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José Manuel Lopes Casquilho RESUMO

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Academic year: 2019

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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Línguas, Literaturas e Culturas, realizada sob a orientação científica

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AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Ana Paiva Morais, pelo acompanhamento e apoio prestados.

À Escola Profissional Bento de Jesus Caraça, pela comparticipação financeira a este trabalho.

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HERÓI E ANTI-HERÓI: A CONFIGURAÇÃO DO DUPLO NA CANÇÃO

DE GESTA. ANÁLISE DE

LA CHANSON DE ROLAND

E

LA CHANSON DE

GUILLAUME

José Manuel Lopes Casquilho

RESUMO

PALAVRAS-CHAVE: herói; anti-herói; duplo; canção de gesta; La Chanson de Roland; La Chanson de Guillaume.

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HERO AND ANTI-HERO: A CONFIGURATION OF THE DOUBLE IN THE

CHANSON DE GESTE

(HEROIC POEM). ANALYSIS OF

LA CHANSON DE

ROLAND

AND

LA CHANSON DE GUILLAUME

José Manuel Lopes Casquilho

ABSTRACT

KEY WORDS: hero; anti-hero; double; chansons de geste (heroic poems); La Chanson de Roland; La Chanson de Guillaume.

The main goal of this paper is the to study the construction of the medieval hero in two heroic poems representative of this literary genre, La Chanson de Roland and La Chanson de Guillaume, in interrelation with its double and the character of the anti-hero.

It is intended to establish the ways these two characters associate with the hero and contribute to the construction of his identity starting with a comparative analysis between different characters of the two literary works in study and their social and cultural context.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO ... 1

1 A IMPORTÂNCIA DO DUPLO NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO HERÓI ... 5

2 A QUESTÃO DO DUPLO: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS EM LA CHANSON DE ROLAND E LA CHANSON DE GUILLAUME ... 11

3 LA CHANSON DE ROLAND E LA CHANSON DE GUILLAUME: A OPOSIÇÃO IDEOLÓGICA NA FUNDADAMENTAÇÃO DO HERÓI ... 15

4 CASOS COMPARÁVEIS EM LA CHANSON DE ROLAND ... 20

4.1 CARLES, MARSILIE E BALIGANT ... 20

4.2 OS SONHOS PREMONITÓRIOS DE CARLES E A SUA RELAÇÃO COM O DIVINO ... 25

4.3 ROLLANT, GANELON E OLIVIER ... 29

5 CASOS COMPARÁVEIS EM LA CHANSON DE GUILLAUME ... 34

5.1 WILLAME ... 34

5.2 WILLAME E OS SEUS MÚLTIPLOS ... 36

5.3 GUIBURC E WILLAME ... 38

5.4 VIVIËN E WILLAME ... 40

5.5 GUI(OT) E WILLAME ... 42

5.6 GIRARD E WILLAME ... 44

5.7 RENEWARD, GUIBURC, GUISCHARD E WILLAME ... 46

5.8 TEDBALD, VIVIËN E WILLAME ... 52

6 CASOS COMPARÁVEIS ENTRE AS DUAS OBRAS ... 58

6.1 OLIVIER E VIVIËN ... 58

6.2 TEDBALD E GANELON ... 61

CONCLUSÃO ... 66

BIBLIOGRAFIA ... 68

CORPUS ... 68

(6)

BIBLIOGRAFIA GERAL ... 70

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INTRODUÇÃO

O herói apresenta-se na Literatura e na História do pensamento europeu como uma construção arquétipa do ser ideal, transcendental, que constitui um modelo a seguir, pois faz parte do imaginário de todas as sociedades, como aquele que aceita o desafio e, de forma exemplar, restaura a harmonia necessária. A figura do herói nasce, nas sociedades ancestrais, da necessidade espiritual, enquanto forma de proteção contra o medo do desconhecido.

Considerando este facto, a Literatura apresenta-se como um campo propício à proliferação da figura heroica, como intermediária entre o real e o subjetivo, o humano e o divino. O herói assume, assim, uma condição ambígua. Por um lado representa a condição humana, na sua complexidade psicológica, física e social, por outro, transcende essa mesma condição, ao conseguir feitos que não estão ao alcance do Homem comum. Nesta perspetiva, é oportuno ver o herói, tal como refere Georges Gusdorf (1963), como uma conceção simbólica do conhecimento primordial do Homem sobre si próprio, conhecimento que advem do contacto com o mundo em que se insere e da interpretação que faz do divino e do seu papel, enquanto força motora e regeneradora.

Ao restringirmos no tempo esta análise, podemos verificar que a figura heroica surge no contexto literário medieval francês, nomeadamente nas canções de gesta, como um exemplo social e cavaleiresco, que contribui, através do seu exemplo, da sua elevação espiritual e do seu altruísmo, para a cimentação da causa social e religiosa que serve. Verifica-se, assim, durante o período medieval, uma intensificação da fundamentação e legitimação da doutrina cristã, à qual a Literatura não é indiferente. A este propósito, Le Goff cita Santo Agostinho:

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Este processo de legitimação do cristianismo, a que se assiste durante o período medieval, favorece a produção literária e o surgimento de configurações heroicas ao serviço do ideal religioso, tal como constata Helder Godinho, a este propósito:

“O refazer do mundo político e cultural que o surgimento de uma nova época implica favoreceu a organização deste espaço textual [medieval] em torno do mitologema do Herói”. (Godinho, 1989: 8)

Compreende-se, nesta linha de análise, que a canção de gesta medieval se centre na figura do herói e no seu percurso, já que este aspeto lhe incute a grandeza pretendida pelos seus autores e permite identificar o conteúdo narrativo com o estereótipo social. Compreende-se ainda que o cavaleiro e o cruzado sejam, acima de tudo, exemplos de espiritualidade, de rigor, de força intrínseca, os quais se apresentam através de um percurso por vezes sinuoso, mas que se traduz, regra geral, numa linha ascendente, no sentido da conquista de um espaço transcendental só acessível àqueles que se destacam pelo exemplo.

Nas canções de gesta La Chanson de Roland e La Chanson de Guillaume, o herói parece construir-se a partir do sacrifício individual em prol do bem social, o que lhe permite, aliás, adquirir, em alguns casos, elevação espiritual e reconhecimento divino.

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Segundo cremos, a definição de uma análise que incida sobre a relação que se estabelece entre estes modelos de personagens poderá contribuir para uma compreensão do papel do herói nas obras que nos propomos estudar. Por outro lado, a opção pelo corpus de trabalho em questão justifica-se por se considerar que a canção de gesta constitui um espaço literário profícuo à análise do tema proposto, visto que a figura heroica se constitui, nesta tipologia textual, como uma construção literária fragmentada, cuja unidade se apresenta como uma meta a atingir. Para que se cumpra este objetivo, o herói deverá, de forma geral, exorcizar as suas figuras ou projeções paralelas, que consigo competem pela ocupação do espaço literário.

As duas canções de gesta que constituem o corpus deste trabalho apresentam as façanhas idealizadas dos heróis lendários Rolland e Willame1, cujas qualidades assentam em valores sociais, políticos e culturais dos períodos literários a que correspondem, enfatizando sempre a supremacia e a ideologia daqueles que detinham a superioridade, não só geográfica, bélica, mas também a razão religiosa. Este aspeto parece ser fundamental na compreensão do papel do herói e dos seus duplos nestes textos. A fé cristã medieval, que se reflete de forma transversal nos textos em estudo, baseada na superioridade de Deus sobre o Diabo, do Bem sobre o Mal, influencia também o surgimento destas configurações heroicas, por oposição a outras personagens, cuja inter-relação nos propomos analisar. Da mesma forma, partindo do pressuposto que as canções de gesta exerceram uma influência significativa na produção literária medieval, com repercussões, por exemplo, no romance e na Literatura Tradicional e Oral e que estas influências se estenderam, para além do período medieval, a toda a literatura e folclore europeus, parece-nos justificável analisar a questão do herói e dos seus duplos, a partir do estudo de La Chanson de Roland e La Chanson de Guillaume, textos que se estruturam, também eles, numa perspetiva conceptual, na oposição entre dois vetores, um positivo, o dos cristãos, e outro negativo, o dos pagãos.

1 Relativamente ao nome dos protagonistas das duas obras em estudo, optámos por duas grafias distintas: Roland e Guillaume, quando inseridas na transcrição dos títulos das obras, pois são estas as grafias utilizadas na bibliografia de referência – La Chanson de Roland/ La Chanson de Guillaume- e

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Tendo em conta os aspetos referidos, estruturaremos este trabalho numa análise comparativa entre o percurso e a caracterização das diferentes configurações heroicas, associadas aos seus duplos, com o objetivo de se definir semelhanças e diferenças nos processos de construção de personagens, tendo em conta o contexto social, cultural e o imaginário da época em que se inserem.

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A IMPORTÂNCIA DO DUPLO NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO

HERÓI

A temática da dualidade do sujeito textual, associada a processos de mimese literária, é um recurso frequente na literatura universal, constituindo o tema do duplo, cujas origens datam de um passado remoto, um reflexo da crença e tradição populares.

Ainda que o tema do duplo surja já na Antiguidade Clássica, através da Literatura ou da Mitologia2, é sobretudo a partir do final do século XVIII que este termo se difunde, maioritariamente devido ao Romantismo, o qual se inspira, de certa forma, na tradição literária e, com grande incidência, no período medieval. De facto, o termo alemão utilizado pelo movimento romântico para designar “o duplo”, Doppelgänger, doppel (duplo, réplica ou duplicata) e gänger (andante, ambulante ou aquele que vagueia) designa, na sua origem, aquele que caminha, numa perspetiva paralela, ao lado do outro, o companheiro de percurso. O duplo está, nesta perspetiva, associado a uma interpretação subjetiva do real, na medida em que pressupõe o confronto entre o EU e o TU, não um TU autónomo ao sujeito (EU), mas uma espécie de reflexo, de uma segunda perspetiva da sua própria existência.

De acordo com Juan Bargalló Carraté (1994), o duplo constitui uma metáfora da inter-relação de contrários, em que cada um encontra no outro a sua complementaridade. Este desdobramento é uma forma de compensação do vazio que o ser humano sente perante a sua existência fragmentada. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant acrescentam ainda o seguinte, a esta perspetiva de confronto entre o sujeito e o seu duplo:

“O romantismo alemão deu ao Duplo (Doppelgänger) uma ressonância trágica e fatal… Ele pode ser o complementar, mas, mais frequentemente, o adversário que nos chama para o combate…”. (Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, 2010: 275)

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Por outro lado, a imagem do duplo está também profundamente enraizada nas religiões dualistas, como mencionam os mesmos autores:

“As religiões tradicionais concebem geralmente a alma como um duplo do ser vivo, que pode separar-se do corpo na altura da morte deste, ou no sonho, ou por uma operação mágica, e reencarnar no mesmo ou noutro corpo. A representação que o homem faz, assim, de si mesmo é desdobrada.” (Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, 2010: 275)

Esta perspetiva encontra-se também, segundo cremos, nas duas obras em estudo. A análise de La Chanson de Roland e de La Chanson de Guillaume leva-nos a constatar que estes textos se estruturam através de um conjunto de configurações de personagens opostas, que se inter-relacionam entre si, o que tem repercussões narrativas a vários níveis. O duplo surge, assim, como uma figura recorrente, associado ao herói, enquanto representação da sua existência fragmentada, levando-o à necessidade de consolidação da sua identidade, dividida entre o Eu consciente e o Eu inconsciente. O herói não é, pois, de forma geral, uma figura isolada, não se justifica a si próprio. A construção do herói estrutura-se na oposição entre si e o seu duplo, geralmente uma figura que funciona como um reflexo complementar ou oposto, de uma forma mais ou menos acentuada, daquilo que o herói representa.

Tal como referem Pierre Jourde e Paolo Tortonese, tendo como referência a análise que Mircea Eliade faz das origens literárias da figura do duplo, a recorrência a esta imagem relaciona-se com a tradição judaico-cristã, segundo a qual Deus cria o Homem à sua imagem, numa perspetiva de duplicação de si próprio:

“En admettant que tout mythe, si l’on en croit Mircea Eliade, a trait aux origines, on peut dire aussi que le double est present dès l’origine. Dieu, dans la création judéo-chrétienne, fait le monde à son image, et l’homme à sa ressemblance”. (Jourde e Tortonese, 2005: 7)

Ainda tendo em conta este aspeto, tenhamos em consideração, numa perspetiva mais alargada, a visão cosmológica do Homem medieval, mencionada por Jacques le Goff:

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cosmografia ou a ascese mística punham de manifesto que, por sucessivas tiradas ao longo de uma estrada – a grande estrada da peregrinação da alma -, havia, para usar a mesma palavra que S. Boaventura, um itinerário que conduzia a Deus”. (Le Goff, 1983, Vol I: 192)

Esta correspondência entre Homem medieval e Deus aponta para uma conceção cosmológica e religiosa estruturada em dois polos, o positivo e o negativo. Jacques le Goff refere o seguinte, sobre esta questão:

“O Diabo e o “bom Deus” – eis o par que domina a vida da Cristandade medieval e cuja luta explica, aos olhos da Idade Média, todos os pormenores dos acontecimentos.” (Le Goff, 1983, vol. I: 200)

Tendo em conta a base cristã inerente às narrativas dos textos em análise, poder-se-á compreender, nesta perspetiva, que a questão do duplo seja um tema recorrente em La Chanson de Rollant e La Chanson de Guillaume. Nestes textos, o herói, coletivo ou individual, está associado ao seu duplo, uma espécie de alter-ego que é necessário superar para que o herói o seja de facto, numa procura de afirmação de algumas personagens em detrimento de outras, como menciona Helder Godinho, a propósito do primeiro texto:

“Le texte de la Chanson se construit depuis le début jusqu’à la fin comme un jeu de doubles qu’il faut éliminer pour conquérir son espace grâce à leur espace”. (Godinho, 1989: 57)

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Tendo em conta o contexto narrativo das obras em estudo, é o terceiro caso aquele que fará mais sentido ao longo da análise que se pretende realizar, pois, tanto em La Chanson de Roland como em La Chanson de Guillaume, o herói está frequentemente associado ao seu duplo que, consoante os exemplos, desempenha um papel que poderá ser de complementaridade (tal como se verifica, por exemplo, entre Rollant e Olivier ou entre Willame e os seus sobrinhos), ou de antítese das suas qualidades morais, sociais e cavaleirescas (como acontece com Vivien e Tedbald). Neste caso, o duplo desenvolve-se também na qualidade de anti-herói.

É nesta perspetiva que se deve compreender a referência à figura do anti–herói ao longo deste trabalho. O anti–herói, mencionado a propósito dos textos em análise, distingue-se do herói, na medida em que tendo, na maioria dos casos, uma imagem heroica que é apresentada inicialmente, acaba por corrompê-la através de uma falha crucial. Assim, ao longo desta dissertação, dever-se-á compreender o anti-herói como aquele que, sendo de forma geral um duplo do herói, na medida em que contracena com ele e partilha as suas características ou o completa, cometeu uma falha capital que se sobrepõe às qualidades que possa ter vindo a evidenciar inicialmente. O percurso do anti-herói é, frequentemente nas obras em estudo, um percurso contrário ao do herói. Enquanto este se constrói numa perspetiva ascendente, do material para o espiritual, numa lógica de purificação das suas incapacidades ou imperfeições, a fim de atingir um estado de perfeição, de unidade, o anti-herói realiza um trajeto de desconstrução, de corrupção da sua identidade. Por outro lado, verificam-se outras personagens que surgem simplesmente como duplos do herói. Trata-se de figuras também elas heroicas que o completam e que contribuem, nesta perspetiva, para esse percurso de aperfeiçoamento e purificação a que o herói se deve sujeitar para o ser de facto. Assim, considerar-se-ão, nesta lógica de raciocínio, os seguintes tipos de personagens: o herói e o seu duplo, que pode ser complementar ou divergente. Neste último caso, falar-se-á também em anti-herói. Tomemos alguns exemplos breves: Em La Chanson de Roland, Ganelon3 é apresentado como um verdadeiro cavaleiro, mas acaba por cometer um erro crasso (atraiçoa Rollant, Carles e a causa cavaleiresca), o que contribuirá para o seu declínio ao longo da narrativa e para que, aos olhos do

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leitor/ ouvinte, constitua o oposto da imagem criada acerca do herói. Ganelon é um traidor, um anti-herói. O mesmo acontece com Tedbald, em La Chanson de Guillaume, que apesar de ser considerado inicialmente pelos seus pares como um verdadeiro cavaleiro, abandona o campo de batalha, colocando os seus receios acima da causa que deveria defender. Tanto num caso como no outro, existe um final trágico, humilhante, que contribui para uma marginalização das personagens, como uma espécie de purgação do desvio à regra. Independentemente do tipo de duplo em questão, este contribui sempre para a fundamentação do herói, quer através de uma perspetiva de complementaridade, que poderá resultar em aprendizagem, quer através da comparação entre o comportamento do herói e a atitude desviante do outro. O anti–herói, enquanto antítese do herói, revela-se, de forma geral, por se opor ao cânone positivo da beleza, da força física e espiritual, do altruísmo, da liderança.

Complementarmente ao que se referiu anteriormente, verificam-se alguns casos em que o herói reserva em si uma espécie de personalidade dupla, apresentando, por vezes, um comportamento desviante ou marginal em relação à sua regra de heroicidade. Neste caso, referimo-nos a outro tipo de duplicação da personagem heroica, não através do outro, mas de si mesmo, analogicamente associado ao mito de Narciso, em que o herói se dá a conhecer e se conhece através de um reflexo de si próprio, numa perspetiva contrária, que a própria personagem deverá exorcizar através de uma aprendizagem pessoal. Neste caso, verifica-se a existência de um confronto interior, em que o herói se debate entre a emoção e a razão, o dever e a vontade pessoal. A este propósito, Pierre Jourde e Paolo Tortonese referem:

“(…) le reflet montre la subjectivité mêlée au monde des choses, inscrite dans la dureté polie des objets réfléchissants. Il ne constitue pas seulement une découverte de soi mais, simultanément, une expérience du monde et de l’altérité. Le sens des histoires de reflet se jouera bien solvente entre le maintien d’une identité, d’une intégrité de l’image, et l’évolution ou l’indépendance de celle-ci”. (Jourde e Tortonese, 2005: 9)

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querer solicitar a ajuda do imperador, e o dever de o fazer. Em La Chanson de Guillaume, também Willame, no seu percurso cavaleiresco, vacila após a morte dos seus sobrinhos e pensa em desistir, o que não se concretiza graças à influência de Guiburc.

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A QUESTÃO DO DUPLO: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS EM

LA

CHANSON DE ROLAND

E

LA CHANSON DE GUILLAUME

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inimigo, não se observa uma descrição individualizada daqueles que constituem o exército francês, à exceção de Willame ou dos seus sobrinhos, como se se tratassem de uma massa impessoal. Desta forma, ficamos com a noção de que, à exceção do protagonista e dos seus duplos, a maioria das personagens que intervêm na batalha são figurantes a quem não é dada a possibilidade de alterar o decurso da narrativa. Ainda que se possa observar (raramente) um enfoque mais individualizado sobre algumas personagens que constituem o exército francês, como acontece na laisse XLII, não existe, por parte do narrador, a necessidade de as nomear ou de lhes atribuir características que as separem do grupo em que se inserem:

“Del munt u furent sunt aval avalé; Franceis descendent sur le herbe al pré, Virent des lur les morz e les nafrez. Qui donc veïst les danceals enseignez Colpat sa hanste qui al braz fu nafrez, Dunc but del vin qui l’ad el chanp trove, E saïns homes en donent as nafrez; Qui n’ad seignur si done a sun per.

Dunc laissent les vifs, si vont les morz visiter”. (Guillaume, XLII, v. 517-528) Contrariamente ao que se verifica em La Chanson de Guillaume, em La Chanson de Roland o paralelismo, numa perspetiva de oposição do Bem contra o Mal, é uma questão que está na base de todos os factos descritos. A questão do duplo ou da duplicação de imagens sustenta a comparação que se estabelece entre cristãos e pagãos, numa perspetiva geral ou particular. A ação desenrola-se através de um conjunto de quadros paralelos que permitem estabelecer uma comparação entre os dois lados do conflito.

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permitirá, mais uma vez, através da descrição da luta que se estabelece entre ambos, enaltecer a causa cristã. Verifica-se uma preocupação em descrever aquilo que opõe uns aos outros, numa perspetiva de imagens paralelas, em que os pagãos funcionam como reflexos ou duplos dos cristãos. Os primeiros são descritos como defensores de uma causa justa, da verdadeira doutrina, os segundos adquirem uma condição marginal, em algumas situações, grotesca.

No caso de La Chanson de Guillaume, ainda que, nos primeiros versos, o narrador interpele o leitor/ ouvinte, referindo que tratará, ao longo da obra, da guerra que se verificou entre Deramed e Lowis, rapidamente afasta o enfoque narrativo destas personagens para se referir a Willame como o principal responsável pela resolução do problema que constitui o cerne narrativo:

“Plaist vus oïr de granz batailles e de forz esturs, De Deramed, uns reis sarazinurs,

Cun il prist guere vers Lowis, nostre empereür? Mais dan Willame la prist vers lui forçur,

Tant qu’il ocist el Larchamp par Grant onur

Mais sovent se cunbati a la gent paienur”. (Guillaume, I, v. 1-6)

De facto, de Lowis pouco sabemos, visto que a sua intervenção é muito reduzida na narrativa. Também a nível da caracterização dos dois soberanos, relativamente à sua dedicação à causa cristã de luta contra o inimigo, se verificam diferenças significativas. Carles situa-se no centro da ação e chora a morte dos seus homens, reconhecendo neles o valor e a coragem que colocaram na batalha (“Carles se gist, mais doel ad de Rollant,/ E d’Oliver li peiset mult forment,/ Des duze pers, de la franceise gente”, Roland, 184, v. 2513-2515), Lowis parece ter uma postura distanciada relativamente ao problema e, quando é procurado por Willame, que lhe solicita apoio e ajuda, recusa-lhe o seu auxílio. Enquanto Carles é prudente e parece desenvolver uma postura paternal em relação aos seus homens, Lowis assume um comportamento completamente inverso, pois nega inicialmente ajuda, ao ponto de ser o próprio Willame quem o chama à razão e o adverte para a necessidade de cumprir o seu dever de soberano:

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Sole est Guiburc en Orenge le seé: Pur Deu vus mande que socurs li facez!” Ço dist li reis: “N’en sui ore aisez;

A ceste feiz n’i porterai mês piez.”

Dist Willame: “Qui enchet ait cinc cenz dehez!”

Dunc traist sun guant qui a or fu entaillez.” (Guillaume, CLIV, 2526-2532) Por que razão se verifica esta discrepância de protagonismo tão grande, de uma obra para a outra, entre Carles e Lowis? Consideramos que este facto se justifica tendo em conta que, em La Chanson de Roland, o enfoque coloca-se na vitória dos franceses, enquanto defensores da fé cristã, sobre os pagãos, que professam uma religião profana. Este facto está, aliás, referenciado várias vezes ao longo da narrativa, como acontece, por exemplo, na primeira laisse, em que o narrador antecipa o desfecho da narrativa referindo que Marsilie está condenado à derrota, por servir Mahumet e Apollin. Carles adquire especial destaque enquanto símbolo de um povo, de um conjunto de homens que se sacrificam em prol de uma causa comum, o que permite que o imperador assuma uma posição transcendental de intermediário entre os franceses e Deus. No caso de La Chanson de Guillaume, o movimento de cruzada parece ser um mero pano de fundo para o enaltecimento das qualidades de Willame, o que justifica, segundo cremos, o facto de não haver, por parte do narrador, uma preocupação em destacar outras personagens que não contribuam, direta ou indiretamente, para o processo de consolidação da imagem heroica do protagonista.

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3

LA CHANSON DE ROLAND

E

LA CHANSON DE GUILLAUME

: A

OPOSIÇÃO IDEOLÓGICA NA FUNDADAMENTAÇÃO DO HERÓI

As duas primeiras laisses de La Chanson de Roland situam o leitor, desde o início da obra, não só espacialmente e temporalmente, mas também a nível dos dois lados do conflito e daqueles que o encabeçam: “Carles li rieis, nostre emperere magnes,/ Set anz tuz pleins ad estet en Espaigne” (Roland, 1, v. 1-2)4, “Li reis Marsilie esteit en Sarraguce./ Ale zen este en un verger suz l’ umbre” (Roland, 2, v. 10-11). Por outro lado, não deixa de ser curiosa também a associação que é feita, ainda nestas laisses, de Carles ao mundo superior, positivo e de Marsile ao inframundo, das trevas: “[Carles] Tresqu’en la mer cunquist la tere altaigne/ (…) Li reis Marsilie la tient, ki Deu nen aimet./(…) Ne s’ poet guarder que mals ne l’i ateignet” (Roland, 1, v. 3-9); “Li reis Marsilie esteit en Sarraguce/ Ale zen este n un verger suz l’umbre” (Roland, 2, v. 10-11). Também na primeira laisse, o narrador coloca em oposição a capacidade das duas forças divinas, cristã e pagã, na resolução do conflito, ao referir que Marsilie não escapará à morte, por ser inimigo de Deus, não obstante o facto de servir Apollin e Mahumet: “Li reis Marsilie la tient, ki Deu nen aimet./ Mahumet sert e Appollin recleimet:/ Nes poet guarder que mals ne l’i ateignet” (Roland, 2, v. 7-9). A fundamentação do herói coletivo passa, frequentemente, pela desconstrução do seu duplo, seja através do narrador, do desenvolvimento da narrativa ou até mesmo das próprias personagens.

Parece existir, desde o início, uma antevisão do desfecho da narrativa, através de uma distinção clara entre o Bem e o Mal e a certeza de que o Bem triunfará, apesar da dificuldade apresentada pelo inimigo: “Mur ne citét n’i est remés a fraindre,/ Fors Sarraguce, k’ est en une muntaigne./ Li reis Marsilie la tient, ki Deu nen aimet” (Roland, 1, v. 5-7). Ao falar com os seus duques e condes, na laisse 2, Marsilie assume, desde logo, a sua derrota, anulando-se a si e ao seu exército, a favor de “Li empereres

4

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Carles de France dulce” (Roland, 2, v. 16) e dos seus homens: “Jo nen ai ost qui bataille i dunne,/ Nen ai tel gent ki la sue derumpet” (Roland, 2, v. 18-19).

A diferença de território dominado pelos dois reis é também metáfora da grandiosidade de Carles em relação a Marsilie: o primeiro, “Tresqu’en la mer cunquist la tere altaigne./ N’i ad castel ki devant lui remaigne;/ Mur ne citet n’i est remés a fraindre”(Roland, 1, v. 3-5), o segundo, “(…) esteit en Sarraguce” (Roland, 2, v. 10).

Ao longo da narrativa, constatamos várias alusões, muito claras, ao papel dos cristãos enquanto atacantes e ao dos pagãos, de defesa, numa perspetiva de superioridade dos primeiros em relação aos segundos: “Franc e paien merveilus colps i rendent./ Fierent li un, li altre se defendente” (Roland, 109, v. 1397-1398). Por outro lado, este aspeto também está presente na própria consciência que os cristãos têm sobre a sua missão, tal como foi apresentado inicialmente. Quando Olivier refere a Rollant o facto do número dos inimigos exceder, em muito, o seu exército, este responde-lhe “Paien unt tort e chestiens unt dreit” (Roland, 79, v. 105). Também Carles, na iminência do combate com o emir Baligant, encoraja os franceses, referindo “Ja savez vos cuntre paiens ai dreit” (Roland, 245, v. 3413).

Esta posição de superioridade bélica dos cristãos sobre os pagãos assume ainda uma dimensão institucional, quando o Arcevesque, representante eclesiástico, apela aos franceses para que combatam em nome de Deus: “Seignurs baruns, Carles nus laissat ci/ Pur nostre rei devum nus bem murir./ Chrestïentét aidez a sustenir!” (Roland, 89, v. 1127-1129). A este propósito, refere Robert Lafont o seguinte: “Par sa voix [Arcevesque] l’ Eglise donne au combattant le droit de tuer sans limite” (Lafont, 1992: 85). Como é sabido, a igreja tem um papel fundamental no encorajamento do movimento das cruzadas, pois, citando Jacques le Goff:

“(…) A Igreja e o papado calculavam que, graças à cruzada cuja direção espiritual assumiam, iriam dar-se meios para dominar no próprio Ocidente aquela Respublica christiana (…)”. (le Goff, 1983, vol. I, 100-101)

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exemplo alguns casos: Falsaron, irmão de Marsilie, é caracterizado, pelo narrador, como o pior traidor do mundo. Quando se apercebe que o seu sobrinho foi morto, explode de dor e de revolta e, saindo da multidão, profere terríveis injúrias aos franceses, comportamento que contrasta com a atitude de Olivier que, de forma nobre, quase heroica, o ataca e mata (“Enquoi perdrat France dulce s’onur!/ (…) Ot l’Olivier, si n’ad mult Grant irur./ (…) Vait le ferir en guise de baron (…)”, Roland, 94, v. 1223/1225); ou o caso do rei Corsablis que chama a si outros sarracenos e lhes diz que os franceses estão em minoria e que nenhum será salvo por Carles, facto que leva o Arcevesque a matá-lo, chamando-o mentiroso e apelando aos franceses para que combatam em nome da causa cristã:

“Culvert paien, vos i avez mentit: Carles, mi sire, nus est talento de fuïr. (…) Ferez, Franceis, nul de vus ne s’ublit!

Cist premer colp est nostre, Deu mercit!” (Roland, 95,v. 1253-1259)

Por outro lado, os doze cavaleiros pagãos permitem, não só compreender que “Paien unt tort e chestiens unt dreit” (Roland, 79, v. 1015), mas também enaltecer as capacidades bélicas e heroicas dos franceses. Quando “l’almaçour” (Roland, 98, v. 1275) é morto pelo duque Sansun, o Arcevesque refere “Cist colp est de baron!” (Roland, 99, v. 1280) e quando Anseïs mata Turgis de Turteluse, Rollant menciona “Un vrai coup de preux!” (Roland, 99, v. 1288). Através de algumas personagens individuais de La Chanson de Roland, ou da narrativa dos factos associados a estas, o anti-herói tem também um papel importante na construção do herói enquanto ideal social e religioso. A título de exemplo, consideremos os seguintes casos, através dos quais a oposição Mal/ Bem, Satanás/ Deus é notória: Na laisse 96, é referido, pelo narrador, que a alma de Malprimis de Brigant, ao ser morto por Gerins, é levada por Satanás (“E Gerins fiert Malprimis de Brigal/ (…) L’anme de lui en portet Sathanas”, Roland, 96, v. 1262 - (…) 1268). Ao compreender que o Arcevesquemorrera, Rollant confessa os seus pecados, ergue as mãos juntas para o céu e reza a Deus para que lhe conceda o Paraíso:

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(…) Cuntre le ciel amsdous ses mains ad juinz, Si priet Deu que pareïs li duinst.

Morz est Turpin, le guerreier Charlun”. (Roland, 166, v. 2238-2242)

Podemos verificar também uma oposição marcada entre Bem e Mal, na vertente de cristãos e pagãos, em La Chanson de Guillaume, ainda que, neste caso, a valorização não recaia tanto na personagem coletiva franceses, em detrimento dos pagãos, mas no enaltecimento de várias personagens individuais, com incidência em Willame e nos seus sobrinhos (tal como explorámos anteriormente), que estão na origem da vitória dos cristãos sobre os pagãos. Neste caso, e ao contrário do que se verifica em La Chanson de Roland, em que parece existir uma oposição clara entre as duas personagens coletivas, cristãos (que estão do lado do Bem) e pagãos (associados ao Mal), em La Chanson de Guillaume a diferença numérica existente entre o exército francês e o pagão, num primeiro momento da batalha, põe em evidência a desvantagem do primeiro sobre o segundo, o que parece apontar para um desfecho favorável ao exército de Deramed, facto que só terá um revés positivo graças à intervenção de algumas personagens individuais, nomeadamente Willame e Reneward, já perto do final da narrativa.

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este facto contribui para uma complementaridade de cada personagem, através da apresentação do seu oposto, o qual permite uma avaliação mais incisiva dos vários intervenientes, por parte do leitor, através da consciencialização do seu contrário.

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4

CASOS COMPARÁVEIS EM

LA CHANSON DE ROLAND

4.1

CARLES, MARSILIE E BALIGANT

Ainda que, inicialmente, Marsilie surja como o opositor de Carles, o que nos poderá levar a pensar que se trata do seu duplo, de facto, segundo cremos, não o é. Marsilie está, desde o início, como já foi referido anteriormente, em desvantagem geográfica, bélica e religiosa em relação a Carles. Não obstante, Marsilie, ferido por Rollant, refugia-se em Saragoça e, apoiado por vinte mil dos seus homens e pela sua mulher Bramimunde, comete um erro crasso ao renegar os seus deuses, culpando-os do seu infortúnio: “E! malvais deus, por quei nus fais tel hunte?” (Roland, 187, v. 2582). Ainda nesta laisse, os pagãos destroem os seus deuses: à estátua de Apolo é retirada a coroa e o cetro. É amarrada, lançada ao chão e despedaçado à bastonada. À estátua de Tervagant é retirado o seu “escarbuncle” (Roland, 187, v. 2589), símbolo da sua identidade deítica, e a de Maomé é atirada para um fosso, onde será mordido por cães e porcos5. Este aspeto adquire uma carga simbólica muito forte, na medida em que se trata de uma atitude quase amoral, vergonhosa e pouco digna de um rei. Ao contrário do que seria de esperar de um líder e de um verdadeiro cavaleiro, Marsilie não enfrenta os seus medos, não luta até ao fim das suas forças e, por isso, não é um adversário à altura de Carles que, como refere o próprio Marsilie, tem mais de duzentos anos, conquistou vários países e matou vários reis poderosos no campo de

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De acordo com Gilbert Durand, a mordidela de um animal poderá estar associado a uma justiça alquímica, renovadora, o que no contexto preciso fará sentido, na medida em que a negação das entidades divinas, por parte dos pagãos, e a sua redução a fragmentos, constitui, antes de mais, na vitória do Bem sobre o Mal, do verdadeiro Deus sobre imagens que, de acordo com o que nos é apresentado, não são mais do que isso: “Souvent en effet, dans le rêve ou la rêverie enfantine, l’animal dévorant se métamorphose en justicier. Mais la plupart du temps l’animalité, aprés avoir été le symbole de l’agitation et du changement, endosse plus simplement le symbolisme de l’agressivité, de la cruauté”. (Gilbert Durand, 1984: 90)

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batalha: “De Carlemagne, ki est canuz e blancs!/ Mien escientre plus ad de. II. C. anz./ Par tantes teres est alet cunquerant,/ Tanz colps ad pris de bons espiez trenchanz,/ Tanz riches reis morz e vencuz en champ” (Roland, 42, v. 554-555). Marsilie é então um homem destruído, comporta-se como um derrotado. Bramimunde, a rainha pagã, resume, na laisse 188, a situação em que se encontram, Marsilie e o seu povo, sem defesa, sem rei e sem proteção divina: “E! Sarraguce, cum ies oi desguarnie/ Del gentil rei ki t’aveit en baillie!/ Li nostre deu i unt fait felonie,/ Ki en bataille oi matin li faillirent” (Roland, 188, v. 2595-2601). Analisando esta passagem, concluímos que, de uma forma direta ou indireta, os problemas apresentados estão dependentes da ação ou inércia do rei pagão, na medida em que se anulou do seu papel de líder e renegou os seus deuses. Marsilie tem uma reação contrária à de Carles que tem sempre presente os deveres religiosos (“Li empereres est par matin levet;/ Messe e matines ad li reis escultet”, Roland, 54, v. 669) e, como refere Bramimunde, não foge se for atacado (“Li emperere od la barbe flurie/ Vasselage ad e mult grant estultie;/ S’il ad bataille, il ne s’en fuirat mie”, Roland, 188, v. 2605-2607). A este propósito, Helder Godinho acrescenta ainda um aspeto importante, ao justificar o facto de Carles não procurar confrontar Marsilie em Saragoça por este não constituir o seu verdadeiro adversário: “Charles ne va pas jusqu’à Saragosse parce que l’ennemi auquel il veut se mesurer n’est pas là – elle est donc une ville symboliquement vide”. (Helder Godinho, 1989: 54).

Como refere o autor, o duplo de Carles é o emir Baligant que, como ele, tem uma idade secular, pois já viveu mais do que Virgílio e Homero, “Ç’ est l’amiraill, le viel d’antiquitét,/ Tut survesquiet e Virgilie e Omer” (Roland, 189, v. 2615-2616). Numa análise retrospetiva, este aspeto pode justificar o facto de, na carta que Carles envia a Marsilie, o imperador mencionar que deseja confrontar-se com o tio de Marsilie e não com ele: ”Se de mun cors voeil aquiter la vie,/ Dunc li envei mun uncle l’ algalife” (Roland, 37, v. 492-493).

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claro, cheio de sol6. Todo o ritual que se desenvolve à volta desta personagem mostra o caráter de destaque que o narrador lhe parece querer atribuir. Na laisse 192, Baligant é acompanhado, à direita, por Espaneliz e escoltado por dezassete7 reis. Baligant senta-se num trono de marfim, enquanto os restantes permanecem de pé. Anuncia que combaterá Carles em França, que este não poderá comer8 sem que ele o ordene e, para sublinhar as suas palavras, corta o seu joelho esquerdo:

“Carles li reis l’emperere des Francs, Ne deit manger se jo ne li cumant. (…) En France dulce le voeil aler querant, Ne finerai en trestut mun vivant

Josqu’il seit mort u tut vif recreant”. (Roland, 192, v. 2658-2663)

Ao contrário de Marsilie, Baligant faz do combate a Carles o seu principal objetivo, uma coragem que se equipara à do seu homólogo. Também existem semelhanças a nível físico e psicológico entre ambos: Baligant tem o porte de um verdadeiro cavaleiro, cabelos encaracolados e brancos como as flores da primavera (“Fier le visage, le chef recercelét,/ Tant par ert blancs cume flur en estét”, Roland, 228, v. 3161-3162) e a sua barba tem a brancura de uma flor. É erudito no que respeita a sua religião e ardil na batalha (“Blanche ad la barbe ensement cume fkur,/ E de sa lei mult par est saives hom,/ E en bataille est fiers e orgoillus”, Roland, 229, v. 3172-3175). Carles tem a barba branca (“De Carlemagne, ki est canuz e blancs”, Roland, 42, v. 551), “flurie” (Roland, 188, 2605), é valente, cheio de honra e qualidades que, segundo refere Ganelon, ninguém consegue descrever. Prefere morrer a abandonar os seus

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Ainda que pareça curioso, a nível simbólico, o facto de Baligant estar associado à luz, ao contrário de Marsilie, como vimos anteriormente, este aspeto poder-se-á justificar, segundo cremos, na perspetiva da transformação alquímica que esta personagem vem incutir ao desenvolvimento da narrativa.

Esta análise parece ter ainda mais sentido, se tivermos em conta a simbologia do número sete que se relaciona com a conclusão de um ciclo (associação simbólica com os sete dias da semana, os sete planetas, etc.).

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O número sete surge, mais uma vez, associado à mudança de um ciclo.

8 Gilbert Durad, citando Bachelard, refere-se à alimentação e à gulodice como uma forma de aplicação do princípio de identidade, o que neste caso faz sentido, na medida em que Baligant pretende a anulação de Carles, da sua identidade enquanto imperador e líder. Impedir que ele coma será, neste sentido, uma forma de o anular: “La gloutonnerie est une application du principe d’identité”; disons mieux: le principe d’identité, de perpetuation des vertus substantielles, reçoit sa première impulsion d’une méditation de l’assimilation alimentaire, assimilation surdéterminée par le caractère secret, intime d’une opération qui s’effectue intégralement dans les ténèbres viscérales”. (Bachelard, apud

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barões: “De tel barnage l’ad Deus enluminét,/ Meilz voelt murir que guerpir sun barnét” (Roland, 40, 535-536).

Ainda que existam claras semelhanças entre as duas personagens, existem também diferenças que nos permitem compreender que Baligant está associado ao Mal: ainda que seja erudito, é-o relativamente à sua religião (“E de sa lei mult par est saives hom”, Roland, 229, v. 3174), uma religião que não vale um denar (“Tute lor leis un dener ne lur valt”, Roland, 239, v. 3338), falsa e infundada, negada por Deus (“De false lei, que Deus nen amat unkes”, Roland, 264, v. 3638).

Em conclusão, a condição de duplo exige, assim, que este se equipare ao seu homólogo, pois só desta forma poderá contribuir para o reconhecimento do herói e para a sua afirmação enquanto tal. Assim se justifica, acreditamos, que no caso concreto, a anulação do duplo (polo negativo) tenha de ser realizada pelo herói (polo positivo). Marsilie é ferido por Rollant, não por Carles, mas Baligant morre através das mãos de Carles, depois de um combate de igual para igual, que só tem um desfecho favorável ao imperador dos franceses, por intervenção de Deus que, como é referido, não quer que ele seja vencido ou morto e lhe envia S. Gabriel, que intercede por ele, questionando-o (o que produz, no imperador, um efeito catártico). A vitória de Carles sobre Baligant não se deve a razões de destreza ou de capacidade bélicas, tão pouco de liderança. Carles vence para cumprir o destino a que está obrigado, a destruição do Mal, a propagação da fé cristã.

Numa outra perspetiva, a anulação de Baligant implica a anulação do confronto de Carles com o seu duplo, tendo em conta que Baligant representa uma outra perspetiva do imperador francês, um lado negativo que é necessário eliminar. Este aspeto está claramente relacionado com a teoria de Pierre Jourde e Paolo Tortonese, relativamente à luta que se estabelece frequentemente entre o herói e o seu duplo:

(30)

paradoxale de refuser la mort, de rester un sujet absolu idéalisé”. (Pierre Jourde e Paolo Tortonese, 2005: 114-115)

O combate entre Carles e o seu duplo permite colocá-los em contacto direto, através de uma simbiose corporal que leva também ao questionamento da identidade do imperador e de Baligant que, até ao momento, se apresentam como personagens autónomas, independentemente das semelhanças e relações verificáveis entre ambos. Neste caso, as identidades das duas personagens entram em conflito e é o duelo que permite a resolução do problema:

“Lutter avec le double ne revient ni à le refuser, ni à se laisser prendre à sa séduction gluante. Dans le combat, les deux adversaires s’opposent, et en même temps ils entrent enfim directement en contact. Ce n’est plus la seduction purement visuelle, la distance fascinante qui caractérise souvent les relations du sujet et de son double, mais la définition même du double est mise en cause dans la lutte, et qui tend à s’inverser: l’identité devient conflictuelle, la différence se trouve compromise dans l’indifférenciation de la mêlée corporelle. On ne sait plus qui est qui, l’opposition figée et la réitération obsessionnelles tourne à l’échange, meme si ce sont des coups qui sont échangés”. (Pierre Jourde e Paolo Tortonese, 2005: 115)

Tendo em linha de conta os aspetos referidos, poder-se-á concluir que a eliminação de Baligant é um bem necessário para a unificação e glorificação de Carles como único soberano. Baligant constitui o maior impedimento à unidade do imperador. Por outro lado, e tal como refere Helder Godinho, Carles, ao conquistar o espaço do inimigo, está a conquistar o seu espaço real que, até ao momento, se apresentava fragmentado:

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4.2

OS SONHOS PREMONITÓRIOS DE CARLES E A SUA RELAÇÃO COM O

DIVINO

De acordo com Jacques le Goff, o sonho é, durante o período medieval, uma forma de alienação em relação ao mundo real e também um mecanismo de aproximação ao divino: “Sonhos premonitórios, sonhos reveladores, sonhos instigadores, são eles a própria trama, os estimuladores da vida mental [medieval]” (le Goff, 1983, vol. II: 107). Por outro lado, o sonho, e sobretudo o sonho premonitório, está associado à tradição judaico-cristã, através do texto bíblico, sinal de revelação que é dado a conhecer aos eleitos. Ao longo do Antigo e Novo Testamentos, existem inúmeras alusões ao sonho enquanto forma de providência cristã e de revelação do futuro para evitar a catástrofe. No Evangelho de Mateus (2, 1:12), o sonho surge associado à causa política, visto que os magos, enviados a Belém na qualidade de espiões, são advertidos em sonhos para regressarem a casa por outro caminho, de forma a evitarem o seu encontro com Herodes e facilitar a fuga, para o Egito, da Sagrada Família, aspeto que também é revelado por sonho a São José. Por outro lado, o sonho é também, no Texto Bíblico, uma forma de revelação de Deus, uma espécie de facilitador da interpretação da vontade divina. Ainda no Evangelho de Mateus (1, 20:25), São José é advertido, através de um sonho, do nascimento de Cristo, de forma a apaziguar os seus receios ou reações negativas a este facto.

Esta forma de utilização do sonho parece adequar-se ao que presenciamos em La Chanson de Roland, relativamente ao imperador Carles. Esta personagem é informada através do sonho da traição de Ganelon e das consequências catastróficas que este aspeto terá no desenrolar dos factos futuros. Porém, e ao contrário do que se verifica no Texto Bíblico, não se observa, por parte do imperador, uma correção atempada dos factos, de forma a evitar o problema revelado9. Uma questão importa então colocar: por que razão é revelado o futuro a Carles, se este aspeto não contribuirá para que modifique o decurso dos factos? Segundo cremos, o objetivo

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literário dos sonhos do imperador não é a salvação de Rollant, pois, como desenvolvemos anteriormente, esta personagem deve ser sacrificada para que se concretize a purificação do espaço imperial de Carles. Os sonhos são uma forma de reafirmar a imagem transcendental que se pretende transmitir do imperador, enquanto único intermediário de Deus e da interpretação da sua vontade. Este facto permite, assim, legitimar a campanha de cruzada, desenvolvida por Carles, ao serviço da causa cristã. Por outro lado, se tivermos em consideração a interpretação de Helder Godinho (1989) acerca da associação que se estabelece entre a morte de Ganelon e o sacrifício de um urso (aspeto que desenvolveremos mais pormenorizadamente no capítulo referente a esta personagem), facilmente relacionaremos a decisão de Carles, relativamente à morte de Ganelon, a uma forma final de agradecimento e comunicação com o divino.

Com o objetivo de compreender, mais pormenorizadamente, a importância do sonho na caracterização de Carles, tenhamos em conta o seguinte: ao longo da obra, observamos uma caracterização bastante positiva à volta da personagem do imperador, a qual aponta para a sua elevação enquanto cavaleiro, líder e exemplo de cristandade, o que, em algumas passagens, nos leva a crer que Carles está no limiar do terrestre e do etéreo. Esta condição que se coaduna, aliás, com a conceção de herói clássico, associada aos seus sonhos premonitórios, aponta para a divinização da personagem pois, tal como referimos inicialmente, aproxima-a do elemento divino, ao lhe ser revelado o futuro, através do símbolo10. Da mesma forma, a associação da personagem a entidades divinas, como é o caso do Anjo Gabriel, para proteção do imperador, é também significativa da caracterização transcendental que se pretende traçar da personagem. Porém, tal como o herói clássico, Carles vive uma condição dupla, pois parece hesitar, por vezes, no seu percurso de divinização. A consolidação da personagem, enquanto herói, está alicerçada na necessidade de exorcizar os sentimentos que o ligam à sua condição humana. Ainda que o seu lado humano o atraiçoe e, por vezes, o induza à incerteza ou à angústia, tal como é referido aquando de um dos seus sonhos premonitórios (“Karles se dort cum hume traveillét”, Roland,

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185, v. 2525), o divino tem como função a reorientação, através do suporte e consolo espirituais: “Seint Gabrïel li ad Deus enveiét,/ L’empereür li cumande a guarder” (Roland, 185, v. 2525-2526). Este aspeto não só é exemplificativo da conceção medieval sobre aquele que deve ser o percurso de um verdadeiro cavaleiro, como também nos permite caracterizar esta personagem como um modelo heroico a seguir. À legitimidade da autoridade ou da antiguidade, acresce, assim, a legitimidade da personagem através do milagre, facto que está, tal como refere Jacques le Goff, intimamente ligado à figura heroica:

“Evidentemente que os principais beneficiários de tais manifestações [milagres] eram os heróis. Na gesta de Girard de Vienne, um anjo vem pôr fim ao duelo entre Rollant e Olivier. Na Chanson de Rollant, Deus fez parar o Sol; na Peregrinação de Carles, confere aos valentes a força sobre-humana que lhe permite realizar proezas de que temerariamente se tinham gabado”. (le Goff, 1983, vol. II: 92)

Os sonhos e visões de Carles possibilitam-lhe a revelação do futuro, mas também a sua orientação espiritual e política. Acima de tudo, estas revelações permitem-lhe preparar-se para as vicissitudes que se avizinham, de forma a não fracassar, nem hesitar no percurso que lhe está traçado:“Quant Carles ot la seinte voiz de l’ange,/ Nen ad poür ne de murir dutance./ Repairet loi vigur e remembrance” (Roland, 262, v. 3612-3614). Ainda que solicite o conselho dos seus pares, pois é prudente e consulta frequentemente os franceses antes de decidir, a sua principal inspiração reside na fé e na vontade de Deus. Antes de ouvir os seus homens, Carles reza e ouve missas:

“Li empereres est par matin levét, Messe e matines ad li reis escultét. Desuz un pin ene st li reis alez,

Ses baruns mandet pur sun cunseill finer:

Par cels de France voelt il del tut errer.” (Roland, 11, v. 163-166)

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bélicas de Carlos Magno11 desencadeiam durante o período medieval e que a Literatura acaba por tratar de uma forma lendária, transcendental, de forma a legitimá-lo. Como refere Jacques le Goff, Carlos Magno está na origem da tradição de cruzada que ocupará uma parte significativa da História medieval e os seus feitos são decisivos “na tentativa de organização Germânica” (expressão retirada do título do Capítulo II, in Le Goff, 1983, vol. I: 65), nos séculos VIII-X:

“A leste, Carlos Magno inaugurou uma tradição de conquista em que se misturaram o morticídio e a conversão – a cristianização à força, que a Idade Média iria praticar durante longo tempo”. (Le Goff, vol. I, 1983: 66)

Em conclusão, podemos considerar que os sonhos premonitórios e visões de Carles se desenvolvem nesta linha de legitimação do imperador, enquanto soberano supremo, cuja tarefa de evangelização está ao serviço de uma causa maior, a causa religiosa. Nesta perspetiva se compreenderá a inércia de Carles perante os avisos da catástrofe iminente que recebe através dos sonhos ou das visões que lhe vão sendo dados a conhecer ao longo do texto. A nível da economia da narrativa, estes sonhos ou visões não têm qualquer função significativa, pois não contribuem, de forma direta, para a alteração dos factos.

(35)

4.3

ROLLANT, GANELON E OLIVIER

Da análise destas personagens não podemos dissociar o conceito medieval de identidade cavaleiresca. A partir do século XII, ser cavaleiro torna-se um estilo de vida, na defesa dos mais fracos, da honra, da justiça, da fé e da terra natal. O cavaleiro está, na sua essência, fortemente ligado ao ato heroico, ainda que alguns episódios históricos mostrem que, por vezes, outros valores se sobrepuseram aos ideais do código cavaleiresco, como a luta por terras ou por afirmação social, tal como refere Robert Lafont:

“ La chevalerie plaçant dans son ascension les vertus de risque et de dépense au-dessus de l’hoirie, de la terre et de la prudence, bouleverse la morale publique”. (Robert Lafont, 1064-1154: 8)

Não é de estranhar que esta realidade histórica se reflita na produção literária medieval e que a coragem e idoneidade do herói sejam colocadas em paralelo com o erro cometido pelo anti-herói.

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contrário de Rollant, defende uma solução do problema através da palavra, como refere o narrador: “Vindrent a Charles ki France ad en baillie;/ Ne s’poet guarder quë alques ne l’engignent” (Roland, 7, 94-95). Ganelon surge como duplo de Rollant e a partir do momento em que se coloca o problema, assistimos, tanto de uma parte como de outra, a tentativas sucessivas para se eliminarem mutuamente: Rollant indica Ganelon como mensageiro, sabendo que se trata de uma tarefa que lhe poderá custar a vida; Ganelon acorda com Marsilie a traição contra o imperador Carles na condição de que este o auxilie a eliminar Rollant e propõe que seja Rollant a comandar a retaguarda do exército. Ao contrário do que se verifica entre Carles e Baligant, em que o primeiro elimina o segundo, seu duplo, numa perspetiva de purificação do espaço territorial e imperial, no caso de Rollant e Ganelon há uma dupla eliminação, numa lógica de anulação total das duas personagens. Rollant morre devido à traição de Ganelon e este é condenado à morte pois traiu para se vingar do primeiro. A morte de Rollant coloca-nos uma questão, abordada, aliás, por vários autores: por que razão Carles não impede que seja Rollant a comandar a retaguarda do exército, sabendo que este correria risco de vida?

O sacrifício de Rollant é fundamental para que Carles não se anule e para que se perpetue o seu império e domínio, tal como refere Helder Godinho:

“Il semble donc que La Chanson de Rollant est parcourue par une chaîne d’isomorphismes qui se rapporte à un contexte sacrificiel qui permet la purification de l’espace du Personnage royal, que Charlemagne assume en plenitude”. (Helder Godinho,1989: 61)

(37)

reúnem, no seu conjunto, as características que um bom cavaleiro deve possuir: por um lado a emoção, o coração, por outro a justiça e a prudência.

Noutra perspetiva, a postura de Olivier não deve também ser confundida com a de Ganelon, que é ardiloso e propõe a resolução do problema através de um discurso assente no interesse pessoal e no engano.

Olivier e Rollant parecem, assim, funcionar, ao longo da narrativa, como um só. As construções literárias destas duas personagens interligam-se nos momentos mais cruciais: quando, na laisse 18, Rollant se oferece como mensageiro de Carles, Olivier contraria a sua opinião, referindo que a personalidade do amigo não se adequa a esta função, mostrando-se sensato e ponderado sobre a importância e cautela necessárias ao tratamento da questão. Por outro lado, Olivier também se opõe à recusa de Rollant em tocar o olifante e pede-lhe três vezes12 que o faça, da laisse 83 à 85. Este aspeto é bastante significativo, tendo em conta a perspetiva apresentada anteriormente. Na laisse 131, Olivier refere a Rollant que a prudência vale mais do que bravura desmedida, pondo em evidência a diferença existente entre as duas personagens: “Mielz valt mesure que ne fait estultie” (Roland, 131, v. 1725). Rollant age por orgulho, salientando o seu caráter bélico.

Ainda que saibamos, de acordo com a perspetiva de Helder Godinho, que a morte de Rollant é necessária para que se cumpra a sua função sacrificial, “ce qui a permis à Charlemagne de se débarrasser de Rollant pour “purifier” le personnage royal français” (Helder Godinho, 1989: 55), o seu sacrifício e, por consequência, o de toda a armada, ter-se-ia evitado caso Rollant tivesse tido em atenção as palavras de Olivier. A este aspeto, acrescentem-se ainda as palavras de Rollant aquando da morte de Olivier, que nos parecem elucidativas da inter-relação existente entre as duas personagens:

“Sire cumpaign, tant mar fuestes hardiz!

12

A propósito da referência ao número três, salientamos o facto da numerologia referida ao longo do texto estar, de forma geral, simbolicamente associada à tradição judaico-cristã, o que reforça o caráter religioso transversal a todo o texto e, como vimos noutros momentos, associado ao percurso de legitimação do herói. De acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: “O 3 como número, o primeiro ímpar, é o número do Céu, o 2 o número da Terra, porque o 1 é anterior à sua polarização. O 3, dizem os Chineses, é um número perfeito (tch’eng), a expressão da totalidade, da conclusão: nada lhe pode ser

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Ensemble avum estét e anz e dis; Ne m’ fesis mal, ne jo ne l’ te forsfis.

Quand tu es morz, dulur est que jo vif!”. (Roland, 151, v. 29027-2030)

Olivier parece, assim, funcionar como o alter-ego de Rollant. Este aspeto poderá justificar que, numa perspetiva de anulação da personagem de Rollant, Olivier tenha também de ser eliminado. É curioso perceber que é o próprio Olivier quem, ainda que por engano, atinge Rollant violentamente. Ferido de morte, com visão desfocada, Olivier tem uma atitude que pouco se adequa à perspicácia e sensatez referidas anteriormente, aspeto que, segundo cremos, só se poderá justificar nesta perspetiva. Olivier surge como metáfora do erro cometido por Rollant, por não tocar o olifante. Olivier, que sempre funcionou como a sua consciência, atinge-o enquanto metáfora da culpa que o assola. Da mesma forma, o sacrifício de Rollant justifica-se a si próprio, na medida em que a sua morte está intrinsecamente ligada à sua culpa. Ainda que se verifique, ao longo da narrativa, uma evolução de Rollant no sentido do material para o espiritual, o que lhe confere, aquando da sua morte, a condição indubitável de herói, Rollant falha na sua função de defesa do interesse comum, em prol do seu orgulho pessoal. A morte de Rollant justifica-se, não só pelo que já referimos anteriormente, mas também porque é a única forma de reparar o seu erro, já que ao cavaleiro compete suportar os piores sofrimentos pelo seu senhor, tal como refere o próprio: “Pur sun seignur deit hom susfrir granz mals” (Roland, 88, v. 1117).

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quens Rollant, quant il les [paien] voit venir, / tant se fait si fort, e fiers e maneviz” (Roland, 158, v. 2124-2125), ao ponto dos pagãos referirem que não está ao alcance de nenhum homem, na sua condição humana, vencer Rolland: “Li quens Rollant est de tant Grant fiertét,/ Já n’ert vencut pur nul hume carnel” (Roland, 160, v. 2152-2154). Os desmaios de Rollant, no total três, desde a laisse 148 à 164, são, segundo cremos, também simbolicamente significativos neste contexto, na medida em que apontam para um estado de inconsciência, de alienação do real, o que antecipa o desfecho do percurso de desmaterialização da personagem. Mas é após a sua morte que este aspeto atinge a sua plenitude. Deus envia os seus anjos para que levem a alma do conde para o paraíso. A recompensa de Rollant é a que estaria prometida a todos os cavaleiros que, como ele, lutassem pela afirmação da fé cristã e pela erradicação do paganismo. Acrescente-se, a este aspeto, o facto deste estado transcendental, de herói, advir da morte da personagem, o que nos permite também associá-la a uma condição quase equiparada à do santo martirizado.

(40)

5

CASOS COMPARÁVEIS EM

LA CHANSON DE GUILLAUME

5.1

WILLAME

Esta personagem assume, em La Chanson de Guillaume, um destaque

semelhante ao de Carles em La Chanson de Rollant, na medida em que a narrativa o elevará à condição de herói irrefutável, ainda que o processo literário pelo qual este aspeto é levado a cabo seja, em alguns aspetos, divergente. Carles é, desde o princípio da narrativa, um cavaleiro exemplar, com obra reconhecida, sendo que não sofre, ao longo do seu percurso textual, variações psicológicas significativas, pois é desde o início um herói amadurecido. O seu papel consistirá no reforço da legitimação deste facto, junto dos seus pares e do inimigo, ainda que, para tal, seja necessário, à semelhança do que verificámos, a eliminação do seu duplo, Rollant. No caso de Willame, assistimos a um processo semelhante, tal como mostraremos adiante, mas, neste caso, parece verificar-se um percurso que leva à maturação psicológica e cavaleiresca, ao contrário do que se constata relativamente a Carles, cuja variação psicológica não é tão significativa. Consideramos que a personagem Willame se estrutura em torno de dois eixos cosmológicos que, parecendo destintos, se completam: o familiar e o cavaleiresco. Na realidade, e ao contrário de Carles, Willame parece encontrar no espaço familiar, e sobretudo na figura de Guiburc, a estabilidade interior de que necessita para enfrentar o espaço exterior, o que poderá justificar a sua demora em participar na batalha (que, como sabemos, só acontecerá tardiamente e a pedido do seu sobrinho Vivien) ou o facto de necessitar de regressar a casa, após a morte do seu sobrinho Guischard, para o devolver à família, ainda que o narrador seja perentório em referir, por duas vezes, que Willame não abandona a batalha:

“N’en fuit mie Willame, ainz s’en vait; Devant li aporte mort Guischar, Joesdi al vespre,

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O eixo familiar parece contribuir para a humanização deste herói. O facto de recolher o corpo de Guischard, que entrega a Guiburc, e de lhe anunciar a morte de Vivien, é elucidativo do valor que a família tem na construção da personagem enquanto herói pleno, numa evolução interior que acompanha o reconhecimento social que possui: “Tien, dame Guiburc, ço est tun nevou Guischard./ Já Vivien le cunte vif mês ne verras” (Guillaume, XCIX, v. 1218-1219). Este aspeto parece ainda mais claro já que as mortes de Guischard e de Vivien são a principal razão para Willame se considerar um homem destruído e fracassado:

“(…) Par Deu, Guiburc, tu as dreit que tu plurs, Kar já diseient en la cur min seigbur

Que eres femme Willame, uns riche hom, Un hardi cunte, un vaillant fereür;

Or estes femme a un malveis fuieur, Un cuart cunte, un malveis tresturnur,

Qui de bataille n’ameine home un sul”. (Guillaume, C, v. 1303-1309)

Estes dois eixos contribuem para que Willame, aos olhos do leitor, seja um modelo de altruísmo, pois chega a abdicar do seu estatuto social de nobre cavaleiro em benefício da valorização e respeito pelo outro. Este facto verifica-se claramente, por exemplo, quando ele se dirige à corte de Lowis, acompanhado por um escudeiro muito novo e fisicamente incapaz de transportar os seus pertences bélicos. Surpreendentemente, é Willame quem o faz, demonstrando não só uma grande compaixão pelo rapaz, mas também respeito, pois não deixa que ele seja envergonhado socialmente e, quando se cruzam com algum peregrino ou mercador ou quando chegam a uma cidade, Willame devolve ao escudeiro as suas armas e recolhe-as novamente quando já estão longe:

“Vait s’en Willame, Guiburc remist plorant. Un esquier menant, ço fu un enfant,

Tant par fu joefnes, n’out uncore quinze anz. La hanste fu grosse, si li pesad formanz, E li escuz vers la terre trainant,

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Veit le Willame, merveillus duel l’en prent, Totes les armes ad pris de l’enfant.

Quand il encontre rumiu u marchant, U vient a chastel u a ville, errant

Totes ses armes rebaille a l’enfant”. (Guillaume, CLI, v. 254-2464)

Em conclusão, podemos constatar que Willame é um herói humanizado, pois adequa o seu comportamento ao contexto social, moral e familiar em que se insere. O seu crescimento e legitimação enquanto herói estruturam-se nesta base de atuação. O seu equilíbrio interior advem do equilíbrio que consegue na interação com os seus pares, do seu altruísmo e da sua dedicação à família e à causa social.

5.2

WILLAME E OS SEUS MÚLTIPLOS

Em La Chanson de Guillaume existe um conjunto de personagens, decalcadas da personagem Willame, que se associam a esta, de forma direta, quer semanticamente, pois têm nomes compostos a partir do seu, quer através dos laços familiares que as unem ou ainda do caráter heroico, de correção e valentia, também transversal a todas. Tal como refere Alain Corbellari, a tradição do recurso a esta personagem, na canção de gesta, e não só13, tem grande representatividade durante o período medieval, facto que se pode justificar pela conotação heroica que lhe é atribuída:

“Willame d’Orange (le héros medieval, c’est de lui que nous parlerons désormais) a pourtant été quatre siècles durant l’un des piliers les moins contestés de l’immense matière épique du Moyen Âge: il est avec Rollant la plus anciennement attestée des “stars” de la chanson de geste (…)”. (Alain Corbellari, 2011: 10).

Este aspeto poderá justificar não só a significativa literatura produzida à volta desta personagem, como também o recurso, bastante notório na obra em análise, a

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nomes compostos a partir deste, através da utilização da sílaba vi-/ gui: Guiburc, mulher de Willame; Guischard, Gui(ot) , Girard e Viviën, sobrinhos de Guiburc e de Willame. É curioso constatar, porém, que todas estas personagens, à exceção de Guiburc, por razões óbvias que apresentaremos mais adiante, são eliminadas ao longo da narrativa. Guischard, Girard e Viviën são mortos no campo de batalha e Gui(ot) é feito prisioneiro.

Acerca da proliferação dos duplos nos textos literários, Pierre Jourde e Paolo Tortonese fazem referência a um trecho da obra Le Passe-muraille, “Les Sabines”, de Marcel Aymé, que relata a vida de uma mulher banal que tem a capacidade de se multiplicar sem limites. Se inicialmente a vida dupla que mantém entre duas relações, com o marido e com o amante, não passa de um caso simples de adultério, à medida que vai utilizando a sua aptidão para multiplicar relações, vai também perdendo a sua capacidade de gestão da situação e a sua identidade:

“En réalité, la plupart du temps, la prolifération apparaît comme le signe paradoxal d’une situation bloquée engendrant une fuite en avant”. (Pierre Jourde e Paolo Tortonese, 2005: 127)

Referências

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