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Clécio Jamilson Bezerra dos Santos 1 Orivaldo Pimentel Lopes Junior 2

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Para além das classificações: uma reflexão acerca da tipificação neopentecostal a partir da atuação da Igreja Mundial do Poder de Deus em

Juazeiro do Norte-CE.

Clécio Jamilson Bezerra dos Santos1

Orivaldo Pimentel Lopes Junior2

1. Introdução

Nos últimos anos, quando se fala em igrejas neopentecostais, principalmente em noticiários veiculados pelos meios de comunicação de massa, as noções evocadas acerca das mesmas estão associadas, sobretudo, à intolerância religiosa e às suas práticas monetárias, dois temas que, sem uma análise mais profunda, passam a ser acessados a fim de caracterizar a atuação de tais igrejas dentro e fora dos limites dos seus templos. Sem levar em conta a diversidade de denominações e as especificidades pertinentes a cada uma delas, há, portanto, e isso não é nenhuma novidade, uma naturalização de determinados aspectos da realidade social e de seus fenômenos.

Em contramão a esse pensamento e considerando a importância do acesso ao universo das práticas e crenças que constituem a realidade desses fenômenos religiosos, buscamos refletir sobre a classificação que se instituiu no meio acadêmico acerca da última remessa de igrejas do protestantismo pentecostal, implantadas no país em meados dos anos 70 do

1 Mestrando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGCS/UFRN).ota de rodapé com titulação e filiação institucional. Orientador: Orivaldo Pimentel Lopes Junior. E-mail: cleciojamilson@hotmail.com

2 Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coordenador do Grupo de Pesquisa Mythos-Logos: Religião, Mito e Espiritualidade. E-mail: orivaldojr@yahoo.com.br

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século passado, em um Brasil imerso numa acelerada dinâmica de mudanças sociais, culturais, econômicas e políticas.

As primeiras abordagens sobre essa temática surgiram a partir de uma pesquisa de campo nos templos das Igrejas Mundial do Poder de Deus (IMPD) e Universal do Reino de Deus (IURD) localizados em Juazeiro do Norte-CE3.

As discussões daí resultantes despertaram o interesse em uma investigação mais ampla que vem sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Essa pesquisa tem como tema “A gente tem que se humilhar”: a atuação da Igreja Mundial do Poder de Deus em Juazeiro do Norte.

A partir daquele primeiro contato com o campo, entre os anos de 2012 e 2014, e a partir de visitas sistemáticas e observações aos cultos de ambas as igrejas, foi percebida uma divergência entre os discursos e rituais presentes nos cultos da IMPD e a caraterização das igrejas neopentecostais em voga no campo teórico. Nas congregações da IGPD pesquisadas, o discurso das lideranças enfatizava a necessidade de o fiel “se humilhar”, instigando-o àquilo que passamos a denominar humilhação.

O emprego dessa categoria tem origem nativa e o seu uso pelas lideranças está relacionado a uma valorização positiva do sofrimento humano, seja ele de ordem física ou espiritual. No entanto, tem-se que uma das principais propostas das igrejas neopentecostais é exatamente a superação do sofrimento por meio da pregação enfática da Teologia da Prosperidade conforme demonstraram Paul FRESTON (1993) e Ricardo MARIANO ([1999] 2010).

Consideramos no mínimo curioso que uma denominação religiosa como a IMPD, que resulta de uma cisão com a IURD, maior expoente das igrejas neopentecostais, apresente outras características para além daquelas que tipificam tais igrejas, principalmente no tocante ao lugar que o sofrimento

3 Durante a graduação em ciências sociais na Universidade Regional do Cariri participei como pesquisador do Programa de Iniciação Científica (PIBIC/URCA) com projeto intitulado A circulação de bens simbólicos: análise preliminar dos cultos das igrejas neopentecostais em Juazeiro do Norte e orientado pela Professora Renata Marinho Paz.

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ocupa na teologia da denominação. Percebemos assim um contraste entre aspectos do campo teórico e do campo empírico, sobre o qual vamos nos debruçar na atividade investigativa.

Tomando como mote o caso da IMPD, problematizamos o emprego da tipologia pentecostal, consolidada por Ricardo MARIANO ([1999] 2010) e utilizada por outros autores, na leitura de igrejas que surgiram posteriormente a sua elaboração. Refletindo sobre a classificação que se institui sobre o pentecostalismo brasileiro e que reuniu as principais

características daquilo que se convencionou denominar

neopentecostalismo4, questionamos a adequação em se reificar tal

classificação.

2. Mudanças no campo religioso pentecostal brasileiro e a emergência de sua classificação

2.1. O que dizem os censos

Inicialmente, destacamos os dados a respeito da religião no Brasil, no Estado do Ceará e na cidade de Juazeiro do Norte considerando as recentes transformações nesse quadro. O trabalho intitulado Devagar e sempre, com fé em deus: evangélicos cearenses nos censos demográficos (2011), elaborado por Maurício Russo e Gledson Oliveira com base nos censos de 1872 a 2000, apresenta uma análise sobre tendências presente nos dados censitários concernentes às religiões evangélica e católica, especialmente no Estado.

No que se refere ao quadro religioso nacional, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentados pelos autores supracitados, 88,96% da população afirmava-se católica em 1980,

4 Diferente da forma como o termo é colocado aqui (“neopentecostalismo”), a separação entre o a palavra “pentecostalismo” e o prefixo “neo” (“neo-pentecostalismo”) presente no título do trabalho é proposital e visa destacar o seu significado assim como fora elaborado por Ricardo Mariano ([1999] 2010: 36): uma nova versão do pentecostalismo.

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esse número caiu para 82,96% em 1991, chegando a 73,57% em 2000. No artigo Multiplicação sem milagre (2012), Orivaldo Lopes Júnior afirma que no último censo, 2010, os católicos não passavam de 64,6%, o que indica um acentuado declínio no número de adeptos do catolicismo no país ao longo das últimas décadas.

Em contrapartida à queda numérica no catolicismo, obteve-se a ascensão do número de adeptos a outras religiões, dentre as quais dois grupos se destacaram: evangélico e sem religião. O número de adeptos à religião evangélica em 1980 era 6,63%, aumentando para 8,98% em 1991 e alcançando 7,35% em 2000 (RUSSO & OLIVEIRA, 2011: 131). Os “sem religião” eram 1,64% em 1980 e passaram a representar 7,35% no censo do ano 2000.

Segundo as informações apresentadas no trabalho Novo Mapa das Religiões (NERI, 2011), elaborado com base no trabalho do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, até 2009, os evangélicos pentecostais e outras denominações evangélicas representavam, respectivamente, 12.76% e 7.47% e os sem religião 6.73% no ranking da religiosidade no Brasil (NERI, 2011: 56).

Se estendermos os dados para o censo de 2010, percebemos o quanto essa tendência se acentuou: os evangélicos saltaram para 22,2% e os sem religião chegaram a 8,1% (MARIANO, 2013: 119). Tais considerações implicam na concepção de uma recomposição do campo religioso, mas que, no entanto, deve ser comparada com as leituras dos dados sobre religião nos âmbitos estadual e municipal.

Para o estado do Ceará, os últimos censos do IBGE indicam o mesmo fenômeno que é percebido no quadro nacional, apesar de que, nesse estado, o declínio na porcentagem de adeptos do catolicismo entre os anos de 1980 e 2000 se deu de forma menos acentuada que no âmbito nacional. Segundo o censo de 1980, 96.66% da população cearense se declarava católica, número que caiu para 92,8% em 1991 e depois para 86,55% em 2000 (RUSSO & OLIVEIRA, 2011: 131).

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Em 1980, o número dos que se declaravam evangélicos no estado era 2,07%, passando para 3,95% em 1991 e alcançando 8,25% em 2000 (RUSSO & OLIVEIRA, 2011: 131). Em 2009, os evangélicos pentecostais e outras denominações evangélicas representavam, respectivamente, 9.17% e 3.67% da população cearense (NERI, 2011: 35). Em 2009, no ranking dos estados brasileiros com maior porcentagem dos sem religião, o Ceará ocupou a 22ª posição, com 4.08% (NERI, 2011: 32).

Diferente de outros estados, como, por exemplo, o Rio de Janeiro, onde a porcentagem de católicos não chega a 50% da população, o Ceará ocupou em 2009 a segunda posição da lista dos estados mais católicos do país, apresentando o número de 81,08% de católicos e ficando atrás somente do Piauí, que naquele período pode ser considera o estado mais católico do Brasil, com 87.93% (NERI, 2011: 32).

Ainda sobre o censo do IBGE do ano 2000 (RUSSO & OLIVEIRA, 2011), no estado do Ceará, as regiões Centro-Sul e Cariri (no extremo sul do estado), concentravam a maior porcentagem de católicos, comportando os dois maiores centros de peregrinação religiosa do estado, respectivamente, o município de Canindé com 94,17% de católicos e Juazeiro do Norte com 93,8% também de católicos.

Maurício RUSSO e Gledson OLIVEIRA, entretanto, afirmam que as regiões Centro-Sul e do Cariri tinham “presença evangélica apenas simbólica” (2011: 138). Afirmação digna de questionamento, haja vista que mesmo diante da permanência do catolicismo como religião culturalmente hegemônica e numericamente majoritária, em Juazeiro do Norte, por exemplo, é perceptível o avanço do número daqueles que se declaram evangélicos.

A partir dos últimos censos do IBGE referentes a Juazeiro do Norte, constatou-se aquele mesmo fenômeno percebido no país e no estado: declínio no número de católicos e ascensão do número de evangélicos e dos sem religião. A saber, em 2010, os adeptos ao catolicismo representavam 88,3% da população (em 2000 eram 93,8%) e os evangélicos quase

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duplicaram em número, saltaram de 4,5% em 2000 para 8,5% em 2010. Isso não pode ser considerado apenas uma “presença simbólica”.

Tal como fora aqui demonstrado, as mudanças quanto à adesão religiosa são perceptíveis não só no quadro nacional, mas se conjugam ao que é percebido também em nível estadual e municipal. As declarações feitas ao censo sobre religião que mais cresceram foram as de evangélico e sem religião. Esse crescimento estancado por séculos aponta para o enfraquecimento da “estrutura de coerção social” que anteriormente naturalizava, no Brasil, a identificação com o catolicismo e a difícil adesão a outro agrupamento religioso, e mais ainda a afirmação da não adesão a nenhuma religião (LOPES JÚNIOR, 2012).

As considerações com base nos resultados dos censos e a leitura desses mediante uma linha cronológica atestam um cenário de reconfiguração do quadro religioso brasileiro, que pode ser percebido melhor a longo prazo. Isso indica a capacidade do fenômeno religioso de operar mudanças profundam concernentes a sua dimensão simbólica que, num primeiro momento, não são perceptíveis salvo por meio de um olhar sensível aos seus aspectos contemporâneos.

2.2. Três ondas de implantação do pentecostalismo no Brasil

Paul Freston propõe uma ordenação tipológica do pentecostalismo no Brasil e assume importante papel para trabalhos posteriores por realizar uma síntese das tipologias mais comuns empregadas por diversos autores acerca do pentecostalismo. Intitulada Protestantismo e política no Brasil (1993), sua tese de doutorado, além de oferecer um amplo quadro de análise que correlaciona protestantismo e política no período entre a Constituinte de 1987/1988 e o Impeachment do Presidente Collor, dispõe também de um mapeamento dos protestantes brasileiros.

Com base nas tipologias institucionais de autores que trataram do tema anteriormente, Freston menciona os conceitos mais comuns utilizados na

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classificação do protestantismo (1993: 35) e que o divide em denominações históricas, estas subdividas em igrejas de missão e igrejas de imigração (1993: 42), e denominações pentecostais. Enquanto as igrejas de imigração chegaram no Brasil por motivos, sobretudo, socioeconômicos, as igrejas de missão tiveram como objetivo a conquista de adeptos brasileiros, fator que as distinguem das anteriores (1993: 46). O autor aponta também as metamorfoses desse protestantismo histórico (1993: 54), cujos resultados, em algum grau, distingue as duas vertentes citadas anteriormente.

Mais recente, o pentecostalismo teve sua implantação no país a partir de três ondas (FRESTON, 1993: 64), todas originadas no decorrer do século XX. A primeira delas se dá com a chegada da Congregação Cristã em 1910 e da Assembleia de Deus em 1911. A segunda é dos anos 50 e início dos anos 60 e, dentre os diversos grupos que surgem com a fragmentação do pentecostalismo, destacam-se a Igreja do Evangelho Quadrangular em 1951, a Brasil para Cristo em 1955 e, em 1962, a Deus é Amor (1993: 66). O contexto de surgimento dessas duas ondas é, sobretudo, paulista.

Já a terceira onda, que surge em um contexto basicamente carioca, tem início no final da década de 70 e, segundo Freston, ganha força nos anos 80, sendo a IURD, de 1977, e a Igreja Internacional da Graça de Deus, de 1980, as suas duas mais notáveis representantes. Em detrimento dos motivos que explicariam o surgimento de cada uma das ondas, interessa-nos mais saber quais as características atribuídas a cada uma delas, principalmente à terceira onda, e, por conseguinte, ao pentecostalismo como um todo.

2.3. A tipologia do pentecostalismo brasileiro

No meio acadêmico, as noções correntes acerca das igrejas neopentecostais estão alicerçadas, sobretudo, na obra de Ricardo Mariano, intitulada Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo ([1999] 2010), na qual o autor aborda de forma ampla a tipologia das formações pentecostais, o histórico das igrejas neopentecostais e expõe

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detalhadamente aquelas que ele julga serem as principais características do neopentecostalismo no Brasil.

Tal proposta tipológica denomina as três ondas do pentecostalismo, descritas por Paul Freston (1993: 64-112), segundo o “corte histórico-institucional” que separa as igrejas de cada uma delas e as “diferenças teológicas e comportamentais e sociais” para distinguir a terceira onda das outras anteriores (MARIANO, [1999] 2010: 36). Nos termos em que a tipologia é formulada e, a princípio, seguindo uma lógica cronológica, tem-se, pois, que as três ondas são denominadas “pentecostalismo clássico”, “deuteropentecostalismo” e “neopentecostalismo”, respectivamente.

O emprego do prefixo deutero (segunda vez) empregado por Ricardo Mariano para denominar a segunda onda é usado para indicar que ela mantém o mesmo “núcleo teológico do pentecostalismo clássico”, dele se diferenciando somente pelo “corte histórico-institucional” de 40 anos que separa a implantação das igrejas de cada uma delas. Um dos aspectos mais relevantes da primeira para segunda onda, é que essa última passa a dar maior ênfase à cura divina e inovações evangelísticas advindas do uso do rádio, tendas, cinemas, estádios, etc.

Já a terceira onda, denominada neopentecostal, refere-se à corrente pentecostal que começa na segunda metade dos anos 70, se diferenciando das demais também pelo corte histórico-institucional, mas principalmente pelas diferenças teológicas. O uso do prefixo neo justifica-se por expressar a sua recente formação e seu caráter inovador e, além de ser cunhado por diversos autores, Mariano ainda afirma em nota que o mesmo já foi adotado por órgãos de impressa e pela própria IURD.

O neopentecostalismo é caracterizado segundo alguns aspectos que ressaltam sua especificidade diante das demais correntes pentecostais. A “exacerbação da guerra espiritual contra o Diabo”, a “pregação enfática da teologia da prosperidade” e a “liberalização dos estereotipados usos e costumes de santidade” (MARIANO, [1999] 2010: 35) caracterizam as igrejas deste segmento. As três características supracitadas estariam reunidas e

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exemplificadas na IURD, principal expoente do neopentecostalismo e cujo surgimento “justifica a criação de sua tipologia” (2010: 34).

2.4. A terceira onda do pentecostalismo: o neopentecostalismo

As igrejas que compõe tal onda são caracterizadas, em primeiro lugar, pela “exacerbação da guerra espiritual contra o Diabo e seu séquito de anjos decaídos” (MARIANO, [1999] 2010: 109-147), na medida em que buscam justificar a incoerência entre um Deus bondoso e a maldade terrena, atribuindo ao Diabo e seus demônios a autoria de tudo aquilo que venha a interferir de forma negativa na “criação de Deus”, seja em qual for o âmbito – família, relacionamentos, finanças, política, etc.

Concebido como oposto aos designíos divinos, a figura do Diabo está presente desde muito antes na história do cristianismo, mas, nessas igrejas, ela passa a ser figurada especialmente nas outras religiões, justificando-se, pois, no campo simbólico, a “guerra” que se trava contra elas. Não à toa se vê repercutir noticiários acerca de diversos casos de depreciação de elementos das religiões afro-brasileiras ou católica por parte de lideranças ou outros membros de igrejas neopentecostais.

A segunda característica se refere à “pregação enfática da Teologia da Prosperidade” (TP), que ganha maior atenção ao longo desse trabalho por ser o aspecto central que distingue a terceira onda das anteriores. De forma geral, a TP pode ser entendida pela a concepção que os membros dessas igrejas têm de que é admissível viver, antes da morte, o paraíso que seria desfrutado somente após ela, instituindo, pois, um reino milenar neste mundo.

As lideranças que a apregoam preconizam a possibilidade de se prosperar espiritual ou materialmente em vários âmbitos da vida - financeiro, familiar, conjugal, na saúde, na atuação na igreja, etc. – já que, segundo afirma Mariano, tal teologia “valoriza a fé como meio de obter saúde, riqueza, felicidade, sucesso e poderes terrenos” ([1999] 2010: 158), se distanciando,

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dessa maneira, de outras teologias cristãs que valorizam o sofrimento e operando, segundo o autor, uma “inversão da axiologia pentecostal”.

A terceira e última característica a ser destacada diz respeito à “liberalização dos estereotipados usos e costumes de santidade” (MARIANO, [1999] 2010: 147-186), que consiste em uma mudança na postura das igrejas com relação aos elementos que viriam a constituir o aspecto de santidade dos membros que as compõem, tais como normas e tabus comportamentais, valores morais, usos e costumes, distanciando-se do estilo de vida mais ascético e contracultural.

Se comparadas ao pentecostalismo clássico, essas igrejas atribuem menor realce à doutrina comportamental no sentido de diminuir a restrição a determinados costumes, trajes e outros elementos considerados profanos ou desvirtuados por outros segmentos. Tais mudanças decorrem, em primeiro lugar, “das revolucionárias transformações culturais e comportamentais [...] que varreram o Ocidente a partir dos anos 60” e, em segundo, da “cissiparidade desenfreada do pentecostalismo” (2010, p. 204), que propiciou o surgimento de uma postura religiosa menos legalista e mais flexível a valores e costumes da sociedade, considerados até então mundanos.

3. O caso da Igreja Mundial do Poder de Deus e a tensão sobre a tipologia pentecostal

3.1. Considerações sobre a IMPD

Segundo o site oficial da IMPD, “O 1º templo da [IMPD] iniciou-se em Sorocaba, 90 km da cidade de São Paulo, tendo como fundador o apóstolo Valdemiro Santiago, sua esposa Bispa Franciléia e um pequeno grupo de membros"5. Sendo ex-Bispo da Universal, Waldemiro fundou sua igreja em

1998, cuja sede, denominada de Grande Templo dos Milagres, está localizada

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em São Paulo, possuí 43 mil m² e, segundo dados do site da própria igreja, há mais 4000 igrejas tanto no Brasil quanto no exterior que são dirigidas pela sede.

Essa denominação se destaca pelo seu crescimento vertiginoso desde sua fundação, vindo a se tornar uma das principais concorrentes da IURD, sua igreja-mãe. Segundo Bitun, ao tratar do conceito de “mercado de bens simbólicos” de Pierre Bourdieu, afirma que o fato de a IMPD ter entrado na “disputa pela produção destes bens dentro do campo religioso neopentecostal, tem despertado a atenção da Igreja Universal do Reino de Deus, que se apressa em retardar seu crescimento” (2007: 49).

A tensão entre ambas as denominações é perceptível também nas relações que elas estabelecem em Juazeiro do Norte-CE. Na cidade, os principais templos dessas igrejas ficam situados na área central, em uma das ruas mais movimentadas da cidade e pela qual se tem acesso à área de forte comércio, sendo assim caracterizada por um grande tráfego diário de pessoas, transportes particulares ou coletivos e pela grande visibilidade dada aos estabelecimentos que ali se encontram.

3.2. O caso da IMPD em Juazeiro do Norte – CE

Na pesquisa realizada entre os anos de 2012 e 2014 no templo central da IMPD na cidade de Juazeiro do Norte-CE, e após um longo período de observações, participando de seus cultos e realizando entrevistas com seus membros, percebemos uma divergência entre a caracterização típica do neopentecostalismo em voga no campo acadêmico e os discursos e práticas peculiares apresentados por aquela Igreja.

A divergência relaciona-se, sobretudo, a um dos principais aspectos do seguimento neopentecostal, a TP, que implica principalmente em uma visão desafeita ao sofrimento humano e a ideia de que este seria garantia das benesses do paraíso provenientes da segunda vinda do Cristo, concepção escatológica que caracterizara as versões tradicionais do cristianismo. A TP,

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e neste caso pode-se dizer, o próprio neopentecostalismo, assim como foi concebido, enfatiza uma visão de afirmação do mundo, concebendo o sofrimento humano de forma negativa e até mesmo o demonizando.

A demonização do sofrimento reflete o lugar central que o Diabo ocupa nas igrejas desse segmento, haja vista que sua presença na vida das pessoas é entendida como um entrave à prosperidade, portanto, aos próprios desígnios de Deus. Apesar disso, na IMPD, além dos elementos que caracterizam as igrejas neopentecostais, encontramos a incidência de discursos e práticas em prol do sofrimento, expresso na frase proferida pelas lideranças da igreja “a gente tem que se humilhar”.

Alguns elementos indicam, portanto, que há uma correlação entre o significado daquilo que chamamos humilhação na IMPD e a noção de sofrimento, comumente renegada pelas igrejas neopentecostais. O problema do qual resulta tal discussão consiste em compreender o significado de uma postura afeita à humilhação, em uma igreja que carrega as características do neopentecostalismo e que, a priore, seria avessa ao sofrimento.

Soma-se a isso o fato de que fundação da IMPD data de 1998, a partir de uma cisão do principal expoente do neopentecostalismo, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), e que a primeira versão do livro de Ricardo Mariano é de apenas um ano antes. Frente a isso, torna-se relevante questionar-se sobre o emprego da tipologia neopentecostal proposta e consolidada no meio acadêmico para caracterizar a IMPD em Juazeiro do Norte.

3.3. IMPD: um paradoxo para a classificação pentecostal

Na tese de doutorado de Ricardo Bitun, intitulada Igreja Mundial do Poder de Deus: rupturas e continuidades no campo religioso brasileiro (2007), o autor constata intensas mudanças no campo religioso, e busca demonstrar que a IMPD, a partir da oferta da “cura divina”, contribui para o “trânsito religioso” inter-religioso e intra-religioso. A principal argumentação

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de Bitun e que dá subtítulo a sua tese é de que a “cura divina”, característica das igrejas da segunda onda pentecostal, volta a ser enfatizada na IMPD, que, segundo ele mesmo afirma, até a elaboração de sua pesquisa, tratava-se de “uma igreja estudada por ninguém” (2007: 10).

Ao compreender a imprecisão do lugar que a IMPD ocupa no campo religioso, oscilando entre rupturas e continuidades com o tipo de pentecostalismo clássico, Bitun conclui que ela possui elementos da segunda e terceira onda. Nesse sentido, a tentativa de situá-la no campo religioso pentecostal e a constatação das divergências quanto aos aspectos de sua classificação implicam na suspensão da própria tipologia, haja vista a seguinte observação, feita por Ricardo Mariano:

Quanto ao futuro pentecostal, a virtual ocorrência de transformações para muito além das já realizadas nesse campo religioso, tanto faz se decorrentes de importações teológicas, se de sincretismos, de idiossincrasias de novas lideranças e de cismas institucionais, corresponderia e implicaria a formulação de novos tipos ideais para classificá-las. ([1999] 2010: 37)

Um fator relativamente evidente favorece a reflexão sobre a validade do emprego da tipologia pentecostal proposta por Ricardo Mariano para a leitura da atuação da IMPD. É que essa denominação religiosa, como afirma o próprio Bitun em sua tese (2007: 42), foi fundada em 1998, um ano antes da primeira edição de Neopentecostais. Levando em conta que esse livro foi uma versão elaborada a partir de uma dissertação de mestrado apresentada em 19956, fica claro, portanto, que apesar de o termo não ser muito divulgado

naquele período, a definição de neopentecostal é anterior à própria fundação da IMPD.

Se se levar em consideração que a concepção de neopentecostalismo obedece às formulações de Paul Freston, que classifica o pentecostalismo

6 Mariano oferece essa informação nos agradecimentos na 3ª edição de

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brasileiro em três ondas, a tipologia pentecostal, em sua gênese, é ainda anterior à fundação da IMPD, já que a tese de doutorado de Freston é de 1993. Bitun, talvez para fugir desse empecilho, afirma que “dentre as igrejas cismáticas do neopentecostalismo, a Igreja Mundial do Poder de Deus é a que mais tem se destacado, a mais propensa a num futuro próximo se tornar uma quarta onda pentecostal” (2007: 14).

Apesar de indicar a possibilidade de uma nova tipologia que abarque as características da IMPD, Bitun primeiramente parte do princípio que ela é neopentecostal para só depois apontar a “cura divina” como uma divergência à classificação. Se ele está pensando em termos de ruptura-continuidade é porque há critérios pré-estabelecidos nos quais ele se baseia, e esses critérios são os da tipologia pentecostal usual. Ao tomá-los como referencial buscando averiguar se a IMPD é mais ou menos neopentecostal, Bitun, dentre outras coisas, reifica as classificações desenvolvidas por Mariano.

O fato de a IMPD ter surgido posteriormente à década de 80, apresentar algumas das características do neopentecostalismo e, sobretudo, ser fundada por uma liderança dissidente da IURD não são justificativas plausíveis para que se possa enquadrá-la no neopentecostalismo. Quando em sua tese Bitun conclui que a IMPD “possui elementos do neopentecostalismo, ou pentecostalismo de terceira onda, assim como, resgata a ênfase na cura divina das igrejas de transição, ou pentecostalismo de segunda onda” (2007: 170) ele está afirmando que ela apresenta elementos de ambas as ondas.

Essa afirmação, por si só, não exprime se ela é neopentecostal ou deuteropentecostal, pois o fato de ele a apresentar a priori neopentecostal, mas com grande ênfase na “cura divina” indica que a tipologia corrente do pentecostalismo se apresenta inadequada para sua classificação. Quando Ricardo BITUN restringe o problema a questionar-se se ela é de segunda ou terceira onda, os critérios de corte histórico-institucional e a ênfase teológica ganham maior peso, levando a considera-la neopentecostal, ao passo que a ênfase na “cura divina”, afirmada por ele (2007: 40) passa a ser

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compreendida com algo que ela resgatou do passado, mas que, de antemão, não lhe pertence.

Ora, se ela apresenta elementos de ambas as ondas, por que insistir em investigar se ela é uma coisa ou outra? Seria ela, então, as duas? Ou nenhuma delas? São perguntas de tal ordem que expressam a limitação dessas tipologias. Ficar preso à discussão que se ocupa em saber se a IMPD é ou não neopentencostal é dar fixidez às classificações e, dessa maneira, congelar aspectos da realidade como se, no campo empírico, isso fosse possível.

4. Considerações Finais

Apesar de Ricardo Mariano afirmar que o emprego de neopentecostal justifica-se por ser um “termo praticamente já consagrado pelos pesquisadores brasileiros para classificar novas igrejas pentecostais” ([1999] 2010, p. 33), percebe-se que a classificação em ondas descrita por Paul Freston, na qual ele se fundamenta, encerra-se nas igrejas que surgiram em meados da década de 70. Deste modo, não convém reificar a tipologia daí resultante e reproduzi-la de forma irreflexiva para a classificação de igrejas que surgiram posteriormente.

O próprio Mariano afirma que “o neopentecostalismo abriga apenas uma parcela das igrejas pentecostais formadas nos últimos vinte e cinco anos” ([1999] 2010: 37), se referindo aos anos que antecederam a 1995, data referente à sua dissertação de mestrado, que deu origem posteriormente ao livro Neopentecostais, em 1999, sendo sua 3ª edição do ano de 2010. É provável que da década de 80, quando as igrejas da terceira onda ganharam mais força, até meados dos anos 2000, depois que Mariano publica a primeira edição do seu livro, mudanças significativas possam ter ocorrido no interior do pentecostalismo.

Agrega-se a isso o fato de que talvez as alterações de ordem doutrinária, teológica ou institucionais que resultaram no surgimento de

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novas denominações, ou seja, o forte caráter dissidente dessa corrente pentecostal não implique em uma ruptura radical com todos os aspectos das versões anteriores. De maneira que o neopentecostalismo, não obstante o seu carácter inovador que o faz romper com alguns traços do pentecostalismo, dá continuidade não só a aspectos do pentecostalismo, mas do próprio cristianismo de forma geral e até de outras religiões.

Segundo Paulo SIEPIERSKI (1999)7, as igrejas da terceira onda do

pentecostalismo brasileiro compõem um grupo que não é definido pelos limites denominacionais, ao contrário, é um fenômeno que adentra em maior ou menor grau outras denominações. Já na década de 90, demonstrando a percepção precipitada que a “comunidade evangélica” tinha sobre a sua dimensão, Siepierski afirmava que “o Brasil não está se tornando protestante. O que vemos é a perda da hegemonia católica e a consolidação de uma sociedade pluralista” (1999).

Assim como ocorrera no período de emergência das primeiras igrejas de terceira onda, quando as mudanças sociais no país implicaram mudanças na mensagem pentecostal e emergência de novas denominações suscitou a elaboração de uma tipologia, hoje talvez seja o momento oportuno de repensar as classificações em vigor no campo acadêmico levando em conta o surgimento de novas denominações e tendo em vista que as características antes atribuídas ao neopentecostalismo estão presentes em outros tipos de igrejas evangélicas e até mesmo na igreja católica.

Referências

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7 Uma versão desse trabalho foi publicada em 1999 na Revista Reflexão e Fé, que, ao que tudo indica, saiu de circulação. Contudo, o conteúdo do trabalho encontra-se disponível em http://bmgil.tripod.com/spd26.html, de maneira que, ao me referir a esse trabalho utilizarei o ano de referência da revista 1999 sem menção às páginas.

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