A M A S C U L I N I D A D E
H E G E M Ô N I C A
N A C U L T U R A
B R A S I L E I R A
R E S U M OzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Este trabalho, eminentemente teo n co , pretende articular algumas teorizações recentes provenientes da Antropologia Cultural e da Psicologia Social brasileira acerca da masculinidade hegemônica no contexto brasileiro.
Palavras-chave: masculinidade - identidade - gênero.
T H E H E G E M O N I C M A S C U L I N I T Y I N T H E B R A Z I L I A N C U L T U R E
A B S T R A C T
This theo retical article intends to link some recent views from Brazilian Cultural Anthropology and rhose from Social Psychology concerning hegemonic masculinity in Brazilian society.
Key Words: masculinity - identity - gender.onmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
. Antropólogo. Mestrando em Psicologia Social - Universidade Federal de Minas Gerais. Email: marleoni@ yahoo.com.br
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I N T R O D U Ç Ã OzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
A presente reflexão acerca daís)masculinidade(s)
almeja ser um exercício antropológico de cunho
psi-ológico. Portanto, em momentos mais tenros da
cons-tituição da disciplina antropológica era comum se referir
a uma 'Antropologia Política', da Religião, etc., e nos
parece que há pessoas que ainda insistem em falar de
uma Antropologia do Gênero, da Mulher ou, agora,
do Homem. A Antropologia não deve ser encarada
como um aglomerado de 'gavetas' temáticas que se
recharn em especialidades metodológicas ou teóricas:
o invés disso, defendemos a proposta de uma
rnologia J compromissada.
O presente trabalho se propõe a realizar
ma leitura psicoantropológica acerca dos
te-mas referentes à sexualidade masculina e ao
gê-• ero, instâncias que permitem apreender as
ogicas das organizações humanas, suas
dinâmi-.a de ação, seus meios de expressão e os
relacio-. amentos dos indivíduos entre si. Antes de
aI quer coisa devemos perceber a inviabilidade
e atualmente se produzir uma Antropologia
ide-izada, 'romântica', que se pretende isenta de
uaisquer juízos de valor ou imune às
trajetóri-a de vida dos pesquisadores. Há que se minar
~ se tipo de ilusão, que só contribui para
carica-ru rar e estereotipar a referida Ciência, e inibe os
forços legítimos de sistematização e
sofisrica-câo teórica não só na Antropologia, como nasonmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
i Ciências Humanas.
A sim, tomamos a 'sexualidade' neste texto
b uma ótica mais ampla, sendo que, ao contrário
iihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAs o , ela vinha se constituindo objeto de vários es-orços de rígida sistematização e enquadramento
te-orico. Visualizamos o surgimento e desenvolvimento
deste campo com o advento da 'modernidade'. Esta
nova forma busca compreender as múltiplas
possi-bilidades de representar e viver o sexo encompassadas
egundo 'lógicas' que não são determinadas
exclusi-'amente por traços psíquicos ou biológicos, sendo
que atualmente, nas Ciências Humanas, um
pres-suposto básico é de que as condutas sexuais são
social e culturalmente desenvolvidas e orientadas
(BOZON et al, 1995; GIDDENS, 1993).
En-quanto terreno cultural, a vida sexual e afetiva é
dada em contextos históricos e geográficos
especí-ficos, e está sujeita aos mesmos instrumentos de
análise propostos pelas teorias sociais com
referên-cia aos processos econômicos e políticos, por
exem-plo. Tal postura pode ser, em parte, debirável a uma
perspectiva construtivista na Antropologia atual.
Esta proposição se baliza na contribuição dos
es-tudos de FOUCAULT (1993), entre outras, que
propõem ser o sexo socialmente construído e que
merece ser lido através de causas culturais e
soci-ais. A sexualidade não deve ser tomada p e r s e , mas associada a acontecimentos históricos, materiais e
culturais, que hoje em dia estão orientados por uma
mentalidade 'pós-moderna'.
Em A H i s t ó r i a d a S e xu a l i d a d e 1, Michel
FOUCAULT (1979) toma como objeto de
aná-lise o processo que conduz à constituição daquilo
que ele denomina 'dispositivo da sexualidade',
que em linhas gerais se origina a parrir de um
movimento social de singularização que elege a
sexualidade como eixo estrururado r da pe soa.
Isso acontece com a modernidade, sendo que na
camadas mais 'privilegiadas' tem seu
desenvol-vimento mais expressivo e visível. A
sexualida-de, desta forma, se torna autônoma e se
desenvolve enquanto produto - e produtora
-de transformações no nível sociocultural, com
destaque ao terreno do individualismo em suas
várias facetas: psicológica, jurídica, econômica,
política, etc. A sexualidade hoje, sob a égide do
Indivíduo, tem se tornado o próprio âmbito
pri-vilegiado deste, tornando-se um complexo
ca-paz de sintetizar atributos fundamentais da
identidade pessoal e que por isso mesmo
codifi-ca nossas principais referências sociais. Enfim, a
sexualidade transformou-se em um foco de
pro-dução de significados e verdade para os
indiví-duos na modernidade".
Entendendo aqui 'etnologia' enquanto a análise e compreensão de ma etnografia, que, por sua vez, significa uma coleta de dados descritiva acerca da vida social e cultural de uma cole ividade qualquer. Seu fundamento mor é a comparação e a apreensão de significados (VELHO, Gilberto, 1985).
~ :lar modernidade podemos aplicar a definição de Anthony GIDDENS em The Consequences of Modernity (1990): seria o ~ncípio da sociedade Ocidental pós-século XVIII por excelência, caracterizando-se pelo racionalismo das relações sociais e na produção e pela crescente individualização da pessoa. No aspec o econõmico se caracteriza pela industrialização em --'assa, tendo seu ápice com o capitalismo financeiro.
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P ó s - m o d e r n id a d e e m u lt ip lic id a d e d e
g ê n e r o sonmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
ÉzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAinegável o crescimento e, ainda mais, o re-conhecimento da produção científica sobre
gêne-ro no Brasil a partir dos anos 60. Tendo sua gênese nas preocupações feministas em denunciar a opres-são sofrida pelas mulheres, os estudos de gênero questionam, entre outras tantas coisas, a idéia de
'natureza' feminina (e masculina) e reforçam a con-cepção de que as características atribuídas à mu-lher - e ao homem - são, na verdade, socialmente
construídas. Portant~, neste raciocínio
diferencia-se o diferencia-sexo (dimensão biológica dos seres humanos) do gênero (um construto social), sendo um ins-trumento profícuo para mostrar que os
comporta-mentos, sentimentos, desejos e emoções, vistos como parte de uma essência masculina ou femini-na, são produtos de um determinado contexto
his-tórico e/ou geográfico. Mas o que mudou para que estes estudos, antes desprestigiados e considerados pouco científicos pelos acadêmicos mais ortodo-xos, adquirissem legitimidade e visibilidade tão
ampla?
O debate neste campo tem se intensificado e permitido cada vez mais a convivência - nem sempre pacífica, mas bastante enriquecedora - de
múltiplas posições. e inicialmente a preocupação dominante era a de denunciar as discriminações e violências sofridas pelas mulheres e homossexuais,
hoje existem autores que acreditam que as
diferenças entre os sexos estão desaparecendo
(fala-se até de uma androginização do indivíduo pós-moderno) e há também aquelas(es) que apontam as conquistas femininas como as principais
responsáveis por uma suposta 'crise e transformação da masculinidade'. Em suma, a problematização
do conceito de gênero, colocando em xeque sua própria existência, tem tornado a discussão muito
mais complexa e elaborada teoricamente no
presente momento.
Durante décadas os estudos de gênero fo-ram realizados quase que exclusivamente por pes-quisadoras feministas, passando, nos últimos anos, a despertar o interesse de pesquisadores não
mili-tantes assim de antropólogos(as), sociólogos(as), psicólogos(as) e historiadoresías) renomados(as),
como, por exemplo, Pierre Bourdieu, Anthony
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Giddens, Marilena Chauí, Daniel Welzer-Lang,
Chrisropher Lasch. Tal mudança no perfil dos esrudiososías) deste tema pode ser pensada como um reconhecimento da importância do gênero
como 'uma variável cada vez mais explicativa dos
processos sociars. .
A existência de revistas dedicadas a
ques-tões de gênero, centenas de dissertações de mestrado e teses de doutorado, núcleos e grupos de trabalhos em reuniões científicas, livros,
refle-te o amadurecimento desta linha de estudos den-tro e fora do Brasil. O marco simbólico foi a
publicação do clássico OihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAS e g u n d o S e xo , de Simo-ne de Beauvoir, em 1949.
Por outro lado, estas investigações abriram um espaço de reflexão sobre grupos estigmatizados
socialmente, como prostitutas, homossexuais, travestis e transexuais, assuntos considerados interessantes para um público cada vez maior, sendo que, ao lado dos estudos érnicos, são os
que mais atingem o grande público, ou seja, ambas as temáticas são as que mais atraem a sociedade extra-acadêmica, contribuindo para tornar o
pensar universitário útil de alguma forma. Desta forma, os estudos referentes aos afro-brasileiros
(bem como a outras etnias) e os estudos de gênero
têm tido considerável espaço nos meios de
comunicação de massa.
Em suma, ajudando a entender melhor
de-terminados fenômenos sociais, ampliando seu
le-que de questões, sendo objeto de atenção da mídia, os estudos de gênero passaram a ser
perce-bidos como um produto importante para o mer-cado editorial que tem publicado inúmeros títulos
sobre a temática em questão. Um dos assuntos que mais tem atraído a atenção deste mercado editorial é a chamada 'crise da masculinidade',
merecendo não apenas a publicação de livros
como também artigos em jornais e em revistas de grande circulação.
O s g ê n e r o s d a m a s c u lin id a d e
Embalada pela crítica feminista dos anos 70,
a noção de gênero emerge no cenário acadêmico
balizada na constatação de assimetrias - visíveis pela perspectiva comparativa - no âmbito das
terminações culturais de 'sexo'. A Antropologia
se apropria imediatamente deste instrumental intelectual, vendo nele promessas de renovação
de sua vocação para a desnaturalização da vida ocia!. Esse conceito então surge como o pilar da
'Antropologia da Mulher', capaz de explicar os atribu tos culturais que orientam as condutas dos
exos em situações sociais. Gênero está, portan-to, desde sua inauguração enquanro espaço de re-Flexão acadêmica, relacionado às disposições
morais socialmente atribuídas em contextos cul-rurais específicos, não redutíveis à base biológica
ornecida pelo sexo.
Observamos que a temática da masculinida-de se apresenta como um campo incipiente dentro
desta área de investigação maior constituída pelo ênero, mas mesmo assim vivencia pontos de efervescência e de passagem obrigatória, mesmo para
aquelesfas) que se debruçam especificamente sobre
o feminino/mulher (ALMEIDA, 1996). O mais
contundente dentre estes ponws fulcrais talvez seja que diz respeito ao seu relacionamento com a já
:nencionada 'Antropologia da Mulher' - produções ue têm como marca a crítica aos essencialismos em
zorno do sexo e que se consolidaram num
mornen-zo no qual as transformações acontecidas no con-texto sociocultural do Ocidente viabilizaram
rásricas posturas políticas encabeçadas pelas m
u-eres. A estas coube uma verdadeira luta,
encarna-a no movimento organizado do feminismo, pela
zonsolidaçâo de direitos econômicos, jurídicos,
se-xuais, emocionais e culturais igualitários frente à di--erenciação nas relações com os homens. Anthony Giddens percebe este momento como marcado pelo
ue ele chama de uma 'transformação da
intimida-e'. Segundo o autor, esta mudança consiste na pas-- gem do 'amor romântico', que em muito tolhia
ânsias femininas em detrimento das demandas os homens, ao ideal do 'relacionamento puro',
o qual ocorre a ampliação das acepções de sexua-idade. A sexualidade, de agora em diante, tende-ria a não estar mais vinculada exclusivamente à
reprodução, seria uma realidade cada vez mais
'e locada da moral coletiva, tendo como foco .manador o Eu, que operou mudanças que
di-em respeito mais que a ambos os sexos, mas à rópria dinâmica da vida social e também às
es-_ uras de gênero (GIDDENS, 1993).
Portanto a categoria gênero emerge no ce-nário acadêmico-científico como sustentáculo des-tas transformações e bastante comprometida com
o movimento político do feminismo. Conforme assinalam as críticas engajadas, este compromisso
por muito tempo custou o ofuscamento dos ho-mens enquanto atores lídimos de roda esta temática
nos estudos antropológicos. OsihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAW o m e n s s t u d i e s , em seu viés militante, relegaram as masculinidades a
um patamar intocável e homogeneizado, a um
s t a t u s de dominante. Como ressalta Miguel V. de
ALMEIDA, a abordagem feminista deste período
"ao tornar o masculino em equivalente implícito do social retirou-lhe autonomia e possibilidade de desconstrução crírica" (ALMEIDA, 1995:129).
David Gilmore também sustenta esta ad-moestação e de maneira ainda mais contundente: "rnuch of the recent cross-cultural research is not
only about women, but by women, and in some sense, for women" (GILMORE, 1990:2).
Parece que o equívoco desta postura inicial, arredia em relação à masculinidade, deveu-se em grande parte ao contexto e às trajetórias de vida
da-quelas antropólogas pioneiras e aos instrumentos teórico-analíticos utilizados. Maria L. Heilborn vê o ideário individualista, pertinente ao contexto cul-tural moderno do Ocidente, como determiname
deste tipo de abordagem, em que a apreciação da problemática feminina através das idéias de 'opres-são' e 'dominação' aconteceria dentro da dinâmica
das esferas da vida social - família, sexualidade, re-produção - cada vez mais autonomizadas. Esta
au-tonomia crescente em relação às instituições redunda no centramento da pessoa na categoria de indiví-duo, no Eu (HEILBORN, 1993).
Em acréscimo podemos pensar que também havia a manipulação de uma idéia estreita da no-ção de poder - e dominano-ção - que, "aplicada a
gê-nero", ocultava a dimensão fundamentalmente relacional desta categoria; gênero e poder eram
concebidos numa lógica fechada, a partir de dicotomias excludentes como dominantes x domi-nados, opressores x oprimidos, homens x
mulhe-res. Tal pensamento é banido com as proposições deslanchadas por Michel FOUCAULT, ao tomar as relações de poder sob um prisma multifacetado
na forma de redes difusas de forças que agem
so-bre as ações sociais (FOUCAULT, 1979).onmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
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Posteriormente Pierre Bourdieu também re-força tal abordagem, com sua teoria e prática, e
lança luzes neste mesmo sentido ao tratar deihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAA D o m i
-n a ç ã o M a s c u l i -n a , embasada por seus dadosetnograficos
da Argélia. De acordo com Pierre BOUROIEU, as
relações de dominação são inevitáveis na vida s o -cial, fazem parte do processo instaurador que é
ciassificarório por excelência, e que por si só já é
hierárquico. Em suas palavras,
... d a n s lesr a p p o r t s s o c i a u x d e d o m i n a t i o n e t d ' e xp l o i t a t i o n q u i s o n t i n s t i t u é s e n t r e l e s s e xe s , e t d a n s l e s c e r ve a u x, s o u s I a fo r -m e d e s p r i n c i p e s d e d i - vi s i o n q u i c o n d u i s e n t à c l a s s e r t o u t e s l e s c h o s e s d u m o n d e e t t o u t e s l e s p r a t i q u e s s e l o n d e s d i s t i n c t i o n s r é d u c t i b l e s à l ' o p p o s i t i o n e n t r e l e m a s c u l i n e t l e fé m i n i n , l e
s ys t ê m e m yt i c o - r i t u e l e s t c o n t i n ú m e n t c o n fi r m é e t l e g i t i m é p a r l e s p r a t i q u e s m ê m e s q u ' i l d é t e r m i n e e t l é g i t i m e
(BOURDIEU, 1972: 7-8).
Retomando a relação Antropologia da Mu-lher e masculinidade, apontamos que Oavid
Gilmore radicaliza as objeções aos primórdios da literatura feminista, sugerindo que havia uma quase total desconsideração para o projeto de uma incursão invesrigativa pela masculinidade. Seus
ressentimentos se concentram na especificidade desta literatura inicial, que ignorava o fato de que
o masculino também é uma realidade social
consrruída, problemática e relaciona!. Desta for-ma, a masculinidade, para GILMORE (1990), apresenta-se desafiante, tendo em vista os proces-o de sua elaboração e consolidação nas diversas
ociedades por ele arroladas em suas pesq uisas. . 'a ornparaçâo de informações de um
gran-de univer o ernozra ias o autor procurou
res-altar in e corno o -ário tipos de
drarnari i a e o roem o
'er-dadeiro hom n
In-tuito maior foi en o ar - ro - ndas da
masculinidade, arq é '. - a o o m ulina.
Ao acentuar sua per pe -' -a c em rela ão aos
estudos de mulheres, -o iza enralrnenre
as dificuldades impostas ao em sua
socia-lização, que diferem das di - e encontradas
na construção da feminilidade: e ta última
32
... r a r e l y i n vo l ve s t e s t s o r p r o o fi o fa c t i o n , o r c o n fr o n t a t i o n s w i t h d a n g e r o u s fl e s ;
u i i n - o r - l o o s e c o n t e s t s d r a m a t i c a l l y p l a ye d o u t o n t h e p u b l i c s t a g e . R a t h e r t h a n , a c r i t i c a l t h r e s h o l d p a s s e d b y t r a u m a t i c t e s t i n g , a n e i t h e r / o r c o n d i t i o n , ft m i n i n i t y i s m o r e o ft e n c o n s t r u e d a s a b i o l o g i c a l g i ve n t h a t i s c u l t u r a l l y r e fi n e d o r
a u g m e n t e d ( G I L M O R E ,1 9 9 0 : 1 2 ) .
Cabe lembrar que GILMORE (1990) assume ser uma tarefa difícil delimitar esta elaboração do 'ser
homem' numa proposta transcultural. Quanto a esta problemática optamos por uma perspectiva mais conjugada, na qual seria impossível supor o apaga-mento das contribuições até agora formuladas pela 'Antropologia da Mulher'. Assim sendo, compreen-demos aquela polarização como uma disputa emi-nentemente política, retrato de um momento de
efervescência do feminino, Porém reconhecemos que hoje, ao invés de promover a dicorornia 'homem x
mulheres', os (as) intelectuais se referem a 'homensonmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA&
mulheres'. Por conseguinte, acatar totalmente a pro-posta de David Gilmore seria incorrer nos moldes do referido maniqueísmo, agora sob o broquel dos m e n s
s t u d i e s . Por outro lado, seu trabalho não deixa de
cha-mar a atenção, já que salienta o fato de também o masculino não é algo dado simplesmente pela reali-dade anatõmica, e sim adquirido em específicos e complexos processos de socialização.
Neste aspecto não seria incorreto afirmar que a masculinidade é algo frágil (ALMEIDA,
1995). Chegando a ilações semelhantes por vias de reflexão distintas, HEILBORN (1993), inqui-rindo-se sobre a proeminência do masculino na cultura Ocidental, também assevera acerca desta fragilidade. Para a autora, o masculino no plano simbólico precisa superar o feminino, que
repre-senta sua condição originariamente submissa,
ten-do em vi ta a relação biogenética entre mãe e filho. Em uas próprias palavras:
... a c u l t u r a r e j e i t a a p o s s i b i l i d a d e d o p a r m ã e j i l h o p o d e r e n g e n d r a r o u t r a g e r a ç ã o . Oi n t e r d i t o d o i n c e s t o a b o m i n a a p r o d u -ç ã o d e u m a i m a g e m a u t o ft c u n d a n t e d a m ã e , o q u e i m p o r t a r i a n e g a r n ã o s ó a t r o -c a , fu n d a m e n t o d o s o c i a l , c o m o a c o n d i -ç ã o d e s u j e i t o d o fi l h o . N a ve r d a d e , i s s o
s i g n i fi c a d i ze r q u e o m a s c u l i n o c a r e c e a l i j a r - s e d o e n c o m p a s s a m e n t o o r i g i n a l . D o n d e ( ..) a i m p o r t â n c i a ve r i fi c á ve l e m m ú l t i p l a s c u l t u r a s e m fa vo r d o s r i t o s d e i n i c i a ç ã o m a s c u l i n a - m u i t o m a i s e l a b o
-r a d o s q u e o sfe m i n i n o s ...zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA(HEILBORN,
1993: 68).
Tal posicionamento teórico da autora,
ex-cetuando-se o ponto de vista acerca das militan-tes feministas, é bem próximo daquele adotado
por Camile Paglia, que usa os termos 'femealidade'
e 'hombridade', distinguindo-os de
feminilida-de e masculinidafeminilida-de: segundo ela, estes dois
últi-mos terúlti-mos seriam mais abrangentes, construções
culturais referentes a gênero que existem em todas as sociedades, manifestando-se de formas
diferen-tes. Já a femealidade e a hombridade são
constru-ções culturais tipicamente ocidentais. A seguinte
passagem deixa evidente esta aproximação entre as
duas teóricas:onmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
o
c l í m a x d r a m á t i c o o c i d e n t a l fo i p r o -d u zi -d o p e l o agon d a vo n t a d e m a s c u l i -n a . A a ç ã o éa r o t a d e fu g a ( . . .) , m a s t o d a a a ç ã o c o m p l e t a o c í r c u l o e r e t o r n a à s o r i g e n s , o ú t e r o - t ú m u l o ( . . .) . É d i p o , t e n t a n d o e s c a p a r d e s u a m ã e , c o r r e d i -r e t o p a -r a o s b r a ç o s d e l a ( . . .) . P a r a o h o m e m , t o d o a t o s e xu a l é u m r e t o r n o àm ã e , n o s e xo o h o m e m é c o n s u m i d o e
n o va m e n t e l i b e r a d o p e l o p o d e r ' d e n t a
-d o ' q u e o -d e u à l u z. A femme fatale fo i
p r o d u zi d a n o O c i d e n t e p e l a m í s t i c a d a
l i g a ç ã o e n t r e m ã e e fi l h o (PAGLIA
1992: 23-24).
Assim, o caráter dominante da hombridade (masculinidade ocidental) exige constantes reafirmações
e uma grande disciplina e aurocontrole para a
manu-tenção de um s t a t u s , o que lhe impõe duras provas. Em vista disso sustentamos que são várias as masculi-nidades, e a referida 'hornbridade' é uma delas.
Iden-tificar-se como homem - ou mulher - não é
irnplesmenre função, ou mesmo uma elaboração
complexa de atributos fisiológicos, sendo que todo
esse processo social toma caminhos específicos e
ar-bitrariamente definidos segundo suas próprias
lógi-cas de formação e reprodução. Não considerar isso
seria reduzir um campo fértil de alteridades a uma
massa uniforme de organismos biológicos, postura esta que vem sendo duramente combatida desde o
início pela Antropologia, que condena as
generaliza-ções de largo espectro tanto quanto a idéia de socie-dade global, apoiada na noção de relarivisrno cultural.
Logo, postula a pluralidade das identidades, tanto
masculinas quanto femininas.
Ao tomarmos a masculinidade e a feminili-dade de maneira desnaturalizada e, assim, como metáforas de poder e capacidades de ação acessí-veis a ambos os 'sexos' (ALMEIDA, 1996),
pode-mos vislumbrar múltiplas possibilidades e
combinações de papéis e de identidades de gêne-ro. Os estudos referentes a esta ternática têm,
portanto, que levar em consideração as formas sociais de expressão que autorizam alguém a ser considerado 'homem', e o que cria a
variabilida-de variabilida-destas modalidavariabilida-des nas práticas cotidianas. Retomando o que já fora dito anteriormente,
gênero, de maneira um tanto particular, apresenta a
propriedade de permear todas as outras categorizações de identidade social do sujeito. Significa uma catego-ria social de apreensão do mundo real e assim como
tempo e espaço funciona como um princípio classificatório capaz de conferir significado ao
ensí-vel e, assim sendo, trespassa o outro níveis da iden-tidade: etnia, classe, religião. aixa etária etc.; desta
feita, as propostas de investigação ientí ica que
gi-ram em torno do zênero repre entam um desafio,
por proporem uma incursão nos inrersrícios da mas-culinidade com outras variáveis socioculturais.
Di-zendo de outro modo: ao se buscar compreender como ocorre o processo dinâmico de construção, desconstrução e reconstrução daís) masculinidadeís)
no Ocidente moderno, devemos estar atentos/as para
as interferências e determinações de ordem etária,
étnica, de classe, de grau de escolaridade, orienta-ção sexual, entre outras tantas. Isso equivale a dizer
que são várias as formas de ser homem, de se jogar
com os atributos de gênero que dizem o que é e o que não é 'hombridade'.
T a l ve z p o r i s s o s e j a d i fí c i l e s t u d a r a m a s -c u l i n i d a d e c o m u m p a r a d i g m a e xc l u s i
-vo . E m ú l t i m a i n s t â n c i a t o d a s a s
p e r s p e c t i va s c o n t r i b u e m n u m o u n o u
-t r o a s p e c -t o (ALMEIDA, 1995: 130).
33
o
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBApostulado acima nos faz refletir que a cate-goria gênero, justamente devido a sua ampla áreade abrangência, não opera isoladamente. No nível
da práxis se entrecruza com as demais classificações
culturais de identidade, sendo condicionadora e
condicionada em relação a elas. Este é um fator que
reforça o protótipo teórico de múltiplas
masculini-dades assumindo complexos e diversificados vetores
na interaçâo social concreta - nos embates
cotidia-nos cotidia-nos quals os sUjeitos entram em contato.
As trajetórias de vida funcionam então como
elaborações produtoras do gênero, bem como
atualizam na realidade o sistema abstrato de gênero
vigente na sociedade. A análise de qualquer
masculinidade carece, pois, conjugar estrutura e
prática (ou estrutura e história, global e local, micro
e macro, social e psíquico), articulando o contato
constante entre a lógica cognitiva que orienta a ação
e as práticas contingentes que estão a selecionar,
excluir e reformular aquelas categorias simbólicas
- partes integrantes da lógica geral.
Compreender como acontece, num
con-texto específico, esta coabitação dos esquemas
inconscientes de pensamento - orientados por
um princípio social de divisão que classifica o
real segundo oposições entre masculino e
femi-nino, e as práticas, as situações sociais que, em
sua infinita variabilidade e riqueza, criam
rami-ficações, afirmações e situações de reprodução
das estruturas cognitivas - é o desafio maior de
todos/as aqueles/as que se debruçam sobre este
insólito terreno acadêmico. Salientando este
as-pecto, Marshall Sahlins acredita que háihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
... u m a i n t e r a ç ã o d u a l e n t r e a o r d e m c u l t u r a l e n q u a n t o c o n s t r u i d a n a s o c i -e d a d -e -e -e n q u a n t o vi ve n c i a d a p e l a s p e s -s o a -s : a e s t r u t u r a n a c o n ve n ç ã o e n a a ç ã o , e n q u a n t o u i r t u a l i d a d e e e n q u a n -t o r e a l i d a d e . O s h o m e n s e m s e u s p r o -j e t o s p r á t i c o s e e m s e u s a r r a n j o s s o c i a i s s u b m e t e m a s c a t e g o r i a s c u l t u r a i s a r i s
-c o s e m p i r i -c o s (SAHLINS, 1994: 8).
Isto aponta para uma outra distinção
impor-tante quanto às estratégias de análises e que urge
ser lembrada. Uma coisa seria enfocar a
masculini-dade enquanto lógica cognitiva e classificadora,
tra-tar abstratamente sobre as maneiras arbitrárias
34
comoHGFEDCBAle e m as relações de gênero através
da dere o eras morais que orientam a ação
tendo em vi t a as categorias simbólicas que regem
a construção de te domínio (de uma
masculinida-de geral, sem homens). O que propomos é atentar
às masculinidades concretas - como são vividas no
contextos sociais. Desta forma, o mapa simbólico
que recorra o real, fornecido pela lógica do
siste-ma de gênero, não deve ser compreendido com
um fim em si, como uma 'chave mágica' para a s o -lução de todos os problemas da análise sociocultural.
Logo, na interpretação das categorias simbólica
devem ser somadas as práticas que as dinamizam
(HEILBOR ,1994).
Há que se ter cuidado de não incorrer no erro
de um determinismo das estruturas; olhar para
aqui-lo que é ser homem, portanto, é lobrigar para as
múl-tiplas determinações socioculrurais que são vividas por
pessoas reais. É focalizar as maneiras como se
organi-zam hierarquicamente, atentar às múltiplas
identida-des, às expressões psíquicas e aos sentimentos vividos
na interação cotidiana. Cabe aos antropólogos e aos
psicólogos sociais (em especial) que se debruçam sobre
as masculinidades procurar aqueles critérios segundo os
quais homens concretos são culturalmente
diferencia-dos. Categorias e critérios estes que obviamente não
ema-nam exclusivamente de estruturas inconscientes
a-históricas e imutáveis, e sim de uma realidade mais
dinâmica e inreracional, onde são constantemente
to-mados e retomados, acatados e reavaliados,
empre-gados e abandonados. Em síntese, há que se buscar
a inrer-relação entre estrutura e prática
... a o n í ve l d a n e g o c i a ç ã o c o t i d i a n a , d a s i n t e r a ç õ e s c a r r e g a d a s d e p o d e r , d a s r e j o r m u l a ç õ e s d a s n a r r a t i va s d e vi d a
(ALMEIDA, 1996: 164).
Logo as ignificações do que é ou não é um homem são várias e estão empre sendo negociadas, reforçadas e/
ou questionadas, exigindo por isso reafirmações
ritualizadas e estereotipadas constantemente. São
fluxos sociais inrerativos, em nada estanq ues.
M a s c u lin id a d e e c o r p o r a lid a d e
Até o presente momento deslocamos a
cons-trução da masculinidade de toda relação com uma
base biológica, dos atributos físicos. Entretanto,
o corpo deve ser considerado nestas formulações. Por isso o consideramos como uma base concreta sobre a qual se investe o social. Admitir esta idéia implica entender o corpo não como um fim, um dado, mas como um meio variável de expressão de caracteres socialmente determinados, meio este que é moldado de diversas maneiras. Nestes ter-mos, diferentemente dos culturalistas radicais, não entendemos o corpo enquanto 'criado', inventa-do pela cultura, mas sim como uma matéria-pri-ma amorfa que as sociedades moldam, formatam, atrofiarn, expandem, cada uma à sua maneira. Conforme sugere Marcel Mauss, devemos ter em mente a idéia de técnicas corporais para bem com-reender este processo social de 'modelagem' do
~orpo. Tais técnicas corporais então seriamihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
... a s m a n e i r a s c o m o o s h o m e n s , s o c i e -d a -d e p o r s o c i e d a d e e d e m a n e i r a t r a d i -c i o n a l , s a b e m s e r vi r - s e d e s e u s c o r p o s (MAUSS, 1974: 211).
Os corpos são produtos de práticas culturais que
onstroern tanto simbolicamente, como foi por nós monstrado nas observações anteriores acerca da
mas-- idade, quanto materialmente - ambos os aspectos
manifestam no corpo transformando 'machos' em
ho-. A partir dos indícios teóricos deixados por David
ore e por MiguelonmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAV.de Almeida, é lícito afirmar que
ornem requer habilidades específicas.O fato de se ser mente reconhecido como homem é sustentado
ba-camente por meio de habilidades discursivas e corporais 'naturais'. este sentido a masculinidade é uma expressão
o discurso e também do discurso enquanto prática,
ma-rerializado (FOUCAULT a p u d ALMEIDA, 1995). E neste 'idioma' da masculinidade o corpo é um elemento expressivode discursividades que se manifestam na rigo-sa disciplina dos gestos, dos modos de falar de se vestir, atitudes frente às situações de inreração social e as
_ oções. Assim, o mundo social trata os corpos como map e n s e -b ê te :
I I y i n s c r i t , s o u s I a fo r m e n o t a m m e n t d e p r i n c i p e s s o c i a u x d e d i vi s i o n q u e l e l a n g a g e o r d i n a i r e c o n d e n s e d a n s d e s c o u p l e s d'opo s i t i o n s , l e s c a t é g o r i e s fo n d a m e n t a l e s d ' u n e vi s i o n d u m o n d e
( o u , s i l ' o n p r é fe r e , d ' u n s ys t ê m e d e u a l e u r s , o u d ' u n s ys t é m e d e p r é fe r e n c e s )
(BOURDIEU, 1972: 11).
Desta maneira, os corpos são alvos de
objetificação destas estruturas marcadas por pa-res de oposições que
... e n fe r m e l e s h o m m e s e t l e sfe m m e s d a n s u n c e r c l e d e m i r o i r s q u i r é fl é c h i s s e n t i n d é fi n i m e n t d e s i m a g e s a n t a g o n i s t e s , m a i s p r o p e s à s e va l i d e r m u t u e l l e m e n t
(BOURDIEU, 1972: 10).
O peculiar destas distinções classificatórias ar-ticuladas e informadas pelas relações de gênero, e que se materializam nos corpos de 'homens' e 'mu-lheres', é a maneira como se espraiam por toda a paisagem social. Sendo categorias de apreensão do real, se difundem e permeiam todas as instâncias,
fazendo com que o terreno social pareça um terreno naturalizado. É a concorrência destas estruturas cognitivas às estruturas objetivas que possibilita a na-turalização das relações hierárquicas instiruintes do plano social. O conceito deh a b i t u s , que retoma a pro-blemática da mediação no debate entre objetivismo e
fenomenologia, parece ser adequado para compreender-mos os corpos socializados. Por conseguinte, este concei-to é delineado como um
... s i s t e m a d e d i s p o s i ç õ e s d u r á ve i s , e s t r u t u r a s e s t r u t u r a d a s p r e d i s p o s t a s a fu n c i o -n a r e m c o m o e s t r u t u r a s e s t r u t u r a -n t e s , i s t o é , c o m o p r i n c í p i o q u e g e r a e e s t r u t u r a a s p r á t i c a s e a s r e p r e s e n t a ç õ e s q u e p o d e m s e r o b j e t i va m e n t e ' r e g u l a m e n t a d a s ' e ' r e g u l a -d a s ' s e m q u e p o r i s s o s e j a m o p r o d u t o d e o b e d i ê n c i a a r e g r a s o b j e t i va m e n t e a d a p -t a d a s a u m fi m , s e m q u e s e t e n h a n e c e s s i -d a -d e -d a p r o j e ç ã o c o n s c i e n t e -d e s t e fi m o u d o d o m í n i o d a s o p e r a ç õ e sp a r a a t i n g i - I o , m a s s e n d o , a o m e s m o t e m p o , c o l e t i va m e n -t e o r q u e s -t r a d a s s e m s e r e m o p r o d u -t o d a a ç ã o o r g a n i za d o r a d e u m m a e s t r o " (BOURDIEU apud ORTIZ, 1986: 15).
Disto decorre que as práticas orientadas pe-las estruturas e relações de gênero - bem como por outros sistemas sociais de classificação e de
poder - vêm reforçar e justificar estas próprias
estruturas que as informam. Desta forma, é cor-reto afirmar que
... é e m t e r m o s d e s t a s d i s t i n ç õ e s q u e o s h o m e n s e m u l h e r e s c o n s t r o e m m a i s e l a
r a m e n t e s e u s m a i s s i g n i fi c a t i vo s e m a i s
p r o fu n d o s e n t e n d i m e n t o s d e s i p r ó p r i
-o s , t a n t -o c o m o i n d i ví d u o s c o m o m e m
-b r o s d e u m a o r d e m s o c i a l p a r t i c u l a rzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
(PARKER, 1991: 104).
As próprias marcas corporais que definem homens mulheres, que encontram seu sentido
na lógica binária de classificação, são as mesmas que alimentam a reprodução desta ordenação
sim-bólica entre masculino e feminino. Assim, a
ex-periência corpórea vivida é naturalizada, o que significa dizer que homens e mulheres,
exercen-do seus respectivos papéis sociais, o fazem
'natu-ralmente', segundo lógicas que dizem respeito a
direrrizes socioculturais.onmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAÉ através destes corpos
socializados que o passado se reproduz, sendo que tais corpos funcionam como bases existenciais da
culrura (ALMEIDA, 1995). São, porquanto,
ins-trumentos a reforçar desigualdades entre homens
e mulheres, e transpondo estas diferenças para um plano onrológico, tornam-se a essência e a
justi-ficativa desta assimetria. Sendo assim, a
domina-ção masculina se faz e se perpetua nestes termos. ão necessita de uma explicação para, frente à
'óbvia' inferioridade feminina, se afirmar.
A assirnerria fundamental se expressa então
na 'técnicas corporais', reproduzindo-se no espaço e no tempo. Quanto a isso, nota-se delinear em
re-lação ao sistema de gênero duas dimensões que lhe são co nstirutivas: como já foi tratado, tem-se gêne-ro com uma 'carrilha' social, um princípio de
classi-ficação ordenador do real, idéia abstrata, sem homens ou mulheres, e por outro lado, gênero como um produto da pessoa, conecrando a dimensão sim-bólica à sua conrrapartida material, à corporalidade,
noção ligada ao terreno confuso e sujeito a riscos da vida 'mais real, como defende 'lar hall SAHLI S (1994). Gênero e, por con ezuinre. a dominação masculina ancoram- e tanto na
dimen-são simbólica, quanto na imagem da pe oa. on-dição concreta de expressão desta lógica.
Masculinidade(s) brasileira(s)
Várias clivagens podem ser percebidas
nes-te nes-terreno da masculinidade, ainda que sejam mais
infreqüentes do que aquelas que acontecem no âmbito da feminilidade, sendo que um dos
moti-vos para isso é que o masculino está mais imbuí-do de valor social positivo, desta forma há uma maior relutância na sua tran formação e uma maior articulação homogeneizadora em torno dos
seus vários atributos.
Mesmo que isso ainda não ocorra tão am-plamente, a mídia noticia casos de homens que cuidam dos filhos sozinhos, casais gays alugando barrigas para realizar o desejo de ser pai, homens
que brigam na justiça pela guarda dos filhos e até a possibilidade de homens virem a engravidar em um futuro próximo. Além disso, um direito que era negado ao homem, o de ser afetivo a acompa-nhar o crescimento de seus filhos (mesmo direito que era negado aos seus filhos, obrigados a verem
no pai uma figura violenta ou ausente), agora não só é permitido como estimulado.
Roberro Da Marta frisa a importância da relação entre casa e rua na organização do uni-verso simbólico brasileiro (DA MATTA, 1985), articulação teórica que é de suma importância para entendermos a masculinidade e a femini-lidade no referido contexto. Sua argumentação flui pela demarcação de um 'espaço moral'
tra-çado pela oposição entre as categorias de casa e
rua ': assim,
Q u a n d o ( ...) d i g o q u e ' c a s a ' e r u a s a o
c a t e g o r i a s s o c i o l ó g i c a s p a r a o s b r a s i l e i
-r o s e s t o u a fi r m a n d o q u e , e n t r e n ó s , e s
-t a s p a l a vr a s n ã o d e s i g n a m s i m p l e s m e n t e e s p a ç o s g e o g r á fi c o s o u c o i s a s fí s i c a s
c o m e n s u r d u e i s , m a s a c i m a d e t u d o e n
-t i d a d e s m o r a i s , e s fe r a s d e a ç ã o s o c i a l , p r o ví n c i a s é t i c a s d o t a d a s d e p o s i t i vi d a d e
( . .) c a p a ze s d e d e s p e r t a r e m o ç õ e s , r e a
-õ e s , l e i s ... (198 5: 12) .
3DA MATTA (1997). ao lembrar de alguns fatos marcantes de sua lntãncra e a e ena cidade do interior de Minas. nos deixa importantes indícios para se compreender a estrutura simbólica da mascul rudade. U dos signos é a obsessão dos meninos com o tamanho do pênis já que "ter o pênis grande era sinal de orgulho e marca de asc ínidade" (p. 41). Obsessão esta que gerava concursos para medir o tamanho do pênis. Ainda segundo o autor: "Diz-se no Bras que, numa situação de confronto, um homem vai decidir tudo 'mostrando o pau', isto é, apresentando o seu falo para os ou ros homens implicados no conflito. Do mesmo modo ele lembra que 'dar porrada', 'meter o pau' em alguém denotam agressão e ou depreciação de outra pessoa.
36
Esta dicotornia estabelece uma lógica ordenadora real que o divide em público e privado, sendo que
Brasil são âmbitos que não devem se misturar, e da, o privado é 'confundido' com doméstico. Este cimo espaço, privado/doméstico, é a esfera da ordem
icional fundada na assirnetria articulada pela
ideo-~la patriarcal. Ao homem cabe prover econornica-nre este âmbito, local de retiro e paz, de
oalizaçâo", informalidade, orquestrado pela her. A calma e o ritmo feminino da casa têm como
tO a impessoal idade e o dinamismo da rua, este
. círculo dominado por homens.onmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAÉpreciso ser forte melhor que o resto' para se sair bem neste
arnbien-ostil e competitivo, onde apenas os verdadeiros • igos têm 'vez', daí a importância dada pelos
ho-ens à camaradagem e às fraternidades - oficiais, _ mo o exército ou a maçonaria, ou informais, como torcidas organizadas de futebol. Tal como aponta irado popular, neste âmbito vigora, especialmente - ociedades 'mediterrânicas', a seguinte
menrali-de: "aos amigos tudo, aos inimigos a lei".
. lídia: o masculino em questão
De acordo com a mídia de grande circulação no . as mudanças na casa e na família brasileira, como menro da participação da mulher na divisão de nsabilidades e a crescente ausência do homem têm
do confusões prejudiciais às crianças. Entre as con-.ências está a delinqüência juvenil. Uma matéria
re este assunto estava na primeira página daihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAF o lh a
- io P a u lo de um domingo (1/11/98): Au s ê n c ia d o
-I C r ia C o n fo s ã o n o s F ilh o s . Desta forma, as
rnudan-no comportamento da mulher estariam a nublar' _ a tumultuar a demarcação entre público e privado.
OCa)leitorta) do referido artigo rapidamente nclui que a 'culpa' é das mulheres que trabalham
ra e que criaram uma confusão no homem e na ília e, portanto, incentivaram a delinqüência ju-nil. Esta matéria recente repete e reforça,
explici-mente, os mesmos argumentos dos que eram nrra o voto feminino e o trabalho da mulher fora
lar há quase um século. O Código Civil Brasilei-de 1917, reservava à mulher casada um estatuto
roral submissão à autoridade do marido, o que a dia de ter conta bancária em seu próprio nome er qualquer vínculo de emprego sem
autoriza-ção do marido. O direito ao voto feminino no Bra-sil, conquistado em 1932, teve opositores ferrenhos que diziam que a 'única missão da mulher deveria
consistir em ser o anjo tutelar da família'. É interes-sante olhar estas matérias buscando encontrar o 'bode expiarório' do momento para as 'angústias'
masculinas: de forma nada sutil, o trabalho femini-no e o aumento do poder da mulher no seio famili-ar são apontados como os responsáveis pela ausência cada vez maior do homem em casa, assim como pelo
enfraquecimento de sua imagem (leia-se poder)
di-ante dos filhos.
Em suma, o homem moderno, segundo os
meios de comunicação, não apenas está em crise, mas também está sendo ameaçado deextinçâo, E a mulher pode ser apontada como uma das principais causadoras do desaparecimento da 'espécie'. Os textos, de diferentes formas, assinalam que a crise de identidade que os homens atravessam foi, em grande parte, provocada pela mudança no papel das mulheres.
É interessante analisar tais tipos de matérias, bem como muitas revistas femininas que repetem, exaustivamente: 'o homem tem medo de mulher
independente', 'o homem se sente ameaçado com as conquistas femininas', 'o homem está inseguro e frágil
porq ue perdeu sua iden ridade'. Estas falas e discursos consolidam a idéia de que a mulher independente representa um perigo para a masculinidade e é dererrninante da crise que tanto o homem quanto a
família tradicional atravessam. Esta mulher, ao contrário de er percebida como uma parceira, uma companheira que pode tirar de seus ombros uma série de obrigações que lhe eram exclusivas, é vista como uma rival, disputando seu poder, seu emprego, pri -ile ios e uas regalias: uma inimiga, uma rival a
er -encida.
Corroborando a precedente análise, temos o
es-rudo sobre as mulheres que são amantes de homens casados, As O u tr a s . Naquela ocasião Míriam GOLDENBERG (1997) ouviu o outro lado, o mas-culino. Isso porque é mais comum mulheres estuda-rem mulheres, homens heterossexuais estudarem homens heterossexuais, gays estudarem gays, fato que, além de causar um certo estigma ao pesquisador que
'não' investiga o grupo a que pertence (seela estuda a outra é porque deve ser a outra ...'), produz uma
com-preensão limitada dos papéis desempenhados por ho-mens e mulheres na cultura brasileira. Então, saindo
37
deste lugar-comum com esta pesquisa, realizada com homens universitários de idades entre 30 e 50 anos, moradores da Zona Sul do Rio de Janeiro, a autora
percebeu que muitos estereótipos a acompanhavam. Quanto a isso, procurou rrilhar o pensamento de
Michel Foucault:ihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
E xi s t e m m o m e n t o s n a vi d a o n d e a q u e s t ã o d e s a b e r s e s e p o d e p e m a r d i ft r e n t e m e n t e d o q u e s e p e n s a , e p e r c e b e r d i fe r e n t e m e n t e d o q u e s e vê , é i n d i s p e m á ve l p a r a c o n t i n u a r a
o l h a r o u a r e fl e t i r (FOUCAULT apud
GOLDE BERG, 1997: 189).
Portanto, não permaneceu ouvindo apenas as mulheres. o tou que precisava aprender um pouco mais sobre os homens. E neste sentido, um dos aspecws que mais chamou a atenção da autora foi o faw de que todos os homens entrevistados se perceberem como fora do modelo de masculini-dade. Com relação ao número de parceiras
sexu-ais, alguns tiveram apenas uma, enquanw outros afirmaram que tiveram mais de cem. Todos, no en-tanto, acreditavam estarem 'fugindo' da regra, afir-mando que seus amigos 'transararn' com muito mais mulheres. Também aqueles que nunca tive-ram relacionamentos extraconjugais acreditavam que eram exceção, julgando que seus amigos tive-ram vários casos e aventuras mesmo amando as
es-posas. Em vários momentos da pesquisa os
nrrevistados demonsrraram o medo de serem acu-sados de 'vi ad o s' ou 'afeminados' por não corres ponderem ao modelo (ideal) de virilidade do brasileiro, ao mesmo tempo em que, paradoxal-mente, acusavam os homens com tal performance de 'rnachistas' e 'galinhas'.
Cabe aqui mencionar outro conceito essencial para se entender a masculinidade: é a noção de 'hegemonia' que deriva das formulações de GRAMSCI
(apud VELHO, 1986) sobre a política nas relações en-tre as classes sociais. Em consonância com tal conceito está a idealização de 'um' masculino geral, manifesta pelos entrevistados da autora:
... a n o ç ã o g r a m i s c i a n a d e h e g e m o n i a t e m s i d o p a r t i c u l a r m e n t e i m p o r t a n t e p a r a c h a m a r a a t e n ç ã o p a r a o s a s p e c t o s
i d e o l ó g i c o s d a d o m i n a ç ã o e m c o n t r a s t e c o m a vi s ã o r e i fi c a d a d o p u r o d o m í n i o
d a fo r ç a (VELHO, 1986: 134).
38
Um dos elementos consrituidores da
masculini-dade hegemônica ocidental, e mais especificamente da
hombridade mediterrânea, é o comportamento 'juânico': João Silvério Trevisan (1998) explica o
don-juanismo como uma busca obcecada e insatisfatória
de novas aventuras, que gera a 'infidelidade típica do macho' ocidental e mais especificamente do homem
latino, estereótipo tão disseminado que, em muitas culturas, acabou se tornando evidência de virilidade. I to posto, entendemos que o conceito de
'masculi-nidade hegemônica' aponta para valores e conjuntos
de significados que ordenam a apreensão do mundo segundo uma lógica de divisão e distribuição
desi-gual de poder enrre os gêneros. A masculinidade hegemônica subentende outras masculinidades sub-metidas a ela numa relação de subordinação, sendo
esta assimetria consensualmente vivenciada pelos su-jeitos sociais, onde os dominados (estas outras manei-ras de ser masculino e todos os 'femininos') participam
de sua própria dominação na medida em que defendem
(verbal e cornportamentalmenre) a legitimidade de ape-nas uma masculinidade.
Assim sendo, esta masculinidade hegemônica reproduz para o interior da 'masculinidade' (conceito
generalizante) as relações hierárquicas de dominação que estruturam a idéia de gênero na interaçâo entre masculinidade/s dominante/s e feminilidade/s
subal-terna/s. Há, deste modo, masculinidades múltiplas e,
assim, há um grande abismo entre a proposta hegemônica e as possibilidades de atualizações
concre-tas deste modelo.onmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
°
conceito hegemônico é uma res-posta cultural acabada, completa e inatingível, quejamais é encontrada numa pessoa integral e concreta-mente. Como define Miguel V de Almeida:
A m a s c u l i n i d a d e h e g e m ô n i c a éu m m o d e l o c u l t u r a l i d e a l q u e , n ã o s e n d o a t i n g í ve l - n a p r á t i c a e d e fo r m a c o n s i s t e n t e e i n a l t e r a d a - p o r n e n h u m h o m e m , e xe r c e s o b r e t o d o s o s h o m e n s e s o b r e a s m u l h e r e s , u m e fe i t o
c o n t r o l a d o r ( AL M E I D A, 1996: 163).
Assim, surgem algumas dificuldades na vida dos homens, pois a sua experiência social é justamente o diá-logo porve ze s difícil entre a complexidade polimorfa dos
seus sentimentos e comportamentos e o maniqueísmo
dos padrões (ALMEIDA, 1995). São oprimidos pela sua dominação, o que não deixa de ser preferível,
do em vista o que ocorre com as mulheres, que são subjugadas por um modelo que a princípio não é o
eu. Necessitamos pesar também queihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
... p a r a o s h o m e n s é m a i s d i fí c i l i n ve n -t a r e m o u t r a s fo r m a s i d e n t i t á r i a s , p o i s , s e g u i n d o o p e n s a m e n t o d i c o t ô m i c o , a a l -t e r n a -t i va q u e r e s t a éa i n fe r i o r , fe m i n i -n a (ALMEIDA, 1995: 247).
Nestes termos, e da mesma forma como tarn-ém foi apresentada anteriormente enquanto uma nstância lógica da ordenação das interações de gêne-ro, visualizamos uma masculinidade que é instável.
Carece, pois, de sustentação contínua, de constantes e reperitivos mecanismos de reafirmação, ritos reiterativos que são os responsáveis pelo caráter nota-.elmente performático e ritualizado, algumas vezes
eirando a esrereoripia, das relações entre os homens. Aqui merece ser introduzido o conceito de
esmapeamento proposto por FIGUEIRA (1985), ex-emarnente útil para analisar a presença de ideais apa-renremenre contraditórios no masculino atualmente:
nostalgia da segurança advinda da posição superior e d.!orização de um relacionamento sem vínculos obri-_ órios e sem o desgaste do cotidiano podem, contra-_'oriamente, conviver na mesma pessoa. De acordo _ m o autor, as mudanças sociais são rápidas e
'visf-" não sendo acompanhadas no mesmo ritmo e in-en idade pelas subjetividades individuais, que
orporaram práxis 'modernas' sem eliminar e t h o s 'tra-ionais', que permanecem invisivelmente atuantes
entro dos sujeitos. Esse descompasso entre aspectos iveis e invisíveis das relações de gênero leva à
coexis-ncia de mapas, ideais e normas contraditórias que
iuiras vezes é insuportável. A convivência do ideal
oleto', que permanece ativo e poderoso num inconsciente, com um ideal 'de vanguarda' no
pla-consciente gera este desmapeamento. Apesar desta igüidade, motivo de desorientação e sofrimento
uico, a sociedade reforça ilusoriamente a idéia de as pessoas são livres para optar, escolher e
cons-r eus estilos de vida e relacionamentos.
Se, de um lado, percebemos que continua a
exis-ruma esrigmatização daqueles que são percebidos como
desvio do modelo dominante, como os hornosse-ais (sobretudo os de orientação sexual passiva e/ou
êminados), de outro, inicia-se um reconhecimento, e te mesmo valorização, destes comportamentos
social-mente desviantes. Podemos sentir, facilsocial-mente, uma o s
-cilação entre um modelo tradicional de gênero e, ao
mesmo tempo, o desejo de inventar e questionar os com-portamentos e papéis sexuais existentes. Conseqüente-mente, cada indivíduo pode sofrer na pele o dilema de
mudar ou permanecer, confuso entre o medo de ser di-ferente dos demais e a liberdade de poder ser tudo o que deseja. Esta ambigüidade se reflete na mídia e se traduz em muitas dificuldades que heterossexuais, homossexu-ais e bissexuhomossexu-ais devem enfrentar em seu cotidiano.
Desta maneira, o homem dos anos 90 e do
século XXI parece ocupar o espaço de reflexão que teve a mulher nos anos 60 e 70, tanto no mundo
acadêmico quanto fora dele. Os debates nos progra-mas de televisão são outro reflexo desta mudança de
enfoque. Na verdade, continua a preocupação com os mesmos temas - tais como a distribuição desigual
de poder,· mas que a cada momento ganham uma nova roupagem. É interessante observar como estas preocupações, antes restritas a grupos de elite,
expan-diram-se para todos os setores sociais, ainda que com
forças diferentes.HGFEDCBA
C O N C L U S Ã O
Tendo em vista esta situação, não é de estranhar a
matéria publicada no O G l o b o(31/1/1999) que anuncia o verão de 1999 como sendo O Ve r ã o e l o s'Espadas'. A matéria afirma que 'espada' é a nova gíria do Rio de
Janei-ro e que veicula a idéia de masculinidade nos anos 90.onmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAÉ
um termo recuperado dos círculos dosp l a yh o yselegantes dos anos 50, e e fundamenta num ícone guerreiro
euro-peu. A gíria espada, para o psicólogo Sócrares Nolasco, lembra os heróis medievais e está sendo usada pela nova geração como uma tentativa de revalorizar a
vi-rilidade, em um momento em que a figura do ma-cho está tão desgastada.
O h o m e m h e t e r o s s e xu a l b r a n c o e s t á i n t i m i d a d o . H o u ve u m a a t u a l i za ç ã o d a i m a -g e m s o c i a l d a m u l h e r , d o n e g r o , d o h o m o s s e xu a L . O h o m e m c o n t i n u o u c o m o e r a . N e s t a n o va o r d e m d o m u n d o , e l e vi -r o u o o p -r e s s o -r ,o p o l i t i c a m e n t e i n c o r r e t o . A e s p a d a éu m a r e p r e s e n t a ç ã o d o g u e r r e i r o ,é
vi r i l , r e s g a t aa fo r ç a e ostatus (NOLASCO, 1995: 74).
Alguns homens, no entanto, parecem não que-rer ser 'espada' e optam por descobrir novas possibili-dades de 'ser homem'. São pessoas que reconhecem e
contribuem para as mudanças que o comportamento
masculino vem sofrendo. Para João S. TREVISANonmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
(1997), muitas dessas mudanças podem ser vistas como
produto dos espaços conquistados pelos homossexuais masculinos que então se abriram para os heterossexuais, tais como a utilização de roupas mais descontraídas,
ca-belos compridos ou pintados, brincos, cuidados com a aparência e o corpo e, até mesmo a possibilidade de fa-zer cirurgia plástica por razões puramente estéticas.
âo é à toa então que artigos de jornais e de
revistas, assim como seriadosihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA( W ill
6-
G r a c e )e filmes americanos ( A R a zã o d o Meu Afe to ) , mostram que ogay passou também a ser objeto de desejo de algumas mulheres, aquelas que também fogem dos estereóti-pos. Um exemplo disso é a declaração, hoje clássica,
da p o p s t a r Madonna à revista gay norte-americana
Ad vo c a te (1990). Segundo a controvertida atriz e
can-tora, 'todo homem deveria sentir a língua de outro
homem na boca pelo menos uma vez'. Tudo isso de
um modo ou de outro (pois até mesmo o fato de se condenar declarações como estas faz com que se
pen-se sobre elas), favorece o desmapeamento anterior-mente citado.
Considerando, tal como postula KIMMEL
(1998), que tanto a masculinidade hegemônica
quan-to a feminilidade ideal produzidas pela sociedade pa-triarcal são 'imperceptíveis' àqueles que tentam obtê-Ia
como ideais de gênero, pode-se dizer que o que vem
ocorrendo atualmente é uma maior consciência crítica das experiências e visões de mundo consideradas
espe-cíficas de homens e mulheres. Papéis considerados
como masculinos, como, por exemplo, o homem pro-vedor, chefe de família, e aqueles tidos como
exclusi-vamente feminino orno a posa, mãe exemplar,
dona de casa - o n o r a u..a o poroutro
atri-butos como homem e I "ai o o e ernorivo e
mulher forte, empreen ora coraio Este jogo per-mite observar, nitidamente a oexis ência de
mode-los tradicionais de ser homem mulher e novas representações sobre o mas ino e sobre o
femini-no, traduzindo-se em múltiplo padrões ornpetin-do e convivenornpetin-do com os padrõ tradicionais.
o que se refere à sexualidade é po ível encon-trar artigos de jornais e revistas com entrevistados
acre-40
ditando que o futuro aponta para o predomínio das relações bissexuais, quando o sexo biológico terá
me-nos importância do que a pessoa pela qual se está apai-xonado e/ou desejando. Elisabeth BADINTER (1986)
já discutiu esta possibilidade em U m É o O u t r o , bem como Camille PAGLIA (1996) em Va m p s
6-
Va d ia s .Para a socióloga francesa, homens e mulheres estariam cada vez mais próximos e indiferenciados, sem traços culturais marcados como exclusivamente femininos ou masculinos.
Os estereótipos do homem 'viril' e varonil e da
mulher feminina e delicada estariam, nesta perspectiva, sendo pulverizados. Não existirá mais um modelo
obri-gatório e rígido, mas uma infinidade de modelos
possí-veis. Curiosamente, é esta liberdade para escolher entre uma rnultiplicidade de comportamentos e de
identida-des, e a conseqüente responsabilidade que ela acarreta, que parece estar assustando homens e mulheres. Eles e elas demonstram ter medo de perder as regras e
classifica-ções cerceadoras (porém seguras) que tornavam relati-vamente previsível saber como se comportar, o que
desejar e que papéis cumprir. Hoje, tanto as opções
afetivo-sexuais. quanto as profissionais estão cada vez mais infinitas e flexíveis, e as escolhas podem provocar
verdadeiro pânico do desconhecido.
Em epítome, o que demonstra a profusão destas
modificações é que aquilo que era visto como um tema periférico nas Ciências Humanas e Sociais hoje é esti-mulado por financiamentos e concursos, criando um
can1pOfértil de estudos. Talvez isso signifique que a
mas-culinidade, ao contrário de estar em crise, se tornou uma
questão a ser pensada e debatida. Algo que era entendido como natural, o poder do 'macho', passou a ser
questio-nado, objeto de crítica, ou melhor, problematizado por
homens e mulheres. Até recentemente, como lembra João .TREVI (I998), homens heterossexuais não se
jul-gavam passíveis de discussão acadêmica ou mesmo no senso comum. Hoje tende-se, ainda que lentamente,
para uma não existência de um único modelo como
única referência de masculinidade para todos. O 'rnachisra' é, agora, alvo de risos e críticas.HGFEDCBA
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