na perspectiva urbana da arte contemporânea.

O terceiro capítulo reúne as principais poéticas surgidas na imersão neste processo criativo que acontece em três cidades no estado de Mato Grosso. Dialoga com insumos da contemporaneidade, especialmente a tampinha de plástico, surgem instalações, objetos, vídeos, retratos, intervenções urbanas, em práticas que se

(17)

manifestam nesta inquietação natural da criação dentro e fora de espaços legitimados (galerias de arte).

O título “Resto Banal: Experiências Ecosóficas com Arte Contemporânea” reúne quatro palavras com sentidos densos: experiência, ecosóficas, arte e contemporânea. Sugerem redundância “Resto Banal”, mas estas palavras se reforçam até em preconceitos. A palavra “ecosofia” se junta, neste aparente desconforto ou contradição, conciliada pelas expressões “arte” e “contemporânea”. Mas irei destacar a palavra “experiência” e trazê-la alinhada ao pensamento de Jorge Larrosa Bondia, que propõe pensar a educação a partir do par experiência/sentido. “E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece.” (LARROSA, 2002, p.21).

O adjetivo “banal” remete ao significado do que é comum e corriqueiro. Segundo o dicionário Michaelis4, historicamente, “Dizia-se de algo que pertencia ao senhor feudal e poderia ser usado pelos vassalos mediante o pagamento de um foro”. Oposto de banal é raro, singular e são as singularidades que a arte contemporânea busca despertar. Banal é o abundante, unânime em qualquer lugar onde o homem esteja. Banal talvez seja a ausência de significações agregadas a qualquer objeto industrial esquecido fora da cadeia de produção, “objetos de consumo usual.” (CAUQUELIN,2005:p109)

Sucata pode ser também imaterial, mas o resto aqui são objetos separados, condenados em algum momento à sobrevida promovida pela cultura do descarte, da obsolência dos produtos. Este trabalho busca observar o que conhecemos por “sucata” como agente social que reflete a sociedade contemporânea orientada ao consumo e inspira novas maneiras de sentir e viver a vida cotidiana. A sucata pode cumprir um diferente ciclo incidente nas cadeias de produção e reciclagem: a cadeia da arte, da criação, da singularidade e até refletir em novas paisagens urbanas.

4

(18)

Figura 02 - Colagem de tampinhas sobre chapa de acrílico

(19)

CAPÍTULO 1: RESTOS DE UMA ERA

A urbanização da vida contemporânea impulsiona o desenvolvimento das trocas sociais e maior mobilidade na circulação global, de coisas e pessoas, assim proliferando novas redes, rotas e novos modos de vida. Nestas trocas, as cidades acontecem na proximidade destes encontros, até nos esbarrões, que se evitam na multidão. Deste convívio aparecem, incessantes, novas formas e práticas artísticas que consideram o ambiente e o contexto social em que estão inseridas. “A arte organiza-se antes de produzir efeitos”, explica Cauquelin (2009:p4). A autora destaca a arte como sistema. Produto de alteração de estrutura que não se pode mais julgar a obra ou a produção de acordo com o sistema antigo. Um sistema em “estado contemporâneo” e diferente daquele que prevaleceu até recentemente. Existe, simultânea, e nesta proximidade com a vida a arte gera e emprega subsistemas que ampliam seu alcance na tentativa de apreendê-la. Cauquelin vai além do sistema econômico da arte na descrição deste mecanismo com diversos agentes: produtor, comprador, colecionador ou aficionado, críticos, publicitários, curadores, galeristas, conservadores, instituições, museus; sempre mais numerosos operadores surgem a cada dia nesta lista. Apresenta três campos de abordagem deste sistema: A noção de modernidade (ruptura com a arte moderna), o mercado de arte (mecanismo de funcionamento) e a recepção (os meios por onde é, ou não, vista). É preciso sublinhar o que chamam de “arte moderna” e a própria tradição ocidental. A arte contemporânea confunde o público nesta busca de entendimento entre tantas tessituras e laços tensionados por mais de 60 anos de práticas confusas, legitimadas em partes deste sistema. Neste domínio, vejo a arte contemporânea ainda sem definição, buscando o modo espacial e social; longe e fora dos objetivos estéticos da arte moderna.

Importante destacar a perspectiva ocidental do que chamamos “arte” e por onde iremos atravessar neste texto. Els Lagrou 5 (2009) problematiza que inexistem valores e conceitos na tradição ocidental recente, na antropologia, filosofia ou na crítica de arte, que alcancem os termos e critérios próprios de outros povos para desejar e produzir beleza. O exagero desta ausência varia, segundo a autora, até

(20)

em casos extremos de veneração quando o culto ocidental se mostra discriminatório por ser essencialmente valorativo, e aponta semelhanças, se pudessem comparar as artes produzidas pelos indígenas com obras contemporâneas conceituais.

Lagrou cita a entrevista de Levi-Strauss, que passou por Cuiabá no século XX, em algumas nuances entre a arte moderna e outras cosmologias:

[...] Levi-Strauss propõe uma interpretação antropológica da diferença entre a arte “primitiva”; Nossa tradição ocidental seria responsável por três diferenças entre arte “acadêmica” e “arte primitiva” ; diferenças que a arte moderna tenta superar desde o começo do século XX. A primeira diferença diz respeito à individualização da arte ocidental, especialmente no que se refere à sua clientela, o que provoca e reflete uma ruptura entre o indivíduo e a sociedade em nossa cultura – um problema inexistente para o pensamento indígena sobre sociedade. A segunda se refere ao fato de a arte ocidental ser representativa e possessiva, enquanto a “arte primitiva” somente pretenderia significar. A terceira reside na tendência na arte ocidental de se fechar em si mesma: “peindre aprés les maitres” (pintar seguindo os mestres). Os impressionistas atacaram o terceiro problema através da “pesquisa de campo” e os cubistas o segundo, recriando e significando em vez de tentar imitar de maneira realista, aprenderam das soluções estruturais oferecidas pela arte africana. Mas a primeira e crucial diferença, a da arte divorciada do seu público, não pôde ser superada e resultou segundo Levis-Strauss num “academicismo de linguagens”: cada artista inventando seus próprios estilos e linguagens ininteligíveis[...]. (LAGROU, 2009, p.15)

Não há a figura do artista “autor” nas sociedades indígenas. Seu compromisso é da continuidade na tradição ancestral. No direito de uso, nos materiais ou na capacidade de produzí-lo, o artefato busca o êxito de seu agenciamento, ou seja, o efeito que causa e não apenas um gosto estético em imagens e objetos. O artista indígena é um tradutor do mundo espiritual, aquele que capta no seu diálogo com outros seres invisíveis; seja uma pintura corporal, um cesto, uma rede, máscaras, enfeites, brincos, escudos, etc. Na maior parte dos povos indígenas do Brasil o papel do artista não é especial, qualquer membro pode se tornar o artista e aqueles que se sobressaem são considerados “mestres”. A ênfase está na reprodução da ancestralidade e o agenciamento. Então essas peças são chamadas de “primitivas” pelo sistema da arte ocidental, que insiste em julgá-las pela forma e valor financeiro, observaremos nesta dissertação apenas o uso de objetos no sistema da arte ocidental e fora das questões pós coloniais, que ela abriga e ainda não se desvincularam do eurocentrismo como atitude e pensamento hegemônico do que nos ensinam como arte. “São objetos que condensam ações, relações, emoções e sentidos, porque é através dos artefatos que as pessoas agem, se relacionam, se produzem e existem no mundo”. (LAGROU, 2009, p.13)

(21)

A diferença racial foi determinante nas relações de dominação impostas pelo sistema colonial. A cultura e o conhecimento dos povos dominados foram inferiorizados, engessando a dominação também na arte, canonizada por padrões visuais do sistema mundo judaico/cristão, euro-norte-americano, moderno, capitalista, patriarcal, machista, entre tantas questões sensíveis. Aqui me afasto do histórico dos estudos decoloniais, sublinho algumas nuances da impossibilidade comparativa quando a intenção “artística” é diferente. Por exemplo, a ação criativa nos povos indígenas segue uma função, muitas vezes espiritual. A “arte indígena”, se assim podemos chamá-la, precisa funcionar bem; seja uma pintura corporal ou um utensílio. Fica evidente e claro o conceito de agência que é relacional, trazido por Gell e observado por Els Lagrou quando apresenta seu olhar para questões de alteridade e agência, exclusivamente relacional:

O fator considerado responsável pelo êxito de um artefato depende do tipo de arte em questão: pintura corporal, tecelagem, trançado, cerâmica, escultura, produção de máscaras ou arte plumária. Quando predomina a dificuldade técnica, serão prezadas a concentração, habilidade, perfeição formal e disciplina do mestre. Mas quando predomina a expressividade da forma, a fonte de inspiração é quase sempre atribuída a seres não humanos ou divindades que aparecem em sonhos. Dificilmente se responsabilizará a “criatividade” do artista pela produção de novas formas de expressão. O artista é antes aquele que capta e transmite ao modo de um rádio transistor do que um criador. Preza-se mais sua capacidade de diálogo, percepção e interação com seres não-humanos, cuja presença se faz sentir na maior parte das obras de aspecto figurativo, do que a capacidade de criação ex nihilo, criação do nada. Esta idéia vale para a música, a performance e a fabricação de imagens visuais palpáveis (LAGROU 2009, p.14).

Entre os povos indígenas não há distinção entre arte e artefato, ou seja, objetos para uso e outros para contemplação. Então, a obra de arte não serve para ser contemplada. Ela age sobre o observador, sobre o ambiente e produz diferentes reações cognitivas. Este contraste fundamental parece instransponível quando tentamos comparar as chamadas “arte ocidental” e “arte indígena”. Lagrou diz que só entenderíamos esta distinção por analogia à separação da arte/design – design no sentido de projeto que atenda alguma necessidade humana e a forma obedecendo a função; pois o desenho industrial é funcional, sempre a forma segue a função. O artefato indígena, também, só tem sentido perante o contexto com outros instrumentos que podem funcionar juntos.

A grande diferença reside na inexistência entre povos indígenas de uma distinção entre artefato e arte, ou seja, entre objetos produzidos para serem usados e outros para serem somente contemplados, distinção esta que nem a arte conceitual chegou a questionar entre nós, por ser tão crucial à

(22)

definição do próprio campo. Somente quando o design vier a suplantar as “artes puras” ou “artes belas” teremos nas metrópoles um quadro similar ao das sociedades indígenas. (LAGROU, 2009, p.14)

Não irei aprofundar na “antropologia da arte”, mas acentuo que os artefatos são fabricados em outras lógicas não estéticas, por exemplo, como o caso da hierarquia de um clã ou o desenho do escudo para atemorizar inimigos. Antropologicamente, não é um escudo “belo”, mas um escudo de indução ao medo.

Enquanto os indígenas usam o mesmo artefato estético há milhares de anos, o uso de objetos na arte ocidental parece tardio após tantos anos do início da industrialização, no século XVIII, que alterou a vida cotidiana em muitos aspectos. Apenas em 1914 Marcel Duchamp expõe um porta-garrafas, transportando um objeto em série (do processo capitalista do trabalho) para a esfera da arte. Para aceitarmos, hoje, a presença de objetos banais dentro de um espaço legitimado como artístico, na galeria de arte, foi preciso que Duchamp, dadaístas e toda a vanguarda, há mais de cem anos subvertessem o sistema e a forma usando a contemplação do público para operar outros sentidos em diálogos antiformais. Duchamp era apenas um dos incomodados com aquele começo de século XX. A Europa entrava numa crise da representação formal que refletiu mais tarde no Brasil com o movimento modernista. A busca de verossimilhança era a tradição ocidental em crise; da representação da natureza, enquanto “outros mundos”, por exemplo, a tradição islâmica evita e até proíbe o uso da figura e japoneses valorizam a caligrafia; o gesto.

(23)

1.1 Readymade

Este personagem, Duchamp, um dos mais influentes artistas do século XX, foi o primeiro artista a responder às mudanças da era industrial. Agiu contra si mesmo desarticulando o sistema cultural dominante, quando expôs objetos prontos, o que chamou de readymade, diferentes dos “feito à mão”, eram objetos preexistentes cotidianos (roda de bicicleta, mictório, utensílios). Duchamp mostrou que o lugar da exposição os faz “obras de arte” e atribui valor estético ao objeto. E, quando se declara “antiartista”, o autor desaparece, ele é o que mostra, é quem aponta. A assinatura é a única marca da sua existência. No caso da “Fonte” criou o artista e assinou R. Mutt. Uma crítica ao valor da obra relacionado ao lugar de exposição. Duchamp via o consumo como modo de produção e no seu trabalho há um alvo preciso: o sistema da arte. Entre as reduções impostas por dispositivos de subjetivação, o consumo parece ser um dos destinos das atenções humanas e interferir no sistema da arte significava alcançar todo o aparelho cultural-ideológico. Interferir e compreender seu funcionamento.

A arte para Duchamp não tinha mais conteúdo intencional, ela só existia em relação ao local onde estava sendo exibida a obra, esta por si só um objeto banal, já presente no mundo, já fabricado. A intervenção do artista consistia em exibí-la (CAUQUELIN, 2005, p.118).

Olhar hoje, do ponto de vista contemporâneo, abrange outros alcances da influência de Duchamp na linha de tempo conhecida da arte ocidental. Quando apresentava um objeto industrial pronto como obra de arte, renunciava à técnica e ao conteúdo estético, mostrava o regime da arte que confundia também os papéis de seus agentes. Se não há artista, não há vanguarda (também nunca existiu retaguarda na arte). Distinguia a esfera da arte e da estética e assim embaralhava os papéis dos agentes; anulava conflitos com outras esferas quando passava a integrá-las e revelar a linguagem como “motor determinante” (CAUQUELIN, 2005, p.90). Estas proposições se chocavam com o regime ‘moderno’ dominante e claro atraíam desconfianças e oposições.

Jovem, Duchamp pintou à maneira dos impressionistas e cubistas e posteriormente rompeu com a prática estética da pintura quando se declarou

(24)

antiartista. Quando renuncia à habilidade promove um deslocamento de domínio que se afasta das formas, cores, estilos e conteúdos estéticos para apontar que o que faz a arte é o lugar da exposição. É o lugar que torna os objetos obras de arte. É neste território e seus textos artísticos que legitimam qualquer objeto como obra de arte. O valor está no lugar e no momento da exposição onde qualquer coisa pode ser arte. Resta a escolha e saber escolher é a tarefa do antiartista que pouco interefere no objeto pronto deslocado. Esta transformação do objeto é feita pela observação de quem o enxerga dentro do território legitimado. “A singularidade de Duchamp – com a incompreensão que suscita – é ter posto a nu um funcionamento, ter esvaziado do artista e da obra seu conteúdo intencional, emocional” (CAUQUELIN, 2005, p.100).

O primeiro readymade, assim chamado, foi a “Pá para Neve” (1916). Numa carta à irmã Suzanne, datada de 15 de janeiro de 1916; Duchamp fala da roda de bicicleta e do porta-garrafas deixados no seu estúdio na França:

Aqui em Nova York comprei alguns objetos de estilo semelhante e chamei-os de readymade. Tu sabes suficientemente inglês para perceberes o significado de “já acabado” que eu atribui a estes objetos – assinei-os e coloquei-lhes uma inscrição em inglês. Vou dar-te alguns exemplos: comprei uma grande pá de neve, na qual escrevi Em Antecipação ao Braço

Partido (in advance of the broken arm...Não faças um esforço demasiado

para entenderes isto de uma forma romântica, ou impressionista, ou cubista, pois não tem nada a ver com isso; um outro readymade chama-se Emergência a Favor de Duas Vezes -Emergency in Favor of Twice-...)”. Objetos precedentes só se tornaram readymade em 1916, quando nomeados nesta carta.(MINK, 2000, p.57)

Mas sua gaiola com cubos de açúcar ficou fora da exposição. Em 1921, apresentou uma obra intitulada “Why not Sneeze?” (Por que não espirrar?). Uma velha gaiola retangular de pássaros, dentro um amontoado de cubos de mármore branco parecendo açúcar, um termômetro e um osso de choco (molusco). A obra foi encomendada por Katherine Dreier para presentear sua irmã, que a recusou. Não foi um sucesso e poucas pessoas viram, acharam difícil de compreender. Quinze anos depois, em 1936 participou de uma exposição surrealista em Paris. Acabou colocada numa vitrine ao lado de fétiches Papuásia (estatuetas) e modelos de demonstração matemática do Instituto Científico Poincaré. Hoje aceitamos novos estranhamentos mas não aqueles do século XX.

(25)

Figura 03. Marcel Duchamp, “Why not Sneeze?” 6

Fonte:

http://christygoestofrance.blogspot.com.br/2013/07/the-heart-of-darkness-in-city-of-lights.html

O início, em guerra, do século XX foi turbulento entre tantos movimentos chamados de vanguarda. A representação é substituída pela expressão do artista em vários movimentos no início do século XX que seguem esta ideia de reconstrução de uma realidade; e nesta experimentação, rompem fronteiras com a tradição ocidental e categorias vigentes. Dentre estas chamadas vanguardas européias do início do século XX, destaco “MERZ” movimento próximo dos dadaístas, estética criada pelo alemão Kurt Schwitters (1887/1948) que habitou o início do século XX utilizando objetos em resultados poéticos que se distanciavam, das outras classificações dos “ISMOS” - Expressionismo, Fauvismo, Cubismo,

6 A explicação de Duchamp:”Esta pequena gaiola está cheia de cubos de açúcar....mas os cubos de

açúcar são feitos de mármore e, quando se lhes pega, fica-se surpreendido pelo peso inesperado. O termômetro destina-se a registrar a temperatura do mármore”. Não ajudou muito na época e seus vizinhos na vitrine também ficaram fora do contexto de “obras de arte”. (MINK, 2000) /

(26)

Abstracionismo, Futurismo – e outros, e denominou de “MERZ”. Esta palavra” foi retirada da segunda sílaba da palavra “KOMMERZ” do alemão, no sentido de “comércio”. Toda obra era assim batizada pelo artista que pretendia classificar o próprio trabalho distante também dos dadaístas, que carregavam discursos políticos comunistas.

Cem anos depois, busco na internet a dupla palavra “Kurt Schwitters” no Google dia 05/12/2016, que retorna aproximadamente 485.000 resultados em 0,39 segundos. Na seção de imagens, os algorítimos do sistema dividem e oferecem Kurt Schwitters em: Obras, Collage, Merz, Instalações; e vem junto Marcel Duchamp nas sugestões. Aparecem colagens aleatórias em sobreposições dos resíduos, da sociedade organizada. Nesta intenção estética, a colagem, ou assemblage, do francês, quando utiliza objetos tridimensionais, formas industriais prontas e coladas numa composição abstrata repleta de informações e códigos da vida cotidiana. O resultado rompe com a pintura nas diferentes sensações que oferece no insólito diálogo entre objetos nunca antes previstos

A obra de Schwitters exalta a informação e eleva o objeto da sua condição residual. Neste deslocamento para composições planas, reúne improváveis encontros abstratos em colagens e pinturas valendo-se de um universo semiótico de registros gráficos, rastros, passagens, vivências, anotações que traduzem a imagem da sociedade moderna. Tudo isso na década de 1920. Entre 1922 e 1932 publicou a revista “Merz” trazendo um caráter solitário neste movimento isolado atento aos restos de uma sociedade confusa. Todas as criações traziam o mesmo nome: “MERZ”. Apresentou uma instalação na própria casa e também nomeou de “MERZBAU” ou “Casa Merz”; o artista trabalhou nesta instalação, entre 1923 e 1937, quando fugiu dos nazistas para Noruega e a casa, em Hannover, foi destruída por bombardeios.

(27)

Figura 04 - “Bild mit Raumgewächsen - Bild mit 2 kleinen Hunden”

http://www.tate.org.uk/art/artworks/schwitters-picture-of-spatial-growths-picture-with-two-small-dogs-t03863

Um trabalho7 singular de Kurt Schwitters8 é a tela “Bild mit Raumgewächsen -

Bild mit 2 kleinen Hunden” 9 – assinada no verso do trabalho o ano de 1920, vendida

apenas em 1958 pelo filho do artista. Esta obra, antes da segunda guerra, acompanhou o artista em sua fuga da perseguição nazista e foi constantemente alterada ganhando novos materiais colados ao longo de dezessete anos de muita dificuldade para o artista. Traduzida para o inglês (Picture of Spatial Growths - Picture with Two Small Dogs), pintura a óleo e colagem sobre madeira e papelão,

8 http://www.sprengel-museum.com/the_kurt_schwitters_archive/ 9 http://www.tate.org.uk/art/artworks/schwitters-picture-of-spatial-growths-picture-with-two-small-dogs-t03863 dia 5/12/2016

(28)

imagem com as seguintes dimensões: 1155 x 863 x 131 mm, atualmente no museu nacional de arte moderna do Reino Unido, sediado em Londres. Schwitters estabelecia novas relações dissolvendo fronteiras nas artes plásticas. Haroldo de Campos chama de “despejo linguístico” – “esse amontoado residual de frases feitas, locuções dessoradas, ecos memorizados de anúncios, citações, convenções sentimentais, expressões de etiquetas, lugares comuns coloquiais. Etc” - (CAMPOS,1975, p.36).

Azevedo10 (2009) reflete o trabalho de Schwitters no processo utilizado no filme11 “O Bandido da Luz Vermelha”, de Rogério Sganzerla, em 1968, que subverte o cinema “clássico”, utilizando restos de películas (as pontas dos filmes são cortadas por serem uma área crítica do material sensível e são descartadas). O cineasta reúne estes fragmentos materiais, sobras de outros filmes e com estes restos trabalha o seu processo de filmagem. As sequências também são desconexas, em fragmentos não lineares nas tramas que se entrelaçam. Resultado singular no que a autora aponta a “precariedade da sobra” descrita por Haroldo de Campos:

Tal como as colagens do artista plástico alemão Kurt Schwitters que engendrou outro principio gerador da forma, disjuntando, num mesmo espaço, materiais descartados e heterogêneos, o filme de Sganzerla se constitui na precariedade da sobra. A obra de Schwitters emerge do caos das cidades destruídas pela 1ª guerra mundial, que expôs as fendas provocadas pela guerra e criou um campo aberto de signos desconexos em ebulição. (AZEVEDO, 2009)

Nesse recorte dos restos dessa sociedade de consumo, nestes signos desconexos, nesta “precariedade da sobra” na ebulição do século XX, o artista italiano Mimmo Rotella12 (1918/2006), nos anos 1950, contaminado pelos

readymades dadaístas, também explora a colagem com cartazes de propaganda

rasgados das ruas. Então aparecem ícones, figuras, rostos famosos consumidos, gastos no discurso do consumo através da indústria do cinema. Raymond Hains, (1926 / 2005), Jacques de la Villeglé (1926) e François Dufrêne (1930/1982) eram outros precursores, cartazistas nestas subversões iconográficas, colagens em

10 http://www.cult.ufba.br/enecult2009/19637-3.pdf 11 https://youtu.be/pSbBA4OiqBc 12 https://it.wikipedia.org/wiki/Mimmo_Rotella http://pt.museuberardo.pt/colecao/artistas/493

(29)

fragmentos rasgados, sobrepostos, do universo da comunicação de massa. Lacerando objetos – decollage – Rotella juntou-se ao Novo Realismo, sem assinar o manifesto lançado pelo crítico Pierre Restany, que reuniu os artistas Yves Klein, Jean Tinguely, Raysse, César Baldaccini, Daniel Spoerri, Jacques Villeglé , Christo, Gerard Deschamps, Arman e Niki de Saint Phalle. Houve um rápido desgaste do expressionismo abstrato vigente desde 1951 quando Rauschenberg, um precursor da pop art norte-americana, sobrepõe objetos concretos sobre pinturas expressionistas.

Figura 05. Apropriação e laceração dos cartazes publicitários

Fonte: Fundação Mimmo Rotella

Nos anos 1960 surgiram dois movimentos artísticos focados no consumo e uso de objetos. O pop americano e o novo realismo europeu, mas se diferenciavam neste olhar sobre a sociedade. Enquanto na pop arte “a noção de consumo constituia um tema abstrato ligado à produção de massa“(BOURRIAUD, 2009, p.23), e mostrava o objeto pela compulsão da compra, do desejo, onde trabalham as estratégias de marketing; o novo realismo era um movimento inicialmente francês, uma ruptura com a arte abstrata marcada pela exposição “Cheio” de Arman em Paris em 1960, que além do uso de sucata já refletia questões espaciais. Dois anos antes Yves Klein fizera a exposição Vazio com paredes brancas. Arman buscou o exagero

(30)

ocupando todo o espaço da galeria com objetos amontoados que impediam o acesso à galeria. Criava caixas cheias de coisas repetidas, “caixas de acúmulos”.

Figura 06 – Arman – Le Plein - 1960

http://musee-arman.ch/fr/medias/le-plein-full

Arman, César ou Daniel Espoeri parecem fascinados pelo ato de consumir, e expõem as relíquias desse gesto. Para eles o consumo é um fenômeno abstrato, um mito cujo tema invisível é irredutível a qualquer representação figurativa. (BOURRIAUD,2009, p.23).

Estes artistas, novos realistas, declararam que se uniram com base em uma nova consciência de sua "singularidade coletiva". Por toda a diversidade de sua linguagem plástica, eles perceberam, de fato, uma base comum para o seu trabalho, sendo este um método de apropriação direta da realidade, equivalente, nos termos utilizados por Pierre Restany, a uma "reciclagem poética de recursos urbanos, industriais e Realidade publicitária (60/90 Trente ans de Nouveau Réalisme , La Différence, 1990, p76). Este movimento que se apropriava de resíduos do cotidiano, eram apresentados como arranjos tridimensionais em exageradas composições sucateadas no espaço. Graças a Pierre Restany, que o Realismo Novo foi defendido

(31)

na cena internacional diante de uma forma de arte americana emergente, Pop Art, e apoiado financeiramente por uma rede de revendedores e colecionadores.

O pop art norte-americano mostrou o consumismo pela promoção ou como fonte material e iconográfica para novas poéticas críticas e diverge dos novos realistas europeus no trabalho de Andy Warhol, Claes Oldenburg e James Rosenquist que transitaram nos códigos visuais desta nova sociedade de consumo. Warhol reiventou a pop art na apropriação dos impulsos utilizados na propaganda, na noção de rede e inovou com processos serigráficos. Assim reproduziu, na representação, a serialização dos ícones da sociedade marcada pela promoção. Reproduz objetos e retratos em série de personalidades desta sociedade espetaculosa, entre elas, o brasileiro Pelé, “garoto-propaganda” na década de 1970.

Então, se Duchamp havia concedido ao local a incumbência de anunciar a mensagem “Isto é arte”, renunciando assim à habilidade e à estética do gosto, afastando-se por assim dizer da cena e se preservando, Warhol, ao colocar em prática seus conhecimentos das redes, abandona este último refúgio e essa última marca da arte, que é o local da exposição, para se estabelecer no espaço inteiro das comunicações.(CAUQUELIN, 2005,p.110)

Mas nem Warhol percebeu todo o alcance deste sistema atravessado entre arte, sociedade de consumo, redes com o ambiente. Filmado em 1981, em Nova York, no filme “66 scener fra Amerika” do cineasta Jørgen Leth, o artista aparece comendo um hambúrguer, numa cena banal da sociedade americana. Na sequência, depois de comer (sem gosto), arruma, mostra a embalagem e a amassa colocando de lado. Formam-se duas bolas de papel amassadas nesta cena que comprova a cultura do descarte na sociedade de consumo. Se dobrasse o papelão ou valorizasse este momento do “pós consumo”, o exato instante que o “lixo” é gerado, poderia falar até hoje em termos atuais e urgentes discutidos nas questões ambientais, nas relações sociais e na subjetividade contemporânea que aparecem no vídeo. O descarte sempre parece dizer: “no gesto do resto alguém fará”, ou seja, não termina ali e continua para outro lugar.

(32)

Figura 07. Andy Warhol – vídeo

Warhol descartou e amassou a embalagem banal “66 scener fra Amerika” filme de Jørgen Leth / Fonte: captura de tela do filme

Na década de 1980 surgiram os artistas simulacionistas que consideravam a obra de arte como uma “mercadoria absoluta” e a criação como simulacro do ato de consumir. Mostravam o “objeto sob o ângulo da compulsão aquisitiva, do desejo, a meio caminho entre o inacessível e o disponível.” (BOURRIAUD, 2009, p.24). Nos anos 1990, Warhol serviu de insumo ao artista coreano Nam June Paik que construiu um objeto formado também por restos (pedaços de um projetor de 35 mm) e reuniu peças extraídas da popart de Warhol, na obra com o título “Andy Warhol Robot”, sugere uma figura humana formada por diversos aparelhos de tv (em diferentes formatos) nove telas coloridas emitindo imagens de 34 videoclips. No arranjo aparecem as famosas latas de sopa “Campbell”. Há uma próxima ligação entre a arte, os objetos e o fenômeno do consumo.

(33)

Figura 08. “Andy Warhol Robot”

Haim Steinbach (Israel,1944) transfere as prateleiras, misturando objetos de produção em série e antiguidades. “os objetos que ele instala em suas prateleiras de madeira e fórmica foram “comprados” ou juntados, dispostos, reunidos e comparados”, “o tema de sua obra é o que ocorre em toda troca.” (BOURRIAUD,2009, p.26)

(34)

Sherrie Levine (EUA,1947) apresenta cópias das obras de outros artistas. Figura 11. Simulacros de Sherrie Levine

Fountain (Buddha), 1996, bronze (30.48 x 40.32 x 45.72 cm)

Ashley Bickerton (Barbados, 1959), surfista, fez um auto-retrato de logotipos do seu cotidiano.

(35)

Felix Gonzalez Torres13 (Cuba, 1957/1996) permite que o público leve algum objeto em troca de algum dinheiro depositado numa urna.

Figura 13. Félix González Torres

Thomas Hirschhorn (Suíça, 1957) “apresenta espaços de trocas e locais onde o indivíduo perde o contato com o social e se incrusta num fundo abstrato” (BOURRIAUD,2009, p.30)

Figura 14. Thomas Hirschhorn: Concordia, Concordia

13

http://www.contemporaryartdaily.com/2011/03/felix-gonzalez-torres-at-mmk/untitled_usa-today_-1990/

(36)

Simulando um mercado, a arte de Rirkrit Tiravanija14 (Argentina, 1961) se espalha no espaço quando escapa da forma nos arranjos de objetos em suas relações efêmeras; “representa uma forma coletiva, uma aglomeração caótica, borbulhante e sempre renovada, que não depende de uma autoria individual: um mercado é formado por múltiplas contribuições pessoais” (BOURRIAUD,2009, p.27). Simula mercado aberto como referência, mas não é um mercado físico, é um acontecimento de compra e venda, um comércio, uma relação social. O trabalho de Rirkrit mostra processos invisíveis em suas instalações, “ele produz modos de socialidade em parte imprevisíveis, uma estética relacional que tem na mobilidade sua primeira característica” (BOURRIAUD,2009, p.52)

Figura 15 – Instalação de Rirkrit Tiravanija

(37)

Jason Rhoades15(EUA,1965) parece reunir um supermercado em instalações profusas, aéreas ou neóns que lembram propaganda. “Rhoades apresenta objetos que parecem dotados de uma lógica autônoma, indiferente ao ser humano” (BOURRIAUD, 2009, p.28)

Figura 16 – Disposição caótica na estética de Rhoades

Se a arte contemporânea nasceu após a primeira, nuclear, metade do século XX repleta de movimentos estranhos ao discurso moderno e se alimentou, após outra guerra com bomba atômica, nos anos 1960 da sociedade de consumo trazida na idéia de “consumo e acúmulo”. Antes, no Brasil, um marinheiro, lavador de ônibus, pugilista, místico e recluso por mais de 40 anos, diagnosticado enfermo psiquiátrico, Arthur Bispo do Rosário na sua trajetória artística (reconhecida tardiamente) também foi um agente de convergência material, um artista singular escondido, um sucateiro que recebia muitas doações de objetos dos pacientes e

(38)

funcionários da instituição onde ficou internado. Utensílios do cotidiano ou sucata médica eram reciclados e ressignificados como arte, em tapeçarias, roupas, colagens, pinturas, miniaturas de navios e automóveis num discurso místico: ”Quem

entende de Deus sou eu – proclamava” nas raras vezes que se permitia social fora da reclusão habitual. (HIDALGO). Criou um manto à altura da sua devoção que

usava em ocasiões especiais. Morou um ano trancado numa sala na avenida rio Branco 183, sala 808, centro do Rio de Janeiro. Nasceu em 1911 em Japaratuba, Sergipe e faleceu na cidade do Rio de Janeiro, em 1989. Seu trabalho participou em 1995 da Bienal de Veneza e desde então circulou por diversos países. Fernando Gabeira produziu um documentário gravado ao longo de sete anos, “O Bispo” - Série Vídeo – Cartas, nos anos 1980; um registro áudio/visual precioso, disponível hoje na internet. Hoje o Museu Bispo do Rosário está na antiga Colônia Juliano Moreira.

Pacientes recebiam colheres em datas marcadas durante o ano, mas pouco a pouco as perdiam. Alguns as utilizavam de outras formas: com persistência, viravam ferramentas úteis para fugas em massa. Bispo ficava de olho nas sobras e guardava esses e outros restos para fins que um dia colocariam a sucata da Colônia Juliano Moreira no mapa-múndi das artes plásticas. (HIDALGO, 1996, p.11)

Figura 17 – Bispo do Rosário na Bienal de Veneza / 1995

(39)

“O artista consome o mundo” fala Bourriaud (2009, p.25). Há uma forte diferença entre objetos comprados, achados, recebidos, recuperados; e para cada caráter notamos uma sensação diferente. Na África, Georges Adéagbo16, (Benim, 1942) usa recortes de jornais, objetos pessoais, revistas, roupas, capas de disco, reunidas em caixas de vidro ou espalhadas no ambiente. O artista mostra uma áfrica colonizada em signos, “...que são como legendas de anotações pessoais de um diário íntimo, irrupção da consciência humana nos recessos da miséria dos produtos expostos” (BOURRIAUD,2009, p.31)

Figura 18. Georges Adéagbo

Assim, a obra de arte pode consistir num dispositivo formal que gera relações entre pessoas, ou nascer de um processo social – fenômeno que apresentei com o nome de estética relacional – cuja característica determinante é considerar o intercâmbio humano como objeto estético em si. (BOURRIAUD,2009, p.33)

(40)

Vik Muniz, artista brasileiro (SP) radicado nos Estados Unidos, no filme “Lixo Extraordinário”17

lembra que a reciclagem no Brasil veio da pobreza. Filmado entre agosto de 2007 / maio de 2009, documenta seu trabalho em um dos maiores lixões do mundo: o Jardim Gramacho. Nesta invasão, conhece os personagens e os fotografa. Estar junto com aqueles indivíduos locais e com eles processar materiais retornados da saturação do lixão. Atores da vida real, trabalhadores do universo da catação carioca que falam de muitos tipos de perigo e riscos, da movimentação entre os caminhões, do cheiro que fica no corpo após o trabalho. Em seu galpão, movimenta mão de obra local na produção de suas obras de grandes formatos. Vik consegue operar figuras em grande escala nos arranjos de objetos arrumados no chão e fotografados no alto de um andaime, outro olhar sobre os restos de uma sociedade. O lixo de cada um fala do seu modo de vida. No filme, há uma cena quando os catadores zombam do lixo e imaginam seus donos, julgam as escolhas do desconhecido distante. Aliás, a imprensa usa desta prática em suas investigações sensacionalistas.

Vik é atraído pela matéria da pobreza que busca os restos na força das cruas necessidades da vida, aliás, que construiu o pensamento da reciclagem, do reuso, da sucata, e junto veio o preconceito, o estigma que a acompanha até hoje no universo da catação. O estereótipo do catador é quase um mendigo. Um excluído social que vive de “restos”. Quase não o vemos na cidade porque não queremos vê-lo puxando sua carroça remendada nas ruas da cidade. O filme18 ilumina esta invisibilidade social dos catadores. Neste documentário a transformação nas vidas dos personagens reais que participam e emprestam suas narrativas pessoais repletas de imagens sociais, das crianças em desfavoráveis condições de vida, vítimas da desigualdade a que vivem submetidas.

Antes de Gramacho, Vick Muniz trabalhou com diamantes em 12 imagens fotográficas explorando o contraste entre diamantes e caviar. Estrelas de Hollywood foram retratadas nos diferentes brilhos em “preto e branco”. Oito atrizes: Grace Kelly, Romy Schneider, Liz Taylor, Mônica Vitti, Sophia Loren, Catherine Deneuve, Brigitte Bardot e a cantora lírica Maria Callas. Estes diamantes, necessários ao trabalho,

17

Fonte: http://lpmnews.com/cinema-no-ccbs-apresenta-documentario-lixo-extraordinario/

(41)

foram comprados para a série “Divas e Monstros”, os monstros de caviar: Frankenstein, Drácula, Múmia e o Fantasma da Ópera. Para produzir Divas e Monstros, foram utilizados: 11 mil pedras de diamantes da mais alta qualidade, num total de 550 quilates e valor de 650 mil dolares, e 1 quilograma de caviar das marcas Beluga Imperial e Osetra Royal Malossol, no valor de cerca 17 mil dolares. Qual a intenção nesta gênese do artista anterior ao trabalho de Gramacho? Exibe e promove ícones hegemônicos de um cinema duvidoso aproveitando o encantamento audiovisual criado no século XX para depois mergulhar na paisagem caótica de um lixão no Rio de Janeiro.

Figura 19. Obra da série para a novela “Passione” (TVGlobo 2010/2011)

Vik Muniz projeta a imagem no chão e a compõe com objetos monitorados do alto de um andaime.

Se conheci o assemblage e a decollage nos trabalhos aqui descritos do século XX, hoje interessa, também, neste percurso, seu contraponto contemporâneo, a desmontagem na apropriação e subversão de máquinas ou objetos industriais. Com as palavras “disassembly art” encontro poéticas contemporâneas nesta interessante reversão material que o produto se transforma. Um trânsito que confunde a lógica do setor secundário da economia. Conheço o

(42)

trabalho de Todd Mclellan19, canadense que se apresenta como diretor de arte e comercializa imagens digitais dos objetos desmontados e rearranjados. Por exemplo, um telefone completamente desmontado nos transporta para outras reflexões do processo industrial que estamos inseridos pelos objetos que consumimos. Um produto se fragmenta em centenas ou milhares de peças. Mclellan20 cria um stand para vender suas imagens em eventos. Ainda assim nos parece tímida a interferência que o artista cria com a desmontagem, principalmente quando mantém uma organização das peças. Em tempos de saturação dessas relações com o consumo, a poética das desmontagens causa reflexão deste convívio com a obsolência dos produtos que rapidamente quebram ou gastam. Esta obsolência gera enorme volume de material cotidiano. Os termos “disassembly art” não constam ainda na enciclopédia Itaú Cultural.

Figura 20 - Arte da Desmontagem” de Todd Mclellan

Fonte: http://www.toddmclellan.com/

19

https://www.facebook.com/Todd-Mclellan-MotionStills-375830122530108/

(43)

Comprados, ganhados, achados, são acumulações, engenhocas, restos na mesa, depósitos, objetos em prateleiras, cópias de obras do passado, ícones kitsch21, este consumo de objetos e imagens utiliza a sociedade como repertório de formas (BOURRIAUD), traz até um aspecto de feira livre, de bazar nos anos 1990 que evidencia a ideia de mercado nas práticas artísticas contemporâneas. Nesta profusão entre diferentes maneiras em experimentar a prática artística as fronteiras se dissolvem em ramificações que não pedem mais classificações; a mistura é a origem e assim sepultam o estereótipo do artista “plástico” com um boné francês pintando num cavalete. O próprio cavalete foi derrubado em 1951 por Pollock no expressionismo abstrato. As linguagens se sobrepõem e surgem performances, happenings, intervenções urbanas, videoarte, objetos, instalações, por exemplo, quando e onde uma pode conter outras; e hoje com a rede de computadores abrem-se novas possibilidades, novas abrem-sensações em experimentações únicas para os dispositivos por onde transitamos.

Eu lido com pintura, com figuração, com uma técnica barroca, que tem a presença do grotesco, da carne, do escatológico.[...] Os trabalhos estão cada vez mais híbridos. Não existe pintura, instalação, escultura. E penso na importância de classificar os trabalhos assim. Será que é importante? (VAREJÃO, 2005)22

1.2 Tampas Banais

Contaminado por tantas referências do século passado, nesta convivência com os restos, percebo possibilidades com a tampa plástica das garrafas pet e, posteriormente, do universo plástico. Esse objeto está em todo lugar e com ele desenvolvemos uma estreita convivência. Interagimos todos os dias com este sistema. O plástico oferece novo paradigma diante do seu tempo de vida e da vida que altera. Aponto como objeto global, banal, porque todos sabem, usar, abrir e fechar. Talvez um macaco saiba abrir e fechar uma tampinha. Ao explorar poéticas

21 http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3798/kitsch 03/07/17 22 https://artenaescola.org.br/uploads/publicacoes/arquivos/_006_LA14_Adriana_Varejao_SITE.pdf acesso: 27/06/17

(44)

com este insumo da contemporaneidade, o artista elege a tampa plástica como o agente poético, banal e global, acreditando que a prática da arte consegue contrapor a indústria do pensamento, agindo na compreensão de uma cadeia invisível de produção/circulação, na qual todos participam orientados para o consumo.

A tampa colorida está em todo o planeta. Vemos no chão da rua, dentro de uma gaveta, no ônibus, nos filmes e reportagens, na cozinha, no quarto, na casa; parece que, onde estivermos, em qualquer tempo, passaremos por uma tampa de plástico. Basta olharmos para as lixeiras é o objeto comum junto com a garrafa de água. A tampa plástica é um produto do desenho industrial. Um sistema de segurança. É serial, abundante, íntimo, funcional, impermeável, colorido, industrial, entre outros valores. Nela o industrial deposita a certeza da qualidade da sua marca. E funciona bem. Todos sabem abrir e fechar uma garrafa. Existe um código: direita fecha e esquerda abre. É um ícone da indústria. Usado em promoções com prêmios. A tampa recebe a impressão com informações obrigatórias. A tampa apresenta outros subsistemas; a membrana transparente colada para vedação e o lacre que se rompe na abertura. São muitas as fábricas de refrigerantes espalhadas pelo Brasil, gerando milhões de tampinhas coloridas que, em sua maioria, ainda irá para o lixo.

A cada dia, hora ou minuto, o consumo de uma cidade gera um impacto invisível, distante, em algum lugar longe, que não sabemos. As tampas plásticas são abundantes; basta olharmos para o chão, em alguma caminhada, para encontrá-la. Mostra-nos um funcionamento social. Para onde vai o nosso lixo? Até onde sou parte desta cadeia produtiva? Esta intimidade confirma: É um objeto social, um rastro da presença humana.

Referências

Documentos relacionados

Não obstante a reconhecida necessidade desses serviços, tem-se observado graves falhas na gestão dos contratos de fornecimento de mão de obra terceirizada, bem

Apesar da melhora de desempenho nas compras dos setores pesquisados, os instrumentos de pesquisa utilizados permitiram verificar que na Universidade Federal de

intitulado “O Plano de Desenvolvimento da Educação: razões, princípios e programas” (BRASIL, 2007d), o PDE tem a intenção de “ser mais do que a tradução..

A presente dissertação é desenvolvida no âmbito do Mestrado Profissional em Gestão e Avaliação da Educação (PPGP) do Centro de Políticas Públicas e Avaliação

Dessa forma, diante das questões apontadas no segundo capítulo, com os entraves enfrentados pela Gerência de Pós-compra da UFJF, como a falta de aplicação de

Janaína Oliveira, que esteve presente em Ouagadougou nas últimas três edições do FESPACO (2011, 2013, 2015) e participou de todos os fóruns de debate promovidos

Afastamento da sala de audiências: reflete a sensibilidade dos juízes quanto ao impacto das condições físicas, sobretudo das características austeras da sala da audiência de

Esta pesquisa teve como objetivo avaliar as características de madeira do híbrido Euca/ytpus grandis x Euca/ytpus urophylla e da celulose entre o primeiro ano até o sétimo ano