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Saciologia Goiana: o sentido da arte de a (r) mar o poema

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Academic year: 2021

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Maria de Fátima Gonçalves Lima**

O SENTIDO DA ARTE DE

A (R) MAR O POEMA*

Resumo: a obra de arte é a expressão mais sublime do sentimento humano, daí

G. M. T. ter-se aliado à arte poética para manifestar sua idolatria à “Arte de Armar”. Guiado pelo ideal poético, o artista penetra no mundo caótico e indecifrável das pala-vras, de onde, no silêncio das coisas inominadas, ele transforma o enigmático e inani-mado numa epifania poética.

Palavras-chave: Saciologia. Prazer. Humor. Ironia. Poética e Sentido.

Les mots íl suffit qu’on les aime pour écrire um pòeme.

Raymond Queneau

S

aciologia Goiana, de Gilberto Mendonça Teles (1982), é um canto de amor à

língua portuguesa, instrumento de trabalho do poeta ao seu: Goiás. Tal como o maior nome da língua lusitana, Luiz Vaz de Camões, que amou a língua mãe como ninguém, cantou as glórias de sua terra, mostrou o heroísmo do seu povo e mor-reu amando seu país, Gilberto se vestiu de Camões para falar de sua terra natal e se

* Recebido em 03.03.2013. Aprovado em: 10.04.2013.

** Pós-Doutora pela Pontifica Universidade Católica do Rio de Janeiro; Pós-doutoranda na PUC São Paulo. Doutora em Teoria Literária pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho – São José do Rio Preto. Coordenadora do Programa – Mestrado em Letras – Literatura e Crítica Literária da PUC Goiás.

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torna Camongo, “mistura de Camões e Goiás”(FERNANDES, (1983, p. 11).

Saciolo-gia Goiana é, portanto, uma declaração de amor a Goiás, à fala, à mulher e às coisas de Goiás. Da mesma forma que Camões conta a história dos heróis lusitanos, Saciologia Goiana fala, dos heróis (sem “agá”) de Goiás, com seus jeitos e seus ais.

Saciologia Goiana

Fazendo uma inovação à musa, tal como Homero, o poeta pede à poesia que cante as peripécias do Saci, o anti-herói, que, segundo a lenda é um diabinho de uma perna só, que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda sorte e atropelando quanta criatura encontrasse. Traz sempre na boca um “pito” (cachimbo) aceso, e na cabeça uma carapuça vermelha. A força dele está na carapuça vermelha, como a força de Sanção estava nos cabelos.

Quem consegue tomar ou esconder a carapuça de um saci fica senhor dele para toda a vida. A crença popular afirma, ainda, que este negrinho azeda o leite, quebra a ponta das agulhas, esconde as tesouras de unha, embaraça os novelos de linhas, faz o dedal das costureiras cair nos buracos, bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos das ninhadas e levanta as saias das moças. Quando encontra um prego, vira de ponta para cima para que espete o pé do pri-meiro que passa. Tudo que acontece de ruim, no sertão, dizem que é arte do saci. Dizem, ainda, que atormenta os cachorros, atropela as galinhas e persegue os ca-valos no pasto, chupando o sangue dos animais. O Saci é símbolo de liberdade, mas de uma liberdade diabólica, que sente prazer em fazer peraltices. O poeta viu o saci como um fálus: um negrinho de uma perna só, como um lápis, pois não lhe falta uma perna – ele é imaginado assim. Daí a interpretação de Gilberto, para quem até o século XVIII não existia na cultura brasileira a figura do Saci. Com o aumento da escravidão, os negros, viram tanto suas mulheres e filhos servirem de objeto sexual dos brancos, criaram um falus gigante para possuírem os seus senhores no imaginário.

O poeta se transforma neste Saci libertino e deixa fluir sua poesia gilbertina, cheia de erotismo e travessuras poéticas. Para isso, usou do seguinte: o mapa do anti-go estado de Goiás (quando ainda não se havia criado o estado do Tocantins) era com-prido, como um falo que possuía o Brasil por dentro. O poeta se veste o eu lírico com a “roupa” do mapa do estado de Goiás e, assim mascarado, pôde carnavalizar todos os setores culturais de seu querido Goiás.

Concedamos voz ao poeta:

Canta, musa, a peripécia, as aventuras, e a

sub-versão do anti-herói que um dia, interrompendo os presságios dos caiporas, regressou à sua terra natal

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encerrando nos moirões, gemendo sobre as cancelas, ou pulando debochado e sensual no seu pé

de vento na capoeira e nos fundões de Goiás (TELES, 1986, p. 171).

Nos primeiros versos deste poema épico, mas de um épico às avessas o eu lírico se dirige à musa para que esta cante suas aventuras de poeta-saci, anti-herói, que um dia seguiu seu próprio caminho, mas que hoje retoma a sua terra, onde ficara seu cora-ção. A última palavra do primeiro verso (sub), ardilosamente separada de (versão), do verso seguinte, chama atenção para as subversões do anti-herói. Tanto o Saci quanto o poeta têm deixado várias estórias pelos lugares que percorreram. Muitas dessas narra-tivas não passam de meras ficções: assim como o Saci, o poeta carrega a sua diabrura como um estigma.

Quanto mais íntimo se torna da linguagem, mais se dá ao luxo de fazer suas sub – / versões com as palavras, suas travessuras poéticas e eróticas. Por isso, toda a malí-cia do negrinho de uma perna só, é transferida para o poeta. O Saci, figura simbólica em toda obra, representará a esperteza, a malícia, a perspicácia e toda a sabedoria de Gilberto Mendonça Teles. Suas narrativas terão sabor de malícia, amor, sexo. O cio, a vontade extrema de deglutir a palavra como objeto afrodisíaco, buscando o prazer de e na linguagem, todo o prazer das palavras, da poesia, da língua portuguesa, de Goiás. A lenda do Saci, com todos os seus segredos, dará maior conotação mitológica à poesia de G. M. T., que não conhece fronteiras, nunca teve medo, atravessou todas as passa-gens que o poético exigiu.

Com muito humor, o eu poético fala sem medo de aventuras, descobertas, amo-res de infância nos quintais, dos segredinhos de família que deveriam ficar entre qua-tro paredes. As peraltices de um poetinha que, desde pequeno, já chamava atenção do mundo com as músicas “quase membi de sua flauta, travessa e (transversa)” (TELES, 1986, p. 171), isto é, os sons melancólicos, emocionantes, sedutores de sua flauta, que levantava as saias das meninas e estas se encostavam aos vãos das paredes encardidas e cheias de picumãs. Isto ocorria nas conversinhas da cozinha ou em qualquer outra situação oportuna:

Os seus amores de infância e os segredos de família, estes se cantam no som quase membi de uma flauta na parede enferrujada, onde há silêncios rombudos e enrugados pêlos vãos, no brilho dos picumãs, nos cochichos da cozinha e no martelo da tosse na solidão dos quintais.

[...]

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que falam sempre de lado, endurecendo seus dedos, dando risinhos locais e se enrustindo no charme da continência geral.

E canta mais, moça de olhos

morenos e companheira antiga dos incontáveis

retornos. Canta a ti mesma, o teu murmúrio e certeza, tua voz interior, tua presença discreta,

a limpa categoria informal que te faz múltipla,

harmonizando o semestre em forma de água e de terra e te pondo o perfil dos dias, meses e anos

com esses clarões capricórnios de dezembro (TELES, 1986, p. 171).

Na terceira estrofe deste fragmento, encontramos o eu poético, à maneira dos clássicos, pedindo à musa, figurativizada pela garota, que cante as meninas de Goiás, as moças hipócritas e medrosas das cidadezinhas e os intelectuais enrustidos e meti-dos a comunistas, mas que aderiram logo à revolução militar de 1964. Em seguida, invoca a musa poesia, um canto especial. Pede que mencione a “moça de olhos more-nos / e companheira antiga dos incontáveis / retormore-nos” (TELES, 1986, p. 171). Dona Maria, esposa e amiga, companhia discreta, necessária e muito especial na vida do poeta. Esta mulher autêntica, múltipla, faz que cada ano de sua existência, sob o sig-no de capricórnio de dezembro, seja, para o poeta, um doce conforto e uma contínua esperança na vida:

E canta ainda mais, Iara, encanta o azul da inconstância e a permanência real dos prodígios e fantasmas,

as negras superstições que vão crescendo e polindo por dentro a consolação do meu poder de denúncia ou de revolta, nem sei. Sei é que haverá mais ânimo (ou mais feitiço, talvez) para ampliar minha estória além das linhas do mapa e aos quatro cantos do mundo que escondo no meu Goiás.

Canta, canta, meu surrão,

deixa escoar tua voz, esse tecido de nuvens

rolando sobre o papel. Bem ou mal, é minha estória. Tem seu começo e seu fim. E tem seu meio e mensagem. Tem estas rimas, seus pés, mas deixa apenas um rasto, uma pegada canhota, alguma coisa engraçada

que se condensa e dilui antes que os nomes retomem à vala comum e o medo os amplie na pupila

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Aqui fico e pulo aqui.

Deixo um pouco de fumaça e a memória de um saci (TELES, 1986, p. 171) Segue o eu poético cantando o seu amor por tudo que lembra seu Estado. A pai-xão por sua terra faz o poeta que, na segunda parte de Saciologia Goiana, vai-se transformar em Camongo, cantar aos quatro ventos da terra, não apenas a beleza da língua portuguesa, mas também a beleza de seu Goiás, de seu povo. De acordo com Campomizzi Filho (1988, p. 64), “a arquitetura lusa se ajustava às condições e às va-riações climáticas e aproveitava o material local abundante, de maneira a registrar a sensibilidade do construtor”. Goiás, por exemplo, perdia a tantas jornadas, sua gen-te sem maiores contatos com o mar, as notícias atingindo as províncias já algen-teradas ao sabor de seus condutores... Muitas vezes, os duendes sopram com o vento ou ba-tem nas janelas com a chuva fina, sempre causando arrepios. Os sortilégios exisba-tem. As bruxas estão no ar. Certas figuras percorrem normalmente as estradas. Uma delas é o Saci. Por meio delas Gilberto Mendonça Teles mostrou esse Goiás misterioso e maravilhoso ao mundo. Aproveitou o abundante material histórico e geográfico e fez dele poesia.

O sertão goiano, com sua Iara encantada, seus fantasmas e superstições é exalta-da neste poema épico. As estórias exalta-da boquinha exalta-da noite são ampliaexalta-das pelos sertane-jos. Enquanto o vento dá seu assovio estridente, os contadores de causos acrescentam mais mistérios e feitiços aos fatos, que dizem, acontecidos e fazendo do sertão um am-biente mais misterioso do que parece à primeira vista. Esta epopeia goiana descreve os encantos do Estado, a começar por sua Iara, a sereia do sertão; os sentimentos reli-giosos baseados no temor ou na ignorância, e que induzem a adotar falsos deveres, re-cear coisas fantásticas, todas as misteriosas estórias ou aquelas que sãoapenas ditas, mas não passam de estórias, crenças, presságios tirados de fatos apenas fortuitos.

Esse surrão é preciso ser revelado para que conheçam Goiás. Mas não existe fi-gura mais encantada destes ermos, com seus caminhos e descaminhos, do que a figu-ra do Saci. Pafigu-ra falar desse duende, o poeta torna-se a própria entidade fantástica e faz uma descrição “saciológica”, uma vez que com a alma do Saci torna-se um pesquisador das lendas e fatos de Goiás, utilizando-se sempre da saciologia e da lógica para falar a ver-dade. O poeta faz, também, uma descrição “sacio-lógica”, pois como poeta-saci o nosso cantor conta suas travessuras eróticas, desde quando era garotinho e seduzia as meni-nas e as encostava contra as “paredes com sua flauta enferrujada, onde há silêncios rombudos / e enrugado pelos vãos, no brilho dos picumãs / no cochicho da cozinha e no martelo da tosse / na solidão dos quintais” (TELES, 1986, p. 171). No silêncio destes ermos, o poetinha de uma perna só e fálica deixava o seu cio pueril apertar as entidades também fantásticas do sertão. Pois o Saci não perdoa ninguém, sobretudo os que lhe foram infiéis na amizade, os esquerdistas de fachada que dominavam os meios intelectuais de Goiânia, cidade que o viu crescer e que ele viu se transformar e perder a tranquilidade provinciana de que o poeta tanto gostava.

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As estórias do poeta-saci, bem ou mal, são verdades, “têm seu começo. E têm seu meio e mensagem, / Tem suas rimas, seus pés, mas deixam apenas um rasto /de uma pegada canhota” TELES, 1986, p. 171). é o que nos diz o poeta. Estas informações não são falsas, este poema épico fala de Goiás e do poeta, os dois estão unidos por meio do amor. Através desta relação amorosa G. M. T. se tornou o poeta que agora vemos: ma-licioso, prosaico, mas poético, entidade fantástica, mas vivo e ativo: um poeta-profes-sor-Saci, mas por serSaci, tem gorro vermelho na cabeça e a pegada canhota. Embora o coração, como ele mesmo o diz, o coração continua batendo as pernas por ai.

Feliz daquele que conseguir roubar-lhe o chapéu. Segundo Cirlot (1984, p 156), o chapéu é o símbolo de ideias, pensamentos. “Tomar um chapéu corresponde a uma posição, expressa o desejo de participação desta ou entrar na posse das qualidades que lhe são inerentes”.Destarte, pretender pegar o chapéu (gorro) do poeta-Saci, signifi-ca o desejo de participar de suas ideias ou conhecimentos, ou ainda, usufruir de suas influências e sua amizade. Quando adolescente brigou com um colega que lhe tomou o chapéu e o jogou num galho de árvore. Apenas com dezesseis anos, Gilberto avan-çou furioso contra o amigo, tomou um soco no olho (que ficou roxo) mas dominou-o, montou-lhe na barriga e, no momento de revidar o soco, teve dó do seu amigo que, perplexo, o viu sair de cima sem nenhuma desforra, a não ser a da desmoralização na frente de duas amigas que os acompanhava no passeio campestre.

Entretanto, o chapéu do poeta não é comum. É uma carapuça vermelha, um bar-rete cônico. O cone é uma figura geométrica que participa do círculo e do triângulo. Para Chevalier & Gheerbrant (1990, p. 27), “o círculo é um ponto; participa da perfei-ção do ponto. Por conseguinte, o ponto e o círculo possuem propriedades simbólicas comuns: perfeição, homogeneidade, ausência de distinção ou divisão”. Neste aspecto, é curioso observar que o barrete é uma representação geométrica em que estão inse-ridos o círculo e o triângulo. Tanto uma figura, quanto à outra representam a perfeita união entre Eros-poesia, o poeta-Psique e a volúpia. O prazer extremo é o centro desse círculo amoroso;é o ponto de perfeição desta união, representado aqui pelo barrete vermelho, símbolo de poder do autor de Saciologia Goiana.

Sendo o poeta dono desse mágico barrete-mágico, todos querem possuir tal po-der. Amigos e inimigos querem por a mão no gorro do poeta-Saci. Até a crítica, que tanto fez alusão pérfida no passado, agora em vez das antigas indiretas, prefere vestir a carapuça do autor de Saciologia Goiana tomar para si as dores do poeta e, desta forma, conseguir o privilégio de usufruir de seus poderes.

Em Saciologia Goiana (TELES, 1982) a poesia gilbertina aparece sob o signo da volúpia e da unidade. Se o barrete, arrematado em bico, é um símbolo dessa centrali-zação poética, a perna também traduz esse ponto de encontro. Pulando com um pé só, a perna fálica do Saci traz à tona a vigorosa poesia gilbertina, sem censura. De acordo com Juan-Eduardo Cirlot (1984, p. 459), “a perna nos remete a pedestal e, cabalisti-camente, corresponde a qualidades ligadas a firmeza e a esplendor”. A poesia erótica se manifesta com intensidade nesta fase gilbertina. A perna é a extensão do falo, é a

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representação do pênis e símbolo de fecundidade da natureza, do poder gerador e fon-te canal do sémen. A perna única reproduz a imagem da homogeneidade e perfeição do equilíbrio da atual força criadora que atua através da volúpia, filha do encontro in-tegral entre o poeta e sua poesia, entre Psique e Eros. O Saci tem apenas uma perna, mas nesta unidade está implantada a força e o equilíbrio de todos os membros do ser humano. Se a perna é extensão do falo, como afirmamos, este, segundo J. Chevalier e A. Gheerbrant, 1990, p. 418) “é chamado o sétimo membro do homem: ele é o centro e em torno dele seramificam as pernas, os braços, a coluna vertebral por onde corre o sêmen e a cabeça onde se forma. De acordo com Sepher Yerira, preenche uma função, não somente geradora, mas equilibradora do plano das estruturas do homem e da or-dem do mundo. Vem daí que esse sétimo membro, fator de equilíbrio na estrutura e no dinamismo humanos, seja relacionado com o sétimo dia da criação, dia do repouso, e com o justo, cujo papel é o de sustentar e equilibrar o mundo. Sob representação diver-sa, ele designa a força criadora e é venerado como a origem da vida”. Neste sentido, podemos afirmar que a perna saciológica representa dentro da obra gilbertina o ponto de encontro, o equilíbrio entre o poeta e a poesia, que nós chamamos de volúpia poé-tica. Deste único e poderoso, surge uma poética saciológica, insaciável, erótica, fálica e social.

Esta tendência para o social pode ser confirmada da seguinte maneira: Ora, antes de a perna ser um símbolo fálico, ela é, também, um vínculo social e “permi-te as aproximações, facilita os contatos, suprime as distâncias. Reves“permi-te-se, portanto, de importância social” (TELES, 1982, p. 418). Em Saciologia Goiana acontece essa aproximação do poeta com o seu estado, seu povo e as suas lendas. O Saci é uma figura lendária, percorre esse chão goiano cheio de peripécias, onde o fantástico predomina com todas as letras, tanto na beleza física como nas suas histórias.

Neste poema Gilberto Mendonça Teles faz contar o seu surrão goiano e deixa rolar sobre o papel esta história de amor, sem começo e sem fim. “E tem seu meio e mensagem. / Tem suas rimas, seus pés, mas deixa apenas um rasto / uma pegada canhota” (TELES, 1986, p.171), para enganar aqueles que pretendem segui-lo e pra-ticar uma traição. Agora quem quiser acompanhá-lo terá que estar atento às suas dicas e ter cuidado com o rasto falso da fumaça e memória de Saci. “Alguns folclores atri-buem poderes benéficos à fumaça, que supõem possuir uma qualidade mágica para remover e afugentar as desgraças de homens, animais e plantas” (CIRLOT, 1984, p. 266). Esta informação endossa nossa tese de que quando o poeta afirma que deixa um pouco de fumaça na memória de um Saci, quer, desta forma, espantar o mau agouro dos invejosos.

Saciologia Goiana é uma dádiva à poesia brasileira, pois conforme afirma Carlos Augusto Corrêa:

A poesia brasileira precisava de uma obra, que, no momento, resumisse o resultado de seus setenta anos de vida moderna. Se foi lírico e épico, se não

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foi imediatamente engajada, se foi isso ou aquilo, ou aquilo outro, nada im-porta. Gilberto Mendonça Teles é poeta. Poeta de vivência, imaginação, de história, estaria, de geografia, de mistérios, sugestões, e sobretudo, de ritmo e de som. E deu, com o livro, não só o pulo do Saci. Deu o pulo do gato para alguns que não criam em sua capacidade infindável de avançar (CORRÊA, 1986, p. 331).

Acrescentamos ainda que G. M. T. demonstrou conhecer profundamente o po-ético, deu uma aula de verdadeira poesia. Nesta lição, vimos um misto de mágico, fi-losófico, poeta-Saci, homem perspicaz, de inteligência invejável. E, realmente, deu não apenas o pulo do Saci, pulo de malandro, de sábio, mas o verdadeiro pulo de gato. Deste pulo salta aos nossos olhos um poeta criativo, liberado de qualquer preconceito, que fala amplamente do amor com humor e ironia e faz isso com o poder de um doutor da linguagem, o doutor da poesia:

Para o meu novo livro de poemas Preciso consultar urgentemente A crítica, o leitor e as livrarias. Primeiro, uma pesquisa de mercado Me indicará as próximas tendências Dos seminários críticos da Europa. Alguém dirá que o tema principal Dos meus versos é sempre um antiquado Donjuanismo, sem graves conseqüências. Outro mais entendido e mais afeito À leitura formal, dirá que falta Um pouco de formol ou inseticida para o meu sestro de metalinguagem, o que é, para os críticos, sinal

do mais insipiente engajamento. Enfim, não faltará quem me provoque Dizendo: É de Goiás e tem bodoque... Eu fico tão feliz que me comovo

E penso até em poetar de novo (TELES, 1982, p. 21).

É notável como o poeta Saci é impiedoso, não perdoa aqueles que, um dia, du-vidaram da sua capacidade. Com o poder mágico do Saci, pode, agora, brincar com

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todos e ironicamente diz que vai escrever um novo livro de poemas, mas para isso pre-cisa consultar a critica, o leitor e as livrarias. O que afirma não passa de mera zomba-ria, pois a opinião dos outros é o que menos preocupa ao poeta-Saci, que já se libertou das convenções preestabelecidas por críticos, sejam brasileiros ou europeus. Além do mais o seu “Prefácio-Poema” tanto pela forma como pelo conteúdo, procura pôr em ridículo os movimentos e as teorias que se apresentam como inovadores. O poeta sabe que, em arte, todas as novidades tiveram seus antecessores.

No segundo terceto, o poema é mais mordaz ainda. Fala que esta consulta se faz necessária porque lhe indicará as “próximas tendências / dos seminários críticos da Europa” (TELES, 1982, p. 21). O que realmente acontece é o oposto, já que o profes-sor-poeta-crítico-Saci-Gilberto Mendonça é sempre convidado especial para ministrar cursos e realizar conferências nos seminários e rodas literárias da Europa. Todos os consagrados críticos seguem suas pegadas, mas como esse Saci é muito esperto não mostra tudo o que sabe, dá sempre o pulo do gato com a sua pegada canhota. Quem tenta segui-lo, pode cair, muitas vezes, em armadilhas do esperto duende.

No terceto que se segue, aparece com veemência o seu escárnio àqueles que se dizem esclarecidos na arte de fazer versos e comentam, por despeito, muitas vezes, que os versos de G. M. T. têm sempre um “antiquado / donjuanismo, sem graves con-sequências” (TELES, 1982, p. 21). Outro que afirma ter uma bagagem literária ainda maior e ser uma mina de saber, pode dizer que na poesia do perna-fálica, falta um

pou-co de formol ou inseticida, ou ainda que seu sestro de metalinguagem é sinal / do mais

insipiente engajamento. Ora, o poeta está sempre sujeito a estas ironias invejosas. Mas muitas vezes, o crítico que afirma tais conclusões exprime-as de modo contrário do que pensa ou sente, e isto quase sempre acontece, quando não consegue tirar o gorro do poeta Saci ou seguir as pegadas destras do Saci, o que dificilmente conseguirá. Na verdade, a sua ironia humorística tem muito a ver com as teorias literárias mal assimi-ladas pelos esquerdistas. Tanto que o “engajamento” de que fala e de ordem política, quando o poeta sabe que têm de estar engajado é na sua linguagem.

Mas é claro, que para quem tem poderes especiais, não faltará quem o provoque, dizendo: É de Goiás e tem bodoque... Muitos intelectuais se surpreendem quando sa-bem que Gilberto se formou e se fez em Goiás. Para esses intelectulóides do litoral, que confundem Goiás e Mato Grosso por aqui só há índios. Pode ter certeza que sim, há ín-dio e há saci. O ínín-dio é perigoso, é antropófago e tem bodoque. Sua flecha nunca erra, sempre bate para debelar e ruir por terra os invejosos. O Saci é ainda mais diabólico, é capaz de fazer tantas peripécias contra os falsos amigos e, com isso, que este se diz tão feliz e se comove e pensa até em poetar de novo. É muito interessante a vivacidade desse Saci libertino / gilbertino que, de um lado, compõe versos certeiros, envenena-dos para as malquerenças; e, por outro, impregnaenvenena-dos de poesia, dedicação e amor para aqueles que sabem verdadeiramente valorizar o seu trabalho.

Outra tônica na obra Saciologia Goiana é, sem dúvida, a casa paterna e a infân-cia. Gaston Bachelard, em A Poética do Espaço, afirma que “a casa e lembranças

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perdi-das para sempre vivem em nós. Em nós, insistem em reviver, como se esperassem de nós um suplemento do ser. Temos uma espécie de remorso por não ter vivido aquele lugar profundamente. Esse remorso atinge a alma. Surge o passado, nos faz submer-gir” (BACHELARD, 1988, p. 8). Inúmeros poemas em Saciologia Goiana trazem o signo da infância do poeta. Estas reminiscências vivem até hoje no poeta-Saci. Os ver-des anos aparecem sempre como uma época boa, ou que ficou boa na lembrança, tal-vez porque ele não se pôde ou não se soube desfrutá-la bastante, na ocasião, mas agora sente certo remorso por não tê-la aproveitado plenamente. O resultado dessa recorda-ção podemos encontrá-lo, por exemplo, no poema “Frutas”:

É tempo de jabuticaba em Bela Vista. – Cada pé custa cinqüenta mil-réis, mas pode chupar uma hora por cinco.

A mão colhe depressa a maior, a mais negra, O dente fere a casca e na boca ressoa

O estalido que a língua absorve, E degusta, ininterrupta.

Às vezes no céu da boca aferroada Zombeteira do marimbondo invasor. Mas é preciso comer depressa,

é preciso comer mais, e mais.

De repente, o acontecimento mais doce: Os seios trêmulos da namorada insensível Cantam nos galhos (TELES, 1986, p. 219).

Os versos da primeira estrofe testemunham a saudade do tempo de jabuticabas, em Bela Vista, a cidade natal do poeta. Situada próxima da Capital do Estado, Goiâ-nia, Bela Vista tomou-se literalmente bela e alegra a vista de qualquer criança (e adul-tos também), na época das jabuticabas. Quem pode pagar a locação de um pé, ou de horas por sua presença no jabuticabal, tem o direito de saborear o negro e doce fruto à vontade. É o tempo das “Frutas”, palavras que no Sudoeste do Estado perde o seu sentido de arquissemema para significar apenas jabuticabas. A jabuticaba é uma das frutas que lembra Goiás, pela quantidade que pode ser encontrada por esta região. No tempo desta “pretinha”, os meninos fazem festas debaixo das jabuticabeiras. Pagam--se, chupam com toda liberdade.

Na segunda estrofe, o poeta sugere o erotismo pueril daquele menino-Saci, que degusta jabuticaba e outras frutas bonitas e apetitosas que surgirem: alguma meni-ninha gulosa. Os versos: o dente fere a casca e na boca ressoa / o estalido que a

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lín-gua absorve, são amplamente eróticas. Segundo Cirlot (1984), dente significa força, energia sexual, portanto, quando o poeta afirma que o dente fere a casca da fruta, está sugerindo a explosão sexual do menino-Saci ao saborear os prazeres da vida. É uma verdadeira volúpia que faz sua boca estalar a língua (outro símbolo fálico), absorver, degustar sem querer nunca mais. Num poema de Falavra, “Mordida”, o poeta dirá: “mas o meu molar / não vai te amolar: / vai te deixar contraída / para o melhor da mor-dida” (TELES, 1986, p. 219).

Os versos do terceiro quarteto completam essa ideia da energia sexual, ou desejo de sentir e aproveitar o sabor das frutas de Bela Vista. Mas, muitas vezes, no afã de comer mais, e mais, algumas das jabuticabas transformam-se em frutas devoradoras de lín-gua, numa alusão ao canibalismo amoroso, onde as frutas (mulheres) aparecem com bocas que mordem e mastigam. De acordo com Affonso Romano de Sant’Anna “Me-traux afirma que índios supunham que as primeiras mulheres Chaco possuíam dentes no interior da vagina, e que se utilizavam deles para comer” (SANT’ANNA, 1985, p. 78). Esse medo da vagina dentada” ou a fruta devoradora implica duas situações na vida sexual do menino-Saci. De um lado implícita a castração ou a proibição de não po-der chupar demais e de outro lado nos permite encontrar o poeta-menino-Saci tentando decifrar o enigma (numa lembrança da esfinge devoradora de homens) da jabuticaba--mulher, de volúpia doce e tortuosa, conjunto de prazer e dor. A língua absorve de dentro da casca o mel e o veneno (ferroada) zombeteira do marimbondo invasor. / Mas é preciso

comer depressa, é preciso comer mais e mais. A picada do marimbondo castra o desejo do menino-Saci de sempre ferroar, mais e mais, com sua perninha – esporão as jabuticabas – meninas de Bela Vista, ou de Goiânia, que iam por lá em época das jabuticabas.

Na última estrofe, o erotismo torna-se plenamente objetivo, com o acontecimen-to mais doce: Os seios trêmulos da namorada insensível / cantam nos galhos. Estes versos evidenciam que o poetinha-Saci sacudiu a árvore e as frutinhascaíram todas, nos seus braços, é claro, ou pelo menos é o que ele conta, porque estes momentos po-dem apenas ter sido desejados, mas não foram realizados. Ou ainda, alguma situação parecida pode ter acontecido, mas o menino não soube aproveitá-la e, por um motivo, ou por outro, a infância e seus desejos sexuais realizados ou não são lembrados poeti-camente com certo humor, mas, antes de tudo, com saudade.

Outro momento de retomo à infância e às peraltices eróticas do poetinha-Saci está bem caracterizado no poema “Festa”, como se pode verificar:

Ergo no mastro de São João A bandeira em festa

Do meu primeiro alumbramento. Sob a cumplicidade do lápis, Deslizei os meus olhos Por baixo da carteira E vi

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A sarça-ardendo Nos cabelos da Aurora. Soube depois que desmaiou De mal-súbito, na escola. À noite, nas paredes,

A lua do remorso (TELES, 1986, p. 223).

Nas pequenas cidades de Goiás, São João e Santo Antônio são festas que fazem o povo vibrar com seus fogos, trajes e músicas juninas. Todas as pessoas se aquecem sob o calor daquele clima de alegria e amor. Os corações explodem de paixão e os corpos, de desejos. Meninos e meninas encontram um clima propício para deixarem fluir li-vremente a iniciação à prática do ato sexual.

Nos primeiros versos, o poeta deixa entrever que foi numa dessas festas de São João que teve seu primeiro alumbramento, numa evidente paródia ao poema “Evo-cação do Recife” de Manuel Bandeira, que também conta o primeiro alumbramento. Porém o “poeta menor” (que é o maior) apenas viu uma moça nua na fonte e o “poeta da linguagem”, através da sua poesia, conquistou uma garota que foi a Aurora da sua vida sexual. A Aurora, com seu fogo de amor, se ofereceu dos cabelos aos pés e a perni-nha do Saci-menino-poeta deu o seu primeiro pulo para o sexo (TELES, 1986, p. 223). Na verdade, o poema alude ao fato de aluno primário deixar cair o lápis (cf. a perna do Saci) e olhar por baixo da carteira para ver o sexo das meninas. Na única vez que o fez, vendo pela primeira vez o pentelho na mulher, esta acabou desmaiando, por um ata-que súbito ata-que o menino atribuiu ao seu ato de olhar, e ver (TELES, ano 1982, p. 21).

Nas duas últimas estrofes, o poeta afirma que “soube depois que desmaiou / de mal-súbito, na escola” (TELES, 1982, p. 21). Será que a menina teve um sacizinho mesmo? Se teve ou não, o poeta-Saci-amante não teve remorso, deixou que a lua pran-teasse as paredes comas suas lágrimas de remorso prateado. E o poetinha – Saci saiu por Goiás pulando com a sua única perna e aprontando mais reinações... e poesia.

O poeta-Saci percorreu todo o mundo, mas sua alma ficou nos ermos Goianos.

Saciologia Goiana, já se disse, é livro de amor dedicado a Goiás. O poeta dá uma lição sobre seu estado. Na geografia, aparecem as fronteiras, todo o sertão goiano é descri-to, incluindo localidades e hidrografia. Para comprovarmos esta afirmação, escolhe-mos um poema que sintetiza todo esse amor por Goiás. É notável o exemplo de paixão pela terra que o poema “Lira Goiana” traduz. Observemos:

Repartam meu corpo pelos rios de Goiás:

a mão esquerda acariciando as águas do Araguaia, a direita desenhando os rumos do Paranaíba, os pés brincando nas águas do Aporé e do Verdão,

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a cabeça na junção de Araguaia e Tocantins (quero governar daí as artimanhas e latifúndios), os joelhos no Rio dos Bois e no Caiapó,

o sexo bem enterrado na lama do Meia-Ponte, Mas deixem minha alma no Rio das Almas, deixem meu coração batendo no Rio Turvo, deixem minha língua nas areias do Corumbá os meus olhos secando nalguma lagoa

para a alegria dos bares, dos lobos e das piranhas traidoras.

Ah! Deixem também meu cachimbo fumegando nos borrifos de luz da Cachoeira Dourada: quero ser como um instante de arco-íris

nos olhos das mulheres de Goiás (TELES,1986, p. 247).

Gilberto Mendonça Teles se inspirou em Mário de Andrade, poeta paulista que se tornou um símbolo de paixão pelo seu estado e cidade São Paulo. O autor da

Pauli-ceia Desvairada, no poema “Quando eu Morrer”, do livro Lira Paulistana, deixou re-gistrado que queria ter seu corpo distribuído, para seu eterno repouso, nos lugares da cidade de São Paulo, que mais marcaram sua vida. (ANDRADE, 1976, p. 80). Fazendo uma espécie de paródia, o poeta-Saci também canta seu Estado Natal, a “comoção de sua vida”, com seus amores todos feitos de caminhos, a flora, a fauna e rios de Goiás. Na sua “Lira goiana”, pede para ser distribuído pelos rios da Terra amada.

É significativo este pedido. O rio é “um símbolo ambivalente por corresponder à força criadora da natureza e do tempo. Por um lado, simboliza fertilidade e progressiva irrigação da terra; por outro, o transcurso irreversível e, em conseqüência, a morte” (CIRLOT, 1984, p. 499). Os rios de Goiás vão representar, no poema, a vida e a morte do poeta. Em consequência das duas forças que o puxam para polos opostos e da cons-ciência do limite humano, que o mantém preso à terra, Gilberto faz o seu pedido: “re-partam meu corpo pelos rios de Goiás [em cujas margens, no Norte do estado, havia graves problemas de terras, contra os índios e as pessoas pobres]: / amão esquerda [, a mão do coração, deve ficar] acariciando as águas do Araguaia, / [o rio mais querido de Goiás;] / a [mão] direita [deverá ficar] desenhando os rumos do Paranaíba” (TELES, 1986, p. 247), rio que a razão sempre pede para atravessá-lo e seguir novos rumos, em busca de reconhecimento, já que os escritores que ficam do lado de cá, com raríssimas exceções, nunca são realmente reconhecidos. Por isso recomenda o poeta que “os pés [deverão ficar] brincando nas águas do Aporé e do Verdão, / [mas] a cabeça na junção de Araguaia e Tocantins” (TELES, 1986, p. 247), no chamado “bico do papagaio”, hoje estado do Tocantins. Este é um lugar de poderosos. Sua cabeça, exposta naquele lugar de artimanhas e latifúndios, poderá comandar aquela mina de terras ou, quem sabe, governar e liquidar com a política dos latifundiários. Lembre-se, também, que

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o Palácio das Esmeraldas, sede do governo goiano, está situado na Praça Cívica, bem na confluência das Avenidas Araguaia e Tocantins. Daí a referência “quero governar daí” (TELES, 1986, p. 247). “Os joelhos [devem ficar] no Rio dos Bois e no Caiapó” (TELES, 1986, p. 247). Agora, muita atenção! O sexo deve ficar “bem enterrado na lama do Meia-Ponte” (TELES, 1986, p. 247). Neste verso, o poeta-Saci foi por demais travesso. Seu senso de jocosidade chegou ao extremo de brincar com o próprio órgão sexual. O Saci sugere que este pedaço do corpo, que já traquinou muito na vida, quan-do o poeta estiver morto, está claro que já não servirá para nada mais, por este motivo, poderá ser enterrado, isto é, bem enterrado, para ninguém achá-lo, na lama do Meia--Ponte. Este pobre rio, que passa por Goiânia, é fonte de mitos na poesia de Gilberto, como se pode ver em Saciologia Goiana.

Sua alma, “deixem no Rio das Almas” (TELES, 1986, p. 247), lugar bem apro-priado que banha a cidade de Pirenópolis, onde nasceu a sua mãe, Celuta Mendonça Teles. Seu coração deixem batendo no Rio Turvo, como se no escuro ele não acordasse para a morte e nunca parasse de sonhar e bater. Sua língua, “deixem nas areias do Corumbá” (TELES, 1986, p. 247), areiasfálicas como a língua do Saci, muito apro-priadas para falar de amor. Seus olhos devem ficar secando nalguma lagoa de lágrimas gilbertinas, para a alegria dos invejosos.

Ah! não pode ser esquecido este último pedido: seu famoso cachimbo deve ficar fu-megando eternamente e perturbando a antiga luz pura da Cachoeira Dourada. Sua fuma-ça formará um arco-íris que se confundirá com os multicores da fumafuma-ça do poeta-Saci. Com o cachimbo erigido, o poeta solta a fumaça pelo mundo afora e demonstra, através deste ato, a força e a potência do poeta-psique-Saci invulnerável e imortal. E, sobre os ares da antiga e bela Serra Dourada a fumaça do seu cachimbo deverá formar jogos de luzes que vão brilhar alegremente nos olhos das mulheres de Goiás (TELES, 1986), que o poeta ama em forma de poesia ou, então, de amor mesmo.

A consciência da finitude não perturba o desejo de imortalidade. Mesmo depois que o poeta perder o hausto que vivifica, deseja continuar em Goiás, espalhando-se por todos os rios destes ermos. Cada um levará um pedaço de seu corpo e seguirá seu inexo-rável percurso, levando consigo também uma parte da existência do autor de Saciologia

Goiana que, na sua travessia existencial, soube, como ninguém, transpor o abismo da linguagem. O abismo que existe entre o poema e a poesia. Desde Alvorada, início dessa caminhada, o poeta seguiu a ponte para o poético. Com o livro Arte de Armar, ele se armou de poesia e amor e passou de vez para a outra margem do rio poético, em que se encontra agora e sempre. Encontramos, em Saciologia Goiana, o Gilberto dono de uma poesia poderosa que tem a marca, o cachimbo, o gorro e a perna fálica do Saci.

A poesia-Eros e o poeta-psique-G. M. T. se unificaram completamente. Essa uni-dade está simbolizada, em Saciologia Goiana, através da perna única e fálica do Saci que, a cada pulo, deixa sua marca canhota cheia de volúpia e de um erotismo singular. Esses versos insaciáveis e gilbertinos não param de andar pelo mundo deixando a mar-ca do poeta goiano.

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GOIANA SACIOLOGIA: THE MEANING OF LOVE (ARMING) THE POEM

Abstract: the artwork is the most sublime expression of human feeling, hence G.

M. T. has been combined with the art of poetry to express their idolatry to “Art Arm”. Guided by the poetic ideal, the artist enters the world of chaotic and indecipherable words, where, in the silence of nameless things, he turns the enigmatic and poetic ina-nimate into an epiphany.

Keywords: Saciologia. Pleasure. Humor. Irony and poetic sense.

Referências

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