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Psicol. cienc. prof. vol.35 número4

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Academic year: 2018

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Artigo

Abandono Afetivo:

Afeto e Paternidade em

Instâncias Jurídicas

Emotional Abandonment: Affection and Paternity in Brazilian Courts

Abandono Afectivo: Afecto y Paternidad en Instancias Jurídicas

Lisandra Espíndula Moreira

Universidade Federal de Alagoas

Maria Juracy Filgueiras Toneli

Universidade Federal

de Santa Catarina

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Resumo: O objetivo deste artigo é discutir arqueologicamente a articulação entre paternidade e criminalidade, tomando como base um documento jurídico que aciona um pai por abandono afetivo. Em especial, analisamos a produção de sujeitos nos jogos enunciativos que responsabilizam o pai por sua ausência na vida da prole. Para que se construa essa responsabilização em relação ao(a) filho(a) é necessário que os enunciados se movimentem e estabeleçam diferenciações entre a responsabilidade familiar x de outras instâncias (comunidade e Estado). No interior da instância familiar, os enunciados explicitam a matriz heterossexista, construindo lugares específicos para homens e mulheres, recheados de prescrições, funções e características. Para que se transforme numa demanda jurídica legítima, o afeto será entendido como cuidado e convívio. Mesmo nesta operação enunciativa, o cuidado paterno não se produz de forma semelhante ao cuidado materno. Ao referir-se à paternidade, o afeto (cuidado) se transformará na demanda por limite e autoridade, que se sustenta na associação entre a ausência paterna e a criminalidade.

Palavras-chaves: Paternidade. Afeto. Psicologia Jurídica.

Abstract: This article discusses the relation between paternity and crime using discourse

analysis. We researched case that contained the judgment regarding the emotional abandonment by the father. In particular, we analyze the subject’s production in statement as they blame the father for his absence in children’s life. The use of the statements outlined the family responsibility and established differences between the family’s responsibility and community or State’s responsibility. Within the family unit, the statements described the father’s responsibility when they built specific roles for men and women with specific prescriptions, functions, and features, thereby creating a heterosexist matrix. When this turns into a legitimate legal demand, the affection will be translated as care and family intimacy. In this discursive analysis, differences can be observed in the manner in which the maternal and paternal care are discursively produced. In the case of paternal care, this difference can be translated into the child’s need for authority and the demand for limits. This difference could be at the base of the association between paternal absence and crime.

Keywords: Paternity. Afecct. Forensic Psychology.

Resumen: El objetivo de este artículo es discutir de forma arqueológica la relación entre paternidad y criminalidad, analizando un documento jurídico-legal a través del cual se acciona a un hombre- padre por Abandono Afectivo. En especial, se analiza la producción de sujetos en los juegos de enunciativos que responsabilizan al padre por su ausencia en la vida de los/as hijos/hijas. Para construir esta responsabilidad con relación al(la) hijo(a) es necesario establecer las diferencias entre la responsabilidad familiar y otras instancias (comunidad y Estado). En el interior de la familia, los enunciados dejan explícita la matriz heterosexual, construyendo lugares específicos para hombres y mujeres, llenos de prescripciones, funciones y características. Para convertirlo en una demanda legal legítima, el afecto se entenderá como el cuidado y la convivencia. Inclusive en esta operación enunciativa, la atención paterna no se produce de manera similar a la atención materna. Al referirse a la paternidad, el afecto (cuidado) se transformará en la demanda por límites y autoridad, que se sustenta en la asociación entre a ausencia paterna y la criminalidad.

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1 O impulso inicial para essa pesquisa foram algumas ações sociais, uma forte articulação entre ausência paterna e

crimina-lidade, como se a primeira fosse causa da segunda. As ações foram desen-volvidas por uma parceria entre uma organização não governamental - ONG de combate à criminalidade de Porto Alegre, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS) e as Secretarias Estaduais da Saúde (SESRS) e da Edu-cação (SEERS) (Moreira &

Toneli, 2013) 2 Tomar o discurso como documento é buscar deinir “os pensamentos, as re-presentações, as imagens,

os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos” (p. 157), como se ele fosse signo de outra coisa. Já a arqueologia se diferencia por tomar discurso como monumento, pois busca descrever os próprios dis-cursos “enquanto práticas

que obedecem a regras” (p. 157). Esclarecemos que neste artigo quando se faz referência a “documentos” não se adere a essa forma de analisar o discurso, não se utiliza a palavra como conceito teórico, mas se faz referência aos materiais que compõem o corpus de pesquisa, pois se tratam de documentos jurídicos..

A discussão presente neste artigo faz parte de um estudo maior que analisou arque-ologicamente os enunciados a respeito de paternidade e criminalidade nas decisões dos tribunais de segunda e terceira instân-cia dos estados do sul do Brasil, buscando descrever possíveis jogos de enunciação. O enunciado que foi o ponto de partida dessa pesquisa – ausência paterna como causadora de criminalidade1 - não surge como uma

fórmula mágica nos materiais e nem foi buscado dessa maneira. Em contrapartida, surgiram movimentos de enunciados que de diversas formas articulavam essas duas questões (criminalidade e paternidade) e, com isso, evidenciavam lutas de forças, jogos de saber/poder que se mesclaram para que surjam as enunciações que fundamentam ou não as sentenças lidas.

Tomar a articulação entre paternidade e criminalidade a partir dos enunciados é tomar cuidado para escapar da busca por um correlato. Não há nessa pesquisa o intuito de verificar se essa articulação existe, autenticando a veracidade de uma proposição causal entre ausência paterna e criminalidade. Para Foucault (2005), essa seria uma das funções enunciativas, mas existem outras. O enunciado requer uma determinada posição de sujeito a ser ocupada, colocando em questão o princípio de autor, como problematizado anteriormente. Além disso, a função enunciativa ainda pressupõe tanto uma existência material quanto um domínio associado, relaciona-se com todo um campo adjacente, reatualiza outros enunciados, “figura em um campo definido, com uma posição determinada, em um jogo enunciativo que a extrapola” (Foucault, 2005, p. 112). Não se busca atribuir “sentidos” aos enunciados, mas relaciona-los com um campo de objetos. Abrem-se posições subjetivas possíveis ao invés de definir aos enunciados um sujeito/autor. Em vez de limitá-los, posiciona-os num domínio de coordenação e coexistência.

Analisar uma formação discursiva é, pois, tratar um conjunto de performan-ces verbais no nível dos enunciados e da forma de positividade que as carac-teriza; ou, mais sucintamente, é definir

o tipo de positividade de um discurso (Foucault, 2005, p. 141-142).

Metodologia

Utilizamos como ferramenta a proposta arqueológica de Foucault (2005), buscando descrever uma arqueologia da articulação entre paternidade e criminalidade a partir de um determinado corpus. Em especial, neste artigo direcionamos a análise para um documento referente a “Abandono Afetivo”, processo em que um pai foi acionado por ter abandonado afetivamente o filho. Foucault (2005) propõe com o termo – arqueologia – não a busca de um começo ou de uma exploração geológica, mas “designa o tema geral de uma descrição que interroga o já dito no nível de sua existência; da função enunciativa que nele se exerce, da formação discursiva a que pertence, do sistema geral de arquivo de que faz parte” (p. 149).

Partimos de alguns princípios inspirados em Foucault (2005), de sorte a elaborar uma analítica que: 1. Não se propõe interpre-tativa, como se buscasse um discurso mais oculto; dirige-se ao discurso na qualidade de monumento2; 2. Não busca a transição

contínua, mas quer “definir os discursos em sua especificidade; mostrar em que sentido o jogo de regras que utilizam é irredutível a qualquer outro” (p. 157); 3. Não é ordenada pela figura da obra, pois busca descrever prá-ticas discursivas que podem atravessar obras individuais, comentando-as na íntegra ou em parte; 4. Não se propõe à reconstituição do pensamento ou desejo no momento em que os discursos foram proferidos, a arqueologia se constitui na “descrição sistemática de um discurso-objeto” (p. 158).

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3 Derivado do latim

jurisprudentia, de jus (Direito, ciência do Direito) e prudentia (sabedoria),

entende-se literalmente que é a ciência do Direito vista com sabedoria. Os roma-nos deiniam-na, segundo Ulpiano, como o

conheci-mento das coisas divinas e humanas e a ciência do justo e do injusto: divinarum atque humanarum rerum notia, justi atque injusti scientia. Modernamente, é jurisprudência aplicada também no sentido de Ciência do Direito. É claro o sentido literal: o Direito aplicado com sabedoria (Silva, 2000). 4 Acórdão – Designação

dos julgamentos proferi-dos por tribunal.

existe nenhuma forma de contestar esses tipos de gramáticas a não ser habitá-las de maneira que produzam nelas uma grande dissonância, que ‘digam’ exatamente aquilo que a própria gramática deveria impedir” (Prins, & Meijer, 2002, p. 159).

Tomamos como corpus de pesquisa a juris-prudência3, ou seja, as decisões concretas

dos Tribunais de Justiça dos três estados da região sul (TJRS, TJSC e TJPR), além do Tri-bunal Regional Federal (4ª região) e Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF). A jurisprudência mostra-se campo fértil de análise tendo em vista sua dupla importância temporal: seu caráter his-tórico, pois permite analisar como têm sido utilizados alguns enunciados e seu caráter futuro, tendo em vista que a utilização de suas enunciações serve como precedente para legitimar decisões vindouras semelhantes. Nesse aspecto, verifica-se a sua “potencia-lidade normalizadora” (Perucchi, 2008), pois inova juridicamente ao estabelecer e esmiuçar, pela interpretação das leis, normas que não estavam explícitas no texto legal. Os efeitos da jurisprudência, como dispositivo de poder “incidem no cotidiano familiar, na vida de homens e mulheres nestes novos arranjos sociais contemporâneos. Opera por meio de um conjunto de regras constitutivas das práticas discursivas que normalizam modos de vida, atividades familiares, profissionais, de consumo e de sociabilidade” (Perucchi, 2008, p. 62).

A pesquisa foi realizada no acervo virtual das instâncias jurídicas citadas acima, cru-zando descritores reacionados aos termos paternidade e criminalidade. Ao todo foram selecionados 208 acórdãos4. Os materiais

foram lidos e analisados, seguindo seus movimentos, deslocamentos, modificações e permanências na articulação entre pater-nidade e criminalidade. A análise completa compõe a tese de doutoramento da primeira autora. Para esta escrita, optamos por apre-sentar um acórdão referente à ação movida contra um homem pai por abandono afetivo. Não analisaremos juridicamente a decisão, julgando como procedente ou não essa demanda. Interessam-nos as enunciações que

constroem as posições diferenciadas para sujeitos no exercício das relações familiares (pais, mães, filhos). Para esse objetivo, este documento se mostra bastante fértil.

Abandono afetivo

O documento aqui analisado é um acórdão do TJSC que tinha como foco das enunciações a questão do abandono afetivo, conforme as informações da ementa referente à decisão de março de 2007.

TJSC 2006.015053-0. DIREITO CIVIL – OBRIGAÇÕES – RESPON-SABILIDADE CIVIL – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATE-RIAIS – PROCEDÊNCIA DAQUELA E IMPROCEDÊNCIA DESTA EM 1º GRAU – INCONFORMISMO DE RÉU E AUTORA – INSURGÊNCIA DO REQUERIDO – ILEGITIMIDADE PAS-SIVA AD CAUSAM POR OFENSAS PROFERIDAS EM PROCESSO – ACO-LHIMENTO – PROCRASTINAÇÃO DO FEITO – RESPONSABILIDADE DO SISTEMA LEGAL-JUDICIÁ-RIO – AUSÊNCIA DE DANOS MORAIS – INEXISTÊNCIA DE ILÍ-CITO – INCONFORMISMO DA REQUE-RENTE – VALOR ÍNFIMO – ABAN-DONO MORAL DO FILHO PELO PAI – MAJORAÇÃO DO QUANTUM

POR DANOS MORAIS – QUAN-TIA ADEQUADA - DANOS MATE-RIAIS – NEXO CAUSAL ENTRE ILÍCITO E DECRÉSCIMO FINANCEIRO DA AUTORA – AUSÊNCIA – RECURSOS CONHECIDOS – PROVIMENTO PAR-CIAL AO DO RÉU E IMPROVIMENTO AO DA AUTORA

O pai que se omite em cuidar do filho, abandonando-o, ofende a integridade psicossomática deste, acarretando ilí-cito ensejador de reparação moral. O sofrimento do filho abandonado pelo pai gera à figura materna daqueles danos morais, principalmente quando a consequência desse sofrer é decisiva na formação da personalidade como um todo unitário.

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5 Apelação – termo origi-nado do latim appelatio,

que é usado no mesmo sentido originário: recurso interposto de juiz inferior para superior. Designa um dos recursos que se pode utilizar a pessoa prejudi-cada pela sentença, a im

de que, subindo a ação para superior instância, e, conhecendo está o seu mérito, pronuncie uma nova sentença,

conirman-do ou modiicanconirman-do a que se proferiu na jurisdição de grau inferior (Silva, 2000). 6 Interessante que nesse

documento há um voto contrário às decisões tomadas pela maioria, ou seja, dos três juízes um discordou, procedimento que, na maioria dos

acór-dãos lidos, não ocorreu. Esta característica nos possibilita conhecer

algu-mas enunciações e suas contestações, além de explicitar certos jogos de saber/poder.

que cada texto possui mais fontes do que pode reconstruir em seus próprios termos. Trata-se de fontes que definem e informam a linguagem do texto, de modo a exigir uma exegese abrangente do próprio texto para ser compreendido” (p. 11). Percorremos esse documento buscando o que está aqui dito e as condições de possibilidade que permitem a esse(s) desembargador(es) dizer(em) o que aqui diz(em). Não se trata apenas de análise do texto que configura esse acórdão, mas dos textos que compõem esse texto. Tomamos cada citação utilizada nesses materiais como uma nova pista a ser buscada. Partimos de um primeiro material que foi se multiplicando nessas buscas e atravessamentos.

Trata-se de uma Apelação Cível5, decorrente

de uma ação por danos morais e materiais interposta pela mãe de um filho “abandonado” pelo pai. O filho obteve o reconhecimento de paternidade e indenização por abandono afetivo em outro processo. Ou seja, a mãe, por ter assumido afetivamente sozinha o filho, acusa o pai de abandono afetivo e busca indenização por danos morais.

É necessário conhecer algumas particu-laridades desse acórdão. O pedido da mãe por danos morais sustenta-se em três pontos: 1) as ofensas que sofreu ao longo do processo; 2) a demora de 13 anos no reconhecimento da paternidade, pelo pedido de investigação solicitado pelo pai, mesmo sabendo que o filho era seu; e, 3) o acompanhamento do sofrimento do menor pelo abandono afetivo do pai após a abertura do processo de reconhecimento de paternidade. Ao longo do texto, cada ponto é julgado. A decisão, pela maioria6,

teve a última demanda contemplada, mas as outras não. No caso das ofensas sofridas ao longo do processo, primeira demanda, a defesa alegou que os ataques pessoais à mãe do investigante faziam parte de uma tática. Além disso, o processo tramitou em segredo de justiça e as ofensas teriam sido proferidas pelo advogado e não pelo reque-rido pai. Em relação à segunda demanda – a demora no processo de reconhecimento de paternidade –, argumenta-se que o tempo para resolução da ação tem mais relação

com os mecanismos da justiça do que com uma busca deliberada do requerido protelar o desfecho do processo.

A terceira demanda, o dano moral por aban-dono afetivo, carrega os jogos enunciativos que aqui nos interessam. Nessa demanda, há uma necessidade de enunciar a importância da figura paterna, possibilitando que anali-semos enunciados em ação. Inicialmente, sustenta-se a importância do convívio familiar como um direito da criança e do adolescente, estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Brasil, 1990), salientando a necessidade da dupla parental.

Outrossim, o ECA, regulamentando o supramencionado dispositivo, prevê, dentre os direitos fundamentais da criança e do adolescente, o direito ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvi-mento (art. 15, ECA), bem como o de serem criados e educados no seio de sua família (art. 19, ECA). O direito à convivência familiar expressa, dentre outros desdobramentos, o direito dos filhos de serem acompanhados em seu desenvolvimento tanto pelo pai, como pela mãe (TJSC 2006.015053-0).

A definição do convívio como direito, pode ser compreendida como uma construção recente, atrelada à elaboração do ECA. Dias (2010), relembra que anterior ao ECA, em processos de separação, o filho passava a residir com um dos genitores, aquele que detinha a guarda, “expressão que significa verdadeira ‘coisificação’ do filho, colocan-do-o muito mais na condição de objeto do que sujeito de direitos” (Dias, 2010, p. 430). Com a prioridade direcionada à criança, os dois pais permanecem atrelados aos direitos e deveres do poder familiar.

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A grande evolução das ciências que estudam o psiquismo humano veio a escancarar a decisiva influência do contexto familiar para o desenvolvi-mento sadio de pessoas em formação. Não mais se podendo ignorar essa rea-lidade, passou-se a falar em paterni-dade responsável... O distanciamento entre pais e filhos produz sequelas de ordem emocional e reflexos no seu sadio desenvolvimento. O sentimento de dor e de abandono pode deixar reflexos permanentes em sua vida (p. 106). (TJSC 2006.015053-0).

Podemos pensar que uma das condições que torna possível acionar um membro da família por abandono afetivo é um movimento nos próprios modos de compreender a(s) famí-lia(s). Pensando em imagens de família em algumas épocas históricas, Roudinesco (2003) analisa as demandas políticas lançadas à famí-lia. Numa imagem de família “tradicional”, o objetivo principal estava em assegurar a transmissão de um patrimônio, subordinada à lógica patriarcal e assentada numa ordem do mundo imutável. Já a família “moderna” (final do século XVIII) funda-se no amor român-tico e obedece à lógica afetiva, atribuindo autoridade ora dividida entre Estado e pais, ora dividida entre pais e mães, semelhante ao jogo de forças presente nas enunciações em análise nesse acórdão. Na família “con-temporânea”, surgida a partir de 1960, os indivíduos buscam relações íntimas ou rea-lização sexual e a transmissão de autoridade vai se configurando numa problemática por conta das recomposições conjugais. Dessa rápida recuperação histórica, é interessante pensar que, no auge da afetividade, há certa cristalização das questões de autoridade e produção de categorias para o exercício das relações familiares, o que poderia estar em transformação e se caracterizar como certa “crise” contemporânea.

Apesar das diferentes nuances nas imagens de família e dos direitos das crianças e ado-lescentes produzirem obrigações em outros sujeitos e instâncias (a família, a sociedade e o Estado), é a família que recebe a responsa-bilidade maior. Partindo da “lógica e natural” responsabilização da família, as enunciações passam a descrever o que, nessa instância

familiar, caberia a cada um dos membros, tarefas e funções específicas. Nesse sentido, o Direito entra na família, acompanhado do saber psi, para prescrever, determinar e fiscalizar tarefas e funções específicas para os agentes que ali se encontram. Eis que se constrói, nesse documento, um lugar de pai, uma função paterna que precisa ser neces-sariamente exercida pelo homem, possível de ser acionado caso não venha a ocupa-la.

No âmbito da relação parental, sendo os pais os orientadores da entidade familiar, há que se reconhecer a impor-tância da existência tanto da figura materna como da paterna para a for-mação do indivíduo, cabendo a ambos os pais o dever de oferecer aos filhos amparo e afeto, criando-os e educan-do-os com o carinho indispensável à formação da sua personalidade (TJSC 2006.015053-0).

Pater viril

O exercício da parentalidade aparece ini-cialmente direcionada a ambos mas, na sequência, se constrói o enunciado em prol da paternidade como elemento necessário e diferenciado da maternidade. Analisando a diferenciação binária da parentalidade é possível conhecer o que se constitui como polo para a paternidade, suas características, demandas, normatividades. Que característi-cas atribuem-se ao homem pai? Que jogos de saber poder evidenciam-se nessa produção de paternidade? Que discursos possibilitam esse investimento na figura paterna?

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7 Butler (2003a) propõe uma crítica genealógica à produção de sujeitos políticos, em especial, à categoria “mulheres”. Nessa crítica, alerta para o processo de ocultação e naturalização das opera-ções políticas que efetivam

a construção dos sujeitos. Numa simples represen-tação de sujeitos, há um

imbricado e simultâneo processo de produção desses sujeitos. 8 Utilizamos o termo pa-rentalidade com o objetivo

de descolar a categoria de gênero vinculada ao exercício parental, colocando em questão a dicotomia presente ao se falar em maternidade e paternidade. Segundo Uziel et al. (2006), essa terminologia, apesar da pouca usualidade no co-tidiano, foi estabelecida a partir do vocabulário

fran-cês (traduzida do original

parentalité) com o intuito mesmo de evitar a

generi-icação do termo, própria da língua portuguesa.

pater-viril está acima da questão da estratificação social. É um fenômeno e consequência das transformações sociais iniciadas com a revolução feminista, a partir da redivisão sexual do trabalho e a consequente queda do patriarcalismo (solicitado autor livro Groreninga e Pereira, 2003, p. 225) (TJSC 2006.015053-0).

Nessa citação, enunciados se atravessam compondo jogos de verdade, produzindo associações que fundamentam certa articula-ção entre ausência paterna e consequências sociais – delinquência juvenil e menores de rua. Mas não apenas essa associação está em jogo: fala-se de juventude, de desigualdade social, de abandono do Estado, transforma-ções sociais, feminismo, patriarcalismo. Ana-lisamos essa enunciação a partir da produção de sujeito que está aqui posta de uma forma bastante peculiar: o pai está aqui produzido na sua ausência. No discurso jurídico que contempla as questões de paternidade, os lugares de sujeito são múltiplos – o pai, mesmo que na ausência; o filho, a ser pro-tegido como instância prioritária; a sociedade que sofrerá as consequências de exercício, ou não, da paternidade e o Estado como instância substitutiva da autoridade paterna.

As noções jurídicas de poder parecem regular a vida política em termos pura-mente negativos – isto é, por meio de limitação, proibição, regulamentação, controle e mesmo, “proteção” dos indi-víduos relacionados àquela estrutura política, mediante uma ação contin-gente e retratável de escolha (Butler7,

2003a, p. 18).

A categoria “pai” está sendo construída, potencializada e/ou regulada pelas mes-mas estruturas de poder através das quais busca legitimação ou através das quais é solicitada a prestar contas. Além disso, nas importantes ressalvas de Butler (2003a) aos pressupostos presentes na discussão da produção e ocultação de sujeitos políticos, há a invocação de um “antes” – premissa de um sujeito anterior a ser representado e a invocação de uma identidade comum acionada pela nomeação dessa categoria. Ambos os pressupostos retiram o caráter

histórico das categorias identitárias, assim como invisibilizam as diferenças e “inter-secções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas” (p. 20). A inter-ferência das transformaçõessociais aparece como um processo que deturparia a função “natural” e “a-histórica” do pai, no exercício da autoridade e também a função da mãe.

As enunciações estabelecem a primazia dessa problemática – ausência paterna – em relação a alguns outros marcadores sociais (estratificação social, abandono material). Eis a produtividade do enunciado: exclui ou minimiza os efeitos de outras relações de poder nos fenômenos colocados em questão (aumento da delinquência juvenil, menores de rua e na rua, dentre outros).

Além disso, a definição da paternidade como categoria explicativa é possível no acionamento de sua diferenciação em relação à maternidade. Caso contrário, estaria falando de parentalidade8, ou de

forma mais ampla, do papel da família. Investigando a “categoria” jurídica nomeada de “abandono afetivo”, há prevalência de processos acionando o pai por abandono afetivo. Em menor número estão processos de abandono afetivo em que a mãe é acionada. Nos casos da mãe, confirmado o abandono afetivo, a mesma perde o poder familiar. Tasch (2010) explica que na jurisprudência de Santa Catarina, os casos de abandono por parte da mãe geralmente referiam-se à avaliação dos modos de vida dessa mãe (várias eram usuárias de álcool e/ou drogas), culminando com a extinção do poder fami-liar. Nesse sentido, configura-se o abandono afetivo materno quando, através de uma avaliação moral, entende-se que esta mãe “não possui condições psicológicas e morais para proporcionar uma formação saudável e digna a seus filhos” (Tasch, 2010, p. 13).

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9 Apesar disso, em outras decisões jurídicas, o Brasil tem construído um enunciado importante em termos de isonomia. Cabe lembrar a decisão do STF, em 2011, que atribuiu à união estável homoafetiva o reconhecimento como entidade familiar (STF 477.554, 16 de agosto de 2011). É exatamen-te nesses embaexatamen-tes que icam claras as colagens em relação ao casa-mento/conjugalidade e parentesco/parentalidade. Haja vista a polêmica em relação ao

reconhecimen-to da união entre casais homoafetivos ser

legitima-da como casamento e o temor do desdobramento desse reconhecimento na legitimação do parentesco dos casais legitimados por essa via. Nesse sentido, muitos projetos de lei só são aprovados quando estabelecem claramente uma separação do

casa-mento com as questões do parentesco. 10 Fassin (2011) mostra que nos Estados Unidos da América a polêmica do debate se refere à sa-cralização do casamento,

já no contexto francês a sacralização está

vincula-da à iliação e à nacio-nalidade. O autor tem uma relexão interessante sobre a sacralização, ex-plicando que ela refere-se

ao processo de naturali-zação: “o que se sacra-liza, em uma sociedade democrática, é aquilo que se estima essencial e que se busca, então, retirar da esfera da deliberação política para conceder o estatuto de verdade absoluta que transcende a história” (p. 11).

de uma indenização por danos morais. Nesse caso, a permanência do poder familiar e o pagamento da indenização são pensados ambos como uma punição. Segundo Dias (2010), num caso assim, a perda do poder familiar, isoladamente, poderia “constituir-se não em uma pena, mas uma bonificação por abandono” (p. 450).

Há certo mal-estar vinculado ao exercício da parentalidade masculina, como se o pai sempre quisesse da paternidade fugir. Será que a paternidade seria um campo em que o masculino estaria colocado como pro-blemático? Será que o lugar problemático do masculino em relação à parentalidade constitui-se a partir da explicitação do caráter construído dessa relação?

As demandas associadas ao exercício materno e paterno aparecem distintas, apesar da mesma categorização: “abandono afetivo”. Ao pai, os jogos enunciativos demandam o exercício da autoridade (colocando como consequência a ausência de figura de auto-ridade). Já à mãe reivindica-se o cuidado, provando ou não sua negligência. Atualizam-se binarismos: feminino/masculino, cuidado/ autoridade, corpo/mente, natureza/cultura. A demanda ao pai por afeto, no abandono afetivo, poderia ser considerada uma sub-versão a essa coerência binária, não fosse o enunciado produzir o afeto como coisa distinta para pai e mãe. No caso do que se apresenta no documento, o afeto masculino seria exatamente o exercício da autoridade.

Problematizar essa construção binária é colo-car em questão os limites das especificidades do que se direciona para homens e mulheres, para pais e mães, para o masculino e feminino. Será sempre a paternidade uma referência ao binarismo heterossexual? Poderíamos pensar em paternidade como um exercício da parentalidade sem o atravessamento da matriz heterossexual? Seria possível estabelecer essa mesma demanda jurídica – dano moral por abandono afetivo do filho – no caso de um casal homossexual? Seria possível o uso do mesmo enunciado, caso os dois sujeitos fossem nomeados “pais”? Em que medida a categoria “pai” só alcança estabilidade e

coerência no contexto da matriz heterosse-xual? Matriz heterossexual ou heteronorma ou heterossexualidade compulsória são modos de explicitar uma operação permanente e gritante, mas ao mesmo tempo invisibilizada, que exige unidade entre sexo, gênero e desejo (homem, masculino) de forma oposicional à outra unidade de sexo, gênero e desejo (mulher, feminino).

A coerência ou a unidade interna de qualquer um dos gêneros, homem ou mulher, exigem assim uma heteros-sexualidade estável e oposicional... A instituição de uma heterossexuali-dade compulsória e naturalizada exige e regula o gênero como uma relação binária em que o termo masculino diferencia-se do termo feminino, reali-zando-se essa diferenciação por meio de práticas do desejo heterossexual (Butler, 2003a, p. 45).

Ao fazer referência a “pai” e “mãe” como categorias distintas e opostas na forma como devem exercer a sua relação parental, a enunciação nos remete ao binarismo e à cristalização dessa matriz9. Partir do fato,

tomado como incontestável, de que para gerar uma criança necessita-se de uma pessoa do sexo masculino e outra do sexo feminino, bem como limitar a isso as possibilidades de vínculo parental é o que Fassin10 (2011) descreve como naturalização

ou biologização da filiação. A filiação tinha sua dimensão social e cultural reconhecida pelos especialistas do Direito de família até os anos 1990 e a retomada naturalista da filiação vem à tona precisamente quando surgem reivindicações homoparentais. Enfatizar o caráter biológico da filiação surge como estratégia para argumentar a limitação de direitos homossexuais sem assumir discursos explicitamente homo-fóbicos (Fassin, 2011).

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11 Queer não está sendo

utilizado por Preciado (2011) como um

neologis-mo às minorias sexuais, mas como movimento de “desterritorialização da he-terossexualidade” (Preciado,

2011, p. 14). A potência do conceito está em situar o corpo não como “um dado passivo sobre o qual age o biopoder”. Queer

está sendo utilizado para nomear o “monstro sexual”, onde as minorias tonam-se multidões. “A sexopolítica torna-se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais” (Preciado, 2011, p. 14).

construção social, uma relação simbólica que precederia qualquer vida social.

Há algo intrinsecamente problemático em qualquer ideia de que, em certa medida, a própria linguagem ou a capacidade para adquiri-la requer uma diferenciação sexual enquanto diferen-ciação principal. Se os seres humanos fossem hermafroditas ou se reproduzis-sem de forma assexuada, imagino que ainda seriam capazes de falar (Rubin, & Butler, 2003, p. 166).

A dupla origem se configuraria como começo invariável – homem no lugar de pai e mulher no lugar de mãe. Todas as possibilidades divergentes dessa premissa sacralizada encontram-se à margem das possibilidades legitimadas de parentesco, em especial as demandas homoparentais. Perde espaço também a filiação monoparental, pois tam-bém colocaria em questão a possibilidade de exercício da parentalidade por apenas uma das figuras parentais. A adoção por solteiros seria a prova de que existem regimes de filiação distintos. Contrapondo “a ‘ilusão antropológica’, segundo a qual ‘a’ cultura – ou somente ‘a nossa cultura’ – determinaria verdades atemporais, a ideia de que a ordem simbólica da filiação é histórica, isto é, que se trata de uma ordem definida por escolhas políticas” (Fassin, 2011, p.14). Em relação ao material aqui analisado, as enunciações negam a possibilidade de exercício monopa-rental da filiação sob pena de descaracterizar a demanda da mãe ao pai que abandonou o filho. Considerar possível e legítimo que uma mãe ou um pai assuma individualmente as responsabilidades da filiação, desconfigura a responsabilização da outra figura.

As condições de possibilidade da construção desse enunciado – de que para a origem da criança devem existir pai e mãe como duplo ponto de referência –, segundo Butler (2003b), repousam “em um conjunto de pressuposi-ções que ecoam a posição de Lévi-Strauss em The Elementary Structures of Kinship de 1949” (p. 244). Esse clamor em nome da criança carrega em si o pressuposto de que essa criança também seria (ou deveria ser) heterossexual. Em nome “da criança”

reitera-se a norma heterossexual, pois não se consideram as crianças que escapam a esse restrito formato. Como pergunta Pre-ciado (2013), “Quem defende a criança queer11?”. A dupla original (pai e mãe) nos

remete ao drama edipiano, não como uma fase de desenvolvimento ou em um tempo definido, mas como uma precondição da individualização. Entretanto, nas sociedades estudadas por Lévi-Strauss, que serviram de base para essas formulações, o parentesco nas relações de casamento e descendência “eram a estrutura social. Elas organizam quase toda a vida social ou então constituíam o mais importante e visível aparato institucio-nal” (Rubin e Butler, 2003, p. 190). Já nas sociedades urbanas modernas, as questões de parentesco não funcionam da mesma forma, no sentido da estruturação da vida social. Isso não quer dizer que o parentesco perde sua importância, tendo em vista que, a partir dele, uma série de práticas se torna possível – como é o caso do judiciário nos documentos analisados.

As relações de parentesco estariam, então, a serviço da heterossexualidade compul-sória e também as identidades de gênero derivariam, em certa medida, das relações de parentesco. Pensar a parentalidade com figuras que colocam em questão a heterossexualidade seria questionar a pos-sibilidade de perpetuação dessa matriz e, por conseguinte, colocar a transmissão da cultura (heterossexual) também em risco. Subversão dessa lógica questionando os termos que a constroem.

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12 Foucault (1995) retoma dois signiicados da palavra sujeito: “Sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou

auto-conhecimento” (p. 235). Desconstrói-se a

perspec-tiva comum de que o po-der subordina os sujeitos desde fora. Para Foucault e assumido também por Butler, o poder é algo que constitui o sujeito. 13 Na análise, buscamos

os textos completos que foram utilizados para

cita-ções no acórdão.

Nesse sentido, não haveria uma correspon-dência direta entre o exercício de uma relação parental exercida por um pai e/ou uma mãe real e as posições ou figuras imaginárias que sustentam simbolicamente o sujeito. Há que se pensar com que concepção de pai se lida nessas práticas discursivas, que pai é reivindicado pelo saber psi e que pai está sendo reivindicado nos materiais jurídicos, a partir de uma interpretação e usos deste saber. Percorrendo os textos que são tomados como base para o acórdão, compreende-se que o pai e a paternidade são reivindicados no seu papel universal como base do saber psi a respeito da constituição de sujeito.

Ainda que Édipo fosse universal... isso de maneira alguma confirmaria a tese de que ele é a condição da cultura: essa tese pretende saber que ele sempre fun-ciona da mesma maneira, isto é, como condição da própria cultura. Mas se Édipo é interpretado em sentido amplo, como um nome para a triangularidade do desejo, então é relevante pergun-tar: que formas essa triangularidade assume? (Butler, 2003b, p. 256-257)

Negligencia-se a produção histórica e cultural que possibilita ao pai ocupar determinados lugares e eis que a tarefa deveria ser exa-tamente “pensar pai, mãe e filhos como lugares de sujeito instituídos socialmente e historicamente; pensar a identidade indi-vidual, familista e edipianizada como uma forma histórica de constituição de sujeitos, de produção de subjetividades” (Albuquerque Junior, 2005, p. 117). Nesse sentido, o Édipo circunscreve-se a uma realidade social, a saber, a família nuclear burguesa da sociedade moderna Ocidental, apesar de ser tomada como essência para toda e qualquer subje-tividade (Albuquerque Junior, 2005).

Buscando compreender a constituição do sujeito, explicita-se a subjetividade como condição de potência e efeito das relações de poder. Sujeito é um lugar ambíguo, pois é a condição de possibilidade de uma forma de potência e, ao mesmo tempo, efeito de um poder anterior12. Se os modos de

subje-tivação contemporâneos ou as formas como os explicamos em algumas teorizações psi

estão atreladas ao casal heterossexual, as relações de poder decorrentes dessas análises produzem efeitos hierarquizantes tomando como forma “natural” a matriz heterossexista.

O que se coloca em questão são os modos como essas formulações agem constituindo e posicionando sujeitos e, ao mesmo tempo, sendo constantemente constituídas na forma como os sujeitos reais se posicionam em relação a elas, ou seja, a operação perfor-mática do parentesco (Butler, 2003a). A parentalidade, constituída na heterossexu-alidade compulsória diferencia o exercício a partir de sujeitos posicionados como pais ou mães. Em decorrência, a paternidade e a maternidade são fabricadas conforme um arranjo social prévio e a-histórico.

Cabe analisar alguns termos com os quais a paternidade é construída nesse documento. Um deles é “Pater viril” (conforme citação anterior), uma expressão peculiar presente na citação do acórdão e nos materiais encontrados nas pistas das enunciações. O estranhamento à expressão surge pela redundância. Não seriam todos os pais viris? A redundância aqui serviria exatamente para marcar a impossibilidade de pensar a “função paterna” para além da presença ou referência a um corpo masculino. Um corpo mascu-lino dotado de pênis, ativo, heterossexual, potente – viril.

Seguindo a trilha dos materiais que compõem o documento pesquisado13, encontramos uma

reflexão deste autor sobre as transformações contemporâneas que posicionam diferente-mente mulheres e homens em função da “grande revolução da sexualidade mascu-lina” – a invenção da pílula da potência – o Viagra. Segundo Pereira (2002), o comprimido “vem anunciar a fé no significante maior da masculinidade de nossa cultura: garantia de potência ao símbolo fálico. Portanto, ele é a promessa de sustentação da cultura fálica tão ameaçada no pós-feminismo” (p. 1).

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14 Esse documento não fazia parte do arquivo montado a partir da

pes-quisa na jurisprudência, mas foi aqui inserido como um desdobramento, no sentido de compreender as condições e enunciações referentes à categoria

jurídi-ca do “Abandono Afetivo”. 15 STJ 1.159.242 - SP Recurso especial (2009/0193701-9) Julgadores: Nancy Andrighi (Relatora), Massami Uyeda, Sidnei Beneti, Paulo de

Tar-so Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva. Data do julgamento: 24 de

abril de 2012. CIVIL E PROCESSUAL CI-VIL. FAMÍLIA. ABANDONO

AFETIVO. COMPENSA-ÇÃO POR DANO MORAL.

POSSIBILIDADE.

diferenciado. Para que se problematize essa estratégia de produção distinta de corpos humanos, evidenciando os jogos de poder, é interessante pensar a respeito da construção social do gênero e do sexo. Não evidenciar essa construção, ou seja, “colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas.” (Butler, 2003a, p. 25).

Entendemos gênero, inspiradas nas proble-matizações de Butler (2003a), como perfor-matividade “efeito de uma prática reguladora que busca uniformizar a identidade por via de uma heterossexualidade compulsória” (p. 57). A univocidade do sexo, a coerência interna do gênero e a estrutura binária para o sexo e gênero são consideradas ficções reguladoras que consolidam e naturalizam regimes de poder. Não existe uma substância ou iden-tidade de gênero por trás das expressões de gênero. O que se entende como gênero está constantemente sendo “constituído perfor-mativamente, pelas próprias expressões tidas como seus resultados” (Butler, 2003a, p. 16).

Encontramos nessas enunciações jogos de verdade a respeito do sexo, gênero e desejo que buscam manter uma unidade estável através da heterossexualidade compulsória. Nos materiais, fala-se da importância e das peculiaridades necessárias ao exercício da paternidade, não simplesmente como o exercício de uma relação parental, mas se constrói o enunciado na diferenciação da paternidade em relação à maternidade. Tal atributo busca estabilidade num corpo masculino, que, por sua vez é tomado como uma evidência natural – a diferença sexual, que não facilita a compreensão de seu caráter produzido.

“Amar é faculdade, cuidar é

dever”

O afeto é construído como autoridade no âmbito do Direito em geral, “vai além do sentimento, e está diretamente relacionado à responsabilidade e ao cuidado... por isso pode se tornar uma obrigação jurídica e ser fonte de

responsabilidade civil” (Pereira, 2012, p. 8). É com base nessa construção técnica – que estabelece a afetividade como cuidado – que é possível atribuir responsabilidade aos pais para além da obrigação alimentar e exigir sanções ao seu exercício, quando conside-rado inadequado.

Seguindo o rastro dessa categoria jurí-dica – “Abandono Afetivo”, chego à decisão mais recente do STJ14. A decisão de abril de

201215 avalia se o abandono afetivo “constitui

elemento suficiente para caracterizar dano moral compensável” (STJ 1159242). A enun-ciação da ministra relatora busca legitimar o cuidado como um valor jurídico. “O cuidado dentro do contexto da convivência familiar leva à releitura de toda a proposta constitucio-nal e legal relativa à prioridade constitucioconstitucio-nal para a convivência familiar” (STJ 1159242). Para tanto, o texto do relatório resgata a teoria de Winnicott para mostrar a importância do cuidado na constituição infantil.

[...] do lado psicológico, um bebê privado de algumas coisas correntes, mas necessárias, como um contato afetivo, está voltado, até certo ponto, a perturbações no seu desenvolvimento emocional que se revelarão através de dificuldades pessoais, à medida que crescer. Por outras palavras: a medida que a criança cresce e transita de fase para fase do complexo de desenvolvi-mento interno, até seguir finalmente uma capacidade de relacionação, os pais poderão verificar que a sua boa assistência constitui um ingre-diente essencial. (Winnicott, 2008) (STJ 1159242).

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de cuidar e, por consequência, se possibilita a mensuração do cuidado. A medida do cuidado se verifica em diferentes ações: “presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes” (STJ 1159242, p. 11). Se o afeto fosse somente uma expressão de amor, a reivindicação por responsabilidade civil não encontraria legitimidade.

dos filhos que comparecem em juízo brandindo a só ausência de amor e carinho de seus pais. Nesses casos, o pai (ou a mãe, ou ambos) até se desin-cumbe do dever de prestar auxílio material ao filho, mas não dá a este o carinho, a atenção e o amor necessá-rios. Aqui é pacífica a inexistência de abalo moral indenizável, tendo em vista a máxima segundo a qual não se pode obrigar a gostar de quem quer que seja, nem mesmo dos próprios filhos (TJSC 2011043951-1, apud Pereira, 2012, p.4).

Para que seja possível responsabilizar o pai civilmente é necessário que o enunciado explicite o dano causado pela falha paterna, no caso pela omissão do cuidado. A cons-trução argumentativa de um dano reside na produção da determinação causal entre ausência paterna e problemas na constituição subjetiva do filho. Nesse sentido, invisibi-lizam-se diversos outros fatores presentes na história de vida de uma criança/filho(a) para que seja ressaltada a ausência paterna. Da mesma forma, invisibilizam-se inúmeros aspectos da vida daquela criança/filho(a), para se ressaltar apenas os problemas, tomados como efeito direto dessa ausência.

Não apenas a prescrição e mensuração do cuidado estão colocadas em questão, mas o seu efeito no desenvolvimento infantil. Entretanto, o julgamento do STJ também teve uma divergência (assim como no caso em análise). No voto vencido, há uma interpretação importante em relação aos estudos psicológicos que servem de base para o enunciado do dano.

Na educação e na criação dos filhos, não há um molde perfeito a ser obser-vado, pois não há como medir o grau de atenção, de carinho e de cuidados dispensados pelos pais a sua prole, pois cada componente da célula familiar tem também a sua história pessoal... Assim, imprescindível apoiar-se sobre firme substrato e esclarecer que o aban-dono afetivo apenas ocorre quando o progenitor descumpre totalmente seu dever de cuidado, infringindo flagrante-mente as mais comezinhas obrigações para com seu filho (STJ 1159242, p. 42).

Além disso, em nenhuma família há como se ter garantias dos efeitos positivos na vida dos membros. Essa é a principal enunciação do voto vencido, explicitando uma proble-matização ética, através dos efeitos desse tipo de decisão.

Qualquer pessoa poderá dizer assim: mas estou sendo preterido em relação aos meus irmãos e qualquer dado subje-tivo poderia motivar um pedido de inde-nização por dano moral. Ora, isso faria com que quantificássemos ou potencia-lizássemos as mágoas... Então, abrir essa porta aqui, reconhecer isso como um direito não podemos, com todo o res-peito. Existe uma lesão à estima. Todos nós. (STJ 1159242, pp. 16-17).

No documento do TJSC, o relator procura mostrar a responsabilidade paterna que foi negligenciada e os efeitos dessa ausência, ressaltando os princípios constitucionais que não foram observados por conta dessa omissão. Várias são as formas de dizer sobre a ausência paterna e as suas consequên-cias para o desenvolvimento infantil e a sociedade, salientando as peculiaridades do exercício da paternidade e a necessidade de valorização dessa função. Além do enun-ciado em prol do direito da criança e da divisão de tarefa com a mãe, as formulações que clamam pelo pai revestem-se de um pânico relacionado à ausência desse ente. As consequências não cessam de serem listadas e a indenização é posta como forma de valorização da própria paternidade.

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16 Conforme problemati-zado em trabalho anterior

(Moreira, & Nardi, 2007), uma análise clássica

des-ses cuidados, dentro da perspectiva feminista, é o estudo de Badinter (1998) sobre a construção do amor materno. Analisando a França do século XVII e principalmente XVIII,

perío-do caracterizaperío-do pela prá-tica materna de entregar os ilhos às amas-de-leite e que se contrapõe às práticas atuais de cuidado materno. Ao analisar tal período, Badinter (1998) propõe o questionamento do amor materno,

enquan-to um sentimenenquan-to femi-nino natural e universal, salientando que conforme a sociedade valorize ou deprecie a maternidade, a mulher será em maior ou menor medida uma “boa” mãe. A autora mostra que o “amor materno” foi sendo construído no inal do século XVIII. “A ‘invenção’ do amor materno estava associada ao discurso econômico (importância da população e controle da mortalidade) e ilosóico (expressão do amor através das ideias do Iluminismo), situando as mulheres como

interme-diárias e interlocutoras entre o Estado e a família e localizando-as como

res-ponsáveis pelo futuro das nações” (Moreira, e Nardi, 2009, p. 572). 17 Programa instituído por meio do Provimento no 12/2010. Determina

às Corregedorias de Justiça dos Tribunais de todos os Estados que encaminhem aos juízes os nomes e dados dos alunos matriculados em esco-las sem o nome do pai, para que deem início ao

transformações sociais que deslocaram as posições historicamente cristalizadas de homem e mulher. As mudanças, com importantes implicações para as relações de gênero, são tomadas como perda e busca-se estabelecer uma diferença do que seria o lugar simbólico do pai e a mudança real nas relações de gênero, como forma de legitimar a supremacia paterna.

Não se pode confundir a mudança do sistema patriarcal com a desvaloriza-ção da figura paterna. A denúncia da opressão do homem sobre a mulher, e a igualdade de direitos, não pode significar a mudança de posição do pai. Esse sempre ocupará o lugar de representante da lei, pois afinal isto é determinante para a estruturação dos sujeitos. A consideração das diferenças, e não da igualdade é que possibilitará a aproximação do ideal de justiça, bem supremo do Direito (Pereira, 2003, p. 144).

Há também uma discussão que nos aponta para a primazia da biologia no âmbito da paternidade, através da confirmação da ligação genética. Espera-se que dessa liga-ção biológica decorra uma ligaliga-ção afetiva, quase como instintiva. Exatamente na falha desse mecanismo instintivo, que deveria ser automático, reflexo, chama-se a ação da justiça, entra em cena o Estado.

Semelhante a essa discussão (natureza x cultura), em discussões feministas ocorria o intuito de desmontar o mito do instinto materno – um amor incondicional que brotaria naturalmente em cada mulher ao se descobrir mãe. Ou seja, mesmo quando a mãe gera biologicamente uma criança, a crítica femi-nista16 mostrou o caráter produzido/inventado

que liga afetivamente a mulher à criança, evidenciando as exigências e prescrições que são demandadas nessa filiação.

Através do que está dito nesses materiais, a paternidade retoma essa ambição biológica, antes direcionada apenas à maternidade, atrelando a confirmação da vinculação genética à possibilidade de demandar uma vinculação afetiva.

O exame de DNA ocupa um lugar pri-vilegiado no âmbito dos exercícios de poder por parte do discurso jurídico exatamente por tornar visível e atribuir um estatuto de verdade ao que era, até então, suposição. Os desdobramentos políticos do uso dessa tecnologia na esfera jurídica são inúmeros e comple-xos. A tese, defendida enfaticamente em alguns enunciados da jurisprudência, da eficácia do DNA tem conseguido, por exemplo, corroborar ou refutar os testemunhos acerca da índole da vida sexual de uma mulher envolvida como “pólo passivo”, ou seja, quando não é ela a autora do processo, nas investi-gações de paternidade (Perucchi, & Toneli, 2008, p. 146).

Nessa perspectiva, a problemática da ação de abandono afetivo está localizada na explici-tação de que, a comprovação da vinculação genética não produz facilidade maior para a vinculação afetiva. Se o Direito institui o pai, através da atribuição da paternidade, o Estado encontra seu limite na dificuldade para fazer com que esse pai se torne um pai presente afetivamente e não apenas financeiramente.

Entretanto, mesmo que se entenda a pater-nidade como um exercício construído: “um pai, mesmo biológico, se não adotar seu filho, jamais será o pai” (Pereira, 2002, p. 4), a possibilidade de recusa da paternidade não é tida como legítima, ou como um direito desse pai. Em texto explicativo sobre o programa “Pai presente”17, do Conselho Nacional de

Justiça, Dias (2012) explica a importância de notificação do genitor para o reconhecimento ou o comparecimento para submeter-se ao exame de DNA, tendo em vista que a recusa em submeter-se ao exame de DNA gera a presunção de paternidade, conforme Lei no 12.004 de 2009 (Brasil, 2009).

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procedimento de averigua-ção de paternidade, institu-ído pela Lei no 8.560/92. “A

iniciativa busca aproveitar os 7.324 cartórios com competência para registro civil do país para dar início ao reconhecimento de paternidade tardia. A partir da indicação do suposto pai, feita pela mãe ou ilho maior de 18 anos, as infor-mações são encaminhadas

ao juiz responsável. Este, por sua vez, vai localizar e intimar o suposto pai para que se manifeste quanto a paternidade, ou tomar as providências necessá-rias para dar início à ação investigatória” (CNJ, 2012).

18 O investimento na paternidade está presente também em outras áreas. Müller (2012), analisando documentos da área de saúde pública no Brasil (elaboração e implanta-ção da Política Nacional

de Atenção Integral à Saúde do Homem, 2009), mostra que o

investimen-to na paternidade parte da estratégia da fragiliza-ção e vulnerabilizafragiliza-ção do homem-pai, buscando-se um encadeamento onde é necessário “cuidar do pai para que ele possa ser também um cuidador” (Müller, 2012, p. 212). Na análise da “emergência de um novo pai na res-signiicação da paterni-dade como um direito do homem” (p. 213), o exercício da paternidade não estava aberto a

qual-quer possibilidade, mas marcado por questões de dever, de

responsabilida-de e responsabilida-de direito. 19 No documento, a

responsabilização da reprodução está colocada unicamente nos ombros da

quem deveria assumir responsabilida-des. (Dias, 2012, p. 1)

Hennigen e Guareschi (2008) apontam que ainda há brechas na lei, no sentido dos deveres paternos, mas permanecem formas de regulação e controle da subjetividade18.

“Cada vez mais aparecem conhecimentos, informações, dados, depoimentos e toda a ordem de indicação de que o pai precisa participar da vida dos(as) filhos(as)” (Henni-gen e Guareschi, 2008, p. 89). Nos materiais tomados aqui em análise, a paternidade não é posta como direito do pai, muito menos se supõe a possibilidade de renunciar a ela: “Assim, a convivência dos filhos com os pais não é direito do pai, mas direito do filho. Com isso, quem não detém a guarda tem o dever de conviver com ele. Não é direito de visitá-lo, é obrigação de visitá-lo” (TJSC 2006.015053-0). O direito em primeiro plano é o do filho, contemplado com o exercício adequado da paternidade iniciado com o reconhecimento.

Está também colocado o direito da mulher/mãe contar com a divisão da parentalidade para que não assuma sozinha a tarefa que seria de responsabilidade dos dois. “A requerente não interpôs ação indenizatória em nome do filho pelos abalos morais por ele enfrentados, mas sim em nome próprio, pleiteando a reparação pelos abalos que ela, como genitora do menor, teve que suportar ao acompanhar o sofrimento do filho abandonado” (TJSC 2006.015053-0). Porém, no documento, fica evidente que o direito da mãe acionar o pai por abandono não é aceito tranquilamente.

Ouso dissentir da maioria por entender que os fatos narrados pela autora não configuram, no presente caso concreto, hipótese de dano moral à sua pessoa... A meu ver, o sofrimento alegado pela autora é condizente com as peculia-ridades do seu envolvimento com o requerido, pois era do seu conheci-mento que o réu já tinha uma famí-lia constituída com esposa e filhos, e mesmo assim, a requerente optou por manter com ele um relacionamento de longos anos, vindo, inclusive, a ter com ele um filho. Nesse cenário, o sofrimento experimentado pela mãe

ante a ausência do requerido na vida do menor era uma hipótese perfeita-mente previsível por parte da autora, não me parecendo razoável que ela, sabendo dessa situação, venha pleitear em juízo uma indenização por danos morais em nome próprio, com base no sofrimento experimentado pelo filho (TJSC 2006.015053-0).

Forte jogo enunciativo que coloca em questão o fato dessa mãe ter se relacionado com um homem casado. Julga-se moralmente o rela-cionamento da mãe e a decisão “dela”19 de ter

um filho nessas condições. Não à toa, a estra-tégia da defesa foi desqualificar a honra da apelante, dizendo inclusive que ela mantinha relacionamento com outros homens, o que não ficou provado no processo. A forma como o documento analisa a conduta da mulher parece uma fixação da moral conservadora diante das transformações sociais. Fonseca (2011) aponta que, anteriormente, “qualquer situação que indicava a possibilidade da mulher possuir mais de um parceiro sexual, servia para exonerar qualquer homem de responsabilidade paterna” (p. 14). Com base em observações da prática jurídica, a autora mostra que houve transformações e hoje a inovação tecnológica é tomada pelos juízes como maneira de evitar discussões moralistas. “Se a mulher é virgem ou prostituta, se o homem é companheiro dela durante vinte anos ou uma só noite, a resposta do juiz é a mesma: vamos ver o que diz o DNA” (Fonseca, 2011, p. 14).

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mulher: “a requerente op-tou por manter com ele um

relacionamento de longos anos, vindo, inclusive, a ter com ele um ilho” (TJSC 2006.015053-0). Essa enunciação contraria várias formulações do campo da saúde que, conforme

indi-ca Müller (2012), busindi-cam legitimar a participação do pai nas diferentes instân-cias e etapas relacionadas

ao planejamento familiar, com o objetivo explícito de ampliar e deslocar a responsabilidade sobre as práticas contraceptivas, antes restritas às mulheres.

20 Colocamos em ques-tão o reconhecimento espontâneo porque há, por exemplo, no Pro-grama Pai Presente do

CNJ, um investimento intenso na importância do reconhecimento paterno. Nesse sentido, espon-tâneo refere-se ao fato

do pai aceitar colocar o nome na certidão de nascimento sem que seja necessária a realização do exame de DNA.

Considerações Finais

A necessidade de análise dos termos que circulam nesses jogos enunciativos se fundamenta na concepção de que é nessa construção discursiva que se posicionam e se produzem diferentemente os sujeitos. Na enunciação do voto vencido, evidencia-se o processo de produção de jogos de verdade. Mesmo nessa enunciação do voto vencido que não tem força de lei, pois não se des-dobra nas ações indicadas, estão lá jogos de verdade, temporariamente não contemplados.

Além disso, os limites de “ganhar” ou “perder”, “defesa” e “acusação” são embaralhados nas enunciações. No caso da presente pesquisa, essas enunciações explicitam construções sociais, históricas e culturais a serem analisadas com bas-tante cuidado, pois produzem sujeitos, em especial o sujeito pai. Na nomeação compulsória da paternidade pelo exame de DNA ou na presunção de paternidade, caso haja negativa em fazer o exame, ou ainda no reconhecimento “espontâneo”20, há

movimentos de produção de pai. A palavra legitimada pelo Estado através das instâncias jurídicas define um pai e dessa nomeação decorrem muitas outras práticas que serão reguladas – atribuição de um sobrenome, sucessão, dever de alimentos e, no limite, afeto ou a ação por abandono afetivo.

O discurso jurídico institui a atribuição de níveis valorativos à paternidade, classifica-a, nomeia-a, define seu lugar no arranjo familiar e sua importância na vida social. Mas não faz isso sozi-nho, conta com outros discursos e seus

múltiplos dispositivos de poder. Há todo um campo associado que merece atenção. Assim, é importante avaliar o efeito de discursos reconhecidos como científicos sobre o conjunto de práticas e discursos que constitui a jurisprudên-cia brasileira acerca da paternidade (Perucchi & Toneli, 2008, p. 146).

A forma como acontece essa produção de paternidade precisa ser problematizada, inclusive na Psicologia. Mesmo que se saliente a importância da paternidade, Valente, Medrado e Lyra (2011) mostram que essa não ocorre na forma de um convite, mas como imposição ou sanção, produzindo também formas de resistência. “A paternidade é fabricada pela técnica médico jurídica, ao mesmo tempo, parece resistir como uma ver-dade eminentemente social” (Valente et al., 2011, p. 69).

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Lisandra Espíndula Moreira

Universidade Federal de Alagoas, Maceió – AL. Brasil. E-mail: lisandram@ig.com.br

Maria Juracy Filgueiras Toneli

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis – SC. Brasil. E-mail: juracy.toneli@gmail.com

Endereço para envio de correspondência:

Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia. Campus Universitário Trindade, Florianópolis – SC. Brasil.

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