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O CAMINHONEIRO E O ADVOGADO SUICIDA

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Academic year: 2021

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O CAMINHONEIRO E O

ADVOGADO SUICIDA

Autora: Renata Soltanovitch

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O caminhoneiro e o advogado suicida

Prefácio.

A idéia é sempre homenagear alguém nestes contos.

Alguns podem até se identificar com o personagem, nascido da minha imaginação.

Não importa. Sinta-se homenageado, pois desta vida, nada se leva e ainda seremos julgados pelos nossos atos terrenos.

Há sempre oportunidade de mudar, e melhorar, crescer, amadurecer. E este é o momento. O erro de antes não pode ser arrastado por toda a vida.

É aguardar as consequências para melhor administrá-los e como diz Vinícius de Moraes: “É melhor ser alegre do que ser triste... a alegria é a melhor coisa que existe... faz bem para o coração”.

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O caminhoneiro e o advogado suicida

Era uma noite agradável de sexta-feira e o advogado Romeu, cansado, exausto de sua rotina entre Fórum, prazo, cliente e delegacias, sem muito retorno interno, embora muito retorno financeiro, decidiu pegar seu belo carro esporte e cair na estrada.

O objetivo era ir para Lins, não a bela cidade do interior, mas sim a gíria acadêmica de direito que quer dizer Lugar Incerto e Não Sabido, sigla desesperadora certificada por Oficial de Justiça quando se quer urgentemente citar alguém para responder um processo.

Nos últimos meses, Dr. Romeu estava tão exausto, que sentia fortes ânsias de vômito e depois de inúmeros exames, constatou-se que tudo não passava de estresse. O mal da humanidade.

Noites em claro, ansiedades, sem tempo e vontade de se exercitar. Seu horário de trabalho se iniciava cedo e ia noite à dentro.

Ganhava muito dinheiro, viaja o mundo inteiro. Quando desejava, passava um feriado em Paris, sem muita dificuldade.

Muitos finais de semana ele aproveitava para fazer compras em Miami ou jantar em Nova York, ou até mesmo assistir um show de tango na Argentina.

Aproveitava as férias forenses para ir mais longe. África, Grécia, Egito, Índia, Dubai, eram seus roteiros preferidos.

Já conhecia a Europa inteira, mas muito pouco do Brasil.

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sem filhos, viajava sempre sozinho, pois sua esposa nunca conseguia férias – e nem mesmo se interessava em tirá-las no mesmo período que ele.

Seu casamento era distante. Cada um no seu canto, mas como advogado sabia que se separasse era maior o prejuízo do que ficar juntos. Os dias iam passando.

No início de sua pós-graduação, reencontrou uma grande amiga dos tempos da faculdade – Dra. Monica – o que despertou em Dr. Romeu um sentimento que há muito, já havia esquecido.

Monica era uma bela jovem, simpática, que irradiava alegria onde estivesse. Sempre tinha em seus lábios uma palavra bíblica de amor e esperança e mesmo agora sendo Juíza, não se esquecia de manter esta linguagem, mesmo judiciando em uma Comarca carente e sem muitos propósitos governamentais.

Esta atitude da Dra. Monica desde os bancos acadêmicos, fez com que Dr. Romeu se lembrasse do motivo de ter amado tanto aquela mulher em tempos escolares e depois de passados quase trinta anos, estavam novamente juntos em um curso.

Durante o ano de pós-graduação, Dr. Romeu nutria o amor platônico por Mônica, e os encontros, duas vezes na semana, afagavam seu coração e o mantinha aquecido nos demais dias até o novo encontro.

Vê-la sorrir e brilhar seus olhos, o enchia de felicidades. A lembrança de seu rosto juvenil, o mantinha inspirado para tolerar o resto da vida.

O início das aulas era esperado com uma ansiedade, e sua presença iluminava o ambiente e trazia uma sensação de paz e amor.

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O amor que sentia por ela tranquilizava sua mente inquieta e obsessiva por trabalho. Ao seu lado, Dr. Romeu sentia-se ele mesmo. O resto era fantasia, preso a inúmeras responsabilidades, prazos e compromissos. Uma vida sem propósito, só com agenda cheia.... cheia de mentiras, até seu casamento era um negócio assinado em frente ao Juiz de Paz com duas testemunhas para atestar sentimentos inexistentes.

E foram estes sentimentos que fizeram com que Dr. Romeu se encontrasse com o caminhoneiro Antonio.

Foi em plena estrada. Dr. Romeu com seu belo carro esporte, mas um vazio enorme dentro do peito, com um grande sentimento de desilusão, ausência de fé e de “saco cheio” de tudo, e em uma fração de segundos, ao constatar o caminhão dirigido pelo Sr. Antonio vindo em sentido contrário, não teve dúvidas, jogou seu carro em frente ao caminhão, em uma suposta ultrapassagem proibida – embora não tivesse nenhum carro na sua frente – objetivando exclusivamente causar sua própria morte, acreditando que o suicídio seria a melhor forma de encerrar seus problemas.

Dr. Romeu nunca teve intenção de prejudicar absolutamente ninguém. Sempre foi advogado probo, honesto, workaholic em demasia. Exagerado, inclusive. E naquele instante e pelo tamanho do caminhão, não acreditou que pudesse ferir o caminhoneiro. E decidiu se jogar na frente de seu caminhão.

Porém, as coisas não saíram como planejado. Primeiro porque Dr. Romeu não morreu. Ficou lá, na estrada, com seu corpo estendido no chão, atrapalhando todo o tráfico. Por sua vez, tanto como ele, o Sr. Antonio se feriu, e muito, com traumatismo craniano e em estado de coma.

Ambos foram levados para o mesmo hospital e suas famílias avisadas.

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A esposa do Dr. Romeu, com sua bolsa de marca e sapatos chiques, deu início a maratona para transferi-lo para o melhor hospital da cidade. Sozinha, sem filhos ou família, se fragilizou com a situação do Sr. Antonio, até porque o Delegado que teve com ela, avisou que a perícia local constatou a tentativa de suicídio de Romeu, inclusive com um bilhete localizado no bolso de seu paletó, dizendo “A vida que me desculpe, já que a morte virá. Que venha agora e acabe com este sofrimento”.

Branqueando em um quase desmaio, o delegado Netto, com aqueles braços fortes, amparou a esposa do Dr. Romeu, sentindo a fragilidade daquela bela mulher e se embebedou com seu agradável perfume caro. Mal sabia, mas naquele momento, nasceria uma louca paixão, que nutriria desejo, culpa, traição e até romance.

O delegado ficou ao lado da esposa do Dr. Romeu para auxiliá-lo na transferência não só do seu marido, como também do caminhoneiro Sr. Antonio, que nada tinha culpa dos devaneios de um suicida.

Alguns dias depois e por conta do estado de saúde de ambos, não foi possível a transferência deles do hospital, mas a esposa do Dr. Romeu contratou, para cuidar de ambos, os melhores médicos.

Ela já não mais estava sozinha nesta peregrinação, pois diariamente o delegado Netto fazia o possível para auxiliá-la e enquanto isto, Maria e seus filhos, não deixavam de rezar.

E foi por conta destas rezas, somado a competência dos médicos, que Antonio e Dr. Romeu começaram a ter consciência do acidente.

Não nesta vida, mas na linha da recuperação inconsciente, com ajuda de entidades para a preservação terrena.

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Antonio, por sua vez, nascido e criado na Bahia, era devoto de diversos santos. Religioso. Crente. Possuidor de uma fé sem precedentes. Era um homem simples e feliz.

Cresceu jogando capoeira nos terreiros de candomblé. Aprendeu a acreditar. Frequentador assíduo de todas as igrejas do pelourinho era um homem livre de preconceitos. Sua alma era liberta da podridão humana.

E foi neste momento que o Dr. Romeu passou a mudar seu olhar de vida.

Antes de relatar as conversas sobreterrenas entre Antonio e Dr. Romeu, se faz necessário explicar algumas questões jurídicas que decorreram em virtude do acidente, contemplando, inclusive, a manutenção financeira da família de Antonio.

A esposa do Dr. Romeu era uma mulher esclarecida, diretora-executiva de uma grande empresa, sabia das implicações decorrentes de tal acidente. Com ajuda do Delegado, contratou um excelente advogado para resolver os problemas burocráticos.

O seguro do veículo do Dr. Romeu foi acionado para pagar a família da vitima e o DPVAT e o reparo do caminhão de Antonio.

Também decidiu-se pagar normalmente à família de Antonio, uma pensão para que pudessem sobreviver, já que ele era autônomo e trabalhava como agregado em uma empresa que vendia móveis para casa e fazia suas entregas diariamente com seu próprio caminhão.

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Esta situação somente ocorreu não por solidariedade, mas sim para evitar a majoração de eventual ação indenizatória que Antonio, ou sua família, no caso da morte dele, ingressasse em juízo.

A esposa do Dr. Romeu estava bem orientada pelo tal delegado Netto, que insistia em vê-lo diariamente no hospital, o que confortava sua alma, já que estava apaixonado por sua mulher.

Os dias foram se passando e o delegado Netto e a esposa do Dr. Romeu passaram a se ver além do hospital. Muitas vezes em horário de almoço dela, havia encontros em algum motel. Nas vezes em que ela precisava viajar a trabalho, ele era comunicado, acompanhando-a até o aeroporto ou então buscando para o encontro caloroso.

Enquanto isto, Dr. Romeu e o caminhoneiro Antonio, ambos em coma, por conta do traumatismo craniano, decorrido do referido acidente, passam a ter ciência dos fatos através dos socorristas espirituais.

Depois de ficar sabendo de toda a dinâmica do acidente, Antonio quis saber do Dr. Romeu o motivo de tanto ódio de si mesmo no coração.

Nas suas explicações, Dr. Romeu se sentia um covarde, sem conseguir reagir às anomalias da vida. Depressivo, em nada acreditava.

O mundo anda muito violento e o cidadão sem ter cuidados básicos necessários.

Não há nada que se possa fazer. Felizes os ignorantes que não veem tanta injustiça, em que pese ainda sofrer na alma tudo isto, mas não têm tanta noção da maldade dos governantes ao desproteger aqueles que os sustentam.

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- O mundo está desgovernado. Só tem maluco. Você sai de casa sem ter a certeza que irá voltar. Um drogado qualquer que pode meter um tiro no meio da tua cara e tenha certeza, você somente vira estatística. É mais um que morreu - frisou Dr. Romeu.

- Nossa!!!! Como você é pessimista, diz Antonio assustado.

Então, Dr. Romeu dá de ombro, mas resolve perguntar.

- Antonio, em que País você vive? Da Alice? Ou você acha que alguém se importa com o cidadão? Quantas vezes você foi assaltado e viu suas coisas indo embora nas mãos de bandidos? E não adianta ter carro blindado, que eles te pegam na entrada e na saída do carro. E depois ainda querem desarmar o cidadão. A polícia não dá conta. E com salário baixo que recebem, arriscando a vida por um ideal! São uns heróis! E o pior, o governo não escuta. Não estão nem aí!

- Aliás, não precisa ir muito longe - ponderou Dr. Romeu.- Quando não somos assaltados por bandidos, somos assaltados pelos políticos, que surrupiam nosso dinheiro sob a denominação legal de impostos. É uma beleza!!! Depois o cidadão não pode sair à noite, porque é assaltado, não pode se divertir em um restaurante com os amigos, pois sofre arrastão, não pode demorar no banho para relaxar, pois irá faltar água no planeta. Tem que selecionar o lixo, pois não há um planejamento adequado de reestruturação de resíduos. Quando se maltrata um animal, o vídeo vai parar no YouTube com milhões de acessos. Quando um cidadão é morto em um assalto, vira estatística!!! Que alterações de valores são esses? Nossas mulheres apanham em nosso País e querem discutir o uso da burca em País alheio? Socorro, não aguento mais!!! Quanta falsidade! E para piorar, quando morremos, viramos apenas uma certidão de óbito e ninguém mais se lembrará de sua existência! Está tudo errado!

E Antonio sorri para seu novo amigo desesperado, com ar de perdão do que aconteceu (“senhor, ele não sabe o que faz..”) e comenta:

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- Sim, afirma Dr. Romeu.

- Então, comenta Antonio. Muitos, desesperados com o problema, o contratam e você, profissional, resolve. Não é isto? Portanto, constate o bem que você faz para alguém.

- Bem? De onde você tirou isto, Antonio? Primeiro, eu faço aquilo pelo que fui contratado e remunerado. Segundo, as pessoas empurram o problema para você! Exceto um caso ou outro que possui verdadeira característica da Justiça, as demais se situam em questões financeiras. Vou dar alguns exemplos: o sujeito que responde criminalmente por sonegação fiscal, o outro que bateram no carro dele ou que precisa despejar alguém do seu imóvel ou receber um crédito.

- Observe - continua Dr. Romeu.- Não se fala na Justiça no seu aspecto filosófico ou da forma como se aprendeu nos bancos acadêmicos. De novo. Para ser mais preciso as pessoas terceirizam seus problemas para que o advogado possa resolver e muitas vezes não consegue o que causa muita frustração e é desta que estou cansado.

- Mas foi por isto que você tentou o suicídio?- Perguntou Antonio.

- Tentou? Achei que tivesse conseguido! Até para isto faço errado?

- Errado? Como assim?- Indagou Antonio.

E completou:

- Dr. Romeu.... Dr. Romeu... Onde está o seu amor? O que digo é amor próprio? Todos passam por frustração ou decepção. Basta aprender lidar com elas. É difícil, mas tem que aprender. E essa é nossa missão na terra.

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- De Deus, disse Antonio, com tranquilidade. Sou um homem de fé e levo alegria para os outros.

- Não entendi! - diz Dr. Romeu, com cara de ponto de interrogação.- Você não é entregador de móveis? Um caminhoneiro?

- Sim. - disse Antonio.- Vou contar o que faço.

- A família entra na loja e compra uma sala de jantar, com direito a sofás, rack e uma bela mesa. Pagam em prestações e ficam ansiosos para receber os bens móveis para prestigiar família e amigos. No dia e hora marcados, eu chego com tudo aquilo e ajudo a montar a casa da pessoa. Normalmente, a esposa e as crianças entram em delírio. Ficam felizes, e normalmente somos recebidos com alegria e uma xícara de café bem feito. Se isto não é vida, Dr. Romeu, ser recebido com alegria, você não sabe viver.

- Viver? Eu conheço praticamente o mundo inteiro - retrucou Dr. Romeu furioso.

- É mesmo? - Disse Antonio. - E a si mesmo? Você conhece?

Um silêncio ensurdecedor invadiu a conversa de ambos, sendo quebrado apenas pelo anjo da guarda do Dr. Romeu, dizendo que ele estava autorizado a retornar, pois Antonio já tinha outro destino, retornando a sua morada original.

Dr. Romeu ainda tentou argumentar a injustiça daquilo, mas Antonio o olhou com carinho e pediu apenas para que ele não desamparasse sua família. E se foi.

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O sentimento de vazio invadiu sua alma e agachou no pé de seu amado, e lançou todas as suas preces. Como um milagre, sentiu um abraço forte, aconchegante, reconhecendo ser do seu amado marido, com a leitura de que tudo ficaria bem.

Sem ódio no coração, a esposa de Antonio aceitou toda a ajuda ofertada pelo Dr. Romeu, além de uma pensão mensal, que embora pudesse ser olhada juridicamente como indenização por morte, era ofertada com o mais profundo sentimento de culpa pelo que fez, gerando mais tarde, um tumor maligno, que fez com que entendesse toda a conversa com o Antonio, no passado não muito distante.

Mesmo doente, Dr. Romeu não só ajudou a família de Antonio retornar para a Bahia, mas a acomodou em uma bela residência aos pés do Pelourinho, em Salvador, lugar que Antonio saiu e onde foram jogadas suas cinzas.

A esposa do Dr. Romeu casou-se com o Delegado Netto, fazendo com ele se desprendesse de mais uma grande culpa, ou seja, a manutenção de uma relação sem amor.

Foram nos últimos dias de vida do Dr. Romeu, ao lado da família de Antonio, aos pés do Pelourinho, que pela primeira vez sentiu paz de espírito.

Agradeceu a mãe de santo pela acolhida, os banhos de arruda para espantar o mal olhado e as benzidas necessárias para aliviar a dor do corpo físico e partiu, encontrando no outro plano, o sorriso de Antonio, para ser conduzido a sua recuperação espiritual.

Referências

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