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WWW.RETRATODOBRASIL.COM.BR | R$ 8,00 | EDIÇÃO ESPECIAL

retrato

doBRASIL

(2)

umA juStIçA que LemBRA

oS tempoS medIevAIS

ponto de vista

No julgamento da Ação Penal 470 (AP 470), diante da crítica dos advogados de defesa de que não havia provas contra os acusados e de que eles estavam sendo condenados apenas por indícios, em desrespeito ao Código de Processo Penal brasileiro, vários mi-nistros do Supremo Tribunal Federal (STF) se preocuparam em explicar que em casos que envolvem, segundo eles, pessoas muito poderosas, capazes de limpar os rastros deixados por suas ações criminosas, o uso dos indícios é frequentemente a única e legítima forma de fazer justiça. O argumento é compreensível quando juízes se veem diante de crimes clamorosos, evidentes – os quais, como se diz, clamam aos céus por punição – e quando, de fato, indícios abundantes e sugestivos ligados ao crime apontam para os culpados.

No caso, no entanto, no julgamento do famoso “mensalão”, não se tratava da existência de difi culdades para ligar supostos criminosos a um crime bem determinado. O problema dos juízes foi que eles não se preocuparam em primeiramente provar a existência do crime para depois procurar as ligações dos culpados com o crime já então devidamente caracterizado. É por essa razão que, a nosso ver, se fez um tipo de justiça que faz lembrar os tempos medievais. Uma comparação boa é com o julgamento das chamadas feiticeiras de Salem, um lugarejo na província de Massachusetts, então uma das colônias inglesas que formaram os atuais Esta-dos UniEsta-dos da América. O julgamento foi dramatizado por um dos maiores escritores do teatro americano, Arthur Miller. Mas o fato existiu e sua sentença fi nal foram vários enforcamentos.

Miller (1915–2005) escreveu a peça The Crucible em 1953, como uma alegoria voltada contra o espírito das investigações feitas pela Comissão de Inquérito sobre as Atividades Antia-mericanas, formada no Congresso dos EUA e dirigida pelo senador Joseph McCarthy. Hoje, ela é vista como um

meiro grande trabalho ocidental sobre o conjunto de questões a serem debatidas com vistas a uma reforma das prisões e das penas, de um ponto de vista mais racional. Beccaria se insurgiu contra os julgamentos secretos e as torturas, empregadas como meio de obtenção de provas. Muitas das reformas dos códi-gos penais europeus da época acharam inspiração em sua obra.

A tortura, praticada sob diversas formas ao longo dos séculos, ainda servia, ofi cialmente, na época de Bec-caria, como meio de obter provas de crimes. As bruxas, acusadas de ligação exemplo “da prática de fazer alegações

e de usar técnicas de investigação in-justas a fi m de restringir o dissenso e fazer acusações políticas”, como diz a Wikipédia. Em português, a peça de Miller chama-se As bruxas de Salem (Ediouro, 1997) e é uma boa leitura para se entender essa recidiva da justiça medieval no Brasil de hoje. Uma epide-mia, desconhecida para os moradores, assolou a região entre 1692 e 1693 e atingiu muitas crianças. Por uma série de interesses econômicos e pessoais, foi transformada, afi nal, num crime de bruxaria. Na história dramatizada, tem papel destacado na condenação dos

réus um juiz pretensioso que, segundo o próprio Miller, é o verdadeiro vilão da história. Esse personagem se proclama extremamente fiel aos regramentos da Justiça, mas, no fundo, sabe ser o julgamento das bruxas uma mentira. Não perdoa ninguém, para não deixar pairarem dúvidas sobre sua reputação teocrática.

Pode-se dizer que as ideias da justiça medieval foram superadas nas civilizações ocidentais modernas pelo Iluminismo, a também chamada Idade da Razão, dos séculos XVII e XVIII, que promoveu o conhecimento cientí-fi co, em detrimento da superstição, da tradição e da fé. No direito, um de seus grandes intelectuais é o italiano Cesare Beccaria (1738–1794), autor de Dos delitos e das penas, de 1764. É o

pri-Não se pode,

como na Idade

Média, perseguir

as “bruxas”, sem

antes, provar que

o crime existiu

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umA juStIçA que LemBRA

oS tempoS medIevAIS

com o demônio, eram torturadas até a confissão. Se não confessavam, como lembrou o irônico cientista Carl Sagan numa de suas obras, é porque o pacto que tinham com o mal era suficiente-mente forte para fazê-las suportar as torturas e, dessa forma extravagante, no fundo confessarem seus vínculos maldi-tos. Um dos princípios essenciais para destruir resquícios da justiça medieval é obrigar os acusadores a provar o que se chama de “materialidade do crime”. O crime não pode ser uma intenção, uma hipótese. A bruxa não pode ser conde-nada por matar o papa se o papa estiver vivinho da silva. Portanto, como diria Beccaria, não se pode partir em busca dos criminosos sem, em primeiro lugar, caracterizar, materialmente, o crime.

No caso do mensalão, o STF não exigiu dos acusadores essa providência fundamental. O julgamento do

mensa-de muitas mensa-de suas campanhas, Duda Mendonça, e para vários partidos da chamada base aliada.

O mensalão, segundo Jefferson, era um esquema de compra de deputados por meio de uma mesada. Os petistas disseram: não, foi um esquema para o pagamento de despesas eleitorais com dinheiro tomado por emprés-timo de dois bancos mineiros pelo PT e por empresas de publicidade de um cidadão chamado Marcos Valério, que rapassava os recursos ao PT. A Procuradoria-Geral da República e a maioria do STF, apoiadas numa verda-deira campanha de perseguição contra os chamados mensaleiros, movida praticamente por todos os maiores jornais e redes de televisão do País, no fundo consagrou a tese de Jefferson e, com base em indícios – fraquíssimos, como mostraremos – de que os em-préstimos não existiam, disse que o dinheiro veio de recursos desviados do Banco do Brasil (BB) e da Câmara dos Deputados por um esquema cujo comando estava na própria Casa Civil da Presidência da República.

Esses desvios são, então, as vigas mestras da tese do mensalão. Provariam a inexistência dos empréstimos, os quais, existindo, rebaixariam o delito cometido da categoria de “o grande crime” de nossa história política para a da conhecida praga do caixa dois, que há décadas corrompe as campanhas elei-torais brasileiras. Era fácil comprovar que eles não existiam, como Retrato do Brasil demonstra nesta edição especial. Mesmo agora, oito anos depois, nem as entidades supostamente roubadas, isto é, o Banco do Brasil e a Câmara dos Deputados, exigiram esse dinheiro de volta.

E por que a condenação de tipo medieval? Porque para muitos, à direi-ta, o petismo é, e sempre foi, a encar-nação do mal e para outros, à esquerda, desiludidos, o petismo, que seria a salvação do Brasil, passou a ser, sob o comando de José Dirceu, nosso Lúci-fer, uma espécie de anjo degenerado. E porque, também, se criou um clima irracional que pretendeu atacar a cor-rupção do processo eleitoral brasileiro com métodos medievais, com uma caça às bruxas, as quais, encontrando-se presas e exemplarmente condenadas, nos redimiriam.

lão acabou sendo uma espécie de exor-cismo para tentar combater a terrível epidemia de corrupção que existiria no País há séculos e que teria tido, com os petistas e o governo Lula, um surto es-petacular e promovido “o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil”, como disse, em seu pedido de condenação dos réus do mensalão, perante o STF, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel.

Como mostraremos a seguir, o mensalão foi uma espécie de maldição aspergida pelo ex-deputado Rober-to Jefferson sobre um esquema de financiamento eleitoral por meio do qual o partido do presidente Lula e de seu ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, distribuiu, entre 2003 e 2004, cerca de 56 milhões de reais para vários de seus filiados, para o marqueteiro

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O banco fez a

contabilidade de

tudo que

repassou. E

entregou os

nomes à PF

No dia 13 de julho de 2005,uma força-tarefa da Polícia Federal coman-dada pelo delegado Luiz Zampronha esteve em Belo Horizonte, nos arqui-vos do Rural, um banco mineiro de porte médio. Apoiada em um mandado da Justiça Federal, requisitou toda a do-cumentação relativa às contas de Mar-cos Valério, um dos donos das agências de publicidade no estado pelas quais se teria processado uma movimentação ilícita de dinheiro. Zampronha saiu de lá com a documentação básica que iria orientar a gigantesca investigação que se estenderia por vários anos. Até hoje, final de março de 2013, o Rural, em sua defesa, distribui um comuni-cado no qual diz que já então, antes de o escândalo vir a público com a denúncia de Jefferson, “inclusive em um deliberado excesso de cautela e extrapolando as obrigações legais [...], registrava em um sistema interno não só as movimentações bancárias, mas também todos os seus beneficiários”.

Deixemos de lado, no entanto, tanto as questões legais – o que era ou não obrigação do Rural fazer em fun-ção das normas do Banco Central e da legislação que busca coibir a movimen-tação clandestina de dinheiro – como a questão de saber se esse dinheiro era para o que se chama, na política, de caixa dois ou para algo diferente, o mensalão. No momento, vale dizer que, efetivamente, o banco mineiro tinha uma grande lista de políticos ou seus intermediários que haviam recebido recursos do chamado vale-rioduto por meio de um “esquema”, digamos assim, montado basicamente por Delúbio Soares, tesoureiro do PT, Marcos Valério e três de seus sócios em algumas empresas – Rogério Tolentino, Ramon Hollerbach e Cristiano Paz – e pelo próprio banco, especialmente, ao que tudo indica, por seu presidente, José Dumont, no começo de 2003. A história não foi bem contada até hoje, ofuscada pelo escândalo causado pela mídia em geral, por políticos, investi-gadores e mesmo magistrados viciados também em manchetes e holofotes.

Os personagens têm papéis diversos do que supõe o senso comum. O cli-ma escandaloso transformou Marcos Valério, uma pessoa com algumas vir-tudes e muitos defeitos, num monstro. Delúbio Soares, um militante petista histórico, foi expurgado do partido por seis anos – só foi reintegrado em 2011. Dumont, o presidente do banco, apontado por vários dos envolvidos como uma figura central na montagem do esquema, morreu em fevereiro de 2004. Antes, portanto, de dar seu testemuho sobre essa e outras versões da história. Na opinião dos repórteres desta história, que conheceram vários dos personagens, cada um deles tem

um papel diferente e todos deveriam ter sido tratados pela Justiça na medida certa de suas participações em crimes que tivessem sido também devidamen-te comprovados, o que, infelizmendevidamen-te, não ocorreu.

Mas o certo é que, dos arquivos do Rural, depois confirmados por Delúbio e Valério e por dezenas de inquéritos da Polícia Federal, da Procuradoria-Geral da República, do Congresso Nacional e de dezenas de repórteres dos maio-res veículos de informação do País, surgiram centenas de documentos do valerioduto, como os que apresenta-mos nestas páginas. No conjunto, eles mostram a distribuição de aproxima-damente 55,3 milhões de reais entre políticos ou seus auxiliares de cinco partidos. O PT foi o principal benefici-ário. Recebeu cerca de 28,5 milhões de

reais, sendo 18 milhões para diversos de seus diretórios e 10,5 milhões para Duda Mendonça, o marqueteiro da campanha petista de 2002, que elegeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para o PL, o partido de José Alencar, o vice-presidente, eleito junto com Lula, tinham ido 12,2 milhões. Para o PP, o partido do famoso ex-governador paulista Paulo Maluf, 7,8 milhões. Para deputados do PMDB, 2,1 milhões. E, finalmente, 4,9 milhões foram para o PTB, do próprio denunciante, Roberto Jefferson, então presidente do partido.

De onde vinha esse dinheiro? Os depoimentos de todos os acusados e toda a documentação levantada por meio das diversas investigações feitas mostram que o valerioduto foi alimentado por empréstimos tomados no Banco Rural e no BMG, outro banco mineiro médio. Os tomadores foram três empresas de Valério e seus sócios já citados: SMP&B, a Graffiti e a Rogério Tolentino Associados. A CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) dos Correios, a principal investigação do Congresso sobre a his-tória, resume os empréstimos: foram sete contratos, assinados no prazo de um ano e meio, entre 25 de fevereiro de 2003 e 14 de julho de 2004. Como eram de curto prazo, geralmente três meses, as dívidas foram, como se diz, “roladas”: somando todas, foram 15 re-novações. E, diz o relatório dos peritos que os examinaram para a CPMI, um dos contratos, tomado pela SMP&B no BMG, foi liquidado com outro, to-mado pela Graffiti, também no BMG. Resumindo a conta, foram tomados por empréstimo 55,3 milhões de reais, em valores da época da tomada..

Esse dinheiro foi repassado ao PT da seguinte forma: a SMP&B abriu, numa agência do Rural em Belo Hori-zonte, uma conta em que os pagamen-tos foram centralizados. Delúbio dizia a Valério a quem repassar o dinheiro. O publicitário, por sua vez, chefiava a gerente financeira da SMP&B, Simone Vasconcelos, encarregada de realizar a operação, o que ela fazia pessoalmente

o esquema

A deScoBeRtA do vALeRIoduto,

cAnAL pARA R$ 55,3 mILhõeS

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ou com a ajuda de Geiza Dias, outra funcionária da empresa. O dinheiro era entregue geralmente em cheque ao portador, que o descontava na boca do caixa, numa agência do Rural, na maioria das vezes em Brasília. Quando o beneficiário do esquema não queria ir ao banco pessoalmente, mandava alguém buscar o dinheiro. Ou, então, Simone ou Geiza retirava o dinheiro do caixa do Rural e o levava pessoalmente ao destinatário, às vezes em um carro-forte.

O dinheiro distribuído ao próprio PT foi enviado, a mando de Delúbio, em blocos. Um deles foi para Duda Mendonça. Saiu em parcelas, como, de um modo geral, todos os outros. As parcelas foram entregues no Brasil nos caixas do Rural, como a todos os outros destinatários, mas se sabe que um dos recebedores, em nome de Duda, foi o policial Davi Rodrigues, que, tudo indica, era um intermediário

cuja função era levar o dinheiro até um doleiro, a partir do qual a grana aca-bou em dólares numa conta de Duda Mendonça nas Bahamas. Os blocos destinados aos diretórios regionais do PT geralmente foram para interme-diários, como no caso do Pará, onde apareceu, em primeiro lugar, Anita Leocádia, secretária do presidente do partido na região, Paulo Rocha, que assumiu ser o destinatário dos recur-sos, para, como disse, despesas locais, das quais prestou contas. No caso dos depósitos para os diretórios nacional, do Rio e do Rio Grande do Sul, por exemplo, não existe essa contabilida-de precisa. Os intermediários, vários, como no caso do diretório nacional, não disseram a quem o dinheiro foi repassado. O dinheiro para os outros quatro partidos, PL, PP, PMDB e PTB, também foi repassado a intermediários, de um modo geral. Muitos dos

desti-natários finais do dinheiro, portanto, não foram identificados, ou seja, não foram denunciados pelos que pegaram o dinheiro diretamente do Rural ou via Simone e Geiza.

Para entender bem a história e seus mistérios, é preciso guardar desta etapa dois pontos: 1) o Rural fez questão de registrar os nomes de todos os tomadores finais ou os intermediários básicos: dirigentes regionais do PT ou seus prepostos e dirigentes ou interme-diários dos partidos aos quais repassou dinheiro; 2) o dinheiro do denunciante do mensalão, Roberto Jefferson, é de um dos blocos, mas ele jura que esse dinheiro, ao contrário dos outros, é para despesas de campanha e não disse a quem distribuiu os 4 milhões de reais recebidos. Segundo o tesoureiro de seu partido, Emerson Palmieri, o valor foi dividido em blocos de 100 mil e 150 mil para ser repassado à companheirada.

AS CONTAS ABERTAS

Segundo os depoimentos de dirigentes do Banco Rural, de Delúbio Soares e dos dirigentes da empresa SMP&B, por cuja conta passou o valerioduto, os empréstimos estavam perfeitamente contabilizados exatamente para confirmar sua existência e para cobrar do PT que os pagasse. A esquerda está a programação de 20 paga-mentos de 300 mil reais cada, para a empresa de Duda Mendonça. Quem deveria receber era Zilmar, sua sócia,

que o documento identifica. À direita estão os recibos assinados pelo contínuo de Pizzolato, Luiz Eduardo Ferreira da Silva, e Maria Regina Cunha, esposa do de-putado João Paulo Cunha. “Não era nem mensalão, nem caixa dois”, disse a RB Ramon Hollerbach, da SMP&B. “Eram empréstimos, efetivamente. Esperávamos que o PT os pagasse. Se era dinheiro para corrupção, porque fazer e depois entregar à polícia essa contabilidade minuciosa?”

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“caixa dois” ou “mensalão”

eSpeRto, jeffeRSon dIz: o meu

é cAIxA doIS; o deLeS, menSALão

Na história contada por Roberto Jefferson nas duas entrevistas dadas à Folha de S.Paulo, a 6 e 13 de junho de 2005, na deflagração do escândalo do mensalão, ele diz ter recebido a informação do ex-presidente de sua legenda, o PTB, José Carlos Martinez, morto em outubro de 2003 num aci-dente aéreo. Pouco antes da morte, disse Jefferson à jornalista Renata Lo Prete na primeira entrevista, Martinez o teria procurado e dito, referindo-se ao tesoureiro do PT, Delúbio Soares: “Roberto, o Delúbio está fazendo um esquema de mesada, um ‘mensalão’, para os parlamentares da base. O PT, o PL, e quer que o PTB também receba. Trinta mil reais para cada deputado. O que me diz disso?” Je-fferson, em resposta, afirma ter dito a Martinez: “Eu digo: sou contra. Isso é coisa de Câmara de Vereadores de quinta categoria. Vai nos escravizar e vai nos desmoralizar”. Em seguida, afirmou à Folha: “O Martinez decidiu não aceitar essa mesada, que, segundo ele, o doutor Delúbio já passava ao PP e ao PL”. Na mesma entrevista, o ex-deputado disse também que, em função de sua posição firme contra o mensalão, Delúbio, após a morte de Martinez, procurou o líder do partido, José Múcio (PTB–PE), para convencê-lo a aceitar a mesada que Jefferson barrara. Ele também afirma ter reunido sua bancada para conde-nar o recebimento de mesada e que líderes dos partidos que já a recebiam, como Valdemar Costa Neto, do PL, e Pedro Henry, do PP, haviam se unido para pressionar Múcio: “Que que é isso? Vocês não vão receber? Que conversa é essa? Vão dar uma de melhores do que a gente?”.

Nessa primeira entrevista à jorna-lista da Folha, Jefferson não contou que o PTB já recebera 4 milhões de reais do valerioduto. Muito menos que, desse dinheiro, que passou a controlar depois da morte de Marti-nez, tinha autorizado um motorista da confiança do partido a fazer dois

saques, de 100 mil reais cada, nos dias 7 e 14 de janeiro de 2004, para repassar à moça que era amante do chefe partidário e ficara desampa-rada com seu falecimento. Jefferson foi, afinal, cassado pela Câmara dos Deputados a 14 de setembro de 2005, por 313 votos contra 156. No voto que encaminhou o pedido de cassação na Comissão de Ética da Câmara, o deputado Jairo Coelho (PFL–RJ) condenou Jefferson por várias razões: não tinha provado o suborno de parlamentares com o mensalão, ele próprio recebera, para o PTB, 4 mi-lhões de reais do valerioduto e ainda mentira, em seu depoimento perante

a comissão, ao afirmar que ocorrera uma reunião da bancada do PTB para discutir o assunto e que o líder do partido, José Múcio, havia discutido a questão da mesada com Delúbio Soares, coisas que Múcio e outros deputados do partido desmentiram.

Nas histórias que acompanharam o grande escândalo político em Brasí-lia, muitas fazem referência a práticas de corrupção antiquíssimas. A Polícia Federal, na sua perseguição a Marcos Valério, foi atrás de histórias de festas de embalo que ele teria proporcionado em um hotel da capital federal para parlamentares, nas quais estariam presentes garotas selecionadas por uma conhecida cafetina local. Duas dessas festas, em 2003 (uma em se-tembro e outra em novembro), por

exemplo, acabaram dando matéria no circunspecto diário paulista O Estado de S. Paulo, no dia 9 de agosto de 2005, sob o título “Ex-sócio confirma festas com garotas de programa em Brasília”. O artigo nomeia um em-presário que teria dito à PF ter sido contratado por Valério para promo-ver os dois eventos, nos três últimos andares de um dos hotéis da capital federal, e informa, vejam só, que “a PF desconfia que as festas teriam contado com a participação de parlamentares e altos dirigentes dos governos federal e estadual”. O Estadão diz ainda que “a PF apurou que nos dias das duas festas citadas por [....] houve saques de 3,5 milhões nas contas de Valério” e conclui afirmando que “rastreamento do Banco Central mostra um maior faturamento da empresa [do referido empresário, cujo nome omitimos], 28 milhões, nos dois primeiros anos do governo Lula”. Essa história acabou sendo reproduzida nas “considerações finais” com as quais o procurador-geral da República encaminhou ao STF seu pedido de condenação dos acusados em meados de 2012.

A tese de que o dinheiro de Jeffer-son era caixa dois e o dos outros era mensalão, como vimos, não mostrou que o ex-deputado era o puro e os outros, os corruptos. Do mesmo modo, mesmo se considerarmos que o dinheiro de Valério alimentou um caixa dois no PT – como parece, aos dois repórteres desta história, o mais correto –, não significa dizer que se tratou apenas de dinheiro para pagar despesas de campanha e pronto. Como disse Retrato do Brasil na sua edição de novembro passado “um arguto repórter da Folha de S.Paulo, num debate recente (...), disse que dinheiro de caixa dois é assim mesmo e que viu deputado acusado de ter recebido dinheiro do valerioduto ves-tido de modo mais sofisticado depois desses deploráveis acontecimentos [do mensalão]”. A importância de Jefferson na história é que ele foi o

Na primeira

entrevista à

Folha, Jefferson

não disse que

tinha ficado

com 4 milhões

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político sagaz que soube conduzi-la. Fora acuado por denúncias de cor-rupção em duas matérias de capa da revista Veja, a de maior influência no País. Em uma delas, com a história de um preposto seu nos Correios, cuja foto aparece na capa da revista recebendo uma propina de 3 mil reais. A reportagem narra o tráfico de influ-ência praticado pelo PTB na estatal. A outra matéria o apresenta como “o homem-bomba”, prestes a explodir a coligação governista. Jefferson diz que procurou a cúpula política do go-verno petista para achar outra saída, mas, ao ser atacado em outra matéria de capa, dessa vez da revista Época, sobre a qual imaginava que o PT te-ria alguma influência, percebeu que tinha de tentar sair atirando. Na sua primeira entrevista à Folha, ele ainda poupa o então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu. “Fui ao ministro José Dirceu, ainda no início de 2004, e contei: ‘Está havendo essa história de mensalão. Alguns deputados do PTB estão me cobrando. E eu não vou pegar. Não tem jeito’. O Zé deu um soco na mesa: ‘O Delúbio está errado. Isso não pode acontecer. Eu

falei para não fazer’. Eu pensei: ‘Vai acabar’. Mas continuou.”

A essa altura, forças mais podero-sas do que as lideradas por Jefferson preparavam-se para uma ofensiva contra o governo Lula, enfraquecido por diversas razões que examinare-mos com mais detalhe no capítulo seguinte. Em seu primeiro editorial sobre o mensalão, dois dias depois da entrevista de Jefferson à Folha, O Estado de S. Paulo, com certeza o mais influente e consequente veículo de imprensa do bloco político conser-vador do País, sob o título “O grande culpado”, atacava o presidente Lula por sua incapacidade de enfrentar a crise, que, dizia, “na melhor das hipó-teses se tornará crônica, e, na pior, se transformará em crise institucional”. No segundo editorial, do dia 11 de junho, intitulado “O novo nome da crise”, o famoso Estadão fazia uma correção, ainda no seu editorial principal: “Até a semana passada, o sinônimo da ‘crise’ era Luiz Inácio Lula da Silva, cujas omissões o torna-ram ‘o grande culpado dos problemas de seu governo’, como se comentou neste espaço. Mas, se Lula, enfim,

resolveu segurar com mão firme o leme de seu governo ameaçado de adernar em meio à mais inclemente tormenta que sobre ele se abateu nes-ses dois anos e meio de existência, a crise do Planalto parece a caminho de assumir um novo nome: José Dirceu de Oliveira e Silva”.

Possivelmente o Estadão perce-beu que uma iniciativa para tentar o impeachment do presidente Lula não encontraria maior apoio. No editorial, argumentava que a mudança do nome da crise se justificava por declarações de Dirceu no exterior protestando contra a política econômica do pró-prio governo numa atitude mais ofen-siva do que antes. Disse o Estadão: “Não faz muito, quando perguntado numa entrevista sobre as políticas fiscal e monetária [do governo], ele se limitou a responder que todos sabem o que ele pensa. Agora, em Lisboa, mudou totalmente de atitude. ‘Se deixarem’, disse, como quem adverte que não deixará, ‘fazem o superávit primário de 7%, juros de 20%.’ E arrematou, desafiador: ‘Isso é uma disputa política. Não falar isso é faltar com a verdade para a sociedade’”.

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quem procura, acha

A AudItoRIA foI BuScAR o que

Se SABIA não exIStIR

Em 2002, antes de o PT ganhar as eleições para a Presidência da República, ficou famosa a profecia, do megainvesti-dor George Soros, de que o partido não podia ganhar as eleições e, se ganhasse, não levaria. De certo modo, foi o que aconteceu. Luiz Inácio Lula da Silva ga-nhou as eleições no segundo turno, mas só depois de, sob intensa pressão dos mercados, com o dólar chegando perto da cotação de um por quatro reais, seu partido assinar a Carta ao Povo Brasi-leiro, na qual promete cumprir todos os contratos assinados pelo presidente Fer-nando Henrique Cardoso, e confirmar esse compromisso pouco após a eleição, até com certo exagero, ao elevar a meta do superávit primário, ou seja, a conten-ção de despesas para garantir sobras de orçamento para o pagamento dos com-promissos externos do País. Do ponto de vista administrativo, duas medidas foram tomadas pelo novo governo para explicitar melhor esses compromissos com o mercado financeiro: a escolha de Henrique Meirelles, ex-dirigente global do BankBoston, para dirigir o Banco Central e de Cássio Casseb, ex-dirigente do Citibank no País, para dirigir o Banco do Brasil.

No BB iria surgir o grande instru-mento para a oposição transformar sua investigação sobre o valerioduto num indício de “desvio de dinheiro público”. Esse instrumento foi a denúncia, surgida em 3 de agosto – menos de dois meses após o mensalão ter se transformado na principal manchete de todos os no-ticiários da grande mídia –, de que Luiz Eduardo Ferreira da Silva, um contínuo da Previ, o fundo de pensão do Banco do Brasil, tinha sacado, a mando de Henrique Pizzolato, diretor de marketing e comunicação do banco, nomeado no governo Lula, exatos 326.660,27 reais numa das pontas do valerioduto, uma agência do Banco Rural no centro do Rio de Janeiro. Pizzolato disse, logo depois, que se tratava de dinheiro para o diretório do PT no Rio, mas, a seguir, os jornais descobriram que ele tinha comprado um apartamento de 400 mil reais em Copa-cabana algum tempo depois desse saque.

Imediatamente, surgiu a tese de que o dinheiro sacado do Rural tinha sido uma propina de Marcos Valério para Pizzolato renovar o contrato de publicidade entre o BB e a DNA, agência de publicidade de Valério e sócios.

Pizzolato deixou a diretoria do BB imediatamente. Não importa se no desenrolar da história, foi provado que a renovação do contrato com a DNA não foi assinada por ele – é de antes do governo Lula. Também não teria relevância o fato de uma devassa monu-mental da Receita Federal em sua história financeira acabasse comprovando que na compra do apartamento em Copacabana não existiu qualquer dinheiro estranho às poupanças dele e de sua mulher,

Andrea, nem mesmo que a história do desvio fosse totalmente infundada. No próprio BB surgiu uma investigação que iria fornecer indícios de que os trabalhos da DNA para o BB, feitos por meio do Fundo de Incentivos Visanet (FIV), na gestão de Pizzolato, no valor total de 72,8 milhões de reais, poderiam não ter sido realizados. E que, portanto, em parte desse montante, de algum modo aportado à conta da SMP&B no Rural que alimentou o valerioduto, estaria a grana que transformaria os empréstimos tomados por Valério e seus sócios junto aos dois bancos mineiros em operações fajutas, feitas, de fato, para disfarçar a verdadeira origem do dinheiro, o desvio de fundos públicos. Essa investigação, feita por 20 técnicos do BB ao longo de quatro meses, foi uma extensa auditoria

sobre a forma de operação do FIV. Seus resultados só foram divulgados formal-mente em novembro de 2005, mas parte deles foi vazada para a imprensa muitas vezes antes, para alimentar o escândalo. O FIV foi uma criação, no Brasil, da Visanet, nome fantasia da Visa In-ternacional, a maior empresa global de emissão de cartões de crédito e débito, os de marca Visa. Em 1995 ela chegou ao Brasil e fez a Visanet, sob seu controle, em associação com mais de 20 bancos locais, sendo o principal deles o Bradesco e o segundo, o Banco do Brasil. A Visa Internacional é gigantesca. A Visanet, hoje Cielo, era uma dentre muitas deze-nas de outras emissoras de cartões Visa montadas por ela em vários países. Os seus cartões movimentam, anualmente, alguns trilhões de dólares por ano. Em 2004, por exemplo, o movimento de dinheiro com os cartões Visa no Brasil foi estimado em 156 bilhões de reais. Desse dinheiro, como faz em todos os lugares do mundo, a Visa destina 0,1% para seus sócios fazerem propaganda dos cartões Visa. Ou seja, em 2004, no Brasil, a Visanet dedicou 156 milhões para serviços de promoção de cartões de bandeira Visa, do Bradesco, do Banco do Brasil e dos outros sócios. O propósito era aumentar ainda mais o faturamento da Visa Internacional no País e, é claro, os lucros da companhia, pois ela fica com a maior parte das comissões cobradas dos fornecedores de bens e serviços que aceitam os pagamentos por meio desses cartões.

A auditoria feita no BB nos quatro meses citados e depois completada nos anos seguintes a pedidos do relator do processo, ministro Joaquim Barbosa, dos dois procuradores-gerais da República que cuidaram do caso, Antonio Fernando de Souza e Roberto Gurgel, e, ainda, dos advogados dos réus, está em 108 apensos da Ação Penal 470 no Supremo Tribunal Federal. RB tem em seu site todos eles, que formam um conjunto de cerca de 20 mil páginas. A auditoria não foi buscar, em primeiro lugar, a materialidade do crime, as provas concretas de que tinha ocorrido um desvio de dinheiro do

A decisão de o BB

não ter contrato

para operar o Fundo

Visanet é de 2001.

Não tinha nada a

ver com Pizzolato

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Banco do Brasil, de que um crime havia sido cometido. Ela partiu em busca de indícios de que crimes poderiam ser sido cometidos. No caso, um de seus critérios básicos foi tentar verificar se a execução dos serviços do FIV pela empresa DNA, a mando do BB, estava de acordo com as normas de operação do banco para a veiculação da publicidade que era paga diretamente pelo seu orçamento.

Os auditores, ou as pessoas que os comandaram, tinham, ou poderiam ter encontrado, todas as informações que mostrariam não ser esse o procedimento adotado pelo BB para autorizar esse tipo de gasto. Por contrato assinado entre o BB e a Visanet em 1995 – portanto, no governo Fernando Henrique Cardoso –, as autorizações para os gastos de publicidade via FIV eram emitidas por um funcionário especialmente designado pelo BB junto à Visanet – e no governo Lula essa pessoa não era Pizzolato. Além disso, por decisão do departamento jurídico do banco, tomada também no governo FHC, não existiria um con-trato formal entre BB e Visanet para a operação desses recursos. Não haveria, também, um contrato formal entre a Visanet e a DNA para essas operações. Veja, ao lado, trecho de documento do departamento jurídico do BB no qual se afirma ser legal a dispensa desses instru-mentos. Citando o artigo 436 do Código Civil, o documento diz expressamente: “Tal espécie de contrato não reclama uma formalidade, ou seja, não precisa ser escrito para se aperfeiçoar, bastando mero consentimento das partes”.

E isso foi feito, como pode ver quem estudar cuidadosamente os fatos, não por trama sinistra executada no governo FHC e seguida cavilosamente também por Pizzolato no governo Lula. Um dos segredos da Visanet nos lugares em que opera é colocar a serviço da venda de seus cartões – e, portanto, do aumento de seu faturamento – bancos rivais entre si, cada um interessado em emitir mais cartões que o outro, disputando cada es-paço do mercado. Por exemplo, se havia, como de fato houve nesse período, um congresso de magistrados em Salvador e o BB queria fazer uma promoção no local, isso não deveria estar escrito num plano a ser discutido dentro da Visanet, onde estava o Bradesco, por exemplo, com mais ações que o BB na empresa e igualmente ávido para vender cartões Visa aos juízes, pessoas de alto poder aquisitivo.

As relações entre Visanet, bancos e agências de publicidade tinham de ser mais frouxas, para que o negócio funcionasse melhor. Os negócios foram feitos assim e o truque funcionou, es-pecialmente para o BB, que se tornou, nos anos da gestão Pizzolato, líder no faturamento de cartões de crédito entre os bancos associados à Visanet.

Os auditores foram procurar do-cumentos onde esses dodo-cumentos não estavam. Notas fiscais, faturas e recibos da agência DNA e de fornecedores que teriam feito para ela as ações de incentivo autorizadas pelo BB foram buscados no próprio BB, onde não estavam. Como quem procura acha, os auditores encon-traram “fragilidades e falhas”: descobri-ram que, nos dois períodos até então – os anos 2001 e 2002, de operação do FIV

com o BB na administração Fernando Henrique Cardoso, e 2003 e 2004, de operação do fundo na administração Luiz Inácio Lula da Silva, com Pizzolato na diretoria de marketing e comunica-ção do banco –, as ações com dinheiro do FIV alocado para o BB, com falta absoluta ou parcial de documentos nos arquivos do próprio BB, chegavam quase à metade dos recursos despendidos. Ao procurarem os mesmos documentos na Visanet, os auditores os encontraram. Evidentemente, a grande mídia – cujos colunistas mais raivosos chamam os petistas de petralhas – divulgou apenas que os auditores tinham achado, nos ar-quivos do BB, “fragilidades e falhas” que mostravam indícios de que os serviços da DNA para o BB poderiam não ter sido realizados.

PORQUE O BB DISPENSOU O CONTRATO Trecho do parecer jurídico do banco, que está nos autos da AP 470, no seu ítem 10, explica a decisão, de 2001, de não haver necessidade de contrato entre a Visanet e os fornecedores dos serviços de publicidade prestados ao BB para o uso dos recursos do FIV (Fundo de Incentivos Visanet). Abaixo está a tabela construída com dados da auditoria feita no banco sobre os recursos do FIV nos dois períodos 2001-2002, governo FHC, e 2003-2004, governo Lula. A política de adiantamento dos recursos é a mesma. E os gastos com notas fiscais em poder da CBMP – Companhia Brasileira de Meios de Pagamentos – o nome oficial da Visanet são de praticamente 100%.

Receitas do FIV utilizadas pelo Banco do Brasil Adiantamentos às agencias de publicidade

Gastos com notas fiscais em poder

da CBMP

Gastos sem notas fiscais R$ milhões R$ milhões % R$ milhões % % 2001 28,83 26,4 91,57 28,76 99,76 0,24 2002 32,03 21,9 68,37 31,99 99,88 0,12 2003 38,43 29,7 77,28 38,28 99,61 0,39 2004 52,01 34,1 65,56 51,45 98,92 1,08

(10)

mídia e congresso

como foI cRIAdo “o mAIoR

eScândALo poLítIco do pAíS”

A transformação das “fragilidades e falhas” no processo de controle dos re-cursos do Fundo de Incentivos Visanet pelo Banco do Brasil num clamoroso “desvio de dinheiro público” não se deu por força de afirmações contidas nos frios relatórios da auditoria feita pelo banco nesse fundo. Essa metamorfose ocorreu após a denúncia do escândalo na Câmara dos Deputados, um local no qual o PT sofrera uma grande der-rota no início de 2005, com a perda da presidência da Casa, cargo em que estava seu deputado João Paulo Cunha, um ex-metalúrgico, como o presidente Lula. Na sucessão, o PT se dividira. Foi apresentada inicialmente meia dú-zia de candidatos, inclusive o próprio Cunha, para cuja reeleição se tentou, sem sucesso, aprovar uma emenda aos estatutos da Casa. Ao final, con-trariando a decisão formal do partido, o PT concorreu com dois candidatos: um, oficial, Luiz Eduardo Greenhalgh, conhecido ativista de direitos humanos e deputado por São Paulo, e outro, Vir-gílio Guimarães, do PT de Minas. Por sinal, no que interessa à nossa história, ele é o homem que apresentou Delúbio Soares a Marcos Valério. Em meados de fevereiro, foi feito o pleito e, no primei-ro turno, Greenhalgh venceu, por 207 votos, contra 117 de Guimarães e 124 de Severino Cavalcanti, do PP, partido da “base aliada”, como se sabe. No segundo, Cavalcanti ganhou disparado: 300 votos contra 195 de Greenhalgh.

Na Câmara, presidida por Caval-canti desde então, surgiu, no começo de julho, logo depois da divulgação das listas de beneficiários do valerio-duto, um novo “indício” de desvio de dinheiro público; no caso, contra Cunha e de modo parecido com o do “indício” levantado contra Pizzolato. Ele teria as-sinado um contrato de publicidade com a SMP&B, a agência já citada de Marcos Valério e seus sócios, por ter recebido deles uma propina de 50 mil reais. Esse dinheiro foi sacado na agência do Banco Rural em Brasília pela esposa do deputado, que assinou o recibo corres-pondente, com seu nome e número do

CPF. Cunha argumentou que o dinheiro tinha sido enviado pelo PT, a mando de Delúbio Soares, e se destinava a uma pesquisa eleitoral na região onde ficam sua base, Osasco, e outras importantes cidades da Região Metropolitana de São Paulo, como Barueri e Carapicuíba. Apresentou recibos do encarregado da contratação das pessoas que fizeram as pesquisas e pacotes de formulários preenchidos nesse levantamento. Isso não acalmou os ânimos oposicionistas acirrados com a história.

Cunha pediu, então, que o presi-dente da Câmara, deputado Severino Cavalcanti, encomendasse ao Tribunal de Contas da União (TCU) uma

audi-toria nas condições da licitação e na execução do contrato com a SMP&B. Foi como se tivesse pedido uma corda para ser enforcado. Severino pediu não só a auditoria que Cunha queria, mas também outra, a um comandado seu, Alexis Souza, que indicara para chefiar a Secretaria de Controle Inter-no (Secin) da Câmara. Souza acabaria não sendo empossado formalmente no cargo, que exige confirmação do nome pela mesa diretora da Casa, onde têm assento, além do presidente, mais seis deputados: dois vices e quatro secretá-rios. Cavalcanti também acabaria sendo atropelado pelo escândalo: renunciou no dia 21 de setembro, sem que Souza fosse oficializado no cargo.

Seu relatório, no entanto, fez estra-gos. Ele foi entregue formalmente em duas partes, em setembro e outubro, depois da renúncia de Severino. Porém,

sua divulgação foi bem anterior. Cópia de suas conclusões preliminares foram repassadas à equipe de inspeção da Terceira Secretaria de Controle Externo do TCU (3ª Secex) quando ela esteve na Câmara entre os dias 25 de julho e 3 de agosto de 2005. Tanto o relatório de Souza quanto o relatório da turma de inspeção do TCU, apresentado ao secretário da 3ª Secex em setembro, concluem que a agência SMP&B não tinha feito praticamente nada – 99,9% de seus trabalhos tinham sido terceiri-zados –, o que é a base para se concluir que Valério e seus sócios receberam o dinheiro para serviços de publicidade da Câmara, nada fizeram e o desviaram. Como se viu depois, as investigações da Câmara e do TCU prosseguiram por quatro anos e três anos respectiva-mente e, em decisões colegiadas, essas instituições absolveram completamente João Paulo Cunha de qualquer culpa. E o mais incrível é que o ministro Joaquim Barbosa, que comandou as votações do STF que sentenciaram o deputado Cunha a nove anos e quatro meses de prisão e mais 370 mil reais de multa, tenha apresentado as conclusões de Souza e da turma de inspeção da Secex – e ainda exageradas numa proporção de dez vezes – como resultado de duas decisões plenárias de órgãos da Câmara e do TCU.

Os dois relatórios preliminares, de Souza e o da primeira turma de inspe-ção da 3ª Secex, foram vazadas para a imprensa no começo de agosto de 2005. No dia 11 daquele mês, Duda Men-donça depôs na CPMI dos Correios e disse ter recebido do PT, no exterior, o equivalente a 10,5 milhões de reais. Vários deputados petistas choraram em plenário ao ouvi-lo. No dia 12, o presidente Lula fez um pronunciamento pela televisão no qual disse: “Eu me sinto traído por práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento”. No dia 17, numa nota, a Executiva do PT pediu desculpas ao povo brasileiro. No dia 1º de setembro, a CPI dos Bin-gos, chamada apropriadamente de “A CPI do Fim do Mundo”, porque saiu

Não se pode

esquecer que a

denúncia inicial

do mensalão

tem Policarpo,

da Veja

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em busca de assuntos contra o PT que pudessem criar manchetes, levou para depor uma irmã do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel, do PT, morto em 2002. A CPI quis investigar se a morte do prefeito não teria sido queima de arquivo, motivada por ele ter se rebe-lado contra um esquema de corrupção montado na prefeitura pelo PT.

Tudo indica que a oposição só não pediu o impeachment do presidente Lula no segundo semestre de 2005 porque não conseguiu ganhar a presi-dência da Câmara nas eleições dispu-tadas em 28 de setembro. Aldo Rebelo (PCdoB–SP), pela base governista, e José Thomaz Nonô (PFL–AL), pela oposição, foram os adversários prin-cipais. No primeiro turno, empataram, com 182 votos cada. No segundo, Aldo ganhou apertado: 258 contra 243 votos. Mas José Dirceu teve seu mandato de deputado federal e os direitos políticos suspensos pelo plenário da Câmara por 293 votos contra 192, na madrugada de 1º de dezembro do ano do escândalo. A base para sua cassação: diversos in-dícios de que ele seria o chefe de três quadrilhas articuladas para o desvio de

dinheiro público usado para comprar apoio político e aprovar as propostas iniciais do governo Lula.

O papel da mídia nessa denúncia e em seus desdobramentos não pode ser minimizado. Não se pode esquecer que a gravação da conversa de Maurício Marinho, o funcionário dos Correios flagrado por Veja no recebimento de uma propina de 3 mil reais de um em-presário, foi articulada com Policarpo Junior, chefe da sucursal da revista em Brasília. O operador da gravação é Jairo Martins, preso com o empresário Carlinhos Cachoeira no início do ano passado. Ambos, junto com Policarpo, também estão envolvidos, ainda, na gravação das visitas a José Dirceu no apartamento em que ele atendia correli-gionários no Hotel Naoum, em Brasília.

Não se pode esquecer também que o outro grande evento midiático do período, o escândalo Daniel Dantas, liga-se com o do mensalão no momento em que alguns deputados conseguem enfiar no relatório final da CPMI dos Correios o pedido de indiciamento do financista. A Telemig, a Amazônia Ce-lular e a Brasil Telecom, empresas então

controladas por Dantas, e não o Banco do Brasil e a Câmara, seriam os respon-sáveis pelos recursos do valerioduto, visto que a DNA tinha contratos de publicidade com elas e também recebe-ra muitos milhões dessas empresas nos anos de 2003 e 2004. O indiciamento de Dantas no mensalão, afinal, não foi pedido pelo procurador-geral da Repú-blica, como se verá no capítulo seguinte, mas a divisão do mensalão para que os 40 indiciados pelo procurador fossem ouvidos em seus locais de residência acabou permitindo que a Procuradoria da República em São Paulo, onde mora José Dirceu, acabasse comandando um inquérito da PF voltado para investigar as relações de Dantas com o mensalão. “Acredita-se que o HD do banco” – o disco rígido do Opportunity, banco associado ao financista – “possa conter dados que comprovem a relação entre a Telemig, a Amazônia Celular e Mar-cos Valério”, disse a procuradora Ana Roman, que autorizou a abertura do inquérito, chefiado pelo delegado Ézio Silva do início de 2006 até o início de 2007 e depois pelo delegado Protógenes Queiroz.

17 x 4: MENSALÃO RECONHECIDO POR GOLEADA, DIZ O PFL

Março de 2006, oposicionistas carregam em triunfo o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), o relator da CPMI dos Correios, após a aprovação, por 17 votos a 4, do seu relatório. O texto teria mostrado, diz a legenda da foto, publicada no site do PFL, “o que todo o País comprovou

em 11 meses de depoimentos e investigações”: “o PT, braço político-eleitoral do Governo Lula, comprou com dinheiro público a adesão de deputados para formar a tristemente famosa “base governista”. O nome “mensalão” para essas propinas milionárias é apenas uma marca de fantasia, um apelido convencional, para o fato comprovado de que o Governo Lula e o PT praticaram atos de corrupção”.

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Quando o STF aprovou seu indicia-mento, em 2007, como chefe da quadri-lha do mensalão, Dirceu exibiu um exem-plar da Folha de S.Paulo, que publicara declarações do ministro Ricardo Lewan-dowski, para quem a corte votou “com a faca no pescoço”. O ex-ministro atacou a grande mídia, que já teria pré-julgado o mensalão, e ele era o grande alvo. Os jornais tinham publicado trechos de re-latórios das investigações de Queiroz nas quais arapongas procuravam identificar, nas vozes gravadas, menções ao nome de Dirceu. Numa dessas gravações, a mais grotesca, um “ele” perdido no meio de uma conversa de dois assessores do financista tinha sido interpretado por um dos arapongas como “José Dirceu”, e “conta curral” seria o código para um pagamento que ele teria recebido num paraíso fiscal (Ver O escândalo Daniel Dantas, duas investigações, editora Ma-nifesto, páginas 80 e 81).

A etapa inicial do processo judicial é o inquérito, cujas investigações são feitas pela polícia e, em casos de alcance nacional, pela Polícia Federal. Na Justiça brasileira, quem comanda o processo investigatório é um promotor e, caso estejam envolvidas altas autoridades, esse promotor é o procurador-geral da República – no caso, Antonio Fernando de Souza. Depois do inquérito policial, o promotor verifica se há provas e indícios suficientes para mover uma ação penal destinada a levar os acusados a julga-mento. Na nossa história, o inquérito da Procuradoria-Geral da República é o de número 2.245, de 2005, que desembocou na Ação Penal 470 do STF. O processo político, com as centenas de “inquéri-tos” promovidos pela mídia e as três comissões parlamentares de inquérito feitas pelo Congresso Nacional, teve uma espécie de conclusão preliminar a 30 de março de 2006, quando o deputado Osmar Serraglio (PMDB–PR) apresen-tou pela primeira vez o relatório final da CPMI dos Correios, no qual pede o indiciamento de 122 pessoas. Os nomes dessa lista inicial foram reduzidos a um terço, 40 pessoas, pelo procurador Souza,

que naquele mesmo dia apresentou a denúncia do mensalão ao STF.

Destaque-se, para a nossa história, que o procurador eliminou da lista quatro nomes do Banco do Brasil. Ficaram ape-nas os dos petistas Henrique Pizzolato e Luiz Gushiken. Saíram o presidente do banco, Cássio Casseb, e mais três funcionários, que vinham da adminis-tração anterior, do governo de Fernando Henrique Cardoso, a despeito de terem assinado, com Pizzolato, os documentos considerados incriminadores, que enca-minharam os pedidos de liberação dos 73,8 milhões de reais em recursos do Fundo de Incentivos Visanet, tidos como desviados dos cofres públicos.

Destaque-se, também, que Souza não indiciou vários deputados apontados na lista de Serraglio, mas ainda não julgados pela Câmara. Denunciou, porém, João Paulo Cunha, que até então também ainda não havia sido julgado pelos deputados. Quando o foi, pouco depois, o plenário o absolveu por 256 a 209 votos. O leitor deve levar em conta, também, que houve um grande esforço da Visanet para influir na seleção dos indiciados e para não en-tregar certos documentos seus à Polícia Federal. A empresa apresentou várias ações no Supremo para contestar uma decisão do então presidente da corte, Nelson Jobim, que determinava que a Visanet permitisse o acesso de peritos do Instituto Nacional de Criminalística, da PF, “a todos os documentos da em-presa no período de 2001 a janeiro de

2006”. Como se verá no capítulo que trata da investigação feita por RB, mais adiante nesta história, um dos documen-tos essenciais da Visanet para o caso é um relatório dos advogados da empresa preparado para ser entregue por ela à Receita Federal. Esse relatório declara, em síntese, haver provas documentais de que não houve desvio de dinheiro do FIV destinado ao Banco do Brasil. Ele estava entre os documentos apreendidos inicialmente pela PF, mas foi devolvido à companhia graças à ação de seus advoga-dos, os quais argumentaram ao STF, com êxito, que o referido relatório é protegido legalmente pelo direito de sigilo.

O relatório inicial da CPMI dos Correios, também apresentado no dia 30 de março, tinha 1.828 páginas e suas 122 sugestões de indiciamento seriam, uma semana depois, no plenário da Câmara, também desidratadas: ficaram apenas 24 indiciamentos e uma lista apartada de 18 deputados que poderiam ter cometido “crimes eleitorais ou de sonegação fiscal”, não acusados sob o argumento de que a investigação não teria tido tempo para análise de suas defesas mais recentes. O documento de Souza, embora claramente baseado nas investigações do Congres-so, é relativamente sucinto. Depois de apresentar os indiciados, basicamente os mesmos que seriam julgados em 2012 pelo STF, e de uma introdução, se divide em sete blocos. Sua tese central procura se contrapor à de todos os réus, que tinham se defendido, desde o início do escândalo, com o argumento de que não tinha havido “o” crime histórico e excepcional batizado de mensalão, mas, sim, o tradicional crime de caixa dois. O pilar de sustentação da tese de que, sim, o mensalão existira, apresentada inicialmen-te por Souza, endossada com mais ênfase por seu sucessor, Roberto Gurgel, e com veemência e agressividade pelo ministro Barbosa na fase do julgamento – eram os supostos desvios de recursos públicos. Os “desvios”, “desvios de recursos públicos”, “desvios de dinheiro público” são citados mais de 30 vezes. E os exemplos mais de-talhados desses desvios são atribuídos aos

quem chefia a quadilha

o pRocuRAdoR SouzA Achou

doIS chefõeS. coRtou um...

O procurador

tirou, da lista

de indiciados,

Casseb e mais três

também do BB,

mas não petistas

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dois petistas já citados: João Paulo Cunha, político com sete mandatos, de vereador, deputado estadual e deputado federal; e Henrique Pizzolato, um homem de igre-ja, propagandista do PT em campanhas pelo Paraná e figura principal do Banco do Brasil na campanha nacional contra a fome idealizada por Herbert de Souza, o conhecido Betinho.

As acusações de Souza estão sub-mersas num texto muito mal escrito e mal concatenado. Ele começa pela tentativa de caracterizar a “quadrilha” comandada por José Dirceu, a “sofisti-cada organização criminosa” que teria sido construída após a vitória do PT, em 2002, “para garantir a continuidade do projeto político” do partido “mediante a compra de suporte político” e que “se estruturou profissionalmente para a prá-tica de crimes como peculato, lavagem de dinheiro, corrupção ativa, gestão fraudulenta, além das mais diversas formas de fraude”. Diz que Dirceu era todo-poderoso: “A atuação voluntária e consciente do ex-ministro José Dirceu no esquema garantiu às instituições fi-nanceiras, empresas privadas e terceiros envolvidos que nada lhes aconteceria, como de fato não aconteceu até a eclo-são do escândalo, e também que seriam beneficiados pelo governo federal em assuntos de seu interesse econômico, como de fato ocorreu”.

A seguir, busca destruir as provas apre-sentadas pelos acusados de que o dinheiro

distribuído pelo PT vinha de empréstimos, tomados pelo partido diretamente ou por empresas de Marcos Valério. “Conforme anteriormente assinalado, os elementos de convicção obtidos comprovam que esses empréstimos não seriam sequer efe-tivamente quitados. Tanto o grupo ligado a Marcos Valério quanto as instituições financeiras apenas ingressaram no esque-ma, pois tiveram a prévia concordância do ministro-chefe da Casa Civil e a garantia da inexistência de controle sobre suas ati-vidades ilícitas e de benefícios econômicos diretos e indiretos.”

É um texto confuso, que envere-da por desvios. Por exemplo, chega a sugerir que o BMG, um dos bancos que emprestaram dinheiro ao PT e às empresas de Valério e sócios, era o centro de tudo: “Todos os fatos que se desenrolaram desde então demonstram que as ações desenvolvidas pelo núcleo político-partidário foram pautadas ex-clusivamente para beneficiar o banco BMG, que, não por acaso, foi a primeira instituição financeira não pagadora de benefícios previdenciários habilitada à concessão dos créditos consignados, o que lhe rendeu vultosa lucratividade, decorrente, principalmente, dos meca-nismos utilizados em seu benefício, que lhe permitiram sair na frente de todo o mercado de bancos pequenos, negociar esses empréstimos com os aposentados inclusive por telefone e, posteriormente, ceder essa carteira, em uma operação

ex-tremamente suspeita, à Caixa Econômica Federal”. O BMG acabou sendo excluído do julgamento numa fase posterior.

Para enfatizar a existência de supos-tas provas das relações de José Dirceu com Valério, o relatório chega a ser bisonho. Diz que Valério “afirma que es-teve na Casa Civil aproximadamente em quatro ocasiões” e, a certa altura, afirma que o publicitário era a figura principal da quadrilha o que está de acordo com o incrível veredito final do caso que condenou Valério à maior pena de todos os chamados mensaleiros – 40 anos, dois meses e dez dias de prisão, mais 2,72 milhões de reais de multa –, mas é con-traditório com a tese de que Dirceu era o chefe da quadrilha (condenado a dez anos e dez meses de prisão mais 676 mil reais de multa). Aliás, ainda em relação à chefiada quadrilha, a denúncia de Souza comete outra extravagância: denuncia Luiz Gushiken, ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e chefe de Henrique Pizzolato, por ser o homem que controlava a pro-paganda do governo Lula. A questão que o indiciamento de Gushiken levantava era: se o dinheiro básico desviado dos cofres públicos eram os 73,8 milhões de reais supostamente extraviados por Pi-zzolato, o chefe da quadrilha deveria ser Gushiken, e não José Dirceu. Talvez por essa incongruência Gushiken também foi posto fora da acusação numa etapa posterior desta nossa incrível história.

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A denúncia de Souza foi aceita pelo Supremo em agosto de 2007. O inquérito 2.245 foi transformado, então, na Ação Penal 470, e a investigação a cargo da Procuradoria-Geral da República pros-seguiu nessa nova fase até o começo de julho de 2011, quando um novo procu-rador, Roberto Gurgel, no início de seu segundo mandato, apresentou, então, as alegações finais da acusação para o julgamento. O documento de Gurgel, muito mais extenso que o de Souza e muito mais bem escrito, mantém a mes-ma grandiloquência: “Trata-se da mes-mais grave agressão aos valores democráticos que se possa conceber”, diz. A grande quadrilha, com três núcleos – político, operacional e financeiro – é a mesma e seu poderoso chefão é, igualmente, José Dirceu. “Ao assumir o cargo de ministro-chefe da Casa Civil em janeiro de 2003, José Dirceu passou a ter como missão a formação da base aliada do governo federal dentro do Congresso Nacional. Mais do que uma demanda momentânea, o objetivo era fortalecer um projeto de poder do Partido dos Trabalhadores de longo prazo. Partindo de uma visão pragmática, que sempre marcou a sua biografia, José Dirceu resolveu subornar parlamentares federais, tendo como alvos preferenciais dirigentes partidários de agremiações políticas.”

O desvio de recursos públicos é man-tido como o pilar da acusação. Gurgel reafirma que esse desvio está provado e que é falsa a tese de que o dinheiro distribuído pelo esquema do valerioduto veio de empréstimos legítimos tomados junto aos bancos mineiros Rural e BMG. “A transferência de recursos pelos bancos Rural e BMG para alimentar o esquema ilícito jamais foi admitida pelos acusados. (...) Essa versão, entretanto, não pode ser aceita”, diz Gurgel, que, então, apresenta uma novidade: a SMP&B, que concen-trava os repasses do valerioduto, tinha, já na sua contabilidade referente ao ano de 2003, contas específicas para registrar as operações do esquema: “388003-6 Parti-do Parti-dos TrabalhaParti-dores – PT”, “388090-2 provisão encargos emprest PT”; e “194001-9 adiantamentos concedidos”.

O procurador também mostra que a empresa fez o registro do empréstimo ao corrigir sua contabilidade após a denúncia do mensalão, para regularizar sua posição junto à Receita Federal. Em 2003, a conta da SMP&B “1010-5 caixa – cheques emitidos”, uma subconta da conta-caixa, era utilizada para registrar operações que passavam por essas contas e nas quais a empresa era emitente e beneficiária de cheques de suas próprias contas bancá-rias, operações por meio das quais saía o dinheiro do valerioduto. Gurgel, é claro, não usou essa novidade para concluir que os empréstimos ao PT existiam e que eram contabilizados, de algum modo, pela SMP&B. Não aceitou, inclusive, que a correção da declaração do Imposto de Renda a posteriori, amplamente aceita pela Receita Federal em relação às demais empresas, fosse válida neste caso.

Em sua acusação, Gurgel também torce os depoimentos de líderes de partidos acusados de receber suborno, Valdemar Costa Neto, do PL, Pedro Henry, do PP, e Roberto Jefferson, do PTB, que narram como foram negocia-dos os apoios em dinheiro do PT. Eles negam o suborno e insistem em dizer que o que houve foram acordos políticos permitidos pela lei eleitoral. Gurgel tenta usar esses depoimentos para provar que José Dirceu era o chefe das negociações da ajuda financeira. Chega a reconhecer que “não discute a licitude da ação do chefe do gabinete civil da Presidência da República de articular junto ao Con-gresso Nacional a base parlamentar de apoio ao governo a que pertence”. Diz: “Evidentemente a articulação política insere-se nas atribuições do mencionado cargo”. Mas argumenta que a acusação decorre do fato de essa base de apoio ter sido formada “mediante o pagamento de vantagens indevidas a seus integrantes”. O termo “vantagens indevidas”, gené-rico, é usado por ele, aqui, da mesma forma que, sob o comando do ministro relator Joaquim Barbosa, viria a ser uti-lizado pela maioria dos outros ministros do Supremo no julgamento: como uma licença para não ter de provar a prática, pelos parlamentares que receberam

dinheiro do PT, de “atos de ofício” que caracterizassem os crimes.

Gurgel também usa, nas suas ale-gações, o truque no qual o ministro Barbosa se especializaria no julgamento: depoimentos colhidos na fase do inqué-rito policial, durante a qual os acusados não tiveram direito ao contraditório. Ele cita Jader Kalid Antônio, um doleiro mi-neiro que executou repasses para a conta de Duda Mendonça nas Bahamas. Kalid depôs na PF e disse ter sido orientado, em 2003, por um dos sócios de Valério, Ramon Hollerbach – que acabou rece-bendo a segunda maior pena da história do mensalão – 29 anos, sete meses 20 dias mais multa de 2,8 milhões de reais –, a enviar para a conta de Duda nas Bahamas o dinheiro devido pelo PT . O doleiro diz ainda ter sido Hollerbach a pessoa que lhe passou o número da conta do publicitário no exterior. Valério nega que tenha mandado pagar Duda no exterior. No dia em que Duda deu uma declaração desse tipo, em seu depoimen-to na CPMI dos Correios, Valério, que estava em Brasília, foi ao Congresso e deu declarações que desmentiam o publi-citário baiano. Hollerbach jura que nunca encontrou Duda e que jamais soube o número de qualquer conta sua.

Por último, vale destacar na acusação de Gurgel o que ele diz ser “a prova de-finitiva” da ação do núcleo publicitário formado por Rogério Tolentino, Marcos Valério, Cristiano Paz e Ramon Holler-bach no “desvio de recursos do Banco do Brasil, pelo esquema do Fundo de Incentivos Visanet”, estipulado por ele em “R$ 73.851.000,00 (setenta e três milhões, oitocentos e cinquenta e um mil reais)”. Gurgel diz que um laudo mostra que, no dia 22 de abril de 2004, a DNA sacou 10 milhões de reais da conta 602000-3, no BB, na qual recebia adiantamentos por serviços prestados ao FIV, e transferiu essa quantia para o BMG, para a compra de um CDB (Certificado de Depósito Bancário, um empréstimo do aplicador pelo qual o banco paga juros) que serviu de lastro para um empréstimo, dois dias depois, do banco a uma empresa de Tolentino,

A prova ideológica

o peRIto não vIu, GuRGeL vIu:

A GRAnA tInhA pLAnoS, IdeIAS

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Rogério Lanza Tolentino e Associados. Este seria não só um empréstimo fictício, como também a prova do desvio. De fato, o dinheiro viria do BB. Como se sabe, movimentar dinheiro entre contas de bancos diferentes, por sócios, não prova nada. O dinheiro não fala, não revela sua origem ou destino. Além do mais, como se verá dois capítulos adiante, não houve o desvio do BB.

O exagero de Gurgel pode ser visto por meio das palavras dos próprios peri-tos, na conclusão do Laudo 1866/2009-INC, que afirma: “Os peritos entendem que o contrato está acobertado por garantias adequadas, vez que atendem às características de suficiência e liquidez exi-gidas pelas normas. Destaca-se que essa conclusão diz respeito ao aspecto formal do negócio, não tendo sido avaliado o seu aspecto ideológico, como a motivação da DNA Propaganda Ltda. em fornecer a garantia ou mesmo a origem dos re-cursos que a constituíram”. Em resumo, no entender dos repórteres, a acusação de Gurgel foi ideológica. Ainda sobre

os empréstimos, o delegado Luiz Flávio Zampronha, que fez a apreensão inicial de documentos do mensalão, em 2005, foi chamado pelo então procurador Souza para aprofundar a investigação sobre a origem de recursos do mensalão. Seu relatório, entregue a Gurgel antes da ela-boração das considerações finais, diverge muito do atual procurador. No essencial, para mais: o mensalão teria sido usado ao longo de anos. Mas ele diverge em pontos que destroem a tese do mensalão: diz que os empréstimos são verdadeiros e seriam quitados com dinheiro a ser arrecadado pelo esquema, como teria acontecido no caso do mensalão mineiro. Zampronha diz que o homem que construiu a ligação do Rural com o esquema era José Augusto Dumont e que não ficou suficientemente provada a ligação dos dirigentes do Rural condenados agora – Kátia Rabello (16 anos e oito meses, multa de 1,5 milhão de reais), José Roberto Salgado (16 anos e oito meses, multa de 1 milhão de reais) e Vinicius Samarane (oito anos, nove meses e dez dias, multa de 598 mil reais) – com

as operações. Zampronha deu várias entrevistas. No dia 12 de setembro de 2012, ao votar pela absolvição de Geiza Dias, o ministro Lewandowski citou as declarações de Zampronha na imprensa em defesa dela. Joaquim Barbosa disse que as declarações de Lewandowski eram “bizarras”: “Isto é um absurdo. Em qualquer país decentemente organizado, esse delegado já estaria, no mínimo, sus-penso”. O relatório de Zampronha não foi aceito por Gurgel. O procurador não é um anjo, nas alturas, acima do bem e do mal. Como escreveu Retrato do Brasil em sua edição 62, que fez a cobertura de sua denúncia do mensalão no plenário do STF, em agosto do ano passado: “Gurgel é o mesmo que não viu a quadrilha da qual participavam Cachoeira e o senador Torres, mesmo tendo os policiais que investigaram o empresário lhe apresen-tado, como resultado da Operação Las Vegas, realizada em 2009, entre centenas de conversas grampeadas entre os dois, pelo menos 22 consideradas muito com-prometedoras”.

A RELAÇÃO CACHOEIRA-MENSALÃO

Como se sabe, a imagem da capa de Veja que disparou o mensalão, em 2005, foi produzida com a ajuda de Jairo Martins um dos membros da quadrilha do empresário Carlinhos Cachoeira e do senador Demóstenes Torres, cassado posteriormente. Em agosto de 2009 o senador Torres era o presidente da Comissão do Senado que

aprovou a indicação de Roberto Gurgel para procurador geral da República. Na foto, a sessão de aprovação, com Torres no centro da mesa e Gurgel à sua direita. Mais tarde, ainda 2009, o procurador Gurgel deixou de encaminhar o pedido o indiciamento de Torres ao STF, pedido pela Polícia Federal, depois de esta ter lhe encaminhado dezenas de conversas incriminadoras entre Torres e Cachoeira.

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Com certeza, a pessoa que transfor-mou as narrativas do mensalão numa peça com aparência de justiça para ser vendida à opinião pública foi o ministro Joaquim Bar-bosa, que cuida do mensalão desde que o caso chegou ao STF, em 2005, ainda como inquérito. Até então Barbosa era relativa-mente estigmatizado. Fora escolhido para ser ministro do STF pelo presidente Lula, logo no começo de seu primeiro mandato, por ser negro, numa espécie de exercício da política de cotas raciais. Isso, de certo modo, foi mal recebido por expoentes da mídia mais conservadora que são contra esse critério para preenchimento de parte das vagas públicas em várias instâncias, no caso, o STF. Mas o seu encaminhamento, na corte, em meados de agosto de 2007, da denúncia do procurador-geral da Repúbli-ca, Antonio Fernando de Souza, contra os 40 integrantes do mensalão mudou radi-calmente essa imagem e lhe valeu elogios estridentes.

“O Brasil jamais teve um deplorável escândalo como o mensalão. Como compensação, também jamais teve um ministro como Joaquim Barbosa”, disse Veja em sua edição do início de setembro de 2007, num artigo de capa no qual enu-merava as qualidades de Barbosa, como menino pobre que estudou muito e ven-ceu na vida e sua sofisticação, desde falar várias línguas, vestir-se em lojas chiques pelo mundo e conhecer com detalhes a vida em Paris, Nova York, Los Angeles e San Francisco.

Barbosa apresentou um voto de 430 páginas, lidas ao longo de 36 horas em cinco dias. Nele defendeu a justeza de aceitar a denúncia de que uma quadrilha liderada pelo ex-ministro José Dirceu movimentara dezenas de milhões de reais para corromper parlamentares em troca de apoio político. Veja destacava, essen-cialmente, a sagacidade de Barbosa em transformar a denúncia do procurador-geral numa peça para o convencimento do público. Dizia a revista: “Sua obsessão era a forma do voto, a estrutura, a ordem dos capítulos [...] Joaquim Barbosa fez um voto inteligente. Subverteu a ordem da denúncia preparada pelo procurador-geral

da República”. Souza, como já vimos, apresentou uma denúncia dividida em sete capítulos. Começava pelo que chamou de “quadrilha”. Ali estava o mais difícil de provar e o mais importante da acusação. Nessa seção Souza procurava distinguir o crime que denunciava do conhecido cri-me de caixa dois. Falava da “organização criminosa” comandada por José Dirceu para praticar “diversos tipos” de crime. Dizia que ela era “sofisticada”, formada por três quadrilhas, com divisão de tarefas. A acusação de que o deputado João Paulo Cunha, como presidente da Câmara dos Deputados, teria recebido propina de 50 mil reais e a de que Henrique Pizzolato, como diretor de marketing e comunicação do Banco do Brasil, teria recebido outra, de 326 mil reais, estava bem à frente,

no quinto capítulo. No terceiro, Souza apresentava os “desvios de dinheiro público”, como o dos 73,8 milhões de reais que teriam sido tirados do Banco do Brasil, a partir das operações do Fundo de Incentivos Visanet, para as empresas de Marcos Valério.

Barbosa mudou a ordem da apresenta-ção dos supostos crimes: procurou contar uma “historinha”, fácil de ser aceita pelo público, como disse na ocasião a O Estado de S. Paulo. Começou, então, pelo capí-tulo cinco, pela historinha de que Cunha e Pizzolato teriam sido simplesmente subornados. Depois foi para o capítulo três, no qual Souza procurava mostrar que o dinheiro do esquema petista viria de desvio de dinheiro público e, de fato, Cunha e Pizzolato teriam sido subornados

para permitir o roubo do dinheiro do povo. Deixou por último o mais difícil, o capítulo no qual Dirceu é acusado de formar a sofisticada quadrilha tripartite. Com essa forma, o escândalo ficou mais compreensível, “o capítulo anterior jogava luz sobre o capítulo subsequente”, disse, na época, Barbosa ao Estadão.

Nos meses em que construiu sua versão do esquema, aparentemente Bar-bosa adquiriu problemas de coluna que até hoje o atrapalham. O sucesso de sua “historinha”, saudado pela unanimidade dos grandes veículos de formação da opinião conservadora do País, o tornou um herói para certo tipo de público e o fez mais agressivo, ousado. Nas sessões do STF, teve muitos atritos com outros ministros. Em 2008, por exemplo, atacou Eros Grau por ele ter concedido um habeas corpus para a soltura de Humberto Braz, sócio do financista Daniel Dantas que fora preso sob acusação de tentar subornar Protógenes Queiroz, o delegado da PF que chefiava a Operação Satiagraha, deflagrada contra Dantas. “Como é que você solta um cidadão que apareceu no Jornal Nacional oferecendo suborno?”, disse Barbosa a Grau. O vídeo da cena citada do noticioso da TV Globo era falso. O delegado seria depois processado pela própria PF e está condenado em primeira instância por ter fraudado essa “prova”. “[Sua] decisão foi contra o povo brasileiro”, disse Barbosa a Grau. O debate entre os dois baixou de nível: Barbosa ameaçou bater em Grau, a quem chamou de “velho caquético”; Grau lembrou um Boletim de Ocorrência de uma briga doméstica de Barbosa com uma ex-mulher e retrucou: “Para quem batia na mulher não é nada estranho que batesse num velho também” (sabe-se que a mulher que fez a denúncia da agressão posterior-mente a retirou). Em 2009, Barbosa teve outra altercação violenta, dessa vez com o ministro Gilmar Mendes, de quem parecia amigo. Em sessão do STF, Mendes disse que Barbosa não tinha condições de dar lição de moral a ninguém. Barbosa retrucou dizendo que Mendes não tinha condições de sair às ruas, que ele estava destruindo a imagem da Justiça do País.

Barbosa não foi Gramsci

eLe eSquARtejou A hIStóRIA...

e deu Ao púBLIco A “hIStoRInhA”

Para se educar o

povo, deve-se

debater questões

centrais. Contar

historinha é o

oposto disso

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