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Rev. latinoam. psicopatol. fundam. vol.18 número4

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Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, 18(4), 704-727, dez. 2015

Os “psicopatas

autistas” na idade infantil

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(Parte 3)

Hans Asperger Coordenador da seção de educação especial da clínica. (recebido em 8 de outubro de 1943) http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2015v18n4p704.8

A inteligência autista

O desempenho de uma criança nasce de uma tensão entre dois polos: a produção espontânea e autônoma e a imitação de algo mostrado para a criança, a aprendizagem de conheci-mentos e capacidades que os adultos já possuem. Ambas as coisas precisam existir na medida certa para que o desempenho tenha valor. Na ausência da produção própria ou, ao menos, da elaboração autônoma daquilo que foi assumido, o desempenho torna-se uma forma vazia, é apenas mecanizado supericialmente, existe somente na “forma de gestos”. Encontramos o distúrbio inverso no caso da inteligência autista. As crianças são capazes de produzir prioritariamente de modo espontâneo, conseguem ser apenas originais, mas aprendem pouco, é difícil mecanizá--las, não se encontram ajustadas para assimilar conhecimentos

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de adultos, por exemplo, do professor. As capacidades e as diiculdades especiais dessas pessoas se devem a isso, assim como, em geral, os méritos e as falhas do ser humano são inseparáveis.

Isso se torna especialmente nítido no caso das produções linguísticas das crianças autistas: Elas — e principalmente aquelas que possuem um elevado dom intelectual — têm uma relação muito criativa com a língua, são capazes de passar as suas vivências originais, as suas observações originais de forma igualmente original para a linguagem falada — seja através de palavras incomuns, das quais supomos estarem muito distantes da vida dessas crianças, seja através de expres-sões criadas ou, ao menos, recriadas que muitas vezes são bastante acertadas e signiicativas, outras vezes, porém, um tanto aberrantes. É preciso mencionar aqui que crianças pequenas amiúde têm uma relação livre com a linguagem falada e formam, sem maiores preocupações, palavras novas que, na maior parte das vezes, são um tanto acertadas — é justamente isso que torna a “fala das crianças”* tão atraente. Entretanto, para além da primeira infância, encontramos essas expressões livremente criadas somente entre as crianças autistas.

A seguir, alguns exemplos: Um menino entre seis e sete anos descreve a diferença entre escada e escadote da seguinte maneira: “O escadote anda de um jeito pontudo e a escada anda se enrolando como uma serpente”.

Um menino autista de 11 anos apresentava produções linguísticas originais especialmente ricas: “Com a boca não sei fazer isso, mas com a cabeça sim” (ele queria dizer que havia compreendido algo, mas não conseguia expressá-lo); “hoje o meu sono foi longo, porém, magro”; (este é, ao mesmo tempo, um exemplo para a autoavaliação do autista); “para o artista essas imagens podem ser belas, a mim não agradam”, “não gosto de um sol muito forte, mas também não gosto da escuridão, preiro uma sombra com tons de cinza” (em relação à pergunta se ele é religioso) — “não quero dizer que não sou religioso, mas Deus não me dá nenhum sinal”.

Por trás da autonomia das formulações linguísticas há a originalidade da vivência. As crianças autistas têm a capacidade de enxergar as coisas e os processos do meio ambiente a partir de novas perspectivas. Esses pontos de vista por vezes revelam uma maturidade admirável, as questões com que se deparam vão muito além do pensamento de outras crianças da mesma idade — um bom exemplo para tal é a descrição do segundo caso (Harro L.). Normalmente trata-se de uma área de conhecimento muito estreita e isolada cujo desenvolvimento chega a ser hipertróico.

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Um é um “cientista natural” que elabora questões praticamente cientíicas; as suas observações são realizadas através de um olhar que se volta de modo incomum para o que há de essencial, ele as ordena de acordo com uma visão de mundo, constrói as suas teorias que, às vezes, são um pouco abstrusas; a menor parte disso tudo foi ouvida ou lida por ele, ele sempre se refere às suas próprias experiências. Um outro é um químico que investe todo o seu dinheiro — mesmo que tenha que roubá-lo — em experimentos que muitas vezes são o terror de seu meio entorno; alguns se “especializam” em experimentos que explodem e fedem. Um menino autista se concentrou em venenos, possuía um saber admirável a respeito, uma coleção de venenos em parte preparados por ele de forma um tanto ingênua. Veio até nós, pois roubou da caixa de venenos de sua escola uma grande quantidade de cianeto! Já para um outro, o reino dos números se encontra no centro; sem receber instrução alguma, sem aulas escolares, operações matemáticas complicadas se tornam óbvias para ele; recordemo-nos do primeiro caso descrito (Fritz V.), no qual, entretanto, também o fracasso do autista se revela claramente. É possível que uma criança desse tipo, que surpreende o seu meio circundante através da resolução de complexos problemas matemáticos, tenha graves diiculdades de assimilar os métodos a serem aprendidos na escola, isto é, aqueles apresentados pelo meio externo. Outra criança, por sua vez, tem princi-palmente interesses técnicos, possui um saber incrível a respeito da estrutura de máquinas complexas — adquiriu esse conhecimento através de perguntas minu-ciosas das quais não era possível esquivar-se e, principalmente, através de sua própria observação. Ela se dedica a invenções fantásticas como naves espaciais e coisas semelhantes. Nessas horas, percebe-se o quão distantes da realidade por vezes estão os interesses autistas.

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A esse entendimento de arte está associada uma capacidade que igualmente encontramos com frequência entre crianças autistas: uma autoavaliação especial e uma avaliação acertada das outras pessoas. Enquanto a criança “normal” simples-mente vive, quase sem consciência dela mesma, constituindo, entretanto, uma parte do mundo que reage adequadamente, essas crianças reletem sobre si, se auto-observam, representam um problema para si mesmas, voltam a sua atenção para as funções de seu corpo. Um exemplo: Um menino de nove anos, bastante autista, que, como costuma ser no caso dessas crianças, sente muita falta de casa durante os primeiros dias na seção, relata como se acalma de noite na cama, pois é nessa hora que a falta de casa é mais aguda: “Quando colocamos a cabeça no travesseiro há aquele sussurro no ouvido e precisamos icar quietos durante um longo tempo e isso é bom”. O mesmo menino também descreve uma micropsia que, vez ou outra, o acomete: “Na escola às vezes vejo a professora com uma cabeça assim bem pequena, daí não sei o que é isso, é muito embaraçoso ver isso, então ico apertando os meus olhos (ele demonstra como aperta os seus olhos) e assim melhora”.

Essas peculiaridades nos levam a fazer um comentário que na verdade não pertence exatamente a esse lugar. Como sempre, quando a atenção se volta para os incríveis automatismos da vida vegetativa — que trabalha melhor quando permanece inconsciente —, encontramos igualmente aqui distúrbios dessas funções. Hamburgeratentou, com razão, diversas vezes para o fato de educadores não deverem voltar a atenção da criança para atos como comer e dormir, defecar e urinar, pois assim certamente surgirão distúrbios desses automatismos.No caso das crianças autistas, porém, as funções do próprio corpo acabam invadindo a consciência por conta própria sem que o educador contribua para tal — são registradas, se tornam signiicativas e, em muitos casos, apresentam distúrbios. Distúrbios alimentares e do sono são especialmente frequentes, o que muitas vezes conduz a graves conlitos familiares.

Da mesma forma que essas crianças se autoavaliam, elas fazem uma avaliação surpreendentemente acertada e madura das pessoas ao seu redor, sentem claramente quem lhes quer bem e quem não, mesmo que as pessoas não se comportem de acordo com isso. Têm uma sensibilidade aguçada para a anormali-dade de outras crianças. Independentemente de quão anormais elas próprias são, têm praticamente uma hipersensibilidade para tal.

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como uma pessoa cujos relacionamentos apresentam tantos distúrbios é capaz de tantas experiências conscientes? Essa contradição é somente aparente. A criança normal, especialmente a criança menor, que ocupa o lugar adequado em seu meio entorno, reage e se move conforme este e age assim em função de seus instintos básicos. Na maior parte das vezes, contudo, não chega a fazer avaliações cons-cientes, pois para tal precisaria afastar-se das coisas concretas. A distância em relação às coisas isoladas é a precondição da abstração, da conscientização, da formação de conceitos. Justamente a distância pessoal intensiicada, o distúrbio da reação baseada no instinto e no sentimento que caracteriza os autistas, é, em um certo sentido, a precondição para a boa compreensão conceitual do mundo por parte destes. Por isso, falamos da “clareza autista” dessas crianças — pois esta só está presente no caso delas. Nos casos mais favoráveis, essa capacidade, que natu-ralmente continua a existir, constitui a base da vida proissional, do êxito especial dessas pessoas, êxitos estes que outros não atingem É sabido que a capacidade de abstração desenvolvida é a precondição do êxito cientíico. De fato, há diversos caracteres autistas entre os cientistas mais importantes. O desamparo diante da vida prática, proveniente de um distúrbio de contato, que caracteriza o “gênio”, e o imortaliza como caricatura, é uma prova para tal.

Infelizmente o lado positivo, promissor dos traços autistas não predomina em todos, nem na maioria dos casos. Já mencionamos que existem caracteres autistas com níveis de personalidade muito variados: há a originalidade que beira a genialidade, o sujeito peculiar distante da realidade, excêntrico, pouco capaz, e por im, o mentecapto autômato com graves distúrbios de contato. Ernst K., o terceiro caso por nós descrito, possibilita uma noção desse grupo intermediário. Outro exemplo consiste na resposta de um menino de oito a nove anos: (Pergunta: Diferença entre madeira e vidro) “a madeira cresce e adquire uma pele suja, atrai a sujeira da terra e ica tão dura que gruda na árvore e não sai mais, a terra se ixa tão rente à árvore; quando deixamos cair o vidro, ele quebra, apesar de ele ser juntado, pois a cola que se botou lá dentro desgruda e o vidro quebra”, quer dizer, uma teoria bastante abstrusa que parece ser mais despropositada do que original!

A sequência então se desenrola de forma ininterrupta até chegar naqueles mentecaptos com hábitos estereotipados, automatizados, com interesses estranhos que pouco favorecem um bom desempenho, nos “homens-calendário” que conhecem o nome do santo de cada dia do ano, nas crianças que bem antes de entrarem na escola (especial) sabem de cor todas as linhas do bonde de Viena, os pontos de partida e destinos destes, ou nas crianças com outros desempenhos automatizados da memória.

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Quem apenas cede aos seus impulsos espontâneos e é pouco acessível no que diz respeito às exigências do meio entorno pode de fato ser original, mas não é capaz de aprender. É algo que se conirma em quase todos esses casos. Essas crianças que, volta e meia, surpreendem os seus professores com respostas dema-siadamente maduras para a sua idade fracassam de modo extremo nas matérias escolares, principalmente quando se trata de exigências de aprendizagem meca-nizada, que não apresentam diiculdade alguma para os menos inteligentes, para muitos alunos especiais. Trata-se prioritariamente da leitura, ortograia, mate -mática (a tabuada!). Às vezes essas matérias não apresentam problemas, pois coincidem com os interesses especíicos da criança: algumas dessas crianças, por exemplo, aprendem a ler com facilidade, pois começam a devorar tudo que é passível de leitura excepcionalmente cedo — com seis a sete anos (normal-mente a paixão pela leitura só começa aos dez anos de idade). Os que possuem dons matemáticos comumente conseguem fazer contas na escola, apesar de nesse caso existirem igualmente conlitos muito signiicativos: a obsessão de traçar o próprio caminho, de aplicar métodos pessoalmente inventados, impede a criança de assimilar os métodos matemáticos apresentados pela escola. Ela cria diicul -dades para si mesma, complica as coisas, se engana e, por im, chega a resultados errôneos. No primeiro e no segundo caso (Fritz V. e Harro L. — este é descrito de forma detalhada) já apresentamos exemplos para tal fato. Um outro exemplo: uma criança autista recém-ingressada na escola, que elabora e resolve por conta própria o problema de quantos segundos têm duas horas, quando exigida a somar cinco mais seis airma: “Das contas de menos* eu não gosto nenhum pouco, preiro bem mais 1000 x1000”. Quando, após ter produzido por um tempo maior as suas capacidades matemáticas “espontâneas”, foi apressada a, inalmente, resolver o problema em questão, apresentou o seguinte método original, porém, um tanto complicado: “Vejam, eu faço assim: seis mais seis é igual a 12 e cinco mais seis é um a menos, quer dizer 11”. Esses métodos complexos, contudo, nem sempre levam ao resultado certo; não apenas por a própria criança tornar as coisas tão difíceis para si, e sim, revelou-se no caso dela igualmente algo que diiculta bastante o desempenho de muitas crianças autistas: Ela era especialmente confusa, a fonte de sua distração era interna.

Encontramos esse distúrbio da atenção ativa quase regularmente entre as crianças autistas. Desse modo, não se observa — ou, pelo menos, não apenas — o distúrbio de concentração mais comum de muitas crianças neuropáticas, que são distraídas de seu trabalho através de qualquer movimento ou agitação do

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meio ambiente. Pelo contrário, essas crianças, de antemão, não se sentem incli-nadas a direcionar a sua atenção, a sua concentração para aquilo que o mundo externo, nesse caso a escola, exige delas. Estão envolvidas com os seus próprios problemas, que, na maior parte das vezes, se encontram muito afastados da vida comum. Não saem de sua esfera pessoal, normalmente nem deixam os outros se aproximar desta. Assim como no caso de seus problemas de conduta, é igualmente muito árduo inluenciá-las de forma externa nessa sua diiculdade.

Por isso, não é de se admirar que a maior parte das crianças autistas tenha grandes problemas de aprendizagem. No caso das mais inteligentes, os profes-sores às vezes ignoram, devido ao êxito e às respostas originais e inteligentes destas, o mau desempenho nas exigências escolares que envolvem a mecanização. Contudo, geralmente o professor entra em desespero por causa do esforço exte-nuante exigido de ambas as partes em função desse distúrbio de procedimento. Em muitos casos ocorrem igualmente conlitos característicos entre professores e pais: os pais, que tendem a avaliar os seus ilhos de forma favorável, julgam a criança de acordo com a forma que esta externa a sua inteligência, por exemplo através de suas ideias originais — e a consideram especialmente inteligente. O professor, por sua vez, percebe o fracasso na aprendizagem e dá notas baixas — quer dizer, existe material suiciente para um conlito no qual ambas as partes têm razão de algum modo.

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a possibilidade de um abandono em relação à aprendizagem —, algo que certa -mente exige muita experiência. Mas isso precisa igual-mente ser feito no caso do teste de Binet, se queremos de fato aproveitar os resultados (só para mencionar um exemplo: o quanto nesses casos não ajuda a habilidade linguística de crianças procedentes de meios sociais mais elevados, algo que amiúde tem como conse-quência um resultado melhor, porém falso, do teste!)

O comportamento no grupo social

Queremos demonstrar que o transtorno básico dos psicopatas autistas consiste em um estreitamento das relações com o meio ambiente, que a persona-lidade das crianças deve ser compreendida a partir disso, que ela é “organizada” dessa forma. Até então consideramos as crianças por si só, demonstramos como esse transtorno se manifesta em seus fenômenos de expressão, seus desempenhos relativos à inteligência. Porém, a forma mais imediata através da qual a natureza dessas crianças se revela é quando as consideramos a partir de seu comporta-mento em relação a outras pessoas.

De fato, isso se torna mais evidente a partir de sua conduta no grupo social, dos graves conlitos que se dão com elas desde pequenas. Os conlitos são espe -cialmente intensos no grupo social mais próximo, naquele em que o ser humano nasce, na família. (Um paralelo para tal é o fato de que, de acordo com a expe-riência, no caso dos esquizofrênicos os conlitos na própria família costumam igualmente ser os mais graves. A razão para isso é evidente: o grupo social familiar se baseia principalmente na ligação emocional entre os membros da família. A inluência exercida sobre aqueles que são educados pela família se dá prioritariamente através do sentimento, da interação dos sentimentos entre pais e ilhos. Tanto o esquizofrênico emocionalmente embotado quanto o autista emocionalmente limitado não sabem como lidar com esse sentimento, não o compreendem e o rejeitam. São justamente os pais que mais percebem o compor-tamento isento de sentimentos de seus ilhos e se sentem especialmente infelizes em função disso.)

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adiante). O deleite com a maldade — praticamente a única ocasião que faz o olhar comumente tão perdido dessas crianças resplandecer —, contudo, raramente falta.

Semelhantes a esses atos de maldade são as reações negativistas que foram descritas e consideradas nos casos isolados, principalmente nos primeiros. Além da característica espontânea, impulsiva desse comportamento negativista, o fracasso dessas crianças é, sem dúvida, igualmente a raiz dessas reações. Uma insuiciência justamente perante as exigências cotidianas da vida prática — já observamos o quão inábeis são as crianças autistas, como precisam aprender, mediante muito esforço e com a ajuda do raciocínio, de regras e leis, aquilo que outras adquirem “num passe de mágica” através da imitação inconsciente das ações dos adultos. Os pais, entretanto, na maior parte das vezes não entendem isso. Exigem uma obediência natural quando se trata de tarefas cotidianas como vestir-se, lavar-se, comer e, sendo assim, é justamente nessas situações que ocorrem graves cenas e conlitos, as reações negativistas e maldades dessas crianças.

Por hora consideramos reações que expressam uma atitude que se opõe ao grupo familiar, mas em todos os casos há também o isolamento da criança autista na família, principalmente quando convive com irmãos, mas também, conforme acontece na maior parte das vezes, quando é ilho único. “É como se estivesse sozinha no mundo” — é algo que escutamos com frequência; vagueia por aí tal como um estranho, parece não notar nenhum dos acontecimentos ao seu redor. É óbvio que, por vezes, nos surpreendemos com o quanto ela assimilou e elaborou daquilo que ocorre a sua volta, apesar de seu aparente desligamento. Essas crianças se encontram mergulhadas em suas brincadeiras, em suas ocupações — isoladas em algum canto, mas também no meio dos irmãos ou companheiros agitados. Nesses casos, porém, constituem um corpo estranho, permanecem total-mente intocadas pelo barulho e movimento, inacessíveis em relação àquilo que fazem, não aceitam nenhum estímulo externo, se irritam fortemente quando são incomodadas.

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soprava para lá e para cá — visivelmente as variadas formas eram muito vivas e signiicativas para ele.

Essas crianças seguem os seus próprios impulsos em relação a tudo, perseguem os seus próprios interesses sem se preocupar com as exigências do meio entorno. Dentro da família é possível ser bastante tolerante com essas particularidades — no intuito de evitar conlitos. Permite-se que essas crianças simplesmente sigam os seus próprios caminhos. Somente no caso das exigências da vida cotidiana, na hora de se levantar, vestir, lavar, na hora de comer ocorrem confrontos signiicativos. Quando a criança entra na escola tudo muda. Lá lhe é tirada amplamente a liberdade do impulso, do interesse espontâneo. Ela deve permanecer sentada, prestar atenção, reagir constantemente como é ordenado — coisas que essas crianças não sabem fazer ou somente com grandes diicul -dades. Os motivos de conlitos aumentam consideravelmente. Enquanto os pais conseguem muitas vezes lidar com as particularidades das crianças autistas pequenas, as crianças que ingressam na escola são quase todas encaminhadas para o aconselhamento de educação especial, pois os métodos comuns não funcionam.

Nos primeiros casos as diiculdades escolares foram descritas detalhada -mente, de modo que podemos nos referir a elas. Foram descritas tanto as diicul -dades de aprendizagem e de conduta baseadas no comportamento autista, como o comportamento anormal no grupo escolar. Existem motivos suicientes para conlitos. Simplesmente o fato de essas crianças serem diferentes das outras, de se afastarem do rebanho em função de todo o seu modo de ser é razão suiciente para serem rejeitadas e atacadas pelos colegas. Fora isso, todas as suas atitudes extravagantes, o seu modo de falar e, por im, porém não menos importante, a sua inabilidade quase sempre grotesca simplesmente provocam a zombaria. Crianças costumam ter um olhar especialmente aprimorado e uma ironia certeira quando se trata de peculiaridades características de outras pessoas.

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A vida pulsional e sentimental dos autistas

Em função do que foi dito até então, necessariamente já se tornou evidente o quão desarmônica é a personalidade das crianças descritas por nós. Enquanto o intelecto muitas vezes se encontra desenvolvido acima da média, distúrbios consideráveis se revelaram nas camadas profundas da personalidade — na zona pulsional, instintiva — e se expressaram igualmente nos transtornos de adaptação instintiva à situação a partir de um fracasso diante das exigências da vida comum. A descrição dos fenômenos de expressão e do restante do comportamento dessas crianças evidenciou tal fato. A seguir, desejamos examinar detalhadamente os distúrbios da esfera pulsional e sentimental.

Começamos com a sexualidade. Aqui o quadro não é unívoco. Alguns casos permanecem durante toda a infância, mas também para além da puberdade, sexualmente frios e desinteressados, fracos em termos de pulsão. Em sua vida posterior igualmente não desenvolvem uma sexualidade vital e saudável. Na maior parte dos casos, porém, encontramos anormalidades sexuais primevas. Em muitas casos estas se revelam a partir de uma masturbação precoce, realizada de forma intensa, mantida de modo obstinado, resistente a todas as formas de trata-mento. Muitas vezes o sentimento de culpa e o pudor, que normalmente acom-panham esses atos, estão inteiramente ausentes; eventualmente as crianças se entregam de modo exibicionista a essa sua mania — com toda insubmissão à inluência e tenacidade dos psicopatas autistas. Sabe-se igualmente de atos homossexuais entre crianças relativamente jovens (vide caso 2!)

Também há relatos frequentes sobre traços sádicos. Como exemplo serão apresentadas declarações de um menino, consideravelmente autista, de sete anos: “Mamãe, um dia pegarei uma faca e a cravarei em seu peito; o sangue vai jorrar, será um tanto estrondoso”. “Como seria bom se eu fosse um lobo, pois poderia dilacerar ovelhas e pessoas e o sangue escorreria”. Quando um dia a mãe cortou o dedo:” Por que não escorre mais sangue? O sangue precisa escorrer”. Quando ele próprio se feriu, teria icado um tanto entusiasmado, de modo que a médica que estava fazendo o curativo pareceu ter considerado a situação bastante alarmante. Fora isso, entretanto, o menino é muito assustado, teme virar com a cadeira, na rua tem muito medo de carros que correm. Não raro, a tendência para a coprolalia está igualmente presente — um comportamento que se opõe de modo estranho à sua linguagem normalmente tão soisticada!

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um comportamento semelhante nos diversos âmbitos da vida sentimental. Um excesso de sensibilidade e uma extrema falta de sensibilidade se defrontam.

Apresentaremos alguns exemplos:

Deparamo-nos de modo quase regular com preferências e aversões muito diferenciadas no âmbito do paladar — a presença tão frequente desse fato, que se dá de modo semelhante, constitui mais uma prova a favor da uniformidade de nosso tipo: amiúde há uma preferência especial por alimentos muito ácidos ou condimentados, como picles e carne frita; muitas vezes existe uma aversão insu-perável contra legumes e alimentos que contêm leite. Encontramos algo equi-valente no âmbito do tato: várias crianças desse tipo têm uma aversão quase anômala contra certas sensações do toque. Por exemplo, veludo, seda, algodão, giz. Não suportam a aspereza de camisas novas, meias costuradas, cortar as unhas, ou seja, a sensação certamente não agradável que temos após cortar as unhas. Tudo isso são motivos para que nessas ocasiões haja intensos confrontos. Igualmente a água, na hora do banho, é frequentemente uma fonte de sensações desagradáveis e, por isso, razão para conlitos. No hospital revela-se uma hiper -sensibilidade da garganta, de modo que o exame rotineiro com espátulas se torna um procedimento complicado. Essas crianças também são claramente hipersen-síveis em relação a ruídos ou barulho — por vezes as mesmas crianças que em outras situações se encontram totalmente desligadas e são insensíveis em relação a tudo que acontece ao seu redor, inclusive ao barulho.

A impressão de desarmonia, de contradição, que se dá em função de tudo que foi relatado até então, torna-se maior ainda se passarmos da percepção sensorial para a consideração dos sentimentos mais soisticados que se revelam na relação com objetos, animais e outras pessoas. Logo de início, quando começamos a nos relacionar com essas crianças, somos tomados pela impressão de que existe uma nítida falha do sentimento que precisa ser considerada a causa principal da relação alterada com o meio ambiente.

Essa falha já se torna evidente a partir do isolamento das crianças diante de outras pessoas, através da forma como se opõem ao meio entorno, principalmente ao próximo. São pobres no que diz respeito às carícias, carícias estas que tornam a convivência com crianças pequenas tão repleta de felicidade. Ouvimos a respeito de algumas crianças desse tipo que elas jamais conseguiam fazer agrados ou “dar amor”, que se tornavam ferinas quando se desejava agradá-las. As suas maldades e crueldades também depõem claramente a favor da pobreza de ânimo.

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rapidamente claro que não se trata de um atrevimento consciente ou intencional, e sim, simplesmente falham quando precisam compreender o outro.

Também não são sensíveis no que diz respeito à distância pessoal: da mesma forma como se encostam em qualquer pessoa — mesmo em estranhos — a tocam como se não fosse humana, e sim, qualquer coisa, uma peça do mobiliário, convocam os outros sem a menor cerimônia, exigem os seus serviços, começam uma conversa cujo tema elas próprias estabelecem — tudo isso sem a menor noção de diferenças de idades, de adequação ou submissão, regras de conduta e cortesia.

As relações das crianças autistas com objetos igualmente fogem aos padrões normais. Enquanto para a criança normal, principalmente para a criança pequena, os objetos se tornam claramente vivos, pois ela os preenche com a sua própria vida através da boa relação que com eles estabelece; enquanto ela se constitui através dos objetos, faz as suas experiências com estes, projeta o seu amor neles, não encontramos nada nesse sentido no caso dessas crianças psicopatas. Ou elas nem tomam conhecimento dos objetos ao seu redor — não se interessam, por exemplo, por brinquedos — ou então estabelecem um vínculo ixo aberrante, não se separam em momento algum de um chicote, um bloco de madeira, uma boneca apenas rudimentar, não conseguem comer, dormir, se o “fetiche” não estiver com elas, brigam intensamente se alguém tenta arrancar delas o objeto ao qual se agarram com tamanha paixão.

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mental. Os verdadeiros colecionadores, porém, amiúde são excêntricos com claros traços autistas mesmo quando mais velhos.

As crianças autistas também não têm um sentimento adequado em relação ao seu próprio corpo. Somente com grande esforço, às vezes sem sucesso pleno, ensina-se a elas que é preciso manter-se limpo e que isso exige diversos cuidados referentes à higiene corporal. Até mesmo os adultos, que geralmente acabaram enveredando para proissões intelectuais, podem ser encontrados sujos e descui -dados. Até o inal da infância, se comportam de modo muito pouco apresentável, se sujam da cabeça aos pés, “desenham” com a comida, estão tomados pelos seus próprios problemas.

Um traço signiicante dessas crianças é a sua falta de senso de humor.

“Não gostam de brincadeiras”, muito menos quando estas se voltam contra elas próprias (esta é mais uma razão para os outros zombarem tanto delas, pois quem consegue rir de si próprio, acaba com a zombaria). Não conseguem se comportar de forma realmente descontraída e alegre, não alcançam aquela compreensão de fato genuína do mundo que faz parte do verdadeiro senso de humor. Quando estão bem-humoradas, geralmente causam uma impressão desagradável: há excesso, distorção, falta de medida; pulam e correm pelo quarto, não mantêm distância, tornam-se insistentes, agressivas. Somente em relação a um ponto são especial-mente eicientes, quer dizer, criativas: nos jogos de palavras, que vão de distor -ções de palavras, efeitos que se dão em função de assonâncias, a declara-ções sagazes de fato inteligentes e engraçadas.

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dia para casa. Razões estas que novamente evidenciam uma mistura de ingenui-dade e requinte. Escrevem cartas suplicantes e comoventes para casa. Tudo isso demora muito mais do que as reações de saudades de casa das crianças normais, até que, por im, elas se acostumam e começam a se sentir bem com a ordem existente e inevitável, estabelecida por uma instância superior, porém, ao mesmo tempo, aberta às diiculdades dessas crianças. É possível que a ligação, que beira à neurose obsessiva, com os objetos e hábitos do meio doméstico faça com que as crianças sintam excessivamente a separação de casa, isto é, a diminuição de sua liberdade de agir é a razão dessa reação. Mesmo assim, essa intensa saudade de casa revela os sentimentos dos quais essas crianças são capazes.

Mas há outros exemplos desse tipo. O menino, que nos deu vários exemplos de uma expressão verbal especialmente original e criativa (vide página 719), tinha dois ratos brancos dos quais cuidava de forma comovente e que, conforme enfatizou diversas vezes, preferia a qualquer ser humano — o mesmo menino que através de suas maldades fez com que os pais icassem fora de si, que atazanava o seu pequeno irmão com requinte! Exemplos semelhantes de ligações indubitavelmente profundas com animais podem ser encontrados sempre de novo no caso de crianças autistas.

Diante desses fatos, a questão da esfera sentimental dessas crianças se tornou muito complicada. De qualquer maneira, não devemos compreendê-la simplesmente a partir da ideia da “pobreza de sentimentos”, quer dizer, segundo um ponto de vista quantitativo, trata-se muito mais de um modo de ser diferente qualitativo, uma desarmonia em termos de sentimentos, ânimo — por vezes repleto de contradições surpreendentes —, que caracterizam essas crianças, que causam os seus distúrbios de adaptação.

Herança biológica

Em face da uniformidade e da constância desse tipo de crianças psico-patas impõe-se igualmente a questão da hereditariedade. A questão de se estados psicopáticos são também de origem constitucional e, desse modo, hereditários já foi resolvida há muito tempo, assim como o fato de se tratar obviamente de uma esperança vã quando queremos evidenciar um processo hereditário claro e simples. Pois estes estados são, sem dúvida, poliméricos, isto é, encontram-se ligados a várias unidades hereditárias e, a não ser que se queira forçar alguma situação, não se chegará a nenhum resultado no sentido de decidir se um estado dessa espécie é passado em diante através de herança dominante ou recessiva.

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decorrer de dez anos observamos mais de duzentas crianças que apresentavam o quadro do autista psicopata de modo mais ou menos claro. Em todos os casos nos quais foi possível conhecer melhor os pais ou parentes, pudemos constatar traços psicopáticos na ascendência familiar do indivíduo. Amiúde só encontrá-vamos pequenas particularidades isoladas, muitas vezes, porém, o quadro pleno do psicopata autista: dos fenômenos de expressão característicos e da inabilidade às “diiculdades de se inserir” — aqui naturalmente presentes num outro nível. Na maior parte dos casos o pai — quando é dele que a criança herdou os traços autistas — tem uma proissão intelectual. Se, porventura, há um ou outro artesão, temos a impressão de que este errou de proissão (vide o caso 2!). Em muitos casos os antepassados dessas crianças são intelectuais já há diversas gerações. Em função de suas características foram fatalmente empurrados para proissões desse tipo. Frequentemente encontramos descendentes de importantes famílias de estu-diosos e artistas entre essas crianças. Por vezes, naturalmente, temos a impressão de que da grandeza destes restaram apenas as extravagâncias e excentricidades da criança que amiúde também estão presentes nos grandes cientistas. Muitos dentre os pais de nossas crianças autistas ocupavam, apesar de sua forte excentricidade, postos altos — o que contribui igualmente para a questão do valor social desse tipo de personalidade.

Os achados de hereditariedade aqui esboçados seguramente falam a favor tanto da hereditariedade do quadro, como da persistência das disposições, mas também — em função de a hereditariedade se dar de modo tão semelhante na maioria dos casos — do caráter especial do estado psicopático.

Em relação à hereditariedade, algumas outras questões serão analisadas aqui. Se considerarmos as nossas crianças autistas no que diz respeito ao gênero, nos deparamos primeiramente com o fato surpreendente de se tratar quase que exclusivamente de meninos. Encontramos, com efeito, igualmente distúrbios de contato entre as meninas que, em relação a alguns traços, lembravam os psico-patas autistas. Havia meninas em cujos casos precisamos considerar uma ence-falite anterior à razão de seu estado (como no caso 4, Hellmuth L.), mas não encontramos o quadro pleno, presente, por exemplo, nos casos 1 a 3, entre as meninas. Como se deve explicar isso? Trata-se aqui de uma hereditariedade ligada ao gênero ou, ao menos, limitada ao gênero? É algo nesse sentido.

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geralmente têm resultados melhores do que as meninas nos níveis de idades mais avançados do teste de Binet. As exigências lógico-abstratas, um tanto unilaterais, que os testes de Binet fazem a partir do nível de idade dos dez anos se adéquam muito mais aos meninos! No caso dos psicopatas autistas esse comportamento é levado ao extremo. A abstração — que, como um todo, é mais fácil para o homem ao passo que a fêmea sente mais e se apoia seguramente em seus instintos — está tão avançada que as relações com o que é concreto, com coisas e pessoas, se perderam amplamente. A adaptação às exigências do meio ambiente, que em grande parte se dá através das funções do instinto, é alcançada somente de forma bem reduzida.

Apesar de, conforme já relatamos, não termos conhecido nenhuma menina em que o quadro de autismo se encontrava plenamente desenvolvido, nos deparamos com várias mães de crianças autistas que apresentavam um comporta-mento claramente autista. Não sabemos explicar esse fato. Se é uma coincidência de justamente entre os nossos casos não existirem meninas autistas — pois estas certamente são mais raras do que os meninos — ou se os traços autistas só se manifestam após a puberdade no caso do sexo feminino, disso não sabemos.

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— e que se encontram dentro de um âmbito normal de variação —, esse desejo é passível de modiicação e suscetível à inluência da educação. A atualidade alemã mais recente nos oferece um exemplo grandioso e historicamente único para tal. A partir dessas variantes extremas do caráter humano é possível demonstrar que o desejo de um ilho, ou a ausência deste, também se encontra profundamente ancorado na camada das pulsões do ser humano, quer dizer, em sua constituição estabelecida através da disposição. A falta ou o enfraquecimento do desejo de um ilho, entretanto, é um traço de caráter presente na maior parte das personalidades autistas e mais um sintoma de sua natureza hipossexual, alterada ou fraca em termos de instinto. Sendo assim, podemos observar que diversos caracteres desse tipo vivem a sua vida de modo antissocial, sem esposa e ilhos; que entre aqueles que casam há muitos que vivem um casamento repleto de problemas e tensões no qual não existe a harmonia adequada entre pulsão e espírito, no qual, acima de tudo, não há espaço para a criação de um grupo maior de crianças. Pensemos aqui na ideia de Klages sobre “o espírito como opositor da vida”. Por isso, deve-se enfatizar que o fato do ilho único é mais sintoma do que causa do quadro autista.

A descrição dos casos, principalmente dos primeiros, nos dá a impressão de que há certas semelhanças entre os psicopatas autistas e os quadros esquizo-frênicos. Surgiu, inclusive, a pergunta de se nos casos de crianças tão anormais como Fritz V. não se trata, como um todo, de uma esquizofrenia infantil. Durante a discussão desse caso, considerações de caráter diagnóstico-diferencial foram feitas nesse sentido e o diagnóstico de uma psicose esquizofrênica foi rejeitado. O mesmo vale para os outros casos, entre os quais nenhum é tão gravemente anormal como o primeiro.

Entretanto, há ainda outra questão a ser respondida: os casos descritos repre-sentam — ou ao menos alguns entre eles — possivelmente pré-estágios de uma esquizofrenia? Uma real psicose se desenvolve a partir deles? Baseando-nos em nosso material, precisamos igualmente negar essa possibilidade. Os quadros por nós descritos não revelam nada no sentido de um processo. Como um todo, parecem ser constantes ao longo da vida, apesar de, comumente, ocorrer uma adaptação cada vez melhor às exigências do meio ambiente e, desse modo, a inserção social. Conhecemos um único caso que consideramos um psicopata autista com graves distúrbios de instinto; dois anos após, porém, surgiram uma degradação e uma decadência progressivas, de modo que agora é necessário fazer o diagnóstico de uma hebefrenia. Contudo, em todos os outros casos, alguns observados por nós durante vinte ou mais anos, não se veriicou a transição desse tipo de psicopatia para uma verdadeira psicose.

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isolados entre os quais uma combinação de diversas disposições patológicas causa a esquizofrenia?) ou o estado se baseia em predisposições para a esquizofrenia que nesses casos não se manifestaram? Essas questões poderiam ser elucidadas a partir de achados genealógicos exatos, pois teria que existir um número acima da média de esquizofrênicos entre os consanguíneos dessas crianças.

Por enquanto não podemos responder de modo concludente a essa pergunta. Em relação a esse ponto, precisamos igualmente remeter a um possível trabalho futuro. Por agora, apenas airmamos que não temos a impressão de existir um acúmulo marcante de esquizofrênicos ao redor das crianças autistas, de modo que não parece que caracteres autistas têm algo a ver com a esquizofrenia em termos de hereditariedade biológica e, sendo assim, geneticamente. Isto condiria com o ponto de vista de Schröder que airma que psicopatas não são “nem loucos pela metade nem loucos por um quarto”, também não no sentido do comportamento biológico-hereditário.

O valor social dos psicopatas autistas

Em nosso trabalho nos encarregamos da tarefa de apresentar um quadro de psicopatia infantil que, até onde sabemos, ainda não foi descrito. O capítulo presente vai além disso. Impõe-se a pergunta: Qual o futuro das crianças autistas? Desse modo é levantada simultaneamente a questão do valor social, uma questão de tamanha importância que, apesar de nos limitarmos conscientemente ao quadro do autismo infantil, acreditamos precisar ser tratada.

O que foi dito até então faz crer que a inserção social dessas pessoas é muito difícil, talvez até impossível, posto que sublinhamos o transtorno de adaptação às exigências do meio ambiente como característica principal do quadro delas. Essa expectativa, entretanto, se conirma na menor parte dos casos, isto é, apenas em relação às pessoas que, além dos traços autistas, apresentam uma clara inferiori -dade intelectual.

Nesses casos, entretanto, há poucas esperanças. Na melhor das hipóteses, essas pessoas acabam em uma proissão inferior marginalizada, amiúde incons -tante, que sempre muda. Quando as condições são menos favoráveis vagueiam enquanto tipos excêntricos pelas ruas, desleixadas de forma grotesca, falando sozinhas em voz alta, dirigindo-se despreocupadamente, e ao modo dos autistas, às pessoas, tornando-se motivo de escárnio para todos os moleques de rua, reagindo aos seus torturadores através de ataques malsucedidos.

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com as pessoas de seu convívio, que no caso das crianças levam aos conlitos característicos. Se uma antiga deinição designa os psicopatas como seres humanos que sofrem em função de si próprios e em função dos quais o seu meio entorno sofre, a segunda parte da frase certamente se aplica aos autistas. Porém, é quase impossível avaliar no caso de pessoas que mal se revelam para nós, cuja vida sentimental é tão diferente, que são tão impenetráveis, se estas sofrem em função de si próprias. Se, conforme há de se esperar a partir do comportamento das crianças autistas, não é fácil lidar com essas pessoas, principalmente para os parentes próximos — em especial os seus cônjuges —, a avaliação a respeito delas se torna inteiramente diferente quando se considera o seu êxito proissional.

Na grande maioria dos casos dá-se um bom desempenho proissional e, dessa forma, a inserção social — amiúde em proissões elevadas, amiúde de modo tão excepcional que somos forçados a reconhecer que ninguém mais do que justa-mente esses seres humanos autistas seria capaz de tal êxito. É como se eles rece -bessem, através de um tipo de hipertroia compensatória, capacidades especiais para compensar os seus consideráveis defeitos. A persistência e a efetividade que estão presentes na atividade “espontânea” do autista, a limitação a âmbitos isolados da vida, a um interesse isolado especial, aqui se revelam como valores positivos que capacitam essas pessoas para grandes êxitos em âmbitos determi-nados. Observamos justamente no caso dos autistas — com uma clareza bem maior do que quando se trata dos “normais” — que estes parecem ser predesti-nados, desde a mais tenra juventude, para uma proissão especíica, que essa proissão se desenvolve fatalmente a partir de suas disposições especiais.

Para tal, um exemplo: acompanhamos, durante quase três décadas, a vida de um menino e jovem rapaz cujo comportamento revelava claramente o quadro do psicopata autista. Da infância à vida adulta, ele tinha uma conduta extrema -mente autista. Era como se nem tomasse conhecimento das outras pessoas de tão ausente que estava, por vezes não reconhecia os conhecidos mais próximos. Da mesma forma que era especialmente inábil em termos de motricidade (na hora de aprender as tarefas diárias necessárias havia, em grande medida, todas as dii -culdades anteriormente descritas), todo o seu comportamento continuou inábil e inadaptado (quando já um jovem rapaz era possível vê-lo no bonde limpando, com entrega e dedicação, o seu nariz com os dedos!). Na escola havia problemas constantes, ora ele estudava, ora não, dependendo do que queria. Tinha pouquís-simas habilidades para línguas, na escola secundária não teria conseguido passar do grego básico. Acabava passando de ano somente em consideração às suas outras habilidades.

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seguida, elaborava de modo inteiramente autônomo. Sendo assim, relata-se a seguinte cena de quando ele tinha apenas três anos de idade! Um dia conversou-se sobre quadrados. A mãe teve que desenhar para ele um triângulo, um quadrado e um pentágono na areia. Então ele mesmo pega o bastão, faz um traço e diz: “Isso é um bi-ângulo, não é?”, faz um ponto e diz: “E isso é um uno-ângulo?”. Toda brincadeira e todo interesse do menino estavam voltados para a matemática. Antes de entrar na escola já sabia calcular a raiz cúbica. Enfatiza-se repetidamente que os pais não tinham a menor intenção de inculcar no menino habilidades matemáticas mecânicas e não compreendidas. Pelo contrário, o menino pratica-mente forçava, por conta própria e opondo-se à relutância de seus educadores, a ocupação com a matemática. Na escola secundária surpreendia os seus profes-sores através de seu conhecimento matemático especial, que se estendia aos âmbitos mais abstratos. É a esse conhecimento que se deve o fato de ele ter conse -guido passar, sem grandes obstáculos, pela Matura,2 apesar de seu comportamento amiúde impossível e de seu fracasso nas outras matérias. Não muito tempo após ter ingressado na universidade — escolheu a astronomia teórica como faculdade — comprovou um erro de cálculo de Newton. O seu professor o aconselhou a usar essa descoberta como base de sua dissertação. De antemão estava decidido que se dedicaria à carreira acadêmica. Em muito pouco tempo tornou-se assistente e obteve a livre-docência.

Esse tipo de percurso não é de forma alguma uma exceção isolada. Para a nossa surpresa, pudemos observar que em quase todos os casos os psicopatas autistas, a não ser que apresentem problemas intelectuais, conseguem uma inserção proissional. A maior parte deles em proissões claramente intelectuais, altamente especializadas; vários deles alcançam cargos elevados. Priorizam conteúdos abstratos do conhecimento. Encontramos um grupo maior em que a habilidade matemática determina a proissão. Além dos “matemáticos puros”, há técnicos, químicos e também funcionários públicos — amiúde encontramos igual-mente proissões especíicas incomuns, extravagantes. Por exemplo, um heraldista que, conforme se diz, é autoridade nessa área, alguns músicos renomados também foram crianças autistas observadas por nós. O fato, em princípio surpreendente, de que crianças tão difíceis e anormais alcançam, por im, uma inserção social que as sustenta e que é muito elevada nos parece, quando examinado mais profun-damente, explicável.

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Toda inserção proissional força a unilateralidade, signiica desistir de possibilidades — o que é muito sofrido para uns e outros. Por essa razão alguns jovens fracassam na hora de escolher uma proissão, pois em função de suas diversas habilidades não conseguem se decidir, não têm impulso suiciente para seguir uma determinada direção. No caso dos psicopatas autistas, porém, temos a impressão de que traçam o seu caminho com foco e segurança natural — com antolhos diante das diversas possibilidades da vida —, caminho este para o qual muitas vezes parecem ser predestinados desde crianças. No caso dessas pessoas, comprova ser igualmente verdadeira a frase de que em todo caráter qualidades e falhas se originam dos mesmos traços, que o positivo e o negativo são dois lados que diicilmente podem ser separados, dos quais não podemos aceitar somente a faceta boa e rejeitar a ruim.

Acreditamos que igualmente essas pessoas têm o seu lugar no organismo do grupo social, espaço este que preenchem plenamente, algumas delas, talvez, de forma única — justamente elas, que amiúde foram crianças que causaram as maiores diiculdades e preocupações para os seus educadores.

Revela-se, especialmente no caso desse tipo de caracteres, o quão passíveis de desenvolvimento e adaptação personalidades anormais podem ser, quantas vezes, ao longo do desenvolvimento, surgem possibilidades de inserção social que não vislumbrávamos para estas pessoas. Sendo assim, esse fato determina igualmente a nossa atitude e avaliação perante todos os tipos de pessoas difíceis e nos dá o direito, e a obrigação, de nos empenharmos com toda a nossa persona-lidade por elas, pois acreditamos que somente o investimento pleno do educador amoroso é capaz de obter sucesso no caso de pessoas tão complexas.

Fim

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desintegrados de E.R. Jaensch e principalmente com o “tipo pensamento introver-tido” de Jung.Especialmente em relação à descrição dos caracteres introvertidos, encontramos muitos aspectos aparentados com as personalidades infantis por nós apresentadas. Pois a “introversão” nada mais é do que uma restrição ao nosso próprio ser (autismo), uma limitação das relações com o meio ambiente.

Mesmo assim, por ora não consideramos muito frutífero o estudo desses autores: nenhum deles se manifesta a respeito, a não ser a partir de comentários muito breves e raros, de como os caracteres por eles descritos se comportam durante a idade infantil. Carecem amplamente de elementos passíveis de compa-ração, as suas descrições se encontram em um âmbito totalmente diverso das nossas. Esse estudo tornar-se-á, sem dúvida, muito mais proveitoso à medida que mostramos o que acontece com as crianças por nós descritas na vida adulta. Por isso, precisamos remeter-nos novamente a um futuro trabalho mais abrangente. Neste não apenas a base biológico-hereditária deve ser elaborada de modo mais exato, e sim, o tema deste trabalho, que se limita conscientemente à idade infantil, deve ser continuado. Sendo assim, surgirá a possibilidade de analisarmos mais profundamente os caracteres apresentados por outros autores, realçarmos corres-pondências e diferenças.

O objetivo de nosso trabalho foi descrever um tipo de crianças anormais — a partir de uma convivência intensa, a partir de um profundo investimento peda-gógico — que nos pareceu digno de interesse não somente em função de suas peculiaridades e diiculdades, e sim, devido à perspectiva que se abre em relação a problemas psicológicos, pedagógicos e sociológicos centrais.

Referências

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Citação/Citation: Asperger, H. (2015, dezembro). Os “psicopatas autistas” na idade infantil. (2a Parte). Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 18(4), 704-727.

Editor do artigo/Editor: Prof. Dr. German E. Berrios.

Hans asperger (1906-1980)

Formou-se em Medicina em 1931 e assumiu a direção da estação ludo-pedagógica na clínica infantil da universidade em Viena, em 1932.

Referências

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