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Os heterônimos em Fernando Pessoa e a Psicopatologia. I. Uma introdução a relação entre os heterônimos e o pathos.

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Academic year: 2021

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Os heterônimos em Fernando Pessoa e a Psicopatologia.

I. Uma introdução a relação entre os heterônimos e o pathos.

Para pensarmos a questão dos heterônimos em Fernando Pessoa, é preciso, primeiramente, fazer um retorno a noção de “pathos” elemento fundamental da proposta da Psicopatologia Fundamental. Esta diz respeito, de acordo com Berlinck, (1997) a paixão que se manifesta no psiquismo, ou seja, ao excesso, o sofrimento, que transborda. Desta forma, não se trata de pensar em uma patologia, como na psiquiatria clássica, nem de dar ênfase em um aspecto do indivíduo que estaria associado com um quadro de anormalidade, mas de escutar aquilo no qual ele se excede em relação a sua própria singularidade constituiva.

Este retorno é fundamental para pensarmos no tema deste trabalho, a questão dos “heterônimos” em Fernando Pessoa. O que é um heterônimo? Nada mais é do que um heterô-nonimo, ou seja, um nome diferente que no caso, é dado para si mesmo. Deste modo, buscou-se elaborar uma hipótese para os correlativos estruturais deste fenômeno a partir de uma carta, em que ele fala diretamente sobre isso, e de dados biográficos provenientes do poeta.

No campo psicanalítico, corriqueiramente, quando se levanta esta questão, a discussão ocorre em torno da discussão estrutural, se o escritor seria sido psicótico ou neurótico, se ao constituir os heterônimos, ele estava delirando ou fantasiando. Esta pesquisa apresenta uma outra via de entendimento, a do ato, que dispensa os correlativos estruturais. Entende-se também que há um risco em buscar a “estrutura”, que sempre vai se apresentar como uma hipótese, no sentido de patologizar o escritor e a sua literatura, de modo que, a psicanálise deve se servir da literatura como via de fazer avançar no seu conhecime nto, mas não deve usar do seu conhecimento como um meio de patologizar, tal como a psiquiatria corriqueiramente faz ao apontar um diagnóstico para o sujeito.

II. Uma hipótese acerca dos heterônimos: a via do ato e a sua função de resposta ao real.

Sabe-se, que a construção dos heterônimos está intimamente relacionada à literatura de Pessoa. Deste modo, cada um dos “sujeitos” desenvolvidos pelo escritor tinha características próprias e um estilo distinto de fazer a literatura. Martinho (2001) aponta que cada um deles, ao ser constituído, tinha como objetivo responder a uma questão conflitiva psíquica vivenciada pelo escritor.

No entanto, a questão é bastante complexa, até mesmo no que tange ao campo dos estudos literários. Há uma controvérsia, entre os diferentes estudiosos, acerca do número de heterônimos que foram criados por Pessoa. Sendo assim, pontua-se que estas construções estão para além daqueles quatro que são convencionalmente conhecidos, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares e Alberto Caeiro. Por sua vez, próprio escritor,

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considerou, em carta escrita a Adolfo Casais Monteiro, escrita em 13 de agosto de 1935, três meses antes da sua morte, em que explica a origem dos seus heterônimos, a existênc ia de três deles, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, e Bernardo Soares seria um “semi-heterônimo” por causa da “proximidade” com a sua personalidade

Por outro lado, analisar esta carta é fundamental para fundamentar uma hipótese acerca da constituição dos heterônimos. Em outro ponto dela, Fernando Pessoa remete a gênese deste fenômeno para a infância.

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier

de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo ,

e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades. (PESSOA, 1935/2016)

Ainda assim, o autor não classifica “Chevalier de Pas” como um heterônimo “literário ”, relatando, ainda neste mesmo escrito, que o primeiro heterônimo deste gênero surge, em 1914, pois, a partir de uma situação, onde escreveu trinta poemas seguidos, sentiu que existia “alguém” além dele e nomeou isso como sendo Alberto Caeiro. Depois disso, resolveu nomear um poema escrito em 1912 como sendo de Ricardo Reis.

E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de

Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a

quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pess oa. Imediatamente e totalmente. (PESSOA, 1935/2016)

Exposto isso, é preciso retornar, a infância do autor, para relatar eventos que correlacionam o pathos, o ato e os heterônimos. O primeiro marco, para avançar nesta questão, é a morte do pai do escritor, vítima de tuberculose, ocorrida em 1893, quando o mesmo tinha apenas cinco anos. Seu irmão, Jorge, também veio a falecer na mesma época com um ano de idade. Parece ser, assim, desse vazio, que surge o “Chevalier de Pas”, um amigo imaginário que tinha como função preencher o vazio e responder ao traumático proveniente da morte dos seus familiares.

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Sendo assim, posteriormente, Pessôa retira o acento circunflexo do próprio nome, tornando-se Pessoa, o que altera, assim, o nome que recebeu do seu pai, Joaquim de Seabra Pessôa. Este acontecimento ocorreu, de acordo com Martinho (2001), quando o escritor regressou a Lisboa, depois de morar na África, em 1905.

A questão da mudança de Pessôa para Pessoa e da construção posterior dos heterônimos, em 1914, parece estar relacionada, assim, com a mesma questão que o levou a criar o “Chevalier de Pas’, a lidar com o traumático da morte, só que com a diferença de que, com a mudança de nome, há um atravessamento do simbólico e uma tentativa de se livrar do fardo do nome-do-pai. Martinho (2001) fala que, a partir disso, há um desejo pela imortalidade.

É a partir deste atravessamento do simbólico, por sua vez, que se apresenta a hipótese da constituição heteronímica como um ato. Lacan, na lição de 10/1/68, no seminário do “ato analítico’ apresenta o paradigma do ato. Este refere-se a um atravessamento, a uma violação diante de uma lei simbólica. Para fundamentar isto, o psicanalista francês traz o exemplo de César, que ao atravessar o Rubicão, entrou na terra mãe e ressalta que a questão não era militar, mas o atravassamento da lei simbólica, que, por sua vez, inaugura um novo momento na vida do sujeito.

Em conjunto com o exemplo do Rubicão, Lacan retoma o trecho do poema de Rimbaud “Por uma razão” para demonstrar a fórmula do ato: “Um golpe de teu dedo no tambor desencadeia todos os sons e inaugura a nova harmonia. Um passo teu é a leva dos novos homens e o começo de sua marcha. Tua cabeça se desvia: o novo amor! Tua cabeça se volta — o novo amor!”.” (LACAN, 1967-1968/1991) No exemplo citado, é possível ressaltar, então, a questão do “novo” como sendo o central da “fórmula do ato”, como o próprio autor cita.

No “Seminário 10 – a Angústia” Lacan (1962-1963/2005) expõe, ao elaborar os conceitos de acting out e passagem ao ato, como a questão do ato está associada com uma maneira de lidar com o próprio desejo. Harari (2001) demonstra como a elaboração destes dois conceitos é fundamental para que Lacan desenvolva o conceito de angústia, que é justo a questão da presença do objeto causa de desejo, o objeto a. Trata-se, aqui, de observar que o ato é, então, o desejo, a partir da oposição ao verbal, aparece em uma atuação. Por outro lado, Lacan correlaciona a questão do ato com a satisfação no “Seminário 14- A Lógica da Fantasia”. Aqui, o autor coloca primeiramente, o “ato como um significa nte que se repete”. Isso quer dizer que o ato inscreve-se na repetição a partir da sua condição prévia ordenada pela cadeia significante. Por outro lado, o autor diz que o ato se dá a partir de um “gesto” a partir do qual o sujeito se torna diferente. “É a instauração do sujeito enquanto tal. Quer dizer que, por um ato verdadeiro, o sujeito surge diferente, em razão do corte, sua estrutura é modificada.” (LACAN, 1966-1967/2008, p. 216)

Sendo assim, a questão heteronímica, em Fernando Pessoa, apresenta-se como sendo um significante que persiste a partir do ato. Trata-se também de um paradoxo no pensamento lacaniano pensar num “ato que se repete”, já que o ato e é algo a partir do qual não pode se voltar atrás. Alguns autores, como Brodsky (2004) dizem, inclusive, que o ato não está ao lado repetição. No entanto, o encadeamento lógico pode ser pensado a partir do

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momento em que o ato-repetição provoca diversos atravessamentos, que não são iguais, mas partem do mesmo significante.

Dito isso, é possível, assim, apontar que há dois atos na constituição heteronímica em Fernando Pessoa. O primeiro, é o atravessamento do nome do pai “Pessôa” e a sua mudança para “Pessoa”. Trata-se, assim, de um atravessamento do simbólico, como meio de livrar-se do efeito do trauma provocado pelo real da perda dos entes queridos ocorridas de forma precoce durante a sua infância.

O segundo é o atravessamento do próprio nome, ao criar um heterônimo, Alberto Caeiro, em 1914, após escrever trinta poemas, como foi citado anteriormente. Trata-se, aqui, por sua vez, de uma tentativa de dar conta da sua própria morte, ao tentar criar algo, a partir de si, que está para além de si, como o próprio autor cita, na carta de 1935. “Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro. “(PESSOA, 1935, p.1) o que entra em acordo com a hipótese que Martinho (2001) apresenta.

Por sua vez, o pathos, em Fernando Pessoa, apresenta-se como sendo, assim, o insuportável provocado pela vivência do real a partir da morte e as suas tentativas, via a constituição heteronímica, nada mais indica que ele tentava, pela via da linguagem, uma resolução para o seu impasse. É interessante assim, notar, que Chevalier de Pas, tinha um nome em francês, ao mesmo tempo que a mudança de Pessôa para Pessoa, foi justificada pelo próprio escritor, de acordo com Martinho (2001) como uma maneira de ter a sua escrita reconhecida em inglês, e, por fim, relatou em um poema, que a sua pátria era a Língua Portuguesa.

Entre tantas línguas, nomes e poemas, Fernando Pessoa tentou, a partir da escrita, resolver os impasses da vivência com o real. Se foi a partir do pathos que o escritor inventou os heterônimos e a partir das línguas buscou as respostas por si mesmo, por sua vez, os seus poemas e a complexidade da sua obra também ultrapassam a psicanálise. Não custa lembrar o valor que a literatura tem, quando antecede os psicanalistas. Deste modo, a hipótese de que os heterônimos se constituíram a partir do ato, é apenas uma, entre tantas possíveis, diante das múltiplas facetas de Pessoa, e não visa reduzir a obra do escritor a uma teoria, mas, justamente, demonstrar como a literatura sempre tem algo a nos dizer por vir justamente desse lugar que não se contém e que se expressa mais livremente do que nós.

REFERÊNCIAS BIBILIOGRÁFICAS

BERLINCK, Manoel Tosta. O que é Psicopatologia Fundamental. Psicol. cienc.

prof., Brasília , v. 17, n. 2, p. 13-20, 1997 . Disponível em

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98931997000200003&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 25/07/2016.

BRODSKY, Graciela. Short Story: os princípios do ato analítico. Tradução Vera Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2004.

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HARARI, Roberto. O seminário “a angústia” de Lacan: uma introdução. Tradução de Francisco Settineri. – Porto Alegre: Artes e Ofício. Ed., 1997.

PESSOA, Fernando. [Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935] Disponível em <http://arquivopessoa.net/textos/3007> Acesso em 25/07/2016.

LACAN, Jacques. A Lógica da Fantasia. Seminário 1966-1967. Centro de Estudos Freudianos do Recife. Publicação não-comercial. Recife, 2008.

______. O Seminário livro 10: a angústia. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão final Angelina Harari e preparação do texto André Telles. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 2005.

______. O Seminário, Livro 15 (1967-68) O Ato Psicanalítico. Rio de Janeiro, 1991 (Mimeo)

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