Supremo Tribunal de Justiça Processo nº 96A934
Relator: TORRES PAULO Sessão: 22 Abril 1997
Número: SJ199704220009341 Votação: UNANIMIDADE Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
DIREITO DE PREFERÊNCIA DIREITO POTESTATIVO RENÚNCIA
Sumário
I - Há renúncia ao exercício do direito potestativo de preferência na compra e venda de imóveis, se o obrigado
à preferência dá conhecimento ao preferente de que pretende fazer a venda a certo indivíduo por preço superior a certa quantia, e o preferente comunica ao obrigado que não está interessado na compra por tal preço.
II - É admissível a renúncia ao exercício de direitos potestativos, como é o caso do exercício do direito de preferência.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1 - No Tribunal de Círculo de Chaves, A e mulher B, na qualidade de
arrendatários e de comproprietários, confinantes e donos de prédio serviente, instalaram acção atinente nuclearmente a exercerem o direito de preferência na transmissão do prédio, que identificaram, operada por escritura de compra e venda de 3 de Junho de 1991 e 31 de Outubro de 1991, contra C e mulher D, como compradores, e E e marido F, G, H e marido I e J e marido L, como
vendedores.
Os Recorrentes contestaram por excepção e por impugnação.
Em cumprimento do douto Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça de 20 de Outubro de 1994, folhas 183 a 195, proferiu-se saneador - folhas 207 e seguintes - seguido de especificação e questionário.
Por sentença foram os Recorrentes absolvidos do pedido por se ter julgado procedente a excepção de renúncia ao direito de preferir.
O douto Acórdão da Relação do Porto - folhas 353 a 368
- confirmou o decidido.
Daí a presente revista.
2 - Nas suas muito longas conclusões das suas alegações os Autores
recorrentes afirmaram, em resumo: a) O preço depositado pelos Autores foi de 4321290 escudos. b) Devem ter-se por não escritas as expressões que contêm matéria de direito nas respostas aos quesitos 17 a 20 do questionário. c) Era inadmissível o depoimento de parte das Co-Rés requerido pelos 1. Co-Réus. d) Há nulidade insuprível da decisão do colectivo na fundamentação das
respostas aos quesitos. e) Não foram objecto de fundamentação de sentença e do
Acórdão recorrido os factos admitidos por acordo das partes e provados por documentos. f) Há simulação dos preços das escrituras. g) Existe contrato típico de arrendamento rural. h) Os Autores na sua qualidade de arrendatários e de comproprietários do prédio "Atrás da Igreja" gozam do direito de
preferência na sua alienação. i) Os Recorrentes comunicaram aos Autores em concreto todos os elementos essenciais da alienação - preço e datas de
celebração das escrituras, em desrespeito ao disposto nos ns. 1 e 2 artigo 416 do Código Civil. j) Houve ocultação deliberada desses elementos. l) Não houve renúncia dos Autores ao exercício do seu direito de preferência.
Encontrando-se violados os artigos 646 n. 4; 653 n. 2;
659 n. 2; 668 n. 1 alíneas b) e d), todos do Código de
Processo Civil e artigos 352; 240; 416; 409 e 1410, todos do Código Civil e 284 da L.A.R., concluem pela revogação do decidido e daí pela procedência da acção.
Em contra alegação pugnou-se pela bondade do decidido.
3 - Colhidos os vistos cumpre decidir.
4 - Dando ordem lógica e cronológica aos feitos está provado pela Relação: a) Na freguesia de Vide, Montalegre, situa-se um prédio denominado "atrás da Igreja", composto de terra, lameiro, tulhão, palheiro, casinha, combano, canastro e eira, confrontando do Norte com o adro da Igreja, Sul com herdeiros de Paço, Nascente com Canela, Poente com Nogueira ou Centro Paroquial - alínea A) da especificação. b) O aludido prédio faz parte da herança deixada por morte de Pires, conforme inventário obrigatório que correu seus termos pelo Tribunal de Montalegre, no qual foi adjudicado:
- 1/2 ao inventariante Paço.
- 1/8 a cada um dos interessados H, L, N e marido e H - alínea B) da especificação. c) Por óbito do dito Paço, teve também lugar inventário obrigatório, onde se incluiu o respectivo 1/2, que foi adjudicado:
- 2/9 para cada um dos interessados H e marido, M e marido e H já referidos na alínea anterior - alínea c) da especificação. d) Por morte de N procedeu-se
também a inventário obrigatório, no qual se inscreveu a verba n. 4, correspondente a 17/72 do prédio em causa, que foram adjudicados na proporção de metade para cada um dos interessados E e G, aqui 2. e 3. Rés.
De acordo com a certidão do Registo Predial de Montalegre encontram-se inscritos 51/864 a favor de E; 136/864 a favor de
G; 17/72 a favor de H e 17/72 a favor de J - alínea D) da especificação. e) Por volta de 1980, as Rés H e J consentiram que os Autores utilizassem o palheiro, tulhão e canastro do prédio referido na alínea A) da especificação - resposta ao quesito 1. f) Os interessados M e marido aquela já mencionada nas alíneas B) e C) declararam, por carta de 28 de Outubro de 1991, terem tomado
conhecimento do propósito das vendas a que se reportam as escrituras
públicas juntas aos autos, e não exerceram o direito de preferência - alínea H) da especificação. g) De harmonia com a escritura pública celebrada no dia 3 de Junho de 1991, as aqui Rés E, G e H venderam respectivamente
17/144, 17/144 e 17/72 do já mencionado prédio, pelo preço declarado de cinco milhões de escudos, aos ora também Recorrentes C e mulher - alínea E) da especificação. h) Os intervenientes nesta escritura declararam o valor de 5000000 escudos, valor esse fixado por acordo entre os mesmos
intervenientes - resposta aos quesitos 10 e
11. i) Também em conformidade com a escritura pública celebrada em 31 de Outubro de 1991 a Ré J e marido venderam 17/72, do mesmo prédio, pelo preço declarado de quatro milhões de escudos, aos primeiros Recorrentes C e mulher - alínea F) da especificação.
J) Os intervenientes nesta escritura declararam o valor de 4000000 escudos, valor esse declarado em conformidade com o acordo havido entre os mesmos intervenientes - resposta aos quesitos 14 e 15. l) Os Recorrentes deram
conhecimento aos Autores do propósito de venderem as fracções a que se reportam as escrituras públicas referidas nas alíneas E) e F) da especificação - resposta ao quesito 17. m) Os Recorrentes deram também conhecimento aos Autores que os preços eram superiores a 2000000 escudos e, ainda, a
identidade do comprador - resposta ao quesito
18. n) Os Autores, porém, declararam não estar interessados na aquisição dos bens inerentes a essas fracções e que os podiam vender a quem quisessem, desde que o preço fosse superior a 2000000 escudos - resposta aos quesitos 19 e 20. o) Os Autores procederam ao depósito de 2121290 escudos, nele se incluindo as despesas relativas à celebração das escrituras referidas nas alíneas E) e F) da especificação - alínea G) da especificação.
5 - Apreciemos as invocadas nulidades.
1 - A nível de apelação os Autores recorrentes levantaram, sem êxito a questão
de as respostas aos quesitos 19 e 20 serem conclusivas, por envolverem no seu conteúdo matéria de direito.
Agora alargam a mesma conclusão relativamente às respostas aos quesitos 17 e 18.
Nesta parte não é possível a sua apreciação por ser questão nova.
Os pontos agora em análise reportam-se às seguintes expressões "declararam não estar interessados na aquisição dos bens inerentes a essas fracções" e
"preço... superior a..." - resposta aos quesitos 19 e 20.
Seja qual for o critério para destrinçar a questão de facto da de direito - Professor Castanheira Neves, Rev.
Leg. Jurisp. ano 129, Páginas 130 e seguintes e 162 e seguintes; e A. Varela C.J. XX, 1995, Tomo IV, Páginas
9 e seguintes é plenamente concordante e de solução pacífica que as assinaladas expressões se referem a puros e concretos factos.
2 - A inadimissibilidade do depoimento da parte é igualmente questão nova, por não ter sido levantada perante a Relação.
3 - Ao contrário do pretendido pelos recorrentes, a falta ou deficiência de fundamentação das respostas não constitui motivo para anulação das mesmas, frente ao estatuído no n. 3 artigo 712 do Código de Processo
Civil.
Mas para além disso, o colectivo - folhas 290/verso - fundamentou-se, quanto à generalidade das respostas aos quesitos, em documentos juntos - as escrituras públicas
- em depoimento de parte e em testemunhos, indicando a razão de ciência.
Tudo de acordo com o princípio da livre apreciação das provas - artigo 653 do Código de Processo Civil.
4 - Quanto à relevância da invocada omissão de factos admitidos por acordo e provados por documentos há que concluir que, a existir tal omissão, ela seria nula, pois necessário se tornaria, pela positiva, que ela se reportasse a factos que se projectassem utilmente na decisão - artigo 659 n. 3, em referência ao artigo 511 n. 1, ambos do Código de Processo Civil.
Tais factos seriam os insertos nos artigos 60-61-74 e
75 p.i., acompanhados dos documentos neles mencionados - cartas juntas a folhas 31, 33 e 38.
E no entender dos recorrentes demonstrariam que eles não tiveram o mínimo conhecimento da alienação da fracção da Ré J e marido.
Ora tal conclusão é insusceptível de se tirar da carta junta a folha 38.
E as junto a folhas 31 e 33 são inócuas para a decisão.
Tudo como vem referenciado no Acórdão recorrido.
6 - Apreciemos agora a excepção: renúncia por parte dos Autores ao exercício do direito de preferência.
Voltemos aos factos provados.
- Os Recorrentes deram conhecimento aos Autores do propósito de venderem as fracções a que se reportam as escrituras públicas.
- Os Recorrentes deram também conhecimento aos Autores que os preços eram superiores a 2000000 escudos e ainda a identidade do comprador.
- Os Autores declararam não estar interessados na aquisição dos bens
inerentes a essas fracções e que os podiam vender a quem quisessem, desde que o preço fosse superior a 2000000 escudos.
No artigo 416 n. 1 do Código Civil estatui-se:
"Querendo vender a coisa que é objecto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato".
Daqui se infere a protecção dada ao preferente para conscientemente poder decidir se lhe é favorável preferir.
Este dever de comunicar é tratado pela mais recente doutrina alemã como
"dever de prestação de informação derivado", por nascer da própria lei.
E por lhe corresponder um direito de acção por parte do preferente, é considerado no sub-tipo dos deveres "Kompletorisch".
Sabe-se que os Recorrentes queriam vender as suas fracções no prédio em questão.
Os Autores, mesmo que por forma indirecta soubessem de tal, legalmente teriam de estar inactivos: tinham tão somente uma expectativa de mais tarde poderem adquirir tais fracções, caso se concretizasse a decisão de venda.
Por isso os Autores só adquiriram o direito subjectivo
- n. 1 artigo 416 - depois de os Recorrentes terem dado conhecimento do seu propósito de venda, pelo preço superior a 2000000 escudos e da identidade do comprador.
Igualmente tal direito nasceria caso os Recorrentes tivessem efectivamente alienado sem prévia comunicação ou se esta se apresentava irregular.
Contrariamente 504, C.C. Alemão, onde o direito de preferência só é exercido após - venda de coisa, apresentando-se a declaração, como realização de uma condição - Euneccemo-Uhmann, D. obg. II, Página 2.
Há, pois, que analisar a comunicação.
Os Recorrentes não anunciaram que queriam vender por preço superior a 2000000 escudos, visando saber se os
Autores, nestas condições, queriam ou não comprar.
Tal seria uma proposta para contratar.
Mas sim os Recorrentes comunicaram aos Autores o propósito de vender por aquele preço ao terceiro comprador, que indicaram, visando saber se os
Autores, nestas condições, queriam ou não comprar.
A comunicação para preferir levanta problemas jurídicos complicados.
Denominado "de mutiatio" pelo artigo 1566 do C.C.
Italiano deve aqui indicar as "condições propostas por terceiro".
Denominado "apontação" pelos artigos 1153 e 1156 do
C.C. Brasileiro deve aqui indicar "preço e vantagens que terceiros oferecem pela coisa".
A doutrina em França de várias disposições retira que ela deve indicar as condições aceites por terceiros.
A de mutiatio é geralmente vista pela doutrina Italiana como proposta para contratar, revogável para uns e irrevogável para outros.
Mas também é vista como cumprimento de obrigação.
Há que separar proposta para contratar da comunicação referida no artigo 416 n. 1 do Código Civil.
Entre nós tem sido entendido pacificamente "que ao preferente devem ser comunicados, sem ambiguidades ou lacunas, todos os elementos do negócio a realizar que possam ter influência na sua decisão de preferir ou de abdicar do direito de opção" - Professor H. Mesquita,
Rev. Leg. Jurisp. 126, Página 59.
Ao seu conteúdo temos:
- projecto de venda:
- cláusula.
O projecto de venda identifica-se com os elementos essenciais de contrato de compra e venda - artigo 874 e
879 alíneas b) e c): identidade do objecto mediato do contrato e preço a pagar.
Nas cláusulas já se projectam na casuística avaliada pela regrabilidade
daquilo que seria decisivamente relevante para o preferente resolver se irá ou não preferir, dentro de óptica por parte do obrigado à preferência, atenta a diligência do bom pai de família
- artigo 487 n. 2 e 799 n. 2, ambos do Código Civil.
Cláusulas com aquelas características não havia, no caso em apreço.
Referindo os Recorrentes na sua comunicação o prédio, o futuro comprador e o preço parece que ela é perfeita.
Só que, poder-se-á dizer - tese dos recorrentes - que quanto ao preço não foi indicado um valor preciso, mas sim "pelo menos por 2000000 escudos".
Mas os Autores, como declaratários normais - artigo 236 do Código Civil - Nem perceberam o seu conteúdo.
Tanto assim que responderam que os Recorrentes poderiam vender a quem quisessem, desde que o preço fosse superior a 2000000 escudos.
E o preço veio a ser de 9000000 escudos (4000000 escudos + 5000000
escudos).
Afastada a tese de a comunicação ser uma proposta para contratar, sabido que o analisado n. 1 do artigo 416 não estabelece qualquer especialidade quanto à forma, há que aplicar, de pleno, o princípio consignado no artigo 219, ambos do Código Civil, de liberdade de forma.
7 - Frente à aludida concreta comunicação dos Recorrentes, os Autores podiam tomar três atitudes:
- Nada declararem.
- Declararem que não lhes interessava contratar nas condições assim anunciadas.
- Declararem o seu interesse - direito protestativo - em preferir.
Os Autores optaram pela segunda posição: perda voluntária do direito de preferir.
Fizeram-no através de uma declaração unilateral de vontade, também não sujeita a forma especial - artigo
219.
É sabido que a renúncia não é admitida, em termos gerais, no domínio das obrigações, como forma de extinção do crédito, mas como forma de extinção das garantias reais - artigos 664, 677, 730 alínea d), 752 e 761, todos do Código Civil.
Não estamos, pois, perante a extinção de um direito de crédito, mas sim de extinção de um direito potestativo
"o direito de, por simples declaração de vontade, fazer nascer, a cargo do sujeito vinculado à preferência, a obrigação de realizar com o preferente o contrato projectado" - Professor H. Mesquita, obg. reais e ónus reais, nota 131, Página 209.
Verifica-se, desta forma, a renúncia.
8 - Termos em que se nega a revista.
Custas pelos Autores recorrentes.
Lisboa 22 de Abril de 1997.
Torres Paulo, Ramiro Vidigal, Cardona Ferreira.