• Nenhum resultado encontrado

JOÃO DUNS ESCOTO GUILHERME DE OCKHAM. Textos sobre a potência ordenada e absoluta. São Paulo, 2013.

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "JOÃO DUNS ESCOTO GUILHERME DE OCKHAM. Textos sobre a potência ordenada e absoluta. São Paulo, 2013."

Copied!
68
0
0

Texto

(1)

GUILHERME DE OCKHAM

Textos sobre a potência ordenada e absoluta.

(2)

ÍNDICE DOS TEXTOS:

JOÃO DUNS ESCOTO:

Reportatio I-A, d. 44, q. 1 03

Reportatio I-A, d. 44, q. 2 10

Ordinatio I, d. 44, q. unica 15

Lectura I, d. 44, q. unica 22

GUILHERME DE OCKHAM:

Quodlibeta Septem VI, q. 1 24

Tratado Contra Benedito III, cap. 3 29

(3)

JOÃO DUNS ESCOTO

“Reportatio” examinada da leitura de Paris Reportatio I-A*

[Distinção 44

Quaestio 1

Utrum Deus posset aliter res producere quam facit, vel secundum

ordinem institutum ab eo modo]

1. Circa distinctionem

quadragesimam quartam primo quaero utrum Deus posset aliter res producere quam facit, vel secundum ordinem institutum ab eo modo.

Videtur quod non : quia tunc vel modo vel alias inordinate produceret, quod est inconveniens.

2. Item, sua potentia non excedit

suam scientiam, maxime quoad

obiecta ; sed secundum suam scientiam non potest scire opposita nec aliter quam scit, ergo non aliter producere (vel

opposita) quam producit.

3. Item, in aeternitate disposuit rem fieri secundum ordinem ab eo institutum. Si ergo potest aliquid aliter producere, et non de novo, ergo in

aeternitate potest habere actus

oppositos.

Questão 1

Se Deus poderia produzir as coisas diversamente do que faz ou (diversamente do que faz) segundo

a ordem por ele agora instituída]

1. Acerca da distinção 44, pergunto, primeiro, se Deus poderia produzir as coisas diversamente do que faz, ou [diversamente do que faz] segundo a ordem por ele agora instituída.

Vê-se que não: porque, então, ou agora, ou noutro [instante], produziria desordenadamente, o que é inconveniente. 2. Ainda, sua potência não excede sua ciência, maximamente no que diz respeito aos objetos; ora, segundo sua ciência, não pode saber os opostos nem [pode saber] diversamente do que sabe,

portanto, não [pode] produzir

diversamente (ou opostamente) ao que produz.

3. Ainda, dispôs na eternidade que a coisa seja feita segundo a ordem instituída por ele. Se, portanto, pode produzir algo diversamente, e não como novo, então pode ter dois atos opostos na eternidade.

* JOHN DUNS SCOTUS,Reportatio I-A : The examined Report of the Paris Lecture - Latin Text and English Translation. A. B. Wolter & O. V. Bychkov (ed. e trad.). Volume 2 (distinctiones 22-48). St. Bonaventure (NY): The Franciscan Institute, 2008, p. 531-540. Tradução: Carlos Eduardo de Oliveira.

(4)

4. Item, si potest aliter res producere quam produxit, ergo similiter potest movere corpora caelestia aliter quam modo movet, et per consequens ipsa inter se potest aliter coniungere

quam modo coniungantur. Ergo

geometria, quae est de coniunctione quam modo habent, non est scientia necessaria, quia est de his quae posunt aliter se habere, et per consequens de contingentibus.

5. Item, sequitur quod scientia naturalis, quae est de rebus corporalibus secundum motus corporum caelestium, nulla esset, quia tunc non posset sciri ista generari secundum influentiam talis partis caeli nec in tali situ, et alia alibi ; nec per consequens magis generaretur in una parte caeli ignis quam aliud elementum, quia talia diversimodi generari non contingit per motum

varium corporum caelestium et

diversam coniunctionem eorum, quae omnia secundum se possunt aliter se habere.

6. Contra : aliqua aliter fieri

quam fiant non includit

contradictionem, ut patet de

contingentibus. Sed Deus potest

quidquid non includit contradictionem ; ergo etc.

[I. – Distinctiones praeviae] 7. Responsio. Dico quod in quocumque agente libere quod potest agere secundum legem vel aliquam regulam rectam et non agit secundum illam, in omni tali est distinguendum de potentia ordinata sive praefixa lege, et de potentia absoluta. Quia enim habet

4. Ainda, se pode produzir a coisa diversamente do que produziu, então pode

semelhantemente mover os corpos

celestes diversamente do que move agora, e, consequentemente, pode uni-los entre si diversamente de como estão unidos agora. Portanto, a geometria, que trata da união que têm agora, não é ciência necessária, porque trata daquilo que pode se dar diversamente, e, consequentemente, trata de contingentes.

5. Ainda, se segue que a ciência natural, que trata das coisas corporais segundo o movimento dos corpos celestes, não seria nada, porque então não seria possível saber que estes gerem segundo a influência de tal parte do céu nem em tal lugar, e outros em outro; nem, consequentemente, o fogo seria gerado em uma parte do céu antes do que outro elemento, porque não se dá que tais sejam gerados de modos diversos através do movimento dos vários corpos celestes e da diferente conjunção daqueles que, por si, podem todos se dar diversamente.

6. Contra: que alguns se deem diversamente de como são dados não implica contradição, como é patente sobre os contingentes. Ora, Deus pode tudo o que não inclui contradição; portanto, etc.

[I. – Distinções prévias]

7. Resposta. Digo que em qualquer agente livre que pode agir segundo a lei ou alguma regra reta e não age segundo ela, em qualquer que tal deve-se distinguir a potência ordenada, ou prefixada pela lei, e a potência absoluta. Com efeito, porque tem aquela regra, pode agir segundo ela;

(5)

illam regulam, potest agere secundum illam ; quia vero non necessario agit secundum illam sed libere, ideo potest

agere alio modo. Unde iuristae

distinguunt ‘de iure’ et ‘de facto’, et sic potest distingui de omni potestate iudicis vel iudicantis, ut Papae vel principum.

8. Secundum verbum est istud, quod si regula ista non sit in potestate agentis, tunc potentia absoluta non est ordinata. Talis enim tenetur conformiter agere illi legi et secundum illam regulam, et ideo si non agit secundum illam, agit inordinate. Unde omnes qui subsunt legi divinae qui non agunt secundum illam, vel si agunt contra illam, inordinati sunt et inordinate agunt. Si autem aliquis non subest legi, sed e converso lex subest instituenti, quia potest aliter vel aliam legem ordinare, talis non potest inordinate agere, nec ibi potentia ordinata excedit potentiam absolutam, licet excedat

istam legem sic ordinatam.

9. Ad propositum de Deo, dico quod leges vel regulae practicae sive universales propositiones statutae sunt a sapientia divina, credo tamen magis quod a voluntate divina, quia non invenitur in tali lege vel propositione practicae necessitas ex terminis, ut in hac ‘omnis iustus salvandus et omnis malus damnandus’ : sicut hic est necessitas ‘omne totum est maius sua parte’, ubi unus terminus, scilicet subiectum, includit causam praedicati, sed in aliis non. Iustus enim non causat sibi salutem, sed voluntas divina

no entanto, porque não age

necessariamente segundo ela, mas

livremente, pode, assim, agir de outro modo. Donde os juristas distinguem “por direito” e “de fato”, e é possível distinguir assim sobre todo o poder (potestate) do juiz e do que julga, como o do Papa ou o dos príncipes.

8. O segundo a se dizer é: que se esta regra não estiver em poder do agente, então a potência absoluta não é ordenada. Com efeito, tal tem de agir em conformidade com aquela lei e segundo aquela regra, e, por isso, se não age segundo ela, age desordenadamente. Donde todos que estão sob a lei divina que não agem segundo ela, ou se agem contra

ela, estão desordenados e agem

desordenadamente. Ora, se alguém não está sob a lei, mas, pelo contrário, a lei está sob aquele que institui, porque pode ordenar diversamente ou outra lei, tal não pode agir desordenadamente, nem ali a potência ordenada excede a potência absoluta, embora exceda esta lei assim ordenada.

9. Quanto ao que se propõe sobre Deus, digo que as leis ou regras práticas

ou as proposições universais são

estabelecidas desde a sabedoria divina, no entanto, creio que antes desde a vontade divina, porque em tal lei ou proposição prática não há necessidade a partir dos termos, como nesta: “todo justo há de ser salvo e todo mau há de ser condenado”, assim como há necessidade aqui: “qualquer todo é maior que sua parte”, em que um termo, a saber, o sujeito, inclui a causa do predicado. Ora, nos outros não [há]. Com efeito, o justo não causa a

(6)

acceptat utrumque, quod est indifferentia in terminis. Et sic voluntas facit hoc principium vel legem esse practicam, et istae leges ordinant operabilia secundum omnes modos agendi debitos. Deus autem potest agere

omni modo qui non includit

contradictionem. Cum igitur multi alii modi non includant contradictionem, potest agere aliter quam de potentia ordinata.

10. Secundo, quia istae leges subsunt voluntati divinae – eo quod nulla est lex iusta nisi quia voluntas divina acceptat, non autem e converso – , voluntas autem potest contingenter quodcumque velle vel nolle, ideo potest statuere aliam legem, ut quod omnis anima rationalis salvabitur vel aliquid huiusmodi. Ergo potentia eius absoluta

non excedit ordinatam, quia

quaecumque lex a Deo instituatur aliter vel alia quam illa quae nunc est, esset ordinata.

[II. – Responsio

ad primam quaestionem]

11. Ad quaestionem ergo

dicendum quod est distinguendum

secundum compositionem et

divisionem ; similiter est distinguendum de ordine sive de lege vel de potestate ordinata.

Et patet realis solutio ex dictis, unde haec est possibilis : ‘Deus aliter res potuit producere quam secundum ordinem dispositum’. [Pro Haec est falsa… M habet explicando : ‘… vel

salvação para si, mas a vontade divina aceita ambos1, visto que há indiferença nos termos. E assim a vontade faz com que esse princípio ou lei seja prática, e estas leis ordenam os operáveis segundo todos os modos de agir devidos. Ora, Deus pode agir de todo modo que não inclui contradição. Portanto, visto que muitos outros modos não incluam contradição, pode agir diversamente do que pela potência ordenada.

10. Segundo, uma vez que estas leis estão sob a vontade divina – visto que nenhuma lei é justa a não ser porque a vontade divina a aceita, mas não o inverso

–, a vontade divina pode

contingentemente tudo que quer ou não quer, por isso pode estabelecer outra lei, como que toda alma racional será salva ou algo desse modo. Portanto, sua potência absoluta não excede a ordenada, porque qualquer lei que seja instituída por Deus diversamente ou outra daquela que há agora, seria ordenada.

[II. Resposta

para a primeira questão]

11. Portanto, deve-se dizer para a questão que se deve distinguir segundo a composição e a divisão; de modo semelhante, deve-se distinguir a respeito da ordem ou da lei ou do poder ordenado.

E a solução real é patente do que foi dito, donde esta é possível: “Deus pôde produzir as coisas diversamente do que segundo a ordem disposta”. [Em vez de “Esta é falsa...”, M traz a explicação: “...

1 Segundo a tradução americana (Duns Escoto, 2008, p. 533, nota 6), o “justo e o injusto”. Parece, porém, que o correto seja: “... ambos [os termos, isto é, ‘justo’ e ‘salvação’].”. N. do T.

(7)

quam disposuit’ est distinguenda

secundum compositionem et

divisionem. In sensu compositionis est falsa et impossibilis, quia non stant simul quod aliter agat quam disposuit stante illa dispositione et ordinatione. In sensu diviso est vera, quia Deus facit hoc modo et tamen potest opposito modo. Quia sicut Deus disposuit sic

esse faciendum secundum hunc

ordinem, ita posset aliter disponere et tunc esset aliter faciendum. Unde… Lectio tamen brevior in VTR praeferenda videtur : cf. Ord. I, d. 44, Appendix A (VI, 445).]. Haec est falsa in sensu compositionis, sed vera in

sensu divisionis : ‘Deus habet

potentiam faciendi hoc modo seorsum’ (scilicet solem moveri contra orientem) – haec est una propositio categorica ; ‘non disposuit facere hoc modo’ – haec est alia propositio ; et ambae sunt verae.

12. Ultra distinguendum est de potentia ordinata sive de ordine, quia ordo potest intelligi vel secundum regulas sive propositiones universales, vel particulares. Universalis est quod omnis homicida occidatur. Ordinatio autem particularis est ordo iudicii et exsecutionis, ut de hoc homicida in particulari ordinando quod occidatur, et hoc iudicium non est nisi conclusio legis.

13. Ad propositum : Deus posuit legem universalem et ordinem quod omnis malus damnabitur ; ordo particularis, qui dicitum iudicium, est quod iste, id est Iudas, damnabitur. Dico quod Deus potentia absoluta potest

ou que dispôs” deve ser distinguida segundo a composição e a divisão. No sentido da composição é falsa e

impossível, porque não estão

simultaneamente que aja diversamente do

que dispôs permanecendo aquela

disposição e ordenação. No sentido da divisão é verdadeira, porque Deus faz isto agora e, no entanto, pode agora o oposto. Porque, assim como Deus dispôs que seja assim ao fazer segundo essa ordem, poderia dispor diversamente e então teria feito diversamente. Donde...”. No entanto, vê-se que a lição mais breve seja preferida em VTR: cf. Ord. I, d. 44, Apêndice A (VI, 445).]. Esta é falsa no sentido da composição, mas verdadeira no sentido da divisão: “Deus tem a potência de fazer isto à parte do que é agora” (a saber, que o sol se mova contra o oriente) – esta é uma proposição categórica; “não dispôs fazer deste modo” – esta é outra proposição, e ambas são verdadeiras.

12. Além disso deve-se distinguir sobre a potência ordenada, ou seja, sobre a ordem, porque a ordem pode ser entendida ou segundo as regras, ou seja,

as proposições universais, ou as

particulares. É universal que todo homicida seja morto. No entanto, é ordenação particular a ordem do juízo e da execução, como ao ordenar sobre este homicida em particular que seja morto, e este juízo não é senão a conclusão da lei.

13. Quanto ao proposto: Deus pôs a lei universal e a ordem de que todo mau será condenado; a ordem particular, que é chamada de juízo, é que este, isto é, Judas, será condenado. Digo que Deus, pela potência absoluta, pode salvar a Judas. No

(8)

salvare Iudam. Non tamen simpliciter potest eum salvare potentia ordinata et universali. Potest tamen eum salvare ordine particulari, si Iudas esset et non esset damnatus, quia possit eum praevenire per gratiam, sicut et Petrum post peccatum. Potest igitur contra universalem ordinem potentia absoluta, sed tunc non esset inordinatio, quia statueret istam legem ordinatam esse. Unde iste, praescitus exsistens, licet damnabitur, tamen potest potentia absoluta et potentia ordinata beatificari ; non tamen Iudas potentia ordinata.

[III. – Ad argumenta

principalia primae quaestionis]

14. Ad argumenta. Ad primum in oppositum dico quod non sequitur quod modo vel alias ageret inordinate, quia iste ordo secundum quem modo producit res non est omnis ordo sibi possibilis nec necessarius. Ergo sic arguendo ‘potest producere res aliter vel secundum alium ordinem quam modo

producit, ergo inordinate potest

producere, vel non secundum ordinem vel contra omnem ordinem’ non sequitur, sed est fallacia consequentis ab inferiori ad superius cum nota

alietatis, et ita a destructione

antecedentis ad destructionem

consequentis, quia alietas includit negationem.

15. Ad secundum dico quod

potentia et scientia coaequantur

quantum ad obiecta, quia omne quod

entanto, não pode simplesmente salvá-lo pela potência ordenada e universal. Pode, porém, salvá-lo pela ordem particular, se Judas fosse e não fosse condenado, porque poderia preveni-lo pela graça, assim como também a Pedro depois do pecado. Portanto, pode contra a ordem universal pela potência absoluta, mas então não haveria desordem, porque estabeleceria que essa lei fosse ordenada. Donde embora este exista como quem se prevê que há de ser condenado, pode, no entanto, pela potência absoluta e pela potência ordenada, ser beatificado; no

entanto, não Judas pela potência

ordenada.

[III. – Para os argumentos

principais da primeira questão]

14. Para os argumentos. Ao primeiro em oposto [supra, n. 1] digo que não se segue que agora ou em outro [instante] tenha agido desordenadamente, porque esta ordem, segundo o modo pelo qual produz as coisas, não é toda a ordem possível para ele, nem necessária. Portanto, argumentando assim: “pode produzir as coisas diversamente, ou segundo outra ordem do que aquela que produz agora, portanto, pode produzir desordenadamente, ou não segundo a ordem, ou contra toda ordem” não se segue, mas é a falácia do consequente desde o inferior para o superior com a marca da alteridade, e assim desde a refutação do antecedente até a refutação do consequente, uma vez que a alteridade inclui a negação.

15. Ao segundo [n. 2] digo que a potência e a ciência são igualadas quanto aos objetos, porque tudo que pode ser feito

(9)

potest fieri potest sciri. Sed non oportet quod coaequantur quantum ad omnia et omni modo. Non oportet enim quod cuiuscumque sit unum actualiter, et aliud, quia scientia cuiuscumque est eius actualiter, ut actu est, potentia autem es obiecti possibilis quod non est actualiter.

16. Ad aliud dico quod in

aeternitate possunt fieri opposita

divisim, non coniunctim, et hoc in eodem instanti. Patet supra in materia de

futuris contingentibus.

17. Ad aliud concedo quod non est scientia simpliciter necessaria, sed ut in pluribus tantum. Permittit enim res ut in pluribus operari secundum motus suos et secundum ordinem ab eo

dispositum. Aliquando tamen,

praetermittendo illum ordinem, agit secundum alium ordinem : patet de statione solis tempore Iosue et de tribus pueris in igne et de eclipsi solis in morte Christi, quod fuit contra principia geometriae. Sic ergo modo respondeo, sicut heri in quadam quaestione, quod non est scientia de contingentibus nisi de facto ut in pluribus. Sed quod sint sic apta nata ad tales motus, hoc est

necessarium et sic scitum

demonstrative. Sed quod modo sint aliter mota, ut tempore Iosue vel Ezechiae, vel sicut legitur in vitis patrum de sole, hoc est contingenter factum et ideo haec non possunt sciri demonstrative. Sed si habent tales motus quales deprehensi sunt sol et luna

habere prius, tunc sequitur de

necessitate scientia. Unde in eodem

pode ser sabido. Mas não é preciso que sejam igualadas quanto a tudo e de todo modo. Com efeito, não é preciso que de seja lá o que for haja atualmente uma e outra, porque a ciência de seja lá o que for é dele atualmente, como é em ato, ora, a potência é do objeto possível que não é atualmente.

16. Ao outro [n. 3] digo que na eternidade podem ser feitos os opostos separadamente, mas não conjuntamente, e isto no mesmo instante. É patente acima quanto à matéria sobre os futuros contingentes [d. 39-40, n. 39-43].

17. Ao outro [n. 4] concedo que não há ciência absolutamente necessária, mas unicamente como em muitos. Com efeito, permite que as coisas operem como em muitos segundo seus movimentos e segundo a ordem disposta por ele. No entanto, às vezes, negligenciando aquela ordem, age segundo outra ordem: é patente sobre a parada do sol no tempo de Josué e dos três jovens no fogo e sobre o eclipse do sol na morte do Cristo, que foi contra os princípios da geometria. Assim, portanto, respondo agora, assim como ontem em certa questão [in d. 42, n. 32], que não há ciência sobre os contingentes a não ser de fato como em muitos. Mas que estejam de tal modo aptos naturalmente para tal movimento é necessário, e, assim, sabido demonstrativamente. Mas o modo pelo qual foram movidos diversamente, como no tempo de Josué ou de Ezequias, ou assim como se lê nas vidas dos pais sobre o sol, é algo feito contingentemente, e por isso estes não podem ser sabidos demonstrativamente. Mas se o sol e a lua têm tais movimentos que antes se

(10)

aspectu se habent sol et luna modo ac si non fuisset ibi aliquis novus motus vel nova coniunctio temporibus praedictis. Quod patet quia sicut contra movebatur unum corpus, ita totum caelum vel corpus motum subito revertebatur ad

locum suum ad habendum

uniformitatem.

18. Ad ultimum dico quod naturalis non dicit plus de igne in tali parte caeli generari quam in alia, sed dicit quod approprinquante sole plus

generatur de igne cui magis

appropinquat.

[Quaestio 2

Utrum Deus possit facere meliora quam fecit]

19. Utrum Deus possit facere meliora quam fecit.

Videtur quod non : Augustinus, 83 Quaestionem, q. 50, probat Deum Patrem genuisse Filum sibi aequalem, quia si non, aut quia non potuit, et sic fuit debilis et infirmus, aut quia noluit et sic invidus. Eodem modo arguo in proposito, et patet.

20. Item, Augustinus, III De libero arbitrio : Quidquid tibi recta ractione occurrat melius, hoc Deus fecisse scias’, etc.

21. Contra : Augustinus, XI Super Genesim, et ponitur in littera :

Deus potuit fecisse hominem

apreendeu que tivessem, então se segue a necessidade da ciência. Donde o sol e a lua se encontrarem agora sob o mesmo aspecto, como se não tivesse havido ali algum movimento novo ou conjunção nova no tempo já mencionado. O que é patente, porque, assim como um corpo foi movido contrariamente, assim todo o céu ou corpo movido subitamente voltou a seu lugar para ganhar uniformidade.

18. Ao último [n. 8] digo que o natural não diz que o fogo seja gerado antes em tal parte do céu que em outra, mas diz que o sol se aproximando, mais fogo é gerado para aquele de que mais se aproxima.

[Questão 2

Se Deus pode fazer melhores do que fez]

19. Se Deus pode fazer melhores do que fez.

Vê-se que não: Agostinho, nas 83 Questões, q. 502, prova que Deus Pai tenha gerado o Filho igual a si, porque se não, ou porque não pôde, e assim foi débil e fraco, ou porque não quis, e, assim, invejoso. Do mesmo modo argumento quanto ao proposto, e é patente.

20. Ainda, Agostinho, Sobre o livre arbítrio, livro III3: “Saibas que tudo o que, pela reta razão, ocorrer a ti de melhor, isto foi feito por Deus”, etc.

21. Contra: Agostinho, Sobre o Gênesis, livro XI4, e é posto literalmente: Deus pôde ter feito um homem sem

2 Agostinho, 83 Quaest. q. 50 (CCL 44ª, 77; PL 40, 31-2).

3 Agostinho, De lib. arb. III, c. 5, n. 50 (CCSL 29, 283; PL 32, 1277).

4 Agostinho, De Genesi ad litt. libri XII, XI, c. 7, n. 9 (CSEL 28.1, 340; PL 34, 433; Pedro Lombardo, Sent. I, d. 44, c. 1, n. 3 (SB IV, 304).

(11)

impeccabilem, qui numquam pecasset, et hoc melius esset quam quod modo in eo est.

[I. – Responsio

Scoti ad secundam quaestionem]

22. Respondeo ad quaestionem quod Deus potuit fecisse meliora quam fecit et potest modo facere secundum

omnem bonitatem in re, sive

essentialem sive accidentalem, et accidentalem sive extensivam sive intensivam.

23. Et primo probo quod potuit

ea fecisse meliore perfectione

accidentali intensive. Cum enim omnes animae sunt eiusdem speciei, aut ergo sunt aequales secundum perfectionem, aut non. Si sunt aequales, ergo aequalis perfectionis capaces, sed non omnes aequalis capacitatis aequaliter habent perfectionem aequalem accidentalem, quia non omnes animae habent aequalem beatitudinem essentialem, quia nec habent aequalia merita quibus respondet beatitudo, etiam si fuerint aequales in capacitate naturali. Ergo non perficitur tota capacitas naturalis cuiuslibet animae tanta perfectione accidentali quantam posset recipere.

24. Similiter, anima Christi habet beatitudinem maiorem quam aliquis angelus, et tamen capacitas naturalis cuiuscumque angeli est maior

capacitate cuiuscumque animae

naturali. Nullus ergo angelus habet tantam perfectionem quantae est capax. 25. Dices quod non sunt aequales quia non sunt eiusdem speciei

pecado, que jamais pecasse, e isto teria sido melhor do que agora se dá nele.

[I. – Resposta de

Escoto para a segunda questão]

22. Respondo para a questão que Deus pôde ter feito melhores do que fez e pode agora fazer segundo toda bondade quanto a coisa, seja essencial, seja acidental, e, acidental, seja extensiva, seja intensiva.

23. E, primeiro, provo que pôde fazê-la melhor pela perfeição acidental intensiva. Com efeito, visto que todas almas são da mesma espécie, então, ou são iguais segundo a perfeição, ou não. Se são iguais, então capazes de igual perfeição. Ora, nem todas de igual capacidade têm igual perfeição acidental, uma vez que nem todas as almas têm igual bem-aventurança essencial, uma vez que não têm méritos iguais pelos quais responde a bem aventurança, ainda que sejam iguais na capacidade natural. Portanto, toda capacidade natural daquela alma não é aperfeiçoada por tanta perfeição acidental

quanto possa receber.

24. De modo semelhante, a alma do Cristo tem bem-aventurança maior que a de algum anjo, e, no entanto, a capacidade natural de qualquer anjo é uma capacidade maior que a de qualquer alma natural. Portanto, nenhum anjo tem tanta perfeição quanto é capaz.

25. Dizes que o anjo e a alma não são iguais porque não são da mesma

(12)

angelus et anima sed anima Christi est perfectior in gloria quolibet angelo.

Dico quod ex hoc sequitur

propositum. Angelus est nobilior

secundum speciem quam anima. Sed in speciebus ordinatis, si una est nobilior alia essentialiter, quodlibet individuum unius speciei est perfectius et nobilius quocumque individuo alteruis speciei ignobilioris ; aliter species tantum haberent ordinem accidentalem. Ergo quilibet angelus est perfectior et nobilior in natura quaecumque anima, etiam anima Christi, et per consequens habet maiorem capacitatem naturalem ad maiorem perfectionem habendam quam quaecumque anima. Sed anima Christi, per te, plus perficitur gloria quam aliquis angelus. Ergo nullus angelus habet tantam perfectionem accidentalem quantae est capax.

26. Ex his spiritualibus

concluditur propositum de corporalibus. Nam si illa quae immediate ordinantur ad Deum, ut ad finem, possunt naturaliter magis perfici perfectione finis quam perficiantur, multo magis est hoc verum de corporalibus (de quibus est sibi minor cura), quod maioris perfectionis accidentalis sunt capaces

quam modo habeant.

27. Secundo digo quod Deus

potest facere aliqua meliora

accidentaliter et extensive quam facit – dando plures perfectiones quam dedit.

Patet in spiritualibus. Beati enim

possunt plura cognoscere quam

cognoscant : non enim cognoscunt

espécie. Ora, a alma de Cristo é mais perfeita na glória que qualquer anjo.

Digo que disso se segue o proposto. O anjo é mais nobre segundo a espécie que a alma. Ora, nas espécies ordenadas, se uma é mais nobre que outra essencialmente, qualquer indivíduo de uma espécie é mais perfeito e nobre que qualquer indivíduo de outra espécie mais ignóbil; outras espécies unicamente terão a ordem acidental. Portanto, qualquer anjo é mais perfeito e nobre na natureza que qualquer alma, mesmo a alma de Cristo, e, consequentemente, tem maior capacidade natural para vir a ter uma perfeição maior que qualquer alma. Ora, a alma de Cristo, para ti, é a mais aperfeiçoada para a glória que a de qualquer anjo. Portanto, nenhum anjo tem tanta perfeição acidental quanto

é capaz.

26. Destes espirituais conclui-se o proposto sobre os corporais. Pois, se

aqueles que estão imediatamente

ordenados para Deus como para o fim

podem ser naturalmente mais

aperfeiçoados pela perfeição do fim do que são aperfeiçoados, isso é muito mais verdadeiro sobre os corporais (sobre os quais há para ele menor cuidado) que são capazes de uma maior perfeição acidental do que a que têm agora.

27. Segundo, digo que Deus pode fazer algum melhores acidentalmente e extensivamente do que faz – dando várias perfeições além das dadas.

É patente nos espirituais. Com

efeito, os bem-aventurados podem

(13)

infinita in Verbo, et Verbum potest omnia cognoscere simul et beatis revelare omnia si velit, licet non simul. Et si beati hoc possunt, multo magis viatores.

28. Hoc etiam patet in

corporibus caelestibus. Licet enim non

recipiant peregrinas impressiones,

scilicet corruptivas, recipiunt tamen

multas peregrinas passiones et

accidentales eis, ut lumen, splendorem et huiusmodi. Unde si medium esset ita magnum quod posset proicere umbram suam ad stellas, tota sphaera stellarum fixarum posset eclipsari et obscurari. Lumen ergo est perfectio accidentalis eis. Sed omne corpus diaphanum luminosum est perfectius ipso non-luminoso. Ergo plures perfectiones potest Deus dare quas non dedit et plures quam dedit. Et ideo hoc inconveniens de lumine non potuit vitare Averroes, qui solum motum concessit ex alio perpetuari et non esse ex se necessarium. Lumen enim perpetuatur ex alio et fit ex alio, ita necessario et perpetuo sicut motus. Aer enim non factus est lucidus, sed fit lucidus, secudum Augustinum, VIII Super Genesim.

29. Quantum vero ad secundum

principale, scilicet quantum ad

bonitatem et perfectionem essentialem, similiter dico quod Deus potest facere meliora quam fecit intensive et substantialiter, si substantia suscipiat magis et minus, de quo nihil est hic

efeito, não conhecem os infinitos no Verbo, e o Verbo pode conhecer tudo simultaneamente e revelar tudo aos bem-aventurados se quiser, embora não

simultaneamente. E se os

bem-aventurados podem isso, muito mais os peregrinos.

28. Isso também é patente nos corpos celestes. Com efeito, embora não recebam impressões passageiras, isto é, corruptivas, recebem, porém, muitas afecções que para eles são passageiras e acidentais, como a luz, o esplendor e que tais. Donde, se o intermediário fosse tão grande que pudesse projetar sua sombra para as estrelas, toda a esfera das estrelas fixas poderia ser eclipsada e obscurecida. Portanto, a luz é uma perfeição acidental delas. Ora, todo corpo diáfano luminoso é mais perfeito que aquele não luminoso. Portanto, Deus pode dar várias perfeições que não deu e várias que deu. E, por isso, Averróis, que concedeu que unicamente o movimento se perpetue a partir de outro e que não seja necessário por si, não pôde evitar esse inconveniente sobre a luz. Com efeito a luz se perpetua a partir de outro e se produz a partir de outro, tão necessária e perpetuamente como o movimento. Com efeito, o ar não foi feito lúcido, mas se faz lúcido, segundo Agostinho, Sobre o Gênesis, livro VIII5.

29. De fato, quanto ao segundo principal [supra, n. 22], a saber, quanto à bondade e à perfeição essencial, digo de modo semelhante que Deus pode fazer melhores do que fez intensivamente e substancialmente, se a substância receber o mais e o menos, sobre o qual nada deve

(14)

dicendum, quia difficilius proposito principali.

[II. – Ad argumenta

principalia secundae quaestionis]

30. Ad primum in oppositum, dico quod non est invidia in Deo si non fecit omnia ita bona sicut potest. Invidia enim est in subtrahendo ab aliquo bonum quod est sibi debitum. Deus autem non est debitor alicuius creaturae quantum ad aliquam perfectionem in eo, quia mere liberaliter omnia facit. Si tamen Deus Pater non produxisset Filium sibi aequalem, fuisset invidus, quia debita est natura in Filio sicut in Patre, et per consequens omnis condicio quae sequitur naturam, ut aequalitas et huiusmodi.

31. Ad aliud dico quod ‘quidquid recta ratione tibi melius occurerit, hoc scias Deum fecisse’ verum est, quia nihil est melius simpliciter recta ratione quam in quantum volitum a Deo ; et ideo alia ‘quae, si fierent, essent meliora’ non sunt modo meliora entibus. Unde auctoritas nihil plus vult dicere nisi quod quidquid Deus fecit, hoc scias cum recta ratione fecisse. Omnia enim quaecumque voluit, fecit, in Psalmis [113, 11], cuius voluntas sit benedicta.

ser dito aqui, porque mais difícil que o principalmente proposto.

[II. – Aos argumentos principais da segunda questão]

30. Ao primeiro em oposto [n. 19], digo que não há inveja em Deus se não fez tudo tão bom como pode. Com efeito, há inveja em subtrair de algo o bem que a ele é devido. Ora, Deus não é devedor de

alguma criatura quanto a alguma

perfeição nele, porque faz tudo de modo puramente liberal. No entanto, se Deus Pai não tivesse produzido o Filho igual a si, teria sido invejoso, porque a natureza no Filho é devida assim como no Pai, e, consequentemente, toda condição que segue a natureza, como a igualdade e que tais.

31. Ao outro [n. 20] digo que (a afirmação) “saibas que tudo o que, pela reta razão, ocorrer a ti de melhor, isto foi feito por Deus” é verdadeira, porque nada é absolutamente melhor pela reta razão do que enquanto querido por Deus; e, por isso, outros “que, se forem feitos, seriam melhores” não são agora melhores que os entes. Donde a autoridade não ter querido dizer nada além de que tudo o que Deus fez, saibas que o fez com a reta razão. Com efeito, tudo aquilo que quis, fez – no Salmo [113, 11] – aquele cuja vontade seja bendita.

(15)

JOÃO DUNS ESCOTO Ordinatio

Livro I Distinção 44*

Quaestio Unica: [UTRUM DEUS POSSIT ALITER FACERE RES QUAM AB IPSO ORDINATUM

EST EAS FIERI]

1. Circa distinctionem

quadragesimam quartam – ubi Magister tractat “utrum Deus potuit res melius fecisse quam fecit” – quaero istam quaestionem: utrum Deus possit aliter facere res quam ab ipso ordinatum est eas fieri.

Et videtur quod non:

Quia tunc posset facere res inordinate. Consequens est falsum, ergo

et antecedens.

2. Contra: res aliter fieri quam

factae sunt, non includit

contradictionem; nec6 est necessarium; igitur etc.

3. Respondeo: in omni agente per intellectum et voluntatem, potente conformiter agere legi rectae et tamen non necessario conformiter agere legi rectae, et tunc secundum potentiam ordinatam (ordinata enim est in quantum est principum exsequendi aliqua conformiter legi rectae), et potest

Questão Única: [SE DEUS PODERIA FAZER AS COISAS DIVERSAMENTE DE COMO FOI ORDENADO POR ELE QUE SEJAM FEITAS]

1. Acerca da distinção

quadragésima quarta – em que o Mestre8 trata “se Deus pôde ter feito as coisas melhor do que fez” – pergunto o seguinte: se Deus poderia fazer as coisas diversamente de como foi ordenado por ele que sejam feitas.

E vê-se que não:

Porque então poderia fazer as

coisas desordenadamente. A

conseqüência é falsa, portanto, também o antecedente.

2. Contra: não há contradição em fazer as coisas diferentemente de como estão feitas; nem é necessário; portanto etc.

3. Respondo: em todo aquele que age pelo intelecto e pela vontade, que pode agir em conformidade com a lei reta e, no entanto, não tem de agir necessariamente em conformidade com a lei reta, e, assim, segundo a potência ordenada (com efeito, é ordenada enquanto é princípio do executar algo

* JOÃO DUNS ESCOTO, Ordinatio : Opera Omnia, Vol. VI. Civitas Vaticana, Typis Polyglottis Vaticanis, 1963, p. 363-369.445. Tradução: Carlos Eduardo de Oliveira.

6 Falta: o universo.

(16)

agere praeter illam legem vel contra eam, et in hoc est potentia absoluta, excedens potentiam ordinatam. Et ideo non tantum in Deo, sed in omni agente libere – qui potest agere secundum dictamen legis rectae et praeter talem legem vel contra eam - est distinguere inter potentiam ordinatam et absolutam; ideo dicunt iuristae quod aliquis hoc potest facere de facto, hoc est de potentia sua absoluta – vel de iure, hoc est de potentia ordinata secundum iura.

4. Quando autem illa lex recta – secundum quam ordinate agendum est – non est in potestate agentis, tunc potentia eius absoluta non potest excedere potentiam eius ordinatam circa obiecta aliqua, nisi circa illa agat inordinate; necessarium enim est illam legem stare – comparando ad tale agens – et tamen actionem “non conformatam illi legi rectae” non esse rectam neque ordinatam, quia tale agens tenetur agere secundum illam regulam cui subest. Unde omnes qui subsunt legi divinae, si non agunt secundum illam, inordinate agunt.

5. Sed quando in potestate agentis est lex et rectitudo legis, ita quod non est recta nisi quia statu, tunc potest aliter agens ex libertate sua ordinare quam lex illa recta dictet; et tamen cum rectam secundum quam agat ordinate. Nec tunc potentia sua absoluta

simpliciter excedit potentiam

ordinatam, quia esset ordinata

em conformidade com a lei reta), tanto pode agir além daquela lei ou contrariamente a ela, como nisto consiste a potência absoluta, que excede a potência ordenada. E, por isso, não somente em Deus, mas em todo agente livre – que pode agir segundo o ditame da lei reta e além de tal lei ou contra ela – deve-se distinguir entre a potência ordenada e a absoluta; por isso dizem os juristas que alguém pode fazer algo de fato, isto é, por sua potência absoluta – ou por direito, isto é, por sua potência ordenada segundo o direito9.

4. Mas quando aquela lei reta –

segundo a qual se deve agir

ordenadamente – não está em poder do agente, então sua potência absoluta não pode exceder sua potência ordenada acerca de algum objeto, a não ser que aja desordenadamente acerca dele; com efeito, é necessário que esta lei permaneça – em comparação com tal agente – e, contudo, que a ação “não conformada àquela lei reta” não seja reta nem ordenada, porque tal agente deveria agir segundo a regra à qual está submetido. Donde todos que estão sob a lei divina, se não agem segundo ela, agem desordenadamente.

5. Mas quando está no poder do agente a lei e a retidão da lei, de modo que não é reta a não ser porque pelo estabelecido, então o agente pode, a partir de sua liberdade, ordenar diferentemente o que a lei reta ditar; e,

contudo, será reta segundo aja

ordenadamente quanto a ela. E, então, sua potência absoluta não excede

(17)

secundum aliam legem sicut secundum priorem; tamen excedit potentiam ordinatam praecise secundum priorem legem, contra quam vel praeter quam facit. Ita posset exemplificari de principe et subditis, et lege positiva.

6. Ad propositum ergo

applicando, dico quod leges aliquae generales, recte dictantes, praefixae sunt a voluntate divina et non quidem ab intellectu divino ut praecedit actum voluntatis divinae, ut dictum est

distinctione 38 [Sequitur textus

interpolatus : quia non invenitur in illis legibus necessitas ex terminis (ut quod omnis peccator damnabitur), sed solum ex voluntate divina acceptante, quae operatur secundum huiusmodi leges quas statuit ; vel sufficit ad propositum dicere quod statuuntur a sapientia divina]; sed quando intellectus offert voluntati divinae talem legem, puta quod “omnis glorificandus, prius est gratificandus”, si placet voluntati suae – quae libera est – est recta lex, et ita est

de aliis legibus.

7. Deus ergo, agere potens secundum illas rectas leges ut praefixae sunt ab eo, dicitur agere secundum potentiam ordinatam; ut autem potest multa agere quae non sunt secundum illas leges iam praefixas, sed praeter illas, dicitur eius potentia absoluta: quia enim Deus quodlibet potest agere quod non includit contradictionem, et omni modo potest agere qui non includit

absolutamente a potência ordenada, porque seria ordenada segundo outra lei assim como segundo a anterior, contudo, excede a potência ordenada precisamente segundo a lei anterior, contra a qual ou além da qual faz. Assim poder-se-ia dar o exemplo do príncipe e dos súditos, e da lei positiva.

6. Portanto, aplicando ao proposto, digo que algumas leis gerais, que ditam retamente, são preestabelecidas pela vontade divina e, certamente, não pelo intelecto divino que precede o ato da vontade divina, como foi dito na

distinção 38 [Segue-se o texto

interpolado: porque não se encontra naquelas leis a necessidade a partir dos termos (como que todo pecador seja

condenado), mas unicamente da

vontade divina que a aceita, a qual opera segundo tais leis que estabelece; ou basta dizer para o proposto que são

estabelecidas desde a sabedoria

divina10]; mas quando o intelecto oferece à vontade divina tal lei, como a de que “tudo que há de ser glorificado antes há de ser agraciado”, se agrada à sua vontade – que é livre – é lei reta, e assim sobre as outras leis.

7. Deus, portanto, ao poder agir segundo aquelas leis retas que são por ele preestabelecidas, é dito agir segundo a potência ordenada; mas o poder fazer muitas ações que não estão de acordo com aquelas leis já preestabelecidas, mas, além delas, diz-se sua potência absoluta: com efeito, porque Deus pode agir segundo o que queira sem incorrer em contradição, e pode agir de todo

(18)

contradictionem (et tales sunt multi modi alii), ideo dicitur tunc agere

secundum potentiam absolutam.

8. Unde dico quod multa alia potest agere ordinate; et multa alia posse fieri ordinate, ab illis quae fiunt conformiter illis legibus, non includit

contradictionem quando rectitudo

huiusmodi legis – secundum quam dicitur quis recte et ordinate agere – est in potestate ipsius agentis. Ideo sicut potest aliter agere, ita potest aliam legem rectam statuere, – quae si statueretur a Deo, recta esset, quia nulla lex est recta nisi quatenus a voluntate divina acceptante est statuta; et tunc potentia eius absoluta ad aliquid, non se extendit ad aliud quam ad illud quod ordinate fieret, si fieret: non quidem

fieret ordinate secundum istum

ordinem, sed fieret ordinate secundum alium ordinem, quem ordinem ita posset voluntas divina statuere sicut potest agere.

9. Advertendum etiam est quod aliquid esse ordinatum et ordinate fieri, hoc contingit dupliciter :

Uno modo, ordine universali, - quod pertinet ad legem communem ‘omnem finaliter peccatorem esse damnandum’ (ut si rex statuat quod omnis homicida moriatur). Secundo modo, ordine particulari, - secundum hoc iudicium, ad quod non pertinet lex

in universali, quia lex est de

modo que não inclui contradição (e há muitos outros modos assim), diz-se, por isso, que então age segundo a potência absoluta.

8. Donde digo que pode fazer muitas outras ações ordenadamente; e

que possa fazer muitas outras

ordenadamente, desde aqueles que são feitos em conformidade com aquelas leis, não inclui contradição quando a retidão daquela lei – segundo a qual se

diz que alguém age reta e

ordenadamente – está em poder do próprio agente. Por isso, assim como pode agir diversamente, pode, então, estabelecer outra lei reta – que se fosse estabelecida por Deus, seria reta, porque nenhuma lei é reta senão na medida que ao ser aceita pela vontade divina é estabelecida; e, então, sua potência absoluta para algo, não se estende senão

para aquilo que seria feito

ordenadamente, se fosse feito:

certamente, não seria feito

ordenadamente segundo esta ordem, mas seria feito ordenadamente segundo outra ordem, ordem que a vontade divina poderia estabelecer assim como pode agir.

9. Também cumpre advertir que o algo ser ordenado e o ser feito ordenadamente se dá de dois modos:

De um modo, pela ordem

universal, - que pertence à lei comum: ‘todo pecador final há de ser condenado’ (como se o rei estabelecesse que todo homicida há de morrer). Do segundo modo, pela ordem particular, - segundo o juízo para o qual não cabe a lei para o universal, porque a lei é sobre

(19)

universalibus causis ; de causa autem particulari non est lex, sed iudicium secundum legem, eius quod est contra legem (ut quod iste homicida moriatur).

10. Dico ergo quod Deus non

solum potest agere aliter quam

ordinatum est ordine particulari, sed aliter quam ordinatum est ordine universali – sive secundum leges iustitiae – potest ordinate agere, quia tam illa quae sunt praeter illum ordinem, quam illa quae sunt contra ordinem illum, possent a Deo ordinare

fieri potentia absoluta.

[Sequitur textus interpolatus, vide appendix A: Item, sciendum quod haec distinguenda est ‘Deus potest aliter producere resquam diposuit’. In sensu compositionis est falsa: significatur enim quod haec est possibilis ‘Deus

producit aliter quam secundum

dispositionem suam’; in sensu

divisionis est vera, et sunt duae propositiones categoricae, et est sensus: ‘Deus potest facere hoc modo’, ‘non disposuit facere hoc modo’. Nec tamen sequitur quod inordinate agat, ut patet

per praedicta.]

11. Potentia tamen ordinata non dicitur nisi secundum ordinem legis universalis, non autem secundum

ordinem legis rectae de aliquo

particulari. Quod apparet ex hoc quod possibile est Deum salvare quem non

as causas universais; mas, sobre a causa particular, não há lei, mas o juízo segundo a lei sobre aquilo que é contrário à lei (por exemplo, que este homicida há de morrer).

10. Digo, portanto, que Deus não apenas pode agir diversamente do que está ordenado pela ordem particular,

mas pode agir ordenadamente

diversamente do que está ordenado pela ordem universal – ou segundo as leis da justiça –, porque tanto aqueles que são além desta ordem, quanto aqueles que são contrários a esta ordem, podem ser ordenados por Deus a serem feitos por sua potência absoluta.

[Segue-se texto interpolado, veja o apêndice A: Igualmente, cumpre saber que cabe distinção para ‘Deus pode produzir as coisas diversamente de como as dispôs’. No sentido da composição é falsa: com efeito,

significa que ‘Deus produz

diversamente do que segundo a sua disposição’ seja possível; no sentido da divisão é verdadeira, e tanto são duas proposições categóricas como há o sentido: ‘Deus pode fazer deste modo’, ‘não dispôs fazer deste modo’. No entanto, não se segue que aja desordenadamente, como é patente pelo que foi anteriormente respondido11.]

11. No entanto, a potência não é dita ordenada senão segundo a ordem da lei universal, mas não segundo a ordem da lei reta sobre algo particular. Isto aparece do fato de que é possível que Deus salve àquele que não salva –

(20)

salvat, qui tamen morietur in peccato finaliter et damnabitur, - non autem conceditur ipsum posse salvare Iudam iam damnatum (nec tamen hoc est impossibile potentia absoluta Dei, quia non includit contradictionem); ergo istud, scilicet ‘salvare Iudam’, eo modo est impossibile quo modo possibile est salvare istum: ergo istum potest salvare de potentia ordinata (quod verum est), et illum non. Non quidem ordine particulari (qui est quasi de isto agibili et operabili particulari tantum), sed ordine universali, quia si salvaret, staret modo cum legibus rectis – quas vere praefixit – de salvatione et damnatione singulorum. Staret enim cum illa ‘quod finaliter malus damnabitur’ (quae est lex prefixa de damnandis), quia iste adhuc non est finaliter peccator, sed potest esse non peccator (maxime dum est in via), quia potest Deus eum gratia sua praevenire; sicut si rex praeveniret aliquem ne faceret homicidium, si non damnat eum, non facit contra legem suam universalem de homicida. Non autem staret, cum illa particulari lege, quod Iudam salvaret; Iuda enim potest

praescire salvandum de potentia

ordinata, sed non isto modo ordinata sed absoluta ab isto modo, et alio modo ordinata secundum aliquem alium

ordinem tunc possibilem institui.

aquele que, no entanto, há de morrer em pecado final e ser condenado –, mas não se concede que ele possa salvar a Judas que já está condenado (no entanto, isto não é impossível pela potência absoluta

de Deus, porque não inclui

contradição); portanto, isto, a saber, ‘salvar Judas’, é impossível daquele modo pelo qual é agora possível salvar o primeiro: portanto, o primeiro pode ser salvo pela potência ordenada (o que é verdadeiro), e Judas não. Certamente, [o primeiro pode ser salvo] não pela ordem particular [em vigor,] (que se dá como se apenas sobre este que é passível de ação e operação particular), mas pela ordem universal [a ser estabelecida], porque se for salvo, estará agora com as leis retas – as quais preestabeleceu verdadeiramente – sobre a salvação e a condenação de cada um dos singulares. Com efeito, estará com ‘que o mal final há de ser condenado’ (que é a lei preestabelecida sobre aquele que há de ser condenado), porque este ainda não é finalmente pecador, mas pode ser não pecador (maximamente enquanto está na via), porque Deus pode prevenir por sua graça; assim como se o rei, ao prevenir que alguém cometa um homicídio, não o condena, não atenta contra sua lei universal sobre o homicida. Ora, não estaria com aquela lei particular [em vigor] que Judas fosse salvo; com efeito, pode ter a presciência de que Judas há de ser salvo pela potência ordenada, mas não ordenada deste modo, mas absoluta quanto a este modo, e ordenada de outro modo segundo alguma outra ordem que então seja possível instituir.

(21)

[Sequitur textus interpolatus: Potentia ergo absoluta potest Iudam salvare, - potentia vero ordinata potest istum peccatorem salvare, licet non salvabitur; sed lapidem nec potest

beatificare potentia absoluta, nec

ordinata. Et secundum hoc, patet respectu cuius dicitur potentia absoluta in Deo, id est in quantum potest contra

legem universalem et non

particularem.]

12. Qualiter autem voluntas divina possit circa particularia et circa leges rectas instituendas, non volendo oppositum eius quod nunc vult, dictum

est supra distinctione 397.

13. Ad argumentum [supra, n. 1] patet quod consequentia non valet, quia si faceret res alio modo quam nunc ordinatum est eas fieri, non propter hoc inordinate fierent, quia si statueret alias leges secundum quas fierent, eo ipso

ordinate fierent.

14. Ad argumentum in

oppositum [n. 2] concedo quod probat de potentia absoluta, - quae tamen si esset principium alicuius, esset eo ipso ordinata, sed non secundum ordinem ab eo praefixum, eundem quem prius habuit.

[Segue-se o texto interpolado: Portanto, pode salvar Judas pela potência absoluta – de fato, pela potência ordenada pode salvar este pecador, embora não venha a salva-lo – , mas não pode beatificar a pedra nem pela potência absoluta nem pela potência ordenada. E, segundo isso, fica patente a respeito de que se fala de potência absoluta em Deus, isto é, enquanto pode ser contrária à lei universal e não à particular.]

12. Ora, como, qualitativamente, a vontade divina pode com relação aos particulares e as leis retas que hão de ser instituídas, não querendo o oposto daquilo que agora quer, tratou-se acima na distinção 39.

13. Para o argumento [acima, nº 1] fica patente que a consequência não vale, porque se fizesse as coisas de modo diverso do que agora está ordenado que sejam feitas, elas não se

dariam desordenadamente segundo

isso, porque se fossem estabelecidas outras leis segundo as quais fossem feitas, por isso mesmo seriam feitas ordenadamente.

14. Para o argumento oposto [nº 2], concedo que prova sobre a potência absoluta, - no entanto, se ela fosse princípio de algo, seria por isso mesmo ordenada, mas não segundo aquela mesma ordem por ele preestabelecida que antes se deu.

(22)

JOÃO DUNS ESCOTO Lectura

Livro I Distinção 44*

Quaestio Unica: [UTRUM DEUS ALITER POTEST PRODUCERE RES QUAM

PRAEORDINAVIT]

1. Circa distinctionem

quadragesimam quartam quaeritur

utrum Deus aliter potest producere res quam praeordinavit.

Quod non, videtur:

Quia tunc potest inordinate producere.

2. Contra: res aliter potest esse quam praeordinavit : hoc enim non includit contradictionem ; igitur etc.

3. Dicendum quod quando est agens quod conformiter agit legi et rationi rectae, - si non limitetur et alligetur illi legi, sed illa lex subest voluntati suae, potest ex potentia absoluta aliter agere ; sed si lex non subesset voluntati suae, non posset agere de potentia absoluta nisi quod potest de potentia ordinata secundum illam legem. Sed si illa subsit voluntati suae, bene potest de potentia absoluta quod non potest de potentia ordinata secundum illam legem ; si tamen sic operetur, erit ordinata secundum aliam legem, - sicut, ponatur quod aliquis

Questão Única: [SE DEUS PODE PRODUZIR AS COISAS DIVERSAMENTE DE COMO PRÉ

-ORDENOU]

1. Acerca da distinção

quadragésima quarta pergunta-se se

Deus pode produzir as coisas

diversamente de como pré-ordenou. Vê-se que não:

Porque então poderia produzir desordenadamente.

2. Contra: as coisas podem ser diferentemente de como preordenou; com efeito, não há contradição nisso; portanto etc.

3. Deve-se dizer que quando há um agente que age em conformidade com a lei e a razão retas, se não for limitado e atado por aquela lei, mas aquela lei depender de sua vontade, pode agir diversamente a partir da potência absoluta; mas se a lei não dependesse de sua vontade, não poderia agir pela potência absoluta a não ser quanto àquilo que pode pela potência ordenada segundo aquela lei. Mas se ela depender de sua vontade, bem pode pela potência absoluta o que não pode pela potência ordenada segundo aquela lei; no entanto, se operar assim, será ordenada

* JOÃO DUNS ESCOTO, Lectura : Opera Omnia, Vol. XVII. Civitas Vaticana, Typis Polyglottis Vaticanis, 1966, p. 535 s.. Tradução: Carlos Eduardo de Oliveira.

(23)

esset ita liber (sicut rex) quod possit facere legem et eam mutare, tunc praeter illam legem de potentia sua absoluta aliter potest agere, quia potest legem mutare et aliam statuere.

4. Sic Deus se habet in operando, nam intellectus – ut prior est voluntate – non statuit legem, sed offert primo voluntati suae ; voluntas autem acceptat sic oblatum, et tunc statuitur lex ; quia tamen opposita eorum quae statuta sunt, sunt possibilia, ideo potest legem mutare et aliter agere. Sicut statuit quod nullus esset glorificandus nisi prius esse gratificatus ; operando autem huic lege ordinate, agit secundum potentiam ordinatam, et non potest aliter operari nisi ordinando et statuendo aliam legem, - et hoc potest, quia contingenter voluit quod esset illa lex quod omnis peccator damnaretur ; unde faciendo

contrarium, statuit aliam legem,

secundum quam etiam ordinate

operetur.

5. Et sic patet quomodo debet intelligi quod Deus potest facere de potentia absoluta quod non potest de potentia ordinata.

segundo outra lei, - assim como se fosse posto que alguém seja tão livre (como é o rei) que possa fazer a lei e muda-la, então pode agir diversamente para além daquela lei por sua potência absoluta, porque pode mudar a lei e estabelecer outra.

4. Assim acontece com Deus ao operar, pois o intelecto – dado que seja anterior à vontade – não estabelece a lei, mas a oferece primeiro à sua vontade; ora, a vontade aceita o que é assim oferecido, e, então, a lei é estabelecida; no entanto, porque os opostos àqueles que foram estabelecidos são possíveis, pode mudar a lei e agir diversamente. Assim como estabelece que ninguém há de ser glorificado a não ser que antes

seja agraciado; ora, operando

ordenadamente por esta lei, age segundo a potência ordenada, e não pode operar diversamente a não ser que ordene e estabeleça outra lei, - e pode isso, porque quis contingentemente que haja a lei de que todo pecador seja condenado, donde ao fazer o contrário, estabelece outra lei, segundo a qual também há de operar ordenadamente.

5. E assim é patente de que modo se deve entender que Deus pode fazer pela potência absoluta o que não pode pela potência ordenada.

(24)

GUILHERME DE OCKHAM Quodlibeta septem

Livro VI Questão 1*

Utrum homo possit salvari sine caritate creata.

Quod non: Quia quicumque salvatur est carus Deo; sed nullus potest esse carus Deo sine caritate; igitur nullus potest salvari sine caritate.

Contra : Deus potest omne absolutum distinctum ab alio separare et in esse sine eo conservare ; sed gratia et gloria sunt duo absoluta realiter distincta ; igitur potest gloriam in anima conservare et gratiam adnihilare.

Hic primo ponam unam

distinctionem de potentia Dei; secundo dicam ad quaestionem.

[PRIMUS ARTICULUS]

Circa primum dico quod

quaedam potest Deus facere de potentia ordinata et aliqua de potentia absoluta. Haec distinctio non est sic intelligenda quod in Deo sint realiter duae potentiae quarum uma sit ordinata et alia absoluta, quia unica potentia est in Deo ad extra, quae omni modo est ipse Deus. Nec sic est intelligenda quod aliqua potest Deus ordinate facere, et aliqua potest absolute et non ordinate, quia Deus nihil potest

Se o homem pode ser salvo sem a caridade criada.

Que não: porque qualquer um que se salve é caro a Deus; mas ninguém pode ser caro a Deus sem a caridade; portanto, ninguém pode ser salvo sem a caridade.

Contra: Deus pode separar todo absoluto distinto de outro e conservá-lo no ser sem o outro; ora, a graça e a glória são dois absolutos distintos realmente; portanto, pode conservar a glória na alma e aniquilar a graça. Aqui primeiro farei uma distinção sobre a potência de Deus; em segundo lugar, responderei à questão.

[PRIMEIRO ARTIGO]

Sobre o primeiro digo que Deus pode fazer alguns pela potência ordenada e outros pela potência absoluta. Esta distinção não deve ser entendida assim: que haja em Deus realmente duas potências, das quais uma seria ordenada e a outra absoluta, uma vez que há uma única potência em Deus para o que é exterior, a qual, de todo o modo, é o próprio Deus. Nem deve ser entendida assim: que Deus

* Traduzido de GUILHERME DE OCKHAM 1980.Quodlibeta Septem. J. C. Wey (ed.). [= G. de Ockham Opera

Theologica IX]. St. Bonaventure (NY): The Franciscan Institute, p. 585-589, por Carlos Eduardo de

(25)

facere inordinate.

Sed est sic intelligenda quod ‘posse aliquid’ quandoque accipitur segundo leges ordinatas et institutas a Deo, et illa dicitur Deus posse facere de potentia ordinata. Aliter accipitur ‘posse’ pro posse facere omne illud quod non includit contradictionem fieri, sive Deus ordinaverit se hoc facturum sive non, quia multa potest Deus facere

quae non vult facere, secundo

Magistrum Setentiarum, lib. I, d. 43 ; et illa dicitur Deus posse de potentia absoluta. Sicut Papa aliqua non potest secundum iura statuta ab eo, quae tamen

absolute potest.

Ista distinctio probatur per dictum Salvatoris, Ioannis 3, 5: Nisi quis inquit renatus fuerit ex aqua et Spiritu Sancto, non potest introire in regnum Dei. Cum enim Deus sit aequalis potentiae nunc sicut prius, et aliquando aliqui introierunt regnum Dei sine omni baptismo, sicut patet12 de pueris circumcisis tempore Legis defunctis antequam haberent usum rationis, et nunc est hoc possibile. Sed tamen illud quod tunc erat possibile secundum leges tunc institutas, nunc non est possibile secundum legem iam institutam, licet absolute sit possibile.

pode fazer alguns ordenadamente e

outros pode absoluta e não

ordenadamente, uma vez que Deus nada pode fazer desordenadamente.

Mas deve ser entendida assim: que ‘poder algo’ às vezes é tomado segundo as leis ordenadas e instituídas por Deus, e diz-se que Deus pode fazer esses pela

potência ordenada. Diversamente,

toma-se ‘poder’ por poder fazer tudo aquilo que não há contradição em ser feito, tenha Deus se ordenado a vir a fazê-lo ou não, uma vez que Deus pode fazer muitos que não quer fazer, segundo o Mestre das Sentenças, livro I, d. 43; e diz-se que Deus pode esses pela potência absoluta. Assim como o Papa

não pode, segundo as normas

estabelecidas por si mesmo, alguns que, no entanto, pode absolutamente.

Prova-se esta distinção por meio do que disse o Salvador, em João 3, 5.

Disse: apenas aquele que tiver

renascido da água e do Espírito Santo pode entrar no reino de Deus. Com efeito, dado que Deus tenha potências iguais tanto agora como antes, tanto como certa vez alguns entraram no reino de Deus sem nenhum batismo, assim como é patente no caso das crianças circuncidadas no tempo da Lei que morreram antes de ter o uso da razão, também agora isto é possível. Ora, no entanto, aquilo que então era

possível segundo as leis então

instituídas, agora não é possível segundo a lei agora instituída, embora seja possível absolutamente.

(26)

[SECUNDUS ARTICULUS CONCLUSIO 1]

Circa secundum articulum dico primo quod homo potest salvari sine caritate creata de potentia Dei absoluta. Haec conclusio probatur primo sic: quidquid Deus potest facere mediante causa secunda in genere causae efficientis vel finis, potest immediate per se; sed caritas creata, si sit causa effectiva sive dispositiva disponens ad vitam aeternam, erit causa secunda efficiens vel finis; igitur sine ea potest Deus dare alicui vitam aeternam.

Praetera agens quod non

determinatur ad certum cursum et

ordinem rerum, secundum alium

ordinem res illas producere potest; sed Deus est tale agens; igitur potest dare vitam aeternam alicui facienti bonum opus, sine tali gratia.

Praetera, quod potest dari alicui non tamquam praemium pro merito, potest sibi dari de potentia Dei absoluta sine omni habitu praevio qui est

principium merendi; sed actus

beatificus dabatur Paulo in suo raptu, quia tunc vidit essentiam divinam non tamquam praemium pro merito; igitur potest sibi dare vitam aeternam sine tali gratia quae est principium merendi.

Praetera non est maior

repugnantia actus meritorii ad naturam in solis naturalibus constitutam quam actus demeritorii; sed voluntas potest ex se in actum demeritorium; igitur voluntas in solis naturalibus constituta

[SEGUNDO ARTIGO 1ªCONCLUSÃO]

A respeito do segundo artigo respondo que o homem pode ser salvo sem a caridade criada pela potência absoluta de Deus. Prova-se essa conclusão primeiramente assim: tudo o que Deus pode fazer por meio de uma causa segunda a título de causa eficiente ou final, pode imediatamente por si; ora, a caridade criada, se for causa efetiva ou dispositiva que dispõe para a vida eterna, será causa segunda eficiente ou final; portanto, Deus pode dar a vida eterna a alguém sem ela.

Além disso, o agente que não está determinado para certo curso e ordem das coisas, pode produzir segundo outra ordem aquelas coisas; ora, Deus é tal agente; portanto, pode dar a vida eterna a alguém que faça a boa obra sem tal graça.

Além disso, o que pode ser dado a alguém sem ser o prêmio pelo mérito, pode ser dado a ele pela potência absoluta de Deus sem qualquer hábito prévio que é o princípio do merecer; ora, o ato beatífico foi dado a Paulo na sua queda, porque então viu a essência divina sem ser o prêmio pelo mérito; portanto, pode ser dada a ele a vida eterna sem tal graça que é o princípio do merecer.

Além disso o ato meritório não repugna mais à natureza constituída no que é unicamente natural do que o ato demeritório; ora, a vontade pode por si no ato demeritório; portanto, a vontade constituída no que é unicamente natural

(27)

potest per potentiam Dei absolutam in actum meritorium. Minor est manifesta. Maior probatur, quia ubi non est simpliciter, ibi non est magis, sicut quod non est album non est magis album; sed actus meritorii ad naturam in solis naturalibus constitutam non est aliqua repugnantia; igitur non est maior repugnantia.

Praeterea nihil est meritorium nisi quod est in potestate nostra; sed illa caritas non est in nostra potestate; igitur actus non est meritorius principaliter propter illam gratiam sed propter voluntatem libere causantem; igitur posset Deus talem actum elicitum a voluntate acceptare sine tali gratia.

[CONCLUSIO 2]

Secundo dico quod numquam salvabitur homo nec salvari poterit, nec umquam eliciet vel elicere poterit actum meritorium secundum leges a Deo nunc ordinatas sine gratia creata. Et hoc teneo propter Scripturam Sacram et dicta Sanctorum.

Et si dicis quod prima conclusio continet errorem Pelagii:

Respondeo quod non, quia Pelagius posuit quod de facto non requiritur gratia ad vitam aeternam habendam sed quod actus ex puris naturalibus elicitus est meritorius vitae aeternae de condigno. Ego autem pono

quod solum est meritorius per

potentiam Dei absolutam acceptantem.

pode pela potência absoluta de Deus no ato meritório. A menor é manifesta. Prova-se a maior, porque onde não há o simples, ali não há o mais; assim como o que não é branco não é mais branco; ora, não há nenhuma repugnância do ato meritório para a natureza constituída nos unicamente naturais; portanto, não há maior repugnância.

Além disso, não é meritório senão o que está em nosso poder; ora, aquela caridade não está em nosso poder, portanto, o ato não é meritório principalmente em razão daquela graça, mas em razão da vontade livre causadora; portanto, Deus pode aceitar tal ato produzido pela vontade sem tal graça.

[2ª CONCLUSÃO]

Em segundo lugar, digo que o homem jamais será salvo nem poderá se salvar, nem jamais produziria ou poderia produzir o ato meritório segundo as leis agora ordenadas por Deus sem a graça criada. E assumo isto em razão da Sagrada Escritura e os ditos dos Santos.

E se disseres que a primeira conclusão contém o erro de Pelágio:

Respondo que não, porque Pelágio assumiu que a graça de fato não é requerida para que se tenha a vida eterna, mas que o ato produzido pelo que é puramente natural é meritório da vida eterna sobre o que é igualmente digno. Eu, porém, assumo que apenas é meritório pela potência absoluta de Deus que o aceita.

(28)

Ad argumentum principale digo quod ‘caritas’ dupliciter accipitur: uno modo, pro una qualitate animae; alio modo, pro acceptatione divina. Primo modo accipiendo ‘caritatem’, potest homo esse carus Deo sine caritate, sed non secundo modo.

Para o argumento principal digo que ‘caridade’ é tomada duplamente: de um modo, por uma qualidade da alma; de outro modo, pela aceitação divina. Tomando ‘caridade’ do primeiro modo, o homem pode ser caro a Deus sem a caridade, mas não do segundo modo.

Referências

Documentos relacionados

Para este trabalho adotou-se a hipótese de que os taludes são compostos de duas camadas homogêneas de solo, uma camada mais superficial de coloração avermelhada e outra camada

Informamos que estão inclusos nos preços ofertados todos os tributos, custos e despesas diretas ou indiretas, sendo de nossa inteira responsabilidade, ainda, os que porventura venham

Diante dos fatos e com base no Parecer Técnico anexado ao processo, confirmamos o veredicto dado pela Pregoeira para julgar vencedoras do certame as empresas ALCEU ALBINO VON

c) Relatório detalhado do serviço prestado, citando a data de realização, quantidade, valor, entre outras informações relativas à natureza dos serviços antes de

Figura 7: Ilustração do CredCrack enviando o Invoke-Mimikatz para os sistemas das vítimas Abaixo está o script PowerShell inicial que as vítimas estarão executando: Tabela 6:

VII - Auxílio Instalação: consiste em subvenção financeira subsídio financeiro, com periodicidade de desembolso mensal e por tempo determinado, em que o estudante

Os maiores efeitos (P<0,001) para o ganho de peso total ocorreram entre os tratamentos com ração basal e ração sem suplemento micromineral-vitamínico com redução total de

Vapores provenientes do líquido em temperaturas elevadas ou névoa do produto são irritantes para o nariz, garganta e trato respiratório; podem causar dor de cabeça, náusea