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No entanto, tal caminho demandaria mais uma discussão teórica do que propriamente uma leitura de Guimarães Rosa

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III. A VEREDA DA PALAVRA: QUESTÕES DE LINGUAGEM EM RELIGIÃO, TEOLOGIA E LITERATURA

“[...] o poeta é coisa leve, e alada, e sagrada, e não pode poetar até que se torne inspirado e fora de si, e a razão não esteja mais presente nele. Até conquistar tal coisa, todo homem é incapaz de poetar e proferir oráculos. [...] o deus me parece demonstrar a nós, para que não tenhamos dúvida, que não são humanos esses belos poemas nem dos homens, e que os poetas não são nada mais que intérpretes dos deuses, estando tomados, cada um, por aquele que o toma. Para demonstrar isso, o deus, de caso pensado, cantou por meio do poeta mais banal a mais bela canção” (Sócrates)1.

Introdução

Esta segunda vereda de leitura entre teologia e literatura, que tomo para a leitura de João Guimarães Rosa, a Palavra como Vereda, por sua complexidade e volume, precisou ser atenuada, pois poderia tomar diversos caminhos na relação entre palavra e diálogo entre teologia e literatura.

Primeiro, seria possível aprofundar-se numa leitura da relação entre a palavra sagrada e a literatura profana, passando atentamente por autores como Harold Bloom e Northrop Frye. No entanto, tal caminho demandaria mais uma discussão teórica do que propriamente uma leitura de Guimarães Rosa. De outra forma, seria possível uma leitura de relações textuais entre a literatura sagrada e questões próprias da religião dentro da literatura rosiana, utilizando-se e fazendo paralelos textuais. Mas isso também demandaria um volume muito grande de produção, já que tanto a obra de Rosa quanto as fontes religiosas onde o autor “bebeu” são algo gigantesco. Dessa forma, como caminho para a leitura de Rosa, tomando a palavra como ponto de referência, a correspondência, optou-se por outro caminho: primeiro, o da apresentação de questões de linguagem na religião e na literatura, mais como forma

1 PLATÃO. Sobre a inspiração poética (Íon) & Sobre a mentira (Hípias Menor). (tradução do grego de André Malta). Porto Alegre: L&PM, 2007. pp.33e35.

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de limitação de conceitos; depois, caminhou-se pelas relações de textos, os textos sagrados e profanos em Guimarães Rosa, com a apresentação de um palimpsesto exemplo; até se chegar às veredas de influência do autor, que serviram como leitura para a sua obra. Assim, é isso o que segue.

1. Questões de Linguagem: literatura e religião

A primeira preocupação em relação às questões de linguagem está na delimitação daquilo que se quer dizer com os termos próprios deste diálogo: teologia e literatura. Deu-se à literatura, desde o início da produção deste texto, de forma bem geral, a compreensão de belas letras, o que certamente não explica definitivamente o conceito de literatura nem limita esse conceito dentro da presente tese, já que a literatura está para além dessa limitação conceitual2. Já com relação à teologia, o caminho se deu em duas diferentes direções: 1. teologia como produção de um saber da igreja sobre o divino, sistematizada e dogmatizada; e 2. teologia como reflexão humana sobre o divino, dada num espaço mais aberto e menos vinculada à igreja, à dogmática ou à sistematização. No entanto, para além, outros termos também passam a ser usados no diálogo entre teologia e literatura, como os termos “religião” e

“sagrado”. De forma a ampliar e a criar outros termos e novas problematizações, como os termos “religião e literatura”, “texto religioso” e “texto secular”, “texto sagrado” e “texto profano”, “linguagem literária” e “linguagem religiosa”. Desse modo, nas relações do diálogo entre teologia e literatura – no entremeio da linguagem – literatura e religião se encontram de forma definitiva especificamente no texto, ou melhor, na palavra, tanto na sagrada como na profana.

Religião e Sagrado: delimitação de conceitos

Segundo Severino Croatto, o texto ou a palavra, como prefiro e anuncio, é a última das formas no desenvolvimento da linguagem religiosa, caminho único para a

2 Não retomo aqui as discussões sobre tal assunto, pois acredito que os dois primeiros capítulos da tese já dão conta de tal problematização. Também não detalho as compreensões de teologia pelo mesmo motivo. O que aqui se busca é tratar dos conceitos religião e sagrado, o que também não se busca com aprofundamento, já que esse não é objetivo da tese.

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interpretação da religião, segundo o autor3. Croatto, em sua fenomenologia da religião, caminha do símbolo, que ele compreende como linguagem básica da religião4, ao mito, depois, do mito ao rito e, por fim, do rito à doutrina, o texto em si.

Ele entende também – como o mito tenta ordenar e estruturar a realidade, dando ao homem religioso uma significação do caos ao cosmos – que a formulação e organização de textos significadores (textos que recolham as tradições, os mitos, a instituição dos ritos, as orações e as leis básicas) logo, como primeiro fenômeno, tornaria esses textos em textos fundantes e sagrados5. O texto símbolo se torna texto sagrado, sacralizando também a língua e o mediador (escritor), além de possibilitar e fomentar a doutrina e a ética6.

Também para Rudolf Otto, a compreensão do sagrado atinge seu ponto mais

“evoluído” na configuração do texto, que está na ética e na doutrina como afirmação do elemento racional do sagrado. Mas, segundo o autor, é o elemento não-racional que “revela” de forma mais completa a experiência humana com o divino. Ele diz que “o sagrado é antes de mais nada, interpretação e avaliação do que existe no domínio exclusivamente religioso”, que passa por categorias racionais, como a ética, mas que se dá de forma mais completa e complexa naquilo “que se subtrai a tudo o que nós chamamos de racional”, é algo “completamente inacessível à compreensão conceitual, e constitui algo inefável”7. E esse algo, para Otto, é sempre o algo que está fora, fora de mim, é o que eu não compreendo, é um mysterium; e que por eu não compreender tenho medo (o sentimento primeiro8), é um mysterium tremendum;

3 Para ele, a experiência do sagrado se faz visível e analisável na linguagem que, como elemento aparente, procura expressar essa experiência, a experiência do humano com o que está fora dele e além de sua realidade e compreensão. Severino CROATTO. As linguagens da experiência religiosa:

uma introdução à fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2001. pp.41ss.

4 “O símbolo é a linguagem básica da experiência religiosa. Funda todas as outras. Tem um valor essencial que é necessário destacar mais uma vez: o símbolo faz pensar; o símbolo diz sempre mais do que diz. É a linguagem do profundo da intuição, do enigma. Por isso é a linguagem dos sonhos, da poesia, do amor, da experiência religiosa”. Id. Ibid. p.118.

5 Cf. Id. Ibid. pp.398-399.

6 Cf. Id. Ibid. pp.400ss.

7 Rudolf OTTO. O sagrado: um estudo do elemento não-racional na idéia do divino e a sua relação com o racional. (tradução: Prócoro Velasques Filho). São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985. p.11.

8 Otto entende que Schleiermacher estava errado quando assinalou como sentimento religioso o sentimento de dependência. Em Schleiermacher “o sentimento religioso seria imediato e à primeira vista um sentimento de si mesmo, uma determinação particular do eu, o sentimento de minha dependência. Somente por meio de inferência é que se pode concluir que esse sentimento é causado por algo externo a mim, que se encontraria na divindade em si. Mas esta concepção é contrária aos dados psíquicos. O sentimento de ser criatura é, pelo contrário, um elemento subjetivo concomitante;

por assim dizer, ele é sombra de um outro sentimento, o sentimento do medo que, sem nenhuma

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mas que, ao mesmo tempo que me causa medo, seduz e me atrai (o mirum), pois entendo que sou menor em relação ao que está fora, sou dependente e criatura, e isso, para Otto, na religião, que, “em certos casos, assume a manifestação do sagrado”9, é um a priori:

“A religião não está nem sob a dependência do telos nem do ethos e não vive de postulados. O que nela há de não-racional possue [sic], por sua vez, origem independente e mergulha diretamente as suas raízes nas profundezas ocultas do espírito”10.

Tudo isso estaria ligado a uma não-racionalidade que pertence ao universo da religião, que só se explica ou se analisa a partir de uma observação do que é expresso dentro e a partir dessa relação entre o humano e o divino, a expressão em linguagem, o que Eliade chama de hieorofania11. Mas essa expressão [a linguagem] nem sempre é racional. Para Otto, “a religião não se esgota em anunciados [sic] racionais”12, pelo contrário, é no não-racional, elemento que teima hoje em resistir mesmo dentro de religiões altamente racionalizadas (como o cristianismo), que a religião e o sagrado se fazem experimentáveis e compreensíveis: “não se pode tentar compreender o que ela [a religião] é a não ser tentando chamar a atenção do ouvinte para a mesma e fazer-lhe encontrar em sua vida íntima o ponto onde ela surge e se torna então consciente”13. E isso, para usar uma linguagem mais rosiana, estaria mais ligado ao

“primado da intuição” do que à “megera cartesiana”14.

dúvida, relaciona-se diretamente a um objeto fora de mim. Este objeto é o objeto numinoso”. Id. Ibid.

p.15.

9 Id. Ibid. p.164.

10 Id. Ibid. p.115.

11 Para Eliade, é a compreensão da relação do homo religiosus com o sagrado, a hierofania, que possibilita a compreensão da religião como religião na existência humana, que busca pela organização do Caos em Cosmos. “A fim de indicarmos o ato da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania, [...] o algo de sagrado que se nos revela”. Mircea ELIADE. O sagrado e o profano: a essência das religiões. (tradução: Rogério Fernandes). São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.17.

12 Rudolf OTTO. O sagrado: um estudo do elemento não-racional na idéia do divino e a sua relação com o racional. (tradução: Prócoro Velasques Filho). São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985. p.09.

13 “Id. Ibid. p.12. Para Otto, só quem experimentou a religião sabe o que é religião, do contrário “é impossível conversar sobre religião” com quem não experimentou a religião, com “um tal homem”.

Id. Ibid. p.13.

14 João Guimarães ROSA; Edoardo BIZZARRI. João Guimarães Rosa: Correspondência com seu tradutor Italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.90. (Correspondência de 25 de Novembro de 1963, enviada por João Guimarães Rosa).

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Segundo Friedrich Schleiermacher, o teólogo pai da teologia protestante moderna, religião seria basicamente isso, intuição. Na sua apologia15, Schleiermacher tenta demonstrar que religião é, primeiro, uma ‘intuição’ do universo. Por isso, para o autor, toda tentativa de “penetrar mais profundamente na natureza e na substância do todo”16, e toda tentativa de meditar acerca do Infinito e do ser de Deus, não pertence ao religioso17, pois o religioso apenas intui, não organiza, nem melhora.

Isso, para Schleiermacher, é papel da metafísica e da moral, que, em algum momento da história, capturou a religião. Depois, em segundo lugar, religião é a compreensão humana de sua finitude em relação ao Universo e da necessidade de relação desse humano com esse Universo, o sentimento de dependência, o que, acredito, se faz muito perto daquilo que Paul Tillich chama de “preocupação última”: “tudo aquilo que preocupa o homem de forma última se torna deus para ele”18. Isso seria religião, o lugar último para aquilo que fracassou como possibilidade e início de significações mais fortes diante da realidade que se apresenta. Segundo Rubem Alves, a teia de símbolos, o testemunho das coisas ainda ausentes e a saudade do que ainda não se fez19.

Na religião, entende Rubem Alves, o humano se organiza e organiza seu mundo numa linguagem que interpreta20 e dá sentido (exprime de forma organizadora21) ao como o humano vive em relação com seu mundo. Mas não só isso, ela também confere força, pois ela se relaciona com questões de poder22, diz Riobaldo: “[...] não ache que a religião afraca”23. Além de possibilitar fuga: “por mais alienada que seja uma dada experiência religiosa, ela é sempre um protesto contra as condições de existência”24. É a forma do humano dizer sobre aquilo que lhe escapa, sobre aquilo que não pode ser dito.

15 Friedrich SCHLEIERMACHER. Sobre a religião. (tradução: Daniel Costa). São Paulo: Novo Século, 2000.

16 Paul TILLICH. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. (tradução: Jaci Maraschin). São Paulo: ASTE, 2004. p.36.

17 Cf. Id. Ibid. pp.36-37.

18 Paul TILLICH. Teologia sistemática. (tradução: Getúlio Bertelli). São Paulo / São Leopoldo:

Paulinas / Sinodal, 1987. p.180.

19 Rubem ALVES. O que é religião? São Paulo: Edições Loyola, 1999. pp.24-25.

20 Id. O enigma da religião. Petrópolis: Vozes, 1975. p.70.

21 Id. Ibid. p.25.

22 Id. Ibid. p.92. Apud. Emile DURKHEIM.

23 João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.39.

24 Rubem ALVES. O que é religião? São Paulo: Edições Loyola, 1999. p.100.

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Palavra, religião e literatura

Na literatura, dentro das possibilidades para esta leitura da “palavra” como vereda de correspondência, vê-se, em princípio, que algumas das discussões também passam por uma preocupação de linguagem, que, no texto literário, por sua força de arte e de produção representativa, inicia-se na compreensão da estética e da hermenêutica, o que, por sua vez, poderia, desde esse início, conduzir as discussões em duas diferentes direções: 1. Primeiro, sob dois opostos: um pelo lado do contexto artístico e literário, com a compreensão de religião exclusivamente como dogma e não mais como experiência ou experimentação humana da vida e de representação do mundo, como aconteceu, segundo aponta Antonio Magalhães, nas discussões entre teologia e literatura no contexto europeu25; e, do outro lado, mais “científico”

(sociologia, filosofia, psicologia e teologia), a compreensão de literatura como “coisa segunda” dentro da produção do saber humano, literatura mais como expressão estética do que como hermenêutica:

“A literatura, ao ser colocada como nível inferior do conhecimento do mundo, das coisas e das relações, foi entendida em caráter associativo, consciente ou inconscientemente, de forma semelhante como a natureza foi entendida em relação à razão, o corpo em relação ao espírito, a seita em comparação com a Igreja e o sentimento em comparação com a análise. Nas questões éticas, ela significaria permanentemente o perigo de fruição estética, de escapismo lúdico, de devaneio artístico, sem se ocupar com as dimensões mais profundas das relações envolvidas no objeto analisado e na forma como ele poderia ser, da melhor maneira, desvelado”26.

2. Segundo, em correspondência literária: a compreensão de que a linguagem literária em sua força de arte, na estética e na fala hermenêutica, poderia ser uma fonte para leituras do imaginário religioso e das manifestações do sagrado nesse imaginário, ou mesmo, por uma outra vereda, a literatura como uma expressão mesma do sagrado. Nesse caso a literatura poderia se tornar “literatura religiosa”, como afirmação dos dogmas ou, de outra forma, tornar-se literatura em concorrência, como expressão melhor do sagrado, seja em sua intertextualidade (palimpsesto),

25 Cf. Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. p.45.

26 Id. Ibid. p.69.

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como reafirmação, ou na releitura ou desleitura dos textos sagrados por excelência.

Diz Magalhães:

“Problematizando a relação com a teologia, temos o caso da literatura diante de duas possibilidades: ou se tornando em litera- tura religiosa, servindo de narrativa humana das narrativas divinas da revelação, ou se acomodando ao papel de engano ou de narrativa concorrente ao projeto da tradição como proposta de revelação estabelecida e fechada”27.

No entanto, o que não se tenciona com essas primeiras afirmações é caminhar na direção de uma leitura da arte, especificamente da arte literária, que entenda e diga que a arte expresse melhor o transcendente do que a própria religião, dizer que a expressão do sagrado pela arte se faz mais forte do que a expressão do sagrado na religião. Não é também intenção transformar a estética, seja ela de outras artes ou da própria literatura, estética literária, em “um outro nome para as questões últimas desenvolvidas pela teologia”28, dando-lhe outra e mais força. Também, por outro lado, não se busca – nem se buscará – defender o sagrado como elemento exclusivo do religioso ou, pelo menos, como sendo maior ou mais forte do que a mesma expressão na arte, assim como não se entendeu, nem se defendeu o teológico como elemento exclusivo da igreja, do magistério, dos concílios ou das sistemáticas e dogmáticas. Entendo, primeiro, que o sagrado, assim como o teológico, não é contido, mas contém.

Desse modo, contido pelo sagrado – sagrado pensado a partir de Rudolf Otto e Mircea Eliade, como elemento não-racional e racional29 na formação do pensamento humano – entende-se que a “palavra” expresse esse sagrado como linguagem humana, tanto no campo da própria religião, a religião institucionalizada, que, por fim, segundo Otto, vai levar o sagrado para conceitos mais racionais30, quanto no campo da própria cultura, de uma religiosidade que, sem estar desligada,

27 Id. Ibid. p.69.

28 Cf. Id. Ibid. p.151.

29 “Propomo-nos apresentar o fenômeno do sagrado em toda a sua complexidade, e não apenas no que ele comporta de irracional. Não é a relação entre os elementos não-racional e racional da religião que nos interessa, mas sim o sagrado na sua totalidade”. Mircea ELIADE. O sagrado e o profano: a essência das religiões. (tradução: Rogério Fernandes). São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.17.

30 Cf. Rudolf OTTO. O sagrado: um estudo do elemento não-racional na idéia do divino e a sua relação com o racional. (tradução: Prócoro Velasques Filho). São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985. p.121.

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fica à parte dessa religião institucionalizada, expressa, dentre outras formas, também no elemento estético das belles letres. E é a palavra, falada e escrita, o elemento central nessa lógica. A palavra sobre o sagrado torna-se palavra sagrada.

Tudo se dá pela palavra. Segundo Antonio Magalhães, a compreensão se dá através das palavras que estão no nosso mundo, “palavras são as coisas e as pessoas e pelas palavras criamos o mundo, ordenamos o caos e damos nomes novos às situações e pessoas”31:

“É pela fé [diria o autor aos hebreus] que compreendemos que os mundos foram organizados por uma palavra de Deus. Por isso é que o mundo visível não tem sua origem em coisas manifestas”

(Hebreus 11:03).

Mas, quando saímos da Palavra Sagrada por excelência, a Bíblia, discussão a ser feita e aprofundada mais à frente, a palavra perde um pouco de sua força significativa e significadora. Ela não faz mais parte de uma lógica religiosa institucionalizada e fixada. No entanto, quando pensamos que a Palavra Sagrada foi, antes de ser sagrada, apenas palavra, podemos compreender, seguindo Northrop Frye32, que a palavra só se tornou sagrada, porque antes era apenas palavra, significante e significadora, tenha sido ou ainda seja ela oral ou escrita, mítica ou bíblica, doutrinal ou literária:

Talvez não exista essa entidade chamada “a bíblia” e o que assim se chama não passe de uma mixórdia inconsistente e confusa de textos precariamente definidos. [...] Ela existe, quando não mais, porque foi obrigada a existir. Mas, apesar de todas as razões externas, deve haver alguma razão interna, mesmo para uma existência compulsória. [...] Ela começa como começo do tempo, na criação do mundo; e termina com o término do tempo, no Apocalipse. No meio do caminho ela resenha a história humana, ou o aspecto da história que lhe interessa, sob os nomes simbólicos de Adão e Israel”33.

Tomando isso como base, pode-se entender que quando a palavra é lida dentro da literatura, ela é forte não por ser, primeiro, sagrada, pois a ela não foi dado essa forte

31 Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. p.158.

32 Northrop FRYE. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. (tradução de Flávio Aguiar). São Paulo: Boitempo, 2004. 293p.

33 Id. Ibid. p.11.

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caracterização, mas por ser, primeiro, palavra. Para Suzi Frankl Sperber, “a palavra é sagrada e evoca o sagrado”34. No vínculo entre a poesia e o sagrado35, poderíamos dizer, entre a literatura e a religião, respeitando os conceitos a partir do que já fôra dito, encontra-se a palavra, que, na literatura, é evocadora, potencializadora, e que formula sentido, como no mito36 e na religião, para a vida do sofrente. Por isso ela é também palavra sagrada:

“Todos estes motivos se referem à palavra de força sagrada, que leva à iniciação: o fortalecimento da alma para enfrentar os perigos da viagem e, depois, para ter acesso ao reino dos mortos sem perigos para si, até chegar à plenitude, que é também a recuperação (ou manutenção) da identidade – identidade que vem de uma aliança com o sagrado [a autora se refere ao Livro dos Mortos do Antigo Egito e ao conto do Chapeuzinho Vermelho, e o faz comparando um ao outro]. A “palavra sagrada e de potência [a autora fala de Freud]” precisa ser reconhecida, aceita, vivida e repetida. Ela revela ter um nível metafísico (religioso) e ao mesmo tempo um nível de mera enunciação, que é o da materialidade da palavra”37.

Esse sentido evocador da literatura, de vocação para a vida, anunciado também por Reginaldo Júnior em sua tese de doutorado38, de produção de sentido para a vida, que antes era elemento exclusivo do mito religioso, segundo Frye, passa a ser a força da palavra literária, da palavra literária sagrada, que se faz sagrada não só por força de excelência, mas por força de sentido. Suzi Frankl Sperber ainda diz:

“não é necessário nenhum artifício ou esforço para atribuir valor sagrado à palavra de potência [a uma literatura significante e significadora]. Ele existe per se”39. Com isso não se quer privilegiar a literatura como manifestação do sagrado, pela palavra. Mas começar a dizer que a palavra, como linguagem humana, na literatura, quando se faz

34 Suzi Frankl SPERBER. Sagrado, poesia e efabulação. In: Eduardo GROSS (organizador).

Manifestações literárias do sagrado. Juiz de Fora: UFJF, 2002. p.86.

35 Id. Ibid. p.86.

36 Leituras em Mircea Eliade, o Sagrado e o profano e Mito e realidade, talvez possam servir para uma melhor compreensão daquilo que se propõe por sagrado e mito no presente texto, no sentido de limitação dos conceitos e também daquilo que se está propondo.

37 Suzi Frankl SPERBER. Sagrado, poesia e efabulação. In: Eduardo GROSS (organizador).

Manifestações literárias do sagrado. Juiz de Fora: UFJF, 2002. p.95.

38 Cf. Reginaldo José dos SANTOS JÚNIOR. A plausibilidade da interpretação da religião pela literatura: uma proposta fundamental em Paul Ricouer e Mikhail Bakhtin exemplificada em José Saramago. São Bernardo do Campo: UMESP, 2008. (Tese de Doutorado). pp.81ss.

39 Suzi Frankl SPERBER. Sagrado, poesia e efabulação. In: Eduardo GROSS (organizador).

Manifestações literárias do sagrado. Juiz de Fora: UFJF, 2002. p.95.

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sagrada no sentido exposto acima, torna-se correspondência entre teologia e literatura, a segunda vereda que se espera para a tese.

2. Texto sagrado e literatura profana em João Guimarães Rosa

No diálogo entre teologia e literatura, no que diz respeito à relação entre textos, os religiosos e os seculares ou os sagrados e os profanos, o caminho de relação pode se dar em três diferentes aspectos, ligados entre si, mesmo assim diferentes: o palimpsesto, a citação direta e a influência.

Como já citados aqui, quando se pensa em palimpsesto no diálogo entre teologia e literatura, toma-se como referência Eli Brandão e Salma Ferraz, com pesquisas em João Cabral de Melo Neto e José Saramago. Contudo, em Guimarães Rosa não é possível caminhar na direção de observações de palimpsestos como feito por esses autores, como se verá mais à frente.

Em Eli Brandão e Salma Ferraz, como se vê no trabalho de ambos, a correspondência se estabelece entre os textos, o texto sagrado que é relido e re- escrito no texto profano. Textos que são re-escritos ou como contextualização, mesmo que de forma não tão proposital assim, como no caso de João Cabral de Melo Neto, ou como desconstrução, desevangelho, como no caso de Saramago. Agora – e eu acredito que isso é pressuposto nesses autores – se o palimpsesto ou a intertextualidade puder se estabelecer a partir também de outros parâmetros, onde não só os textos se correspondam, mas também as idéias e as lógicas envolvidas nos textos, seria possível compreender essas mesmas relações de intertextualidades em Guimarães Rosa; o que também se aplicaria àquilo que entendo como citações diretas40. O texto, apesar de não estar lá por palimpsesto ou literalmente transcrito,

40 Salma Ferraz faz essas observações com relação às obras de José Saramago, mostrando nos textos do autor textos retirados das escrituras. Salma FERRAZ. As faces de Deus na obra de um ateu: José Saramago. Juiz de Fora: UFJF; Blumenau: Edifurb, 2003. 234p. Evandro César Cantária da Silva, em sua dissertação de mestrado, faz, apesar de sua preocupação principal não ser essa, observações quanto ao uso que Clarice Lipector faz, em seu judaísmo encalacrado, de textos bíblicos que, em alguns casos, são citados literalmente. Evandro César Cantária da SILVA. O judaísmo encalacrado:

mística e religião em a hora da estrela, de Clarice Lispector. São Bernardo do Campo: UMESP, 2006. 146p. (Dissertação de Mestrado). Em projeto em andamento, que provavelmente no final desta tese também já estará finalizado, Claudinei Fernandes Paulino da Silva, procura ler em Fiódor

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ipsis litteris, ele é identificável, tanto como texto, na relação de intertextualidade, quanto como idéia, a partir da influência.

2.1. Palimpsestos: um pequeno exemplo

Em “Ave, Palavra”, o conto “Fita Verde no Cabelo”41, que tem como subtítulo “Nova velha estória”, é o que melhor evoca, segundo minhas leituras, a compreensão de palimpsesto em Guimarães Rosa a partir da compreensão de palimpsesto como visto anteriormente, um texto que logo identifica o outro texto42. O conto, pelo título e também pelo início da narrativa, dispensaria a apresentação do texto primeiro que é evocado por Rosa.

Fita Verde no Cabelo: “Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam. Todos com juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo. Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez”43.

Chapeuzinho Vermelho: “Era uma vez uma doce menininha que conquistava o amor de todos que a conheciam, mesmo de quem só a havia visto uma vez. Ela tinha uma velha avozinha que lhe desejava tudo de bom, de tanto que a amava. Certa vez, a avó lhe mandou um pequeno manto com um capuz de veludo vermelho que lhe caiu tão bem que ela ganhou o apelido de Chapeuzinho Vermelho. Um dia, sua mãe a chamou e disse: “Venha cá, Chapeuzinho. Quero que vá visitar a sua avó e leve um pedaço de bolo e uma garrafa de vinho para ela, pois está muito fraca e isso vai lhe fazer bem. Mexa-se e apronte-se antes que o tempo fique quente demais, e vá direito pelo seu caminho, comporte-se bem e

Dostoiévski, não como objetivo principal de sua dissertação, textos dos evangelhos que se encontram na obra desse autor russo do século XIX.

41 João Guimarães ROSA. Fita verde no cabelo (Nova velha estória). In: Ave, Palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.110-112.

42 Em Saramago, a partir do trabalho de Salma Ferraz, logo se identifica o texto religioso que serve como leitura e re-escritura do literato, é o Evangelho. Já em João Cabral de Melo Neto, em “Morte e vida Severina”, na pesquisa e obra de Eli Brandão, o palimpsesto não é identificável muito rapidamente, mas se percebe e se sabe, os palimpsestos são as narrativas que envolvem a vida de Jesus de Nazaré. É isso o que se quer dizer com percepção do palimpsesto.

43 Id. Ibid. p.110.

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com discrição; e não corra para não cair e quebrar a garrafa, senão a sua avó vai ficar sem vinho”44.

O conto rosiano, diferente do “Chapeuzinho Amarelo” de Chico Buarque45, que parece ser mais uma paródia da primeira estória, uma inversão, amplia e aprofunda, como uma re-escritura mais forte do que o texto primeiro, os sentidos evocadores da primeira estória46. “Chapeuzinho Vermelho”, nas versões de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm, que amenizam o final trágico da estória, apesar de não possuir diretamente uma literariedade sagrada, evocam sentidos de tentação, feitas pela figura monstruosa e meio diabólica do lobo; sentidos de escolha, caminho certo e caminho errado; e, talvez, de salvação, o herói que retira as vítimas boas e inocentes do ventre da morte.

“Um caçador que havia saído a caçar com a sua espingarda, passando por ali e pensou: “Como ronca essa velha! Vou entrar e ver que está acontecendo.” Então ele entrou no quarto e quando se aproximou da cama, viu o lobo deitado. “Ora, ‘seu’ velho pecador”, disse o caçador, “não é que finalmente te encontrei? Estou te procurando há muito tempo, Senhor Lobo.” Ele já ia erguendo a espingarda quando deu pela falta da velha e imaginando que o lobo a poderia ter engolido, lembrou-se de que ainda era possível salvá- la. Resolveu então não atirar e, pegando uma tesoura, abriu o estomago do lobo adormecido. Qual não foi a sua surpresa quando ele viu o rosto Chapeuzinho Vermelho espiar para fora ao primeiro corte, e quando o abriu mais, ela saltou para fora exclamando:

“Puxa, fiquei tão assustada. Estava terrivelmente escuro no estomago do lobo!” Depois eles ajudaram a velha avozinha, que estava viva e intata, a sair, mas ela mal conseguia respirar. Quando o lobo acordou, era tarde demais para salvar a própria vida. Ele caiu de novo na cama e morreu, e o caçador arrancou a sua pele.

44 Jacob GRIMM. Contos de fadas / Irmãos Grimm. (tradução: Celso M. Paciornik). São Paulo:

Iluminuras, 2005. p.267.

45 “Amarelada de medo. / Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho. / Já não ria. / Em festa não aparecia. / Não subia escada nem descia. / Não estava resfriada, mas tossia. / Ouvia conto de fada e estremecia. / Não brincava mais de nada, nem de amarelinha. / Tinha medo de trovão. / Minhoca, pra ela, era cobra. / E nunca apanhava sol, porque tinha medo da sombra. / Não ia para fora pra não se sujar. / Não tomava banho pra não descolar. / Não falava nada pra não engasgar. / Não ficava em pé com medo de cair. / Então vivia parada. / Deitada, mas sem dormir e com medo de pesadelo. / Era a Chapeuzinho Amarelo. / E de todos os medos que tinha o medo mais que medonho era o medo do tal do LOBO. [...]. Chico BUARQUE. Chapeuzinho Amarelo. (Ilustrações de Giraldo). Rio de Janeiro:

Editora José Olympio, 2001. 36p.

46 “O correlacionamento de dois elementos narrativos não idênticos pertencendo a dois relatos diferentes redunda em reconhecer-se a existência de uma disjunção paradigmática que, operando no interior de uma categoria semântica dada, faz com que se considere o segundo elemento da narrativa como a transformação do primeiro”. Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades, 1976. 210p. Apud. A. J. Greimas. Elementos para uma teoria da interpretação do relato mítico. In: Communications. Nº 08, p.31.

(13)

Depois disto, todos se sentaram, muito contentes, beberam o vinho e comeram o bolo que Chapeuzinho Vermelho havia trazido, e depois o caçador levou a menininha sã e salva para casa. “Puxa”, pensou ela, “nunca mais sairei de meu caminho para andar pelo mato quando minha mãe me proibir””47.

Já no conto de Rosa não há tentação e nem destino, “o lobo nenhum, desconhecido nem peludo”48 [...], “ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longe, e não o outro, encurtoso”. A escolha também não é feita pelo caminho mais fácil, mas sim pelo caminho mais “interessante” ou o menos

“ajuizado”, descuidado, um entre os muitos caminhos possíveis da vida, o que, desde já, mostra os caminhos escolhidos pelo autor em sua escritura.

“Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vindo-lhe correndo, em pós. Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeiínhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa. Vinha sobejadamente”49.

Agora é o fim da estória que carrega a maior força evocadora do conto. Sem tentação; sem bem e inocência (a menina), sem mal e horror (o lobo); sem duas escolhas, já que as escolhas são muitas; sem desvio do caminho; e, por fim, sem consequência, Rosa devolve ao conto um final trágico, mas um trágico pela tragicidade da própria existência. Não há, como dito, consequência, mas há a

“acontecência” da vida como ela é.

O verossimilhante no conto de Rosa é mais forte. O texto evoca questões sobre a vida e a inexistência da vida, ou mais, sobre o desapercebido (como se fosse ter juízo pela primeira vez) diante do drama da vida, o sofrimento e a morte. É o encontro da inocência com a dor. E, por não saber como reagir, o desapercebido lembra do medo e do lobo, a escritura primeira:

47 Jacob GRIMM. Contos de fadas / Irmãos Grimm. (tradução: Celso M. Paciornik). São Paulo:

Iluminuras, 2005. pp.269-270.

48 “Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo. Então, ela, mesma, era quem se dizia: — “Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou.” A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê, que não são”. João Guimarães ROSA. Fita verde no cabelo (Nova velha estória). In: Ave, Palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.110.

49 Id. Ibid. p.111.

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Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela, toque, toque, bateu:

– “Quem é?"

– “Sou eu...” – e Fita-Verde descansou a voz. – “Sou sua linda netinha, com cesto e pote, com fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou.”

Vai, a avó, difícil disse: – “Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te abençoe.”

Fita-Verde assim fez, e entrou e olhou.

A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo.

Dizendo: – “Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto é tempo.”

Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:

– “Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!”

– “É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta..." – a avó murmurou.

– “Vovozinha, mas que lábios, ai, tão arroxeados!”

– “É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta...” – a avó suspirou.

– “Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado, pálido?”

– “É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha netinha...” – a avó ainda gemeu.

Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez.

Gritou: – “Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!”

Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo50. O palimpsesto se estabelece entre as estórias, a da “Chapeuzinho Vermelho”

e da “Fita Verde no Cabelo”, como visto. Mas também se estabelece – se o que se propõe ao palimpsesto serve – a partir das relações de idéias, mesmo das idéias religiosas de que em cada texto se dispõe. “Chapeuzinho Vermelho” e “Fita Verde no Cabelo” dizem mais do que seus textos podem, aparentemente, dizer. Nas

“entrelinhas” há as “morais das estórias”, que, em cada uma, apresenta um universo de influências diferenciado e plural, que, por seu tempo, junto ao texto em si, também se entrecruza em diálogo.

50 Id. Ibid. pp.111-112.

(15)

2.2. Citações Diretas e Influências: leituras intertextuais de Guimarães Rosa

De outra forma – e é isso, no diálogo entre teologia e literatura, que julgo, em Rosa, ser o mais importante – estão as citações e as influências. Caso se pense em palimpsesto de uma forma restrita, como um texto que logo identifique o outro, então o palimpsesto não dá conta de observações no caminho de diálogo na vereda da palavra entre a teologia e a literatura na obra rosiana, como já visto, até porque o palimpsesto que apresentei como exemplo nem é de um texto religioso, pertencente ao espaço da religião. Da mesma forma, se se pensar em citações apenas como referências diretas a textos religiosos, pode-se dizer que as citações diretas desses textos, como da Bíblia por exemplo, não dão conta desse diálogo em Rosa, até porque na literatura rosiana isso não se faz com muita frequência51. Mas se a compreensão de palimpsesto e de citações diretas puder ser ampliada, chegando às margens das influências, então a palavra, a vereda segunda desta tese, encontra um lugar no diálogo entre teologia e literatura em Guimarães Rosa.

Em Rosa, as influências – como talvez em todo o grande escritor – ditam o caminho da própria escrita e revelam o que, em tese, queria ser dito pelo escritor em sua obra. Ninguém está isento de influências: “um poema, uma peça ou um romance é necessariamente compelido a se formar através de obras precursoras”52. Em verdade é graças às influências – de escritura e re-escritura – que a literatura se faz:

“A grande obra literária é sempre re-escritura ou revisão, e está fundada sobre uma leitura que abre espaço para o “eu”, ou que trabalha de tal forma a reabrir velhas

51 Apenas como exemplo cito em Ave, Palavra, o conto “Os Abismos e os Astros”, onde Rosa cita o Salmo 126:01 (Bíblia Católica) 127:01 (Bíblia Protestante): “Se o Senhor não guarda a cidade, em vão vigia a sentinela”. No mesmo conto ele também cita diretamente Heráclito: “A harmonia oculta vale mais que a harmonia visível”. Id. Os abismos e os astros. In: Ibid. pp.89-91. Outra referência à Bíblia é feita em Tutaméia, no conto “Grande Gedeão”: “Mas o redentorista bradava fé, despejada, glosava os fortíssimos do Evangelho. Informou: – “Os passarinhos! – não colhem, nem empaiolam, nem plantam, pois é... Deus cuida deles.” Em fato, estrangeiro, marretou: – “Vocês sendo não sendo mais valentes que os pássaros?!”. Id. Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

p.123. Mas as consequências em Gedeão, talvez outra referência bíblica, não foram tão evangélicas assim: “Sentou-se com totalidade. Fez declarado o voto, como quem faz bodoque ou um dique:

“Vou trabalhar mais não.” Sério como um cavalo de circo, cruzou pernas e braços. Escutavam-no consternados”. Id. Ibid. p.123.

52 “A poem, play, or novel is necessarily compelled to come into being by way of precursor works, […]”. Harold BLOOM. The western Canon: the books and school of the Ages. New York, San Diego and London: Hardcourt Brace & Company, 1994. p.11. Cf. também Harold BLOOM. A angústia da influência: uma teoria da poesia. (tradução: Marcos Santarrita). Rio de Janeiro: Imago, 2002. 208p.

(16)

obras para nossos novos problemas”53. E em Guimarães Rosa isso nem busca ser ocultado. É ele próprio que diz: “Quero ficar com o Tão, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Berson, com Berdiaeff – com Cristo, principalmente”54, mostrando assim, o que, em muito, influenciou-lhe na vida e na produção de sua obra. E é a partir dessas influências que se entende o que foi escrito, o que é e o como foi escrito, ou vice-versa.

No caso do conto “Fita Verde no Cabelo”, apresentado como exemplo de palimpsesto, parece-me claro que são as influências de Rosa que o fazem repensar a estória primeira a partir de um outro caminho de evocação, de reflexão e de produção de sentido. Não é tanto o palimpsesto pelo palimpsesto, mas é a não aceitação rosiana de um mundo e de uma existência estruturados em dualismos, destino, retribuição etc. – o que se dá a partir de suas muitas influências – que dá ao seu texto uma forma de re-escritura, não só de Chapeuzinho Vermelho, mas de toda a escritura sagrada ou de lógica religiosa que passou ou influenciou a sua obra, pois o que se vê em “Fita Verde no Cabelo” repete-se em outros contos de Rosa e, de forma muito forte, está também presente no “Grande Sertão: Veredas”. No entanto, o que seria muito difícil é observar e encontrar onde se dão ou estão cada uma dessas muitas influências, respondendo assim à pergunta: em que conto, em que trecho, em que parágrafo ou em que expressão está esta ou aquela influência? Mesmo assim, Benedito Nunes55 e Suzi Frankl Sperber56 enveredam-e por esse caminho, fazendo observações a partir daquilo que por eles é chamado de cotejo, uma comparação textual – e é isso o que a palavra significa – em confrontação. Diz Suzi Sperber:

“No cotejo entre cada sistema de per si com a obra, verificamos que nenhum se adequava integralmente à obra como um todo, nem a cada livro, senão apenas a partes, a trechos de cada livro. Apenas alguns temas e algumas idéias refletiam de fato tais leituras. É claro que já a sobreposição de filosofias e doutrinas diferentes determinaria fatalmente a transformação de cada uma delas”57.

53 “Great writing is always rewriting or revisionism and is founded upon a reading that clears space for the self, or that so works as to reopen old works to our fresh sufferings”. Id. Ibid. p.11.

54 João Guimarães ROSA; Edoardo BIZZARRI. João Guimarães Rosa: Correspondência com seu tradutor Italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.90. (Correspondência de João Guimarães Rosa – 25 de Novembro de 1963).

55 Benedito NUNES. O dorso do tigre. São Paulo: Editoria Perspectiva, 1976. pp.143-210.

56 Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades, 1976. 210p.

57 Id. Ibid. p.16.

(17)

Sperber, em seu livro “Caos e cosmos”, delimita as influências de Guimarães Rosa a categorias de influências espirituais, filosóficas, intelectuais e literárias. Para isso, ela toma as entrevistas do escritor ou outros textos dele, textos sobre a própria obra, como o citado agora há pouco, em carta a Edoardo Bizzarri; bem como a biblioteca do próprio Guimarães Rosa, tomando os trechos sublinhados dos livros como referência58.

2.2.1. Leituras de Guimarães Rosa em Platão e Plotino

Platão e Plotino59, como pode ser observado em muitas das obras de Rosa, fariam parte dessas primeiras influências. Em alguns dos contos rosianos observa-se que as referências aos autores aparecem de forma bastante clara em forma de epígrafes:

“Porque em todas as circunstâncias da vida real, não é a alma dentro de nós, mas sua sombra, o homem exterior, que geme, se lamenta e desempenha todos os papéis neste teatro de palcos múltiplos, que é a terra inteira” [...] “Seu ato é, pois, um ato de artista, comparável ao movimento do dansador; o dansador é a imagem desta vida, que precede com arte; a arte da dansa dirige seus movimentos; a vida age semelhantemente com o vivente”

(Plotino)60.

“Num círculo, o centro é naturalmente imóvel; mas, se a circunferência também o fosse, não seria ela senão um centro imenso” (Plotino)61.

58 “Verificamos que a comparação entre os trechos marcados (importantes para Guimarães Rosa) e trechos dos livros do Autor, poderia levar-nos a encontrar não só os pontos de contacto entre elementos comparados, senão esta disjunção paradigmática da qual fala Greimas. Os trechos comparados poderiam assim ser considerados como variantes de um mesmo texto”. Id. Ibid. p.18.

59 Há muitas outras influências apresentadas por Suzi Sperber, a autora que agora se torna referencial de leitura, mas o destaque será dado a Platão e Plotino porque seus temas estão mais próximos dos temas religiosos que serão apresentados aqui. As outras influências serão citadas de forma mais rápida e discreta. A autora ainda cita os Upanishads, Sertilhantes, Guardini, Christian Science e alguns outros intelectuais e literatos. Em entrevista Rosa disse: Goethe nasceu no sertão, assim como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Balzac; ele era, como os outros que eu admiro, um moralista, um homem que vivia com a língua e pensava no infinito. Acho que Goethe foi, em resumo, o único grande poeta da literatura mundial que não escrevia para o dia, mas para o infinito. Era um sertanejo. Zola, para tomar arbitrariamente um exemplo contrário, provinha apenas de São Paulo. Günter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Eduardo de Faria COUTINHO (org). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro / Brasília:

Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro, 1983. (Coleção Fortuna Crítica). p.85. Guimarães Rosa ainda cita Unamuno e Dante, como duas de suas maiores leituras.

60 João Guimarães ROSA. Noites do sertão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

61 Id. Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

(18)

“Não me surpreenderia, com efeito, fosse verdade o que disse Eurípedes: quem sabe da vida é uma morte, e a morte uma vida?” (Platão, Górgias)62.

Em forma de epígrafe outras referências a outros autores também são feitas, como a Camões no “Entremeio”, “Com o vaqueiro Mariano” de “Estas estórias”: “As vacas, vindo o dia, derramados, de mim desamparadas vêm bramando”63. Além de outros autores em outras citações. Já outras referências são feitas de forma não muito séria (para não dizer cômica), nem por isso menos importante ou menos revelador64:

“Pescaria A Mário Matos

O Peixe no anzol é kierkegaardiano.

(O pescador não sabe, só está ufano.) O caniço é a tese, a linha é pesquisa:

o pescador pesca em mangas de camisa.

O rio passa, por isso é impassível:

o que a água faz é querer seu nível.

O pescador ao sol, o peixe no rio:

dos dois, ele só guarda o sangue frio, O caniço, então, se sente infeliz:

é o traço de união entre dois imbecis...”65. [...]

“Como no fato espartano – nos Apophthégmata lakoniká de Plutarco – que depenou um roxinol e, achando-lhe pouca carne, xingou: – “Você é uma voz, e mais nada!” [...] Assim atribui-se a Voltaire – que, outra hora, diz ser a mesma amiúde “o romance do espírito” – a estrafalária seguinte definição de “metafísica”: “É um cego, com olhos vendados, num quarto escuro, procurando um gato preto... que não está lá””66.

Mas a relação de Rosa com Platão e Plotino estaria também para além das citações, que, em parte, revelariam as preocupações de Guimarães Rosa com esses dois autores. Platão e Plotino, de forma considerável, fazem parte das discussões

62 Id. Párano. In: Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.261.

63 Id. Com o vaqueiro Mariano. In: Ibid. p.128. O texto é de “Éclogas Apócrifas”, os “Interlocutores:

Anzino e Limiano”.

64 Cf. também o conto “Teatrinho” em Ave, Palavra, onde Guimarães Rosa imagina uma conversa entre Érico Veríssimo e Carrera-Andrade sobre Julien Green. Id. Ibid. pp.138-142.

65 Id. Às coisas de poesia. In: Ave, Palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.83-84.

66 Id. Aletria e hermenêutica. In: Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

p.34.

(19)

literárias de Rosa em temas sobre a existência humana e seu sofrimento: o humano e sua relação com o real (o mito da caverna), o amor decaído, a alma67 e o mal68.

Segundo Benedito Nunes, o amor (decaído ou não), como temática da escrita em Rosa, é um tema discutido de forma platônica69, algo que repousa na “idéia mestra do platonismo”: o impulso erótico, 1. primitivo e caótico em Diadorim, 2.

sensual em Nhorinhá, e 3. espiritual em Otacília, todas elas mulheres que passaram pela vida de Riobaldo, personagem principal do “Grande Sertão: Veredas”70. Mas é em “Párano”, outro conto de “Estas estórias”, precedido pela citação de Platão, que revela o que aqui há de mais importante nessa influência, o caminho da travessia. O conto que parece uma homilia de apologética religiosa começa com a seguinte frase:

“Sei, irmãos, que todos já existimos, antes, neste ou em diferentes lugares, e que o que cumprimos agora, entre o primeiro choro e o último suspiro, não seria mais que o equivalente de um dia comum, senão que ainda menos, ponto e instante efêmeros na cadeia movente: todo homem ressuscita ao primeiro dia”71.

E é a partir dessa frase que se desenvolve e se desenrola, no conto, uma discussão sobre vida, liberdade, sofrimento e morte.

Suzi Sperber apresenta essa temática a partir de termos como “ir e voltar”,

“chegar”, “voltar”, partir, viajar etc. termos que fazem parte de uma preocupação rosiana com o caminho “de purificação da alma para a obtenção do conhecimento das verdades absolutas”, algo que ligaria o esoterismo rosiano, que veremos mais ao longo desse ponto, com suas leituras de Platão72. Apesar de uma pré-existência da alma e de uma existência posterior, no além, o que é pressuposto de fé em Rosa, o real se dá e se vê no meio da travessia: “O Burrinho Pedrês vai e volta, mas o pathos

67 “Os principais conceitos platônicos assinalados por Rosa, aparentemente, referem-se ao mito da caverna, ao conceito do amor que, decaído, perde as asas e à crença na alma antes do nascimento e depois da morte”. Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo:

Duas Cidades, 1976. p.65.

68 “O Mal, segundo o Plotino dos textos sublinhados e assinalado por Guimarães Rosa, é estranho à alma; inexiste nos indivíduos e mesmo na realidade. Portanto, pertence ao não-ser; está na não realização e no contrário da plenitude”. Id. Ibid. p.102.

69 Para o autor essa relação estaria ligada a Diotima e Sócrates em O Banquete.

70 Cf. Benedito NUNES. O dorso do tigre. São Paulo: Editoria Perspectiva, 1976. pp.144-145.

71 João Guimarães ROSA. Párano. In: Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.261.

72 Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades, 1976. p.66.

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propriamente dito está na travessia do córrego da Fome. Lalino vai ao Rio de Janeiro e volta, mas o importante na ação da personagem é a solução dos acontecimentos à sua volta”73. Mas é o conto “Cara-de-Bronze”, do livro “No Urubuquaquá, no Pinhém”, que, segundo Benedito Nunes, trabalha melhor as relações da viagem ou da travessia do homem humano pela “Vida”, e a busca dos sentidos dessa travessia de vida a partir da “Palavra”, o “quem das coisas”: “a viagem apresenta-se em “Cara- de-Bronze” como Demanda da Palavra e da Criação Poética”74. É o Grivo quem viaja e volta com muito conhecimento diverso: “ele foi amofim e voltou bizarro, com cores boas...”75; viagem essa que se fez por um motivo revelador, a Palavra76, a Poesia77.

A temática da “travessia” aparece em muitos dos contos de Rosa, de Sagarana a Ave, Palavra. Mas é Riobaldo, no grande romance rosiano, quem diz: “A gente vive repetido, o repetido. [...] Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”78. Diz Benedito Nunes: “para Guimarães Rosa, não há, de um lado, o mundo, e, do outro, o homem que o atravessa. Além de viajante, o homem é a viagem – objeto e sujeito da travessia”79.

73 Id. Ibid. p.67.

74 Benedito NUNES. O dorso do tigre. São Paulo: Editoria Perspectiva, 1976. p.182.

75 João Guimarães ROSA. Cara-de-bronze. In: No Urubuquaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.116.

76 “[...] foi somente em “Cara-de-Bronze” que Guimarães Rosa pôs a nu o motivo da travessia, focalizando-a direta e expressamente como tema. A viagem passa a constituir, nesse ponto, a demanda pela Palavra e da Criação Poética. Eis o sentido da estória deste Ariel do sertão, o Grivo, que sai mundo afora, a procurar, para seu patrão Cara-de-Bronze, “o que das coisas”, e que lhe traz, na volta, como único bem, “a viagem da viagem”: o relato poético do que viu, ouviu e imaginou”. Benedito NUNES. O dorso do tigre. São Paulo: Editoria Perspectiva, 1976. p.179.

77 “O “Cara-de-Bronze” era do Maranhão (os campos-gerais, paisagem e formação geográfica típica, vão de Minas Gerais até lá, ininterrompidamente). Mocinho, fugira de lá, pensando que tivesse matado o pai (pág. 619 [172]), etc. Veio, fixou-se, concentrou-se na ambição e no trabalho, ficou fazendeiro, poderoso e rico. Triste, fechado, exilado, imobilizado pela paralisia (que é a exteriorização de uma como que “paralisia da alma”), parece misterioso, e é ; porém, seu coração, na ultima velhice, estalava. Então, sem se explicar, examinou seus vaqueiros – para ver qual teria mais viva e

“apreensora” sensibilidade para captar a poesia das paisagens e lugares. E mandou-o à sua terra, para, depois, poder ouvir, dele, trazidas por ele, por esse especialíssimo intermediário, todas as belezas e poesias de lá. O Cara--de-Bronze, pois, mandou o Grivo buscar Poesia. Que tal?” João Guimarães ROSA; Edoardo BIZZARRI. João Guimarães Rosa: Correspondência com seu tradutor Italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. pp.93-94. Correspondência de João Guimarães Rosa, 25 de Novembro de 1963.

78 João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.80.

79 Benedito NUNES. O dorso do tigre. São Paulo: Editoria Perspectiva, 1976. p.179.

(21)

2.2.2. Leituras espirituais de Guimarães Rosa: Sagarana

Mas são especificamente as influências espirituais que mais interessam essa pesquisa. Segundo Suzi Sperber, uma delas – talvez a mais significativa das influências em Guimarães Rosa – passa pelo que ela chama de “Esoterismo Paulista”, tomado das publicações do “Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento”, a “Primeira Série de Instruções”80. Assim, o esoterismo contribuiria com o pensamento de Rosa de duas principais formas: 1. através do ecletismo do esoterismo, que consegue conjugar em si elementos de diferentes tradições que parecem, em princípio, antagônicos, criando dessa forma um tentativa de síntese; e 2.

através do lema “hei de vencer”, que dá ao “fiel” esotérico o caminho do pensamento positivo. “Evitar de pensar o mal, de ter medo, ódio e tantos sentimentos negativos [segundo a autora, e isso estaria em Rosa e em sua obra], fortalece[ria] o indivíduo e habilita[ria]-o à conquista de seu mundo e das coisas que deseja”81. Assim, pecado (erro), culpa, medo e destino seriam temas para serem discutidos e negados na obra de Rosa, o que aqui já se viu e já se disse sobre o conto “Fita Verdade no Cabelo”.

O “Esoterismo Paulista” e sua influência no pensamento e na obra rosiana,

“quiças a mais antiga das leituras”82 de Rosa, marcam, segundo Suzi, de forma mais clara e forte, principalmente o primeiro livro do autor, Sagarana83, que também carrega, segundo Aguinaldo Aparecido Campos84, uma forte influência bíblica e cristã, mesmo que no sentido de cristianismo católico popular, o que se dá, em Sagarana, em contra pontos entre esoterismo e cristianismo.

Para Aguinaldo Campos, Sagarana é um texto exemplar da religiosidade de Rosa, “há referências ou ecos bíblicos numa amálgama sincrético, formando a religiosidade popular”85, algo bem presente nesse primeiro livro de Guimarães Rosa.

80 Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades, 1976. p.23.

81 Id. Ibid. p.23.

82 Id. Ibid. p.23.

83 “Caso o interesse de Guimarães Rosa pela doutrina se manifestasse intertextualmente, encontraríamos em Sagarana trechos que lhe poderiam ser relacionados. Nada encontramos, porém, que tivesse uma relação clara e imediata”. Id. Ibid. p.24.

84 Cf. Aguinaldo Aparecido CAMPOS. Passagens bíblicas em Sagarana de João Guimarães Rosa.

São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP, 2000. 167p. (Dissertação de Mestrado).

85 Id. Ibid. p.12.

(22)

Dos nove contos existentes no livro, Aguinaldo seleciona “A hora e a vez de Augusto Matraga” como conto principal nessa relação de Rosa com o cristianismo e com a Bíblia. Para Suzi Sperber, “a renovação de Nhô Augusto, sua passagem de mau a bom, de ateu a crente, de representante do diabo a representante de Deus, do medo à força, é um desenvolvimento do tema da conversão evangélica”86. Todos os trâmites da travessia da personagem principal, Augusto Matraga, fazem parte daquilo que a autora identifica e denomina “criatural cristão”87, a mistura do que é bíblico, do que é cristão institucional (sui-generis88) e do cristianismo popular, com todas as suas crendices e práticas mágicas.

Pedrês e Lalino Salãthiel

O burrinho Pedrês, segundo Aguinaldo Campos, é uma forma de narrativa inaugural89, que abre Sagarana como uma Gênesis, que, por sua vez, como livro, é fechado com Augusto Matraga, uma referência aos evangelhos e a Paulo90. Além de personagem com nomes bíblicos, “Saulo, Salathiel, Reynero91, Zacarias, Herodes, Gabriel (pretinho) e Josias”92, Pedrês seria referência a duas estórias inaugurais da Bíblia, o dilúvio e o êxodo93: “[...] até junho duraria o êxodo dos rebanhos de corte”94 [...] “– O dilúvio não dava fim”95:

“Tais elementos [diz Aguinaldo Campos] justificam nossa proposta inicial: O Burrinho Pedrês pode ser lido como narrativa inaugural, tanto no sentido de abrir possibilidades de diálogo com referências primitivas bíblicas, alocadas no Velho e Novo Testamento, quanto com outros aspectos responsáveis por uma espécie de

86 Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades, 1976. p.44.

87 Id. Ibid. p.43.

88 Id. Ibid. p.40.

89 Aguinaldo Aparecido CAMPOS. Passagens bíblicas em Sagarana de João Guimarães Rosa. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP, 2000.

p.83.

90 Cf. Id. Ibid. p.02.

91 Esse não é um nome bíblico, faz parte da história cristã, mas não da Bíblia, pelo menos, não de forma direta, talvez apenas com algumas referências no livro do Apocalipse.

92 Cf. Id. Ibid. pp.24e91.

93 Cf. Id. Ibid. pp.15,32e91

94 João Guimarães ROSA. O burrinho pedrês. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

p.41.

95 Id. Ibid. p.93.

Referências

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