LONDRES: ESPAÇO MITIFICADO NA OBRA DE VIRGÍNIA WOOLF?
Jerfe/Lóon LuÃz CAMARGO*
I . INTRODUÇÃO
Como d i z Raymond W i l l i a m s ( 2 , p. 228 e se g u i n t e s ) , num c e r t o s e n t i d o os romances são, em sua m a i o r i a , "comunidades cognoscíveis", uma vez que e n t r e as intenções do r o m a n c i s t a e n c o n t r a -se a de m o s t r a r de que modo -se dá, e n t r e as pes; soas, um r e l a c i o n a m e n t o cognoscível e comunica v e l em essência. Em g e r a l , a trama do romance se a s s e n t a nos g r u p o s f a m i l i a r e s e nas r e d e s de r e lações s o c i a i s que os i n t e r l i g a m , a r t i c u l a n d o - s e essa e s t r u t u r a r e l a c i o n a i a d i f e r e n t e s t o p o i .
A essa dimensão sócio-espacial se a r t i c u l a rã a dimensão t e m p o r a l , a p a r t i r do que irão es t a b e l e c e r - s e os p l a n o s da história e do d i s c u r so, os q u a i s , p o r sua v e z , vão c r i a r a dinâmica e a coerência t e x t u a i s que c o n f e r e m l e g i b i l i d a d e e adesão do l e i t o r a esse t i p o de n a r r a t i v a .
A o b r a de Virgínia W o o l f i n s c r e v e - s e em ou
t r o momento da história da l i t e r a t u r a , ou s e j a , no da c r i s e da n a r j s a t i v a , que nada mais tem a v e r , p o r exemplo, com a "comunidade cognoscível" de Jane A u s t e n e com o que Raymond W i l l i a m s cha ma de "a gramática de sua m o r a l i d a d e " : r e l a c i o n a mentos explícitos, c r i s e s físicas e e s p i r i t u a i s que colocam, nesses mesmos t e r m o s , a v e r d a d e i r a substância dos r e l a c i o n a m e n t o s comunitários, co mo se a r o m a n c i s t a apenas o b s e r v a s s e , r e f l e t i s s e e r e g i s t r a s s e c o n c r e t a e c r o n o l o g i c a m e n t e a q u i l o que percebe a sua v o l t a . Mais do que i s s o , a o b r a de V i r g i n i a Woolf se c a r a c t e r i z a p e l a r u p t u r a com t o d a e q u a l q u e r l i n e a r i d a d e , e p e l a i n s tauração do m u l t i p e r s p e c t i v i s m o espaço-temporal. E l a v a i d e m o l i n d o , pouco a pouco, os r e c u r s o s d e s c r i t i v o s e n a r r a t i v o s próprios do romance t r a d i c i o n a l . Em a l g u n s momentos, os personagens são p r a t i c a m e n t e a b o l i d o s ; o enredo não tem grande importância, a trama se c o s t u r a p o r um f i o e x t r e mamente tênue, e os e f e i t o s p e r s u a s i v o s são subs
tituídos p o r e f e i t o s a l u s i v o s e e v o c a t i v o s .
Assim, ao s u b s t i t u i r a argumentação de n a t u r e z a lógica p o r uma argumentação analógica, subs t i t u t i v a e metafórica, a e s c r i t o r a rompe com a retórica t r a d i c i o n a l do romance. Esse mecanismo anti-retórico (que não d e i x a de i m p l i c a r em ou
t r o t i p o de retórica) l e m b r a m u i t o os p r o c e d i mentos técnicos do cinema, e, p o r t a n t o , t a l r e c u r s o ã substituição metafórica nos remete às técnicas de c o r t e e fusão dos quadros cinemato-gráficos. A n a r r a t i v a passa a i m p r e g n a r - s e de d e s l o c a m e n t o s a b r u p t o s de s e n t i d o e da i m b r i c a ção l e n t a e suave de s e n t i d o s , a p a r t i r do i s o l a mento de um e l e m e n t o s i g n i f i c a t i v o de um p l a n o que terminará p o r f u n d i r - s e com o u t r o e l e m e n t o s i g n i f i c a t i v o de o u t r o p l a n o , c r i a n d o uma c o n t i . n u i d a d e signo-simbólica.
Esse a s p e c t o da o b r a de Virgínia Woolf tem s i d o p r i v i l e g i a d o p e l a grande m a i o r i a de seus p r i n c i p a i s críticos, ao l a d o das técnicas do f l u xo de consciência, do monólogo i n t e r i o r , dos i n terlúdios poéticos (em Ai OH dai , p o r exemplo) , da análise da influência de Bergson no t r a t a m e n t o do tempo, e t c . Seus biógrafos, p o r o u t r o l a do, quase sempre se atêm mais ao chamado Círculo de Bloomsbury, g r u p o s e d i a d o no b a i r r o l o n d r i n o que, em função da importância e do fascínio e x e r e i d o p e l o g r u p o aí formado p o r Virgínia W o o l f , C l i v e B e l l , L y t t o n S t r a c h e y , Maynard Keynes, Roger F r y e o u t r o s , passa a s e r m u i t o mais e n f o cado, nas b i o g r a f i a s , do que a Londres p r e s e n t i f i c a d a em seu t e x t o , ou p o r e l e s u g e r i d a .
I I . LONDRES IMAGINÂRIA/LONDRES CIDADE-LETRADA
Pretendemos f a z e r , a q u i , uma abordagem em ou t r a direção — a da Londres cidade-imaginária e a da Londres c i d a d e l e t r a d a . L o n d r e s , c i d a d e -imaginária, é um espaço onírico e sonhado que g u a r d a pouquíssima relação com a Londres e f e t i v a e c o n c r e t a da época em que v i v e u a e s c r i t o r a
( 1 8 8 2 - 1 9 4 1 ) . E l a p o r c e r t o não i g n o r a v a , p o r exemplo, os terríveis c o n t r a s t e s e n t r e o E a s t End e o West End l o n d r i n o s . Nem e r a p r e c i s o co nhecer p e s s o a l m e n t e a "Londres t e n e b r o s a " r e p r e sentada p e l o E a s t End, uma vez que, já em f i n s do século XIX, um grande número de o b r a s t r a z i a um r e t r a t o s o m b r i o das condições de v i d a aí p r e d o m i n a n t e s . Convém l e m b r a r , porém, que estamos d i a n t e de uma e s c r i t o r a c u j a última preocupação t e r i a s i d o a de f a z e r um r e t r a t o r e a l i s t a do que quer que f o s s e . Sua ficção e x p l o r a as s e n s i b i l i dades no c o n t e x t o das relações s o c i a i s , o que a l e v o u (e a l e v a até h o j e ) a s e r m u i t a s vezes con denada p o r a l g o que, d i f u s a m e n t e , poderíamos cha mar de " e s t e t i c i s m e esnobe", e p o r sua a p a r e n t e complacência com a c l a s s e s o c i a l a que p e r t e n c i a . Em A Kç.tü>iÁ.ca. da ficção, p o r exemplo, Wayne
B o o t h a t a c a a e s c r i t o r a p o r "uma f u g a p a r a um u n i v e r s o de v a l o r e s p e s s o a i s " , e, tomando-a p o r exemplo, a d v e r t e os e s c r i t o r e s a se preocuparem menos com técnicas de uma " o b j e t i v i d a d e de super
fície" e mais com o que chama de " v e r d a d e i r a ob j e t i v i d a d e " ( 1 , p. 1 3 5 ) . A a t i t u d e de Virgínia W o o l f é mais complexa e irônica do que os press
s u p o s t o s p o p u l i s t a s de B o o t h p o d e r i a m a c e i t a r , uma vez que ao crítico p a r e c e c o n s t r a n g e r uma abordagem r e g i d a , p r i m e i r o e f u n d a m e n t a l m e n t e , p o r um r e q u i n t a d o e s t e t i c i s m o , e só d e p o i s p e l a percepção, nunca panfletária, das questões so c i a i s .
A s s i m , enquanto o b j e t o físico, a Londres de
OnJLando é, em p r i m e i r o l u g a r , a c i d a d e onde a sucessão histórico-temporal, mais ou menos c r o n o lógica, se c o n f u n d e com a sucessão físico-tempo r a l , com a relação n o i t e e d i a e com o t r a n s c u r so das estações do ano. A i n d a que j a m a i s s e j a o f i o c o n d u t o r da n a r r a t i v a , a i n t e r v a l o s r e g u l a r e s s u r g e , nesse romance, uma descrição da m i j l celânea e do caos urbanos dessa "Londres t e n e b r o
"Londres mesmo t i n h a mudado completamente desde a
ú l t i m a vez em que a v i r a . E n t ã o , l e m b r a v a - s e , era um amontoado de pequenas c a s a s , negras e carrancu das. ( . . . ) As ruas empedradas desprendiam c h e i r o s de r e s t o s e f e z e s " . ( 5 , p. 92)
O pensamento utópico sempre concebeu o espa ço urbano sonhado como mãe. E, ao pensamento éti co-estético de Virgínia W o o l f , essa aspiração não e r a de t o d o e s t r a n h a . Como m u l h e r de l e t r a s e v a n g u a r d i s t a , c r i a d a no período v i t o r i a n o , e r a seu d e s e j o a cisão, a r u p t u r a com a l o n g a n o i t e de exacerbada m a s c u l i n i d a d e r e p r e s e n t a d a p o r es se mesmo período. Mais do que a modernidade ( a f i n a l , Londres e r a a metrópole p o r excelência das civilizações i n d u s t r i a i s ) , e l a a s p i r a v a ao moder nismo.
A Londres i m a g i n a d a , u t o p i c a m e n t e sonhada, e r a a mãe. Mãe, porque d e v e r i a s e r uma c i d a d e que l i b e r t a s s e a mulher da quase inevitável es cravidão i m p o s t a p e l o casamento, e, p r i n c i p a l m e n t e , p e l a d u p l a j o r n a d a de t r a b a l h o . Uma Londres de c r e c h e s e r e s t a u r a n t e s c o l e t i v o s , uma s o c i e d a de p l a n e j a d a onde até mesmo a s e x u a l i d a d e pudes^ se f l u i r com m a i o r l i b e r d a d e , e onde ao menos o p r e s s u p o s t o de alguma f e l i c i d a d e f o s s e um p r i v i
légio não e x c l u s i v a m e n t e m a s c u l i n o . A a n d r o g i n i a
d e f e n d i d a p o r V i r g i n i a W o o l f em Um teto todo
òeu , não apenas p a r a o indivíduo, mas também pa r a a s o c i e d a d e , e r a e s p i r i t u a l e de f u n d o erót_i co-platõnico.
Já a L o n d r e s c i d a d e - l e t r a d a , i s t o é, mais no s e n t i d o de comunidade i n t e l e c t u a l e e s f e r a pú b l i c a do que de ambiência r e a l ou fictícia, mas não d e i x a n d o de a b r a n g e r também esses a s p e c t o s , será sempre um tema r e c o r r e n t e em sua o b r a , em quase t o d o s os romances e, também, em sua c o r r e s pondência e seus diários. Em duas c a r t a s que es c r e v e u a E t h e l Smyth, V i r g i n i a Woolf f a l a com grande e n t u s i a s m o de L o n d r e s : a 12 de a g o s t o de 1930, d i z que a c i d a d e a mantém r e v i g o r a d a e l h e dá a tensão de que n e c e s s i t a p a r a e s c r e v e r , e, em j a n e i r o de 1 9 4 1 , pouco a n t e s de s u i c i d a r - s e , d i z que Londres é o seu único p a t r i o t i s m o — o l u g a r que evoca Chaucer, Shakespeare e D i c k e n s . Inúmeras anotações de seus diários c o n s t i t u e m uma apoteose da c i d a d e .
Para se e n t e n d e r a Londres c i d a d e - l e t r a d a , deve-se f a z e r uma imputação da sua o b r a literá r i a como tradução, reprodução, ampliação e emble ma de sua própria v i d a e de seu modo de s e r ou e s t a r no mundo. Daí a separação de Londres p r o
p r i a m e n t e d i t a , c i d a d e histórica, o p o r t o , o cen t r o f i n a n c e i r o , o espaço de l a z e r e c u l t u r a , E a s t S i d e e West S i d e , e t c , e a Londres subur bana e seus e n t o r n o s r u r a i s , p r i n c i p a l m e n t e as g a r d e n - c i t i e s , l o c a i s que, a p a r t i r do f i n a l do século X I X , p r o l i f e r a m graças ao t r a b a l h o de p i a n i f i c a d o r e s u r b a n o s socialistas-utópicos, e que, c o n t r a d i t o r i a m e n t e , vão d a r a b r i g o à a l t a c l a s s e média da q u a l f a z i a p a r t e a i n t e l e c t u a l i d a d e . À p r i m e i r a v i s t a , t r a t a r - s e - i a de uma con traposição público-privado. Não se t r a t a d i s s o , como veremos. Se Bloomsbury r e p r e s e n t a o espaço da i n t i m i d a d e , não se t r a t a de uma i n t i m i d a d e p r o t e g i d a , mas s i m i n v a d i d a . Esse u n i v e r s o do mundanismo s o c i a l e i n t e l e c t u a l , a que se soma o caráter de c i r c u i t o f e c h a d o da c o n h e c i d a a t i v i . dade s e x u a l e n t r e os membros do g r u p o , acabou p o r r e i n s t a u r a r a submissão aos padrões da mora l i d a d e pública e a alienação das q u a i s se p r e t e n d i a e s c a p a r . E, p a r a Virgínia W o o l f , a invasão
( a i n d a que i n d i r e t a ) da p r i v a c i d a d e nada mais é do que o p i o r dos a b o r r e c i m e n t o s . Daí a L o n d r e s -L o n d r e s , a q u e l a que d e v e r i a s e r o espaço público p o r excelência ( o u , senão, o espaço da a l i e n a ção, do homem d e s a r r a i g a d o e i s o l a d o ) se c o n v e r t e r , em sua o b r a , em um mundo p r i v i l e g i a d o . Se
temos uma L o n d r e s d i u r n a , mecânica, l i g a d a ao mundo do t r a b a l h o e ã arrogância da c i t y , temos também uma c i d a d e que, mesmo d u r a n t e o d i a (mas s o b r e t u d o ã n o i t e ) , é a l e g r e e d i v e r t i d a . No pas s a r das h o r a s marcadas p e l o B i g Ben, a Londres n o t u r n a e mundana a l e g o r i z a o grand monde, e es se caráter álacre da v i d a n o t u r n a é v i s t o como
c o n d i t i o s i n e qua non da e s f e r a pública do l i t e
r a t o ou da pessoa do mundo. Nas p a l a v r a s da pró p r i a e s c r i t o r a :
"Estavam se acendendo as l u z e s , e uma m u d a n ç a indes c r i t í v e l d e s c e r a sobre Londres desde a hora mati n a l . E r a como se a grande m á q u i n a , a p ó s t r a b a l h a r o d i a i n t e i r o , houvesse t e c i d o com nossa ajuda al_ guns metros de algo muito e x c i t a n t e e belo — uma trama incandescente r e l u z i n d o com olhos vermelhos, um monstro castanho-amarelado rugindo com seu h á l i to quente" ( 6 , p. 53)
Virgínia W o o l f chega a i n s i n u a r que Jane A u s t e n t e r i a s i d o a i n d a m e l h o r e s c r i t o r a do que
f o i se t i v e s s e v i a j a d o m a i s , "rodado p o r L o n d r e s num ônibus", freqüentado os l u g a r e s mundanos da c i d a d e e c o n h e c i d o os grandes t a l e n t o s da época.
0 que está em j o g o não é o indivíduo, mas uma persona que se r e v e s t e dos s i g n o s u n i v e r s a i s
da moda. Além do u n i v e r s o da mundanidade, p a r a essa L o n d r e s e x i s t e o mundo da i n t i m i d a d e p r o t e g i d a , o mundo da i m p e s s o a l i d a d e nas relações hu manas e da ausência dos c o n t a t o s primários, ca racterísticos do u n i v e r s o r u r a l . Em M/w>.
ValZotAXiy, P e t e r Walsh vê uma jovem andando p o r T r a f a l g a r Square. Sente um súbito e enorme i n t e r e s s e p o r e l a , imaginando e s t a r d i a n t e da mu l h e r com a q u a l sempre s o n h a r a . Segue-a p e l a s r u a s , e quando pensa que o grande momento se a p r o x i m a v a ,
"(···) e l a diminuiu o p a s s o , a b r i u a b o l s a , e, com um o l h a r na sua d i r e ç ã o , mas nao para e l e , um o l h a r
de despedida, l i q u i d o u a s i t u a ç ã o , afastando-o t r i u n f a l m e n t e , para sempre; e r e t i r o u a chave, a b r i u a p o r t a , desapareceu!" ( 4 , p. 58) A c i d a d e da v e l o c i d a d e e da máquina, do t i m i n g , da agitação e do m u l t i p e r s p e c t i v i s m o d i ^ r e c i o n a l reduz ao mínimo os c o n t a t o s p e s s o a i s , e o que p o d e r i a s e r alienação t o r n a - s e p r i v a c i d a d e e l i b e r d a d e i n d i v i d u a l . Essa experiência de m o v i
mento u r b a n o , uma experiência fragmentária que se t o r n o u , modernamente, uma condição irreversí^ v e l da própria percepção das c i d a d e s , tem uma r e
da i m a g l s t i c a moderna. Vamos e n c o n t r a r essa ex periência de d e s c o n t i n u i d a d e e atomização na p i n t u r a ( i m p r e s s i o n i s m o , pós-impressionismo, c u b i s mo, e t c . ) e, s o b r e t u d o , no cinema, com suas téc n i c a s de c o r t e e montagem. Em inúmeras de suas descrições de L o n d r e s , Virgínia W o o l f p a r e c e es t a r e s c r e v e n d o um r o t e i r o cinematográfico: "0 povo t r a n s b o r d a v a d a s calçadas. H a v i a m u l h e r e s com s a c a s de c o m p r a s . Crianças c o r r e n d o . S a l d o s n a s l o j a s de p a n o s . As r u a s s e a l a r g a v a m e s e e s t r e i t a v a m . L o n g a s p e r s p e c t i v a s s e e n c o l h i a m . A q u i e r a um m e r c a d o . A l i , um e n t e r r o . (...) Nada s e p o d i a v e r p o r i n t e i r o nem l e r do princípio ao f i m . 0 que s e v i a começar — como d o i s a m i g o s a t r a v e s s a n d o a r u a p a r a s e e n c o n t r a r e m — não s e v i a t e r m i n a r " . ( 5 , p . 1 7 2 - 1 7 3 )
A visão fragmentária da c i d a d e r e c e b e sem p r e uma abordagem estética que, não l h e t i r a n d o o caráter de p r o b l e m a de percepção, vem p e r t u r bar a i d e n t i d a d e do s e r , às vezes de f c r m a r a d i ^ c a l :
" D e p o i s de v i n t e m i n u t o s , o c o r p o e o espírito eram como p a p e l p i c a d o c a i n d o de um s a c o , e , n a v e r d a de, o p r o c e s s o de d i r i g i r d e p r e s s a em L o n d r e s a £
semelha-se tanto ao f i n o despedaçamento da i d e n t i dade que precede a inconsciência e talvez a pró p r i a morte, que não se sabe como afirmar t e r Orlando existido no momento presente". (5, p. 173)
I I I . A LONDRES HISTÓRICA
Uma das mais c o n h e c i d a s observações de Virgínia Woolf é a de que "em, ou p o r v o l t a de dezembro de 1910, a n a t u r e z a humana mudou". Mui_ t o se tem e s p e c u l a d o sobre as razões que a t e r i a m l e v a d o a o p t a r p o r essa d a t a : a exposição dos pré-impressionistas, a m o r t e do r e i Eduardo V I I , e t c . Tendo em v i s t a a s i n g u l a r i d a d e da con cepção de " n a t u r e z a humana" da e s c r i t o r a , duas p e r g u n t a s permanecem: e s t a r i a e l a querendo d i z e r que a história h a v i a , de c e r t o modo, t r a n s f o r m a do a consciência em seus níveis mais p r o f u n d o s , ou que uma c r i s e da c u l t u r a b u r g u e s a h a v i a l e v a do os a r t i s t a s ã d e s c o b e r t a de novos níveis de p e r s o n a l i d a d e ? Em seu c o n j u n t o , a o b r a w o o l f i a n a p a r e c e c o n f i r m a r o p r e s s u p o s t o implícito na se gunda p e r g u n t a . Em Oilandc e em Rztw&en thn
ActA, p o r exemplo, a história v a i sempre mani. f e s t a r - s e como uma espécie de padrão c r i a d o r de i m p o r t a n t e s transformações nas m a n e i r a s , na mo
r a l e, até mesmo, na i d e n t i d a d e s e x u a l das pes
soas. E V i r g i n i a W o o l f a s s i m concluía seu comen tário s o b r e a transformação da n a t u r e z a humana em 1910:
" ( . . . ) Todas as r e l a ç õ e s humanas se modificaram — entre patroes e empregados, maridos e mulheres, p a i s e f i l h o s . E , quando as r e l a ç õ e s humanas mu dam, h á ao mesmo tempo uma m u d a n ç a na r e l i g i ã o , no comportamento, na p o l í t i c a e na l i t e r a t u r a " . ( 3 , p. 24)
Tendo em v i s t a a l o n g a trajetória dos con f l i t o s humanos, a e s c r i t o r a s u g e r i a , vagamente, que a t o t a l i d a d e d a q u i l o que chamava de mundo
" m a t e r i a l i s t a " d e v e r i a p a s s a r p o r uma t r a n s f o r mação e s e r substituído p o r uma existência p u r a mente comunal, sem c l a s s e s e não-sexista, uma v i da onde, em sua forma i d e a l e p r o v a v e l m e n t e i n a tingível, a própria história t a l v e z d e i x a s s e de e x i s t i r . Em nenhuma de suas o b r a s esses temas f i c a m mais e v i d e n c i a d o s do que em The Veafiò, de 1937, um romance histórico p o r e l a e s c r i t o em um momento de c r i s e política européia, e que mos t r a , à exaustão, as relações e n t r e seus e x p e r i mentos f o r m a i s e suas concepções políticas.
Em The VeaAò , a história v a i , mais uma v e z , d a r e n s e j o a um número enorme de descrições de L o n d r e s . O romance s u b o r d i n a os a c o n t e c i m e n t o s públicos a uma série de cenas domésticas ou j a n t a r e s , levándo-nos p a r a d e n t r o das casas dos p e r sonagens, onde os sons da c i d a d e são c o n t i n u a m e n t e p e r c e b i d o s e as pessoas olham o tempo t o d o pa r a f o r a , comentando d e t a l h e s simbólicos da p a i s a gem u r b a n a . Os anos passam, e vão s e r v i n d o de c o n t r a p o n t o a uma série de f a t o s históricos que as descrições de Londres têm p o r o b j e t i v o demar c a r na consciência do l e i t o r : as m o r t e s de P a r n e i l e do r e i Eduardo, a Guerra C i v i l I r l a n desa, o movimento de emancipação, a ascensão de M u s s o l i n i , e t c .
I V . CONCLUSÃO
Os exemplos até a q u i c i t a d o s t a l v e z sejam s u f i c i e n t e s p a r a nos p e r m i t i r e m a afirmação de que, em Virgínia W o o l f , Londres não é um espaço m i t i f i c a d o , a s s i m também como não é mero l o c u s da ação dos personagens. Se f o s s e um espaço m i t i f i c a d o , a c i d a d e sem dúvida c o n t e r i a em s i uma n a r r a t i v a . Se, em um nível s i g n i f i c a t i v o de suas descrições de L o n d r e s , a e s c r i t o r a p r o c e d e s s e a
uma transfiguração da c i d a d e , e s t a d e v e r i a s e r , como os m i t o s , suscetível de uma interpretação, e r e v e l a d o r a de d e s t i n o s . Mas, em Virgínia W o o l f , ao menos nas o b r a s a q u i examinadas, a c i . dade não se t r a n s f i g u r o u ; é quase sempre um cena r i o onde vão a g i r os p e r s o n a g e n s , e um cenário s a t u r a d o de alusões históricas. Seu peso históri co chega a i n s p i r a r , em C l a r i s s a D a l l o w a y , até mesmo um s e n t i m e n t o de condescendente e t n o c e n
t r i s m o : no c o n t o "Mrs. D a l l o w a y i n Bond S t r e e t " , o personagem se d e i x a tomar p o r uma espécie de êxtase cívico e r e f l e t e , ao p e r c e b e r que o r e i e a r a i n h a estão de v o l t a ao Palácio de Buckingham, que t o d a essa pompa e g r a n d i o s i d a d e p e r t e n c e m ã índole do povo inglês, que são i n a t a s ã raça e c o n s t i t u e m a q u i l o que os i n d i a n o s r e s p e i t a v a m nos i n g l e s e s .
A i n d a que t e n h a uma d i s c u r . s i v i d a d e c o n s t a n temente f i g u r a t i z a d a (o B i g Ben, P i c c a d i l l y C i r c u s , e t c . ) e metamorfoseada (as t r a n s f o r m a
ções urbanas de L o n d r e s ) , a c i d a d e não é um p e r sonagem, não é um Olimpo ou uma e s t r u t u r a s i g n i _ f i c a t i v a que h a b i t a os p e r s o n a g e n s , nem um Hades ao q u a l se d e s t i n a um c o n f i n a m e n t o do indivíduo. Não e x i s t e , p o r t a n t o , uma recriação da c i d a d e que a t r a n s f o r m e em m i t o literário, nem se ex
t r a i , de suas múltiplas r e a l i d a d e s , uma n a r r a t i va que a e x p l i q u e com a i l o g i c i d a d e a p a r e n t e do m i t o . T r a t a - s e de a l g o mais "sólido": a c i d a d e a l i está quase sempre como o resíduo m a t e r i a l de m u i t o s séculos de história, e i s s o é o máximo que d e l a podemos e x i g i r em t e r m o s de uma e x p l _ i cação do mundo ou de s i própria. Não é a " c i d a d e da m o r t e na v i d a " , segundo a c o n h e c i d a descrição de James Thompson, nem a s e l v a simbólica t a l co mo a v i a George G i s s i n g , concepções que p o d e r i a m c i r c u n s c r e v e r a c i d a d e como espaço m i t i f i c a d o em suas r e s p e c t i v a s o b r a s . A visão que Virgínia W o o l f tem de L o n d r e s , ao menos a que é s u g e r i d a p o r suas mais l o n g a s e i m p o r t a n t e s descrições, r e f l e t e a m a n e i r a permanente de v e r q u a l q u e r e i . dade histórica, com seus monumentos, edifícios públicos e c e n t r o s d e f i n i d o r e s da c u l t u r a e do l a z e r .
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