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Nem todas as crianças vingam : Relação social em "Pai contra mãe"

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Academic year: 2021

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“Nem todas as crianças vingam”: Relação social em "Pai contra mãe"

José Vilian Mangueira1

Resumo:

O presente trabalho desenvolve uma leitura de "Pai contra mãe", dando destaque à representação social contida no texto. Procuramos destacar as relações sociais que as personagens mantêm, partindo das ideias que Roberto Schwarz desenvolve sobre a obra de Machado. Através do Panorama social do conto, analisa-se o contexto escravocrata brasileiro que legitimava a barbárie como mantedora de uma "ordem" e fazia homens "livres" lutarem pela sobrevivência, tirando o seu sustento da vida alheia.

Palavras-chave: Conto brasileiro; Literatura e sociedade; Machado de Assis.

Introdução:

"Pai Contra Mãe", de Machado de Assis, é a história de Cândido Neves, um homem sem posses, que não se liga a emprego fixo e que sobrevive de pegar escravos fugidos. Casado com Clara, moça também pobre que vive, juntamente com sua Tia Mônica, do ofício de costureira, Cândido passa por privações e necessidades em toda a narrativa. Quando o ofício de pegar escravos fugidos não lhe dá mais lucro, devido à concorrência e à diminuição do número de negros rebelados, ele se vê em uma situação difícil. Há agora, mais do que antes, carência de tudo: faltam carne e feijão e o aluguel está três meses atrasado. E, para agravar a sua condição, Clara fica grávida. Seria mais uma pessoa para alimentar. Tia Mônica sugere que, quando a criança nascer, seja levada à Roda dos Enjeitados, espécie de orfanato da época. O pai não gosta da ideia da tia, mas, depois que esta lhe pinta o destino da criança, aceita tudo. Um dia depois do nascimento, o menino é enrolado e levado pelo próprio pai à Roda dos Enjeitados. Mas, no meio do caminho, aparece na frente de Cândido Neves uma escrava fugida, pela qual se dava alta recompensa. É a chance que Cândido esperava para mudar o destino do filho. Deixando o menino em uma farmácia, o pai sai ao encalço da negra. Prende-a, amarra-a e, ignorando as suas súplicas, leva-a até o seu dono. Na porta deste, a escrava, que estava grávida, aborta. Apático a isso, Cândido Neves retira-se da porta do senhor, levando a garantia de que o seu filho voltaria para casa.

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Professor de Literatura da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e Doutorando em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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O conto faz parte do livro Relíquia de Casa Velha, publicado em 1906, e segundo estudiosos da obra de Machado, como José Guilherme Merquior, "Pai Contra Mãe" está inserido dentro dos contos anedóticos do escritor carioca (Cf. MERQUIOR, 1996, p. 236-237). O exame psicológico dos personagens é deixado de lado para dar lugar aos acontecimentos que os envolvem. Sendo assim, não importa ao narrador analisar os sentimentos e as ações dos personagens, mas a relação que estes criam entre si. A história de Candinho, personagem central da narrativa, resume-se à história de uma escrava fugida: "Cândido Neves - em família Candinho - é a pessoa a quem se lida a história de uma fuga" (ASSIS, 1982, p. 200).

É graças a esse primeiro plano que os acontecimentos têm no texto que o narrador abre a história com a descrição de castigos e punições sofridos pelos escravos quando estes fugiam. Só depois de apresentar ao leitor esse universo escravocrata que já não existe mais, é que o narrador põe Cândido Neves na narrativa. Os dois, Cândido e o universo escravocrata, irão interagir ao longo do conto, criando, no final, a luta pela sobrevivência, tema central do texto.

1. Dos personagens:

Apesar de vermos essa superioridade dos acontecimentos sobre os personagens, queremos chamar atenção para pistas deixadas ao longo do conto que dão subsídios para traçarmos um perfil do personagem principal.

Cândido Neves apresenta dois tipos de comportamentos. Diante de alguém superior ou igual a ele na escala social, porta-se de acordo com a semântica do seu nome: mansamente. É assim com a sua família, que o chama de Candinho, acentuando ainda mais essa característica do personagem; e também com Tia Mônica e sua mulher. Quando Tia Mônica adverte-o de alguma coisa ou cobra-lhe algo, como no momento em que ela exige que ele busque um emprego fixo, Cândido não se exaspera. Apesar de sentir-se ferido, age de maneira calma: "Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero, mas muito menos manso do que de costuma, e lhe perguntou se já algum dia deixaria de comer" (ASSIS, 1982, p. 201).

Em toda a história, apenas em um momento ele perde o controle e põe para fora a raiva que sentia de tia Mônica. É quando esta tenta persuadi-lo a levar o filho à Roda dos

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Enjeitados: "Cândido arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar" (ASSIS, 1982, p. 202). Mas esse fato é algo isolado no texto; o recorrente é que a semântica do nome case com o comportamento do personagem. Com a mansidão que lhe é característica, ele age com o dono da casa onde morava, quando este vem cobrar-lhe o aluguel. O homem fala duramente com ele, mas Cândido não ousa responder no mesmo tom: "Ao vê-lo, ninguém diria que era o proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferia calar a retorquir." (ASSIS, 1982, p. 203).

Mas, diante de alguém socialmente inferior a ele, como o escravo, seu comportamento muda. Deixa de lado a sua mansidão, e mostra que é superior a este, usando de sua força para subjugá-lo. Com o escravo ele briga, "nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro também trabalhavam" (ASSIS, 1982, p. 202); mas acaba vencendo-o. Esse segundo comportamento do personagem demonstra que a sua mansidão é aparente, e que, na verdade, o que possui é uma falta de vontade de lutar pelos seus direitos com aqueles que estão no mesmo nível que ele ou são a ele superiores. O que pesa mais a Cândido é o seu sentimento de inferioridade, que desaparece diante do escravo. Isso prova que o nome do personagem serve para contrastar com o seu comportamento brutal do final do conto.

Para o leitor de Machado, é fácil constatar que a ficção machadiana explora muito a semântica dos nomes das ruas onde as histórias acontecem. É o que sucede em "Pai contra mãe". As duas primeiras ruas mencionadas na narrativa são a do Parto e a da Ajuda, onde supostamente a escrava Arminda parecia andar. A primeira rua não aparecerá mais, mas a segunda terá papel fundamental na trama. De início, é nela que Cândido obtém de um farmacêutico uma vaga informação da negra fugida. Ao levar o seu filho à Roda dos Enjeitados, Cândido toma a direção da Rua dos Bardonos, entra na Rua da Guarda Velha, passando por um beco que liga esta à Rua da Ajuda. Eis que justamente neste ponto do caminho, Cândido vê o auxílio que precisava para livrar o seu filho da Roda dos Enjeitados. Analisando-se o uso desta rua no conto, podem-se formular duas leituras. A primeira, vista sob os olhos do pai, condiz com a semântica do topônimo. Cândido Neves, que vagou pela cidade tentando encontrar um socorro para o filho, encontra-o justamente na Rua da Ajuda. Mas a segunda leitura, tomando a posição da mãe, põe em conflito o nome da rua com a

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ação prática que nela ocorre. Depois de presa por Cândido, Arminda troca de posição com este, ficando, agora, necessitada de ajuda. Mas, ao contrário daquele, ela não encontra auxílio algum para si ou para o filho que trazia no ventre. Isso porque: "Quem passava ou estava à porta de alguma loja compreendia o que era o naturalmente não acudia" (ASSIS, 1982, p. 204).

É nessa segunda leitura que o jogo com o topônimo ganha um valor maior na história. Diferente da primeira leitura, ele serve para criar um efeito irônico entre o nome da rua e o desespero solitário da mãe-escrava, que se vê arrastada para o castigo. Assim, a ajuda que aparece a um, será o desespero do outro. Esse tirar de um para dar ao outro mostra a falta de condição de sobrevivência do pobre no Brasil da escravidão. A oportunidade de viver é tão pouca que é necessário matar o próximo para seguir vivendo.

Até Cândido cruzar a Rua da Ajuda, a narrativa leva o leitor a crer que o filho de Cândido Neves vai ser deixado na Roda dos Enjeitados. Até mesmo o próprio pai aceita tal final para o filho: "Hei de entregá-lo o mais tarde que puder" (ASSIS, 1982, p. 204). Esta atitude de passividade prova que Cândido aceita a sua condição social. Mas a peripécia narrativa, bem ao gosto de Machado de Assis, põe em frente de Candinho, em plena Rua da Ajuda, uma escrava fugida. É nela que o pai encontra a salvação do filho. Incapaz de lutar com alguém mais poderoso do que ele, mesmo para defender a vida do filho, diante da escrava ele encontra forças para propagar a sua espécie. Como um animal diante da presa, Cândido luta com a escrava Arminda até que esta se entregue, recolhendo-se à sua condição de inferioridade. Alfredo Bosi (1982, p. 437 – 457) aponta dois níveis de análise para essa luta: um natural, um pai e uma mãe lutando por seus filhos, outro social, uma escrava buscando a liberdade e um caçador de negros fugidos à procura de sua caça. Dando ênfase a uma ou à outra leitura, percebe-se que o que predomina entre os personagens principais do conto é a vontade de continuar existindo, mesmo que seja através de um descendente. O conto acaba retratando a miserável condição das duas parcelas mais pobres da sociedade brasileira da época da escravidão.

Com relação à mãe, consciente de sua condição de propriedade alheia, a escrava não busca ajuda para livrar-se de Candinho. Seu primeiro escudo é o filho que traz na barriga: "Estou grávida, meu senhor." (ASSIS, 1982, p. 204). Cândido não se importa com tal fato.

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Com último recurso, ela oferece a si mesma como escrava: "(...) eu serei sua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser." (ASSIS, 1982, p. 204).

Mas Cândido Neves não aceita a proposta da mãe, pois a sua condição social não permite tal excesso, e ter Arminda como escrava não ajudaria em nada a mudar a situação do filho dele. Insensível ao desespero da negra, Candinho arrasta a sua presa até a casa do senhor que pagaria por ela. E ali a escrava aborta, sob os gritos do seu dono. Cândido Neves assiste a tudo sem a menor piedade. É nesse momento que o personagem se revela por inteiro. A máscara de mansidão que ele usava cai, deixando ver o seu verdadeiro rosto: impiedoso, pois não sente a menor compaixão pela escrava; aproveitador, faz uso de alguém mais fraco para se beneficiar; egoísta, seu único pensamento enquanto entrega a escrava ao dono é resolver a situação do próprio filho.

No final do conto, Cândido passa de vítima da sociedade, que não lhe dá oportunidade nem de constituir uma família, a algoz de uma pobre escrava fugida. Mas não se pode julgá-lo por essa transformação. A culpa não é totalmente sua. O sistema em que ele está vivendo é que tem maior culpa. Sem saída digna para escapar à sua miséria, ele se submete à lei natural da sobrevivência que regia o Brasil: só se consegue viver tirando o sustento da dor alheia. A frase final do personagem corrobora esta lei e serve para livrar Cândido de qualquer culpa pela morte do filho da escrava: "Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração" (ASSIS, 1982, p. 205).

2. Classe contra classe:

Em "Pai contra mãe", Machado de Assis registra a barbárie da escravidão e a luta pela sobrevivência no Brasil do Império. Além disso, mostra a relação social das três classes de população que constituíam o Brasil da época: o latifundiário (senhor); o homem "livre", mas pobre; e o escravo.

O texto inicia-se com a descrição de alguns aparelhos de castigos a que os escravos eram submetidos: o ferro ao pescoço, o ferro ao pé, a máscara de folhas-de-flandres. A descrição é carregada de ironia, deixando o leitor ver apenas a funcionalidade de tais instrumentos: "A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhe tapar a boca." (ASSIS, 1982, p.200); "O ferro ao pescoço era aplicado aos fujões [...] escravos que

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fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado." (ASSIS, 1982, p. 200).

Em tudo isso, escapa ao narrador o relato do sofrimento dos escravos quando submetidos a tais torturas. Mas, dentro do conto, isso é irrelevante, uma vez que estas práticas grotescas eram justificadas como mantedoras da "ordem social e humana". É nesse mascaramento do brutal que reside a ironia do texto, conferindo ao narrador o sentimento da parte dirigente da sociedade do sistema escravocrata do Império brasileiro: toda essa brutalidade não passava de pura necessidade por parte dos poderosos; algo que deveria acontecer para que a ordem social, por eles estabelecida, fosse mantida e nada saísse do eixo. Agindo assim, o narrador traz para o texto a ideologia dos escravocratas; mas a sua narrativa acaba, como acontece em Memórias Póstumas de Brás Cubas, denegrindo a camada social dominante, fazendo com que o leitor, diante de tanta crueldade, tenha uma posição de indignação. Fazendo uso do pensamento e das ações dos senhores, o narrador se distancia de um posicionamento crítico individual, deixando para o leitor a função de julgar o que está no texto.

Em seguida, aparece a fuga dos escravos que, no texto, é justificada porque "nem todos [escravos] gostavam da escravidão" (ASSIS, 1982, p. 200). Cinicamente, é atribuída ao escravo a culpa da fuga, ignorando, mas uma vez, os maus tratos a que eles eram sujeitados. O narrador é tão irônico ao descrever a relação escravo-senhor que põe no texto a argumentação supostamente usada por muitos ao justificar a brutalidade do proprietário de escravos: este, o senhor, quando "ocasionalmente" (o uso do advérbio acentua ainda mais a ironia) batia em seus negros, não fazia por maldade, pois "o mesmo dono não era mau". As pancadas, assim como os instrumentos de tortura, serviam para manter a ordem, criada pelos senhores, que os escravos procuravam desarranjar. Ao leitor desatento e desconhecedor da obra de Machado de Assis, a fala do narrador pode parecer que advoga a favor dos escravocratas. Mas a sua função verdadeira é de reprovação das práticas cruéis da escravidão e do cinismo da sociedade brasileira que fingia não ver tanta barbárie.

Com isso, o narrador mostra, como aponta Roberto Schwarz (1982, p.16), que a relação escravo-senhor é de total dominação deste sobre aquele. E não poderia ser diferente, pois os escravos não passavam de simples propriedades dos latifundiários. Tem-se, então,

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traçada em poucas linhas, a relação entre senhor e escravo, e a descrição do cenário brasileiro em que a história se passa. Essa primeira parte serve para introduzir a ação do conto e para situar o leitor no campo ideológico que permeava a sociedade do Brasil da escravidão. Está reservado à terceira classe da população o seguinte passo da narrativa.

Esta terceira classe, "nem proprietário nem proletário" (cf. SCHWARZ, 1982, p. 16), constituía o maior número de brasileiros daquela época. Desprovidos de bens materiais próprios, esses brasileiros dependiam, direta ou indiretamente, do favor para ter uma vida melhor. Eles ocupavam uma posição intermediária entre o senhor e o escravo: estavam degraus abaixo na escala social, se comparados aos senhores latifundiários; e alguns poucos degraus acima, se comparados aos escravos. É na figura deste homem juridicamente "livre", mas dependente socialmente, que o narrador se detém. Seu modo de vida, sua condição social e suas relações com as outras duas classes sociais do Império brasileiro é que são o ponto chave do conto.

Representada por Cândido Neves, essa terceira classe surge no conto para conter a vontade do escravo de quebrar a ordem social estabelecida pela camada dominante, formando, logo de início, uma parceria com o senhor, que será o beneficiário maior dessa associação.

Como consequência da vontade do escravo de quebrar a ordem do regime escravocrata, surge uma nova forma de ganhar dinheiro: capturar negros fugidos. Embora não seja "nobre", esse ofício servia para pôr "ordem à desordem". Sendo assim, conferia a quem nele se aventurasse o papel de homem ligado à lei. Mas nem todos queriam se meter em tal ofício. Apenas aqueles que eram levados pela pobreza, pela necessidade de um achego, pela inaptidão para outros trabalhos, pelo acaso, e algumas vezes pelo gosto de servir também, ainda que por outra via, aceitavam tal empreitada. Cândido Neves encaixa-se em dois dos casos citados.

No início do conto, Cândido envereda-se na caça de escravos fugidos por não conseguir se habituar a outros serviços. Há o caso de um emprego que lhe ferira o orgulho por ter que servir a muitos. Era, então, caixeiro de armarinho: "Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda

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do orgulho, e ao cabo de cinco semanas estava na rua por sua vontade" (ASSIS, 1982, p. 200).

Interpretando a passagem, podemos inferir que feria o orgulho de Cândido Neves a obrigação de servir a escravos e senhores, concomitantemente, uma vez que os dois, principalmente os primeiros, frequentavam o armarinho para comprar. Ora, servir a um escravo era querer demais de um homem branco, mesmo que esse homem fosse tão miserável quanto aquele. Como se achava socialmente melhor do que o negro, o homem "livre", mas pobre, não admite uma relação de proximidade com o escravo. Orgulhoso de sua cor, ele procura ao máximo mostrar-se superior ao negro. Essa é a primeira razão que leva Candinho a abandonar o emprego. A segunda é que, servindo aos senhores de escravos, sem ter diretamente das mãos destes um retorno por seus serviços, ele estaria igualando-se ao escravo, que trabalha sem receber dos senhores o pagamento pelo seu suor. Isso também não agradava a Cândido. Tal situação é demasiadamente indigna. Resta, então, para Cândido Neves, um último serviço, que o livraria desse embaraço social (mesmo que este serviço não seja "nobre"): pegar negros fujões.

Mas, ao optar por caçar escravos fugidos, não estaria ele servindo a alguém? Evidente que sim. Mas há duas grandes diferenças entre os dois trabalhos. Primeiro porque, como caçador de negros, Cândido Neves não tinha que cumprir as ordens de um chefe e nem precisava estar longas horas dedicadas aos serviços. Como afirma o texto, "Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda." (ASSIS, 1982, p. 202). Ele agia quando quisesse ou quando a necessidade o obrigasse. E, segundo, ele achava-se agora em uma condição social mais elevada do que alguns. De certa forma, servia a alguém, ao senhor de escravos, mesmo sem um compromisso formal, em troca de favores. Mas era superior aos escravos, pois recebia por seus serviços diretamente da mão do senhor. Sobre essa relação de favor na sociedade brasileira da época, Schwarz afirma: "No contexto brasileiro o favor assegurava às duas partes, e especial à mais fraca, de que nenhuma é escrava" (1982, p.18) .

A vida de Cândido Neves é miserável. Sem um emprego certo que lhe assegure a sua sobrevivência e a de sua família, ele se vê impelido à penúria. É apresentado pobre ao leitor: ("Cândido Neves [...] cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos..." (ASSIS, 1982, p. 200)), e assim continuará até o fim da narrativa, que se fecha

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sem abrir nenhuma porta por onde ele possa escapar à sua condição social. Na ótica do narrador, a sua pobreza é vista não como fruto do sistema social em que está inserido, mas como consequência do "caiporismo2" do personagem, ou seja, da sua má sorte, do seu azar: "Tinha um defeito grave este homem, não agendava emprego nem ofício, carecia estabilidade, é o que ele chamava caiporismo." (ASSIS, 1982, p. 200).

Essa afirmação, atribuída ao personagem pelo narrador, condiz com toda a atmosfera do Império brasileiro que o conto vem retratando: se Cândido é pobre e está sujeito a um emprego que não é "nobre", é porque ele não buscou alcançar algo melhor. Ora, se nem escravos fugidos para Cândido apanhar havia mais, o que dizer de empregos dignos dentro de uma sociedade onde a escravidão dominava e a ascensão social através do trabalho era impossível? Pensar em emprego digno para Candinho significava desconhecer o regime social em que estava mergulhado o Brasil da época: "A escravidão não consente, em parte alguma, classes operárias propriamente ditas, nem é compatível com o regime de salário e a dignidade pessoal do artífice" (NABUCO, apud BOSI, 1982). Passivo a sua condição social, só resta a Candinho, como última válvula de escape, atribuir ao "caiporismo" a falta de oportunidade para mudar a sua vida.

Mesmo pobre e dependente da ajuda de um senhor, Cândido Neves mantém uma relação de dominação com os escravos. Ele é sempre superior àqueles. O primeiro fator que lhe dá essa superioridade é a cor. Embora não haja, no texto, uma descrição do personagem, tem-se, através do seu nome e sobrenome, a constatação de que ele é branco. CÂNDIDO significa, além de sincero, ingênuo e inocente, alvo. Seu sobrenome, NEVES, possui o mesmo radical de neve, reforçando a "pureza de raça" do personagem. Sendo assim, temos um homem pobre, mas branco-branco, ou seja, branquíssimo. O segundo fator é a liberdade jurídica que Cândido possui. Ao contrário do escravo, Candinho tem livre-arbítrio, podendo dar a sua vida a direção que lhe convém. Esses dois fatores o aproximariam do senhor; assim como, conferem-lhe o direito de "[...] usar do escravo, não diretamente, pois não pode comprá-lo, mas por vias transversas, entregando-o à fúria do senhor, delatando-o ou capturando-o quando se rebela e foge" (BOSI, 1982, p.455).

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Considerações finais:

Neste conto, está retratada a situação de penúria em que vivia o escravo; a falta de perspectiva que assolava o homem sem posses; e o poderio que o senhor ou latifundiário exercia sobre os dois primeiros. A luta que os desvalidos travam pela sobrevivência, seja através da fuga (escravo), seja através da disputa pelo direito de ter um filho (Cândido e Arminda), é ignorada pelo abastado. No texto, assim como na realidade brasileira da época, predomina a lei do mais forte: o senhor dominava o escravo, que era um objeto seu, dominava o homem "livre", através da força do seu dinheiro, e este homem "livre" dominava o escravo, subjugando-o pela sua força social e física: "[...] preto fugido sabe que comigo não brinca, quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo" (ASSIS, 1982, p. 202).

Ao negro, parte mais fraca da população, cabia apenas aceitar as ordens do "Sistema Social e Humano" que regiam o Brasil escravocrata; e, se assim não fizesse, estaria sujeito aos mais duros castigos.

Em "Pai contra mãe", Machado de Assis, como acontece em grande parte de sua obra, está envolvido com os conflitos sociais de sua época. No conto, o narrador machadiano expõe os aspectos desumanos do desenvolvimento social do Brasil, que, na busca do melhor para os poderosos, mata um ser humano para dar lugar a outro, e retrata o comportamento do homem, Cândido e Arminda, nos conflitos com uma sociedade que legítima a violência como algo mantedor da "ordem".

Referências:

ASSIS, M. de. "Pai contra mãe". In: BOSI, A.. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982, p. 200 - 205.

BOSI, A.. "A mascara e a fenda". In:______. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982, p. 437 - 457.

MERQUIOR. J. G.. De Anchieta a Euclides: Breve história da Literatura Brasileira. 3ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

D´ONOFRIO, S.. "A ironia do destino no conto Machadiano". In: D´ONOFRIO, Salvatore..

Conto brasileiro: quatro leituras. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 11 - 38.

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Abstract:

This work aims to discuss the social representation in "Pai contra mãe", a short-story by Machado de Assis. It tries to focus on the characters’ social relation, using some ideas from R. Schwarz’s studies about Machado de Assis’ works. Paying attention to the social setting, this article presents an analysis of the Brazilian slavery social context to show how a barbaric system was used to maintain a social order and to make free men taking their own chance to living using somebody else’s life.

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