•
•
Angêla Gutiérrez
Há cidades que ostentam, como marca de nascença, um po
der ,de sedtição tão intenso que por elas não se consegue
passar distraidamente. Elas atraem o olhar e exigem uma
palavra sobre seu fascínio. Fortaleza, como o Rio de Janei
ro, como Paris, como Nova York, é uma dessas
cidades-musas.
Ao longo de sua história, Fortaleza inspirou poetas,
romancistas, contistas, memorialistas, cronistas a cantar seu
jeito de vila menina, sua adolescente picardia, sua sensuali
dade morena, sua maturidade sedutora, mas também os in
citou a desnudar sua pequenez preconceituosa de cidadezi
nha provinciana e seu atuar de madrasta de conto de fada a
malcuidar os indefesos que nela se abrigam. Cada escritor
que se debruçou sobre Fortaleza, descobriu-lhe diferentes
traços de beleza ou de vileza.
Os poetas quase sempre viram, em Fortaleza, a cidade
amável e a cidade amada. Artur Eduardo Benevides que co
lecionou os poemas sobre a cidade em seu valioso Calzcio
neiro da Cidade de Fortaleza, é, por sua própria obra, quem
mais belamente canta a nossa cidade .
Alguns romancistas, como os do final do século, já
enxergaram a cidade com cores menos Stlaves: con1o, por
exemplo, a cidade mesquinha e preconceituosa de
A
normalista e de
A
afilhada, e a cidade doente de
A
fo11ze.
Muitos contadores de história tê111 111ostrado o lado pi
toresco dos tipos populares, dos aconteci111entos it1sólitos e
•
•
J I
I
•
ará, lallo
côtnico.
os memorialistas, como Gustavo Barroso, e os
cronis-tas, que Raimundo Girão chamou históricos em seu
indis-bretudo, preservar suas percepçoes da ctdade que o vento
vai levando e que pretendem conservar viva através do
re-gistro escrito.
A Fortaleza de que hoje lhes venho falar é a cidade de
um destes cronistas, a cidade que um dia o jovem do interi
or conheceu com espanto e que, mais tarde, registrou com
amor. Conhecemos, assim, a cidade através do olhar daque
le que veio de fora, do que viu a cidade de repente. Nelson
Brissac Peixoto, em artigo incluído na relevante coletânea
de estudos críticos
O
olhar, nos lembra a especificidade e
ariqueza do chamado olhar do estrangeiro, e estrangeiro, em
suas palavras, é "aquele que não é do lugar, que acabou de
chegar, é capaz de ver aquilo que os que lá estavam não
podem mais perceber.
[
..
.]
Ele é capaz de olhar as coisas
como se fosse pela primeira vez e de vi ver histórias origi
nais"1 .
.,
E esse olhar de estrangeiro que percebo no narrador que
conta a chegada do rapazinho de catorze anos que, em
191 O,
vindo de Redenção, apoiou-se à janela do trem em que viajava
e vislumbrou, pela primeira vez, a cidade onde iria tnorar: "atra
vés da fumaça lançada em golfadas escuras pela trepidante lo
comotiva, deslumbrava-me a luz dos co111bustores de gás"2•
O que , para nós, agora, soa co1110 antigo e ultrapassa
do - a fumaça da locomotiva e a ilun1inação a gás - foran1
relevantes signos da modernidadg que o cro11ista ,destaca na
rememoração de seu primeiro contacto co111 a cidade.
Na crônica que abre seu livro publicado po
tut11a111et1-252
•
te, Fortaleza Descalça, o poeta, artista plástico e cornposi
tor Otacílio de Azevedo - é este o no1ne do rapaz que che
gava do interior para tentar a vida na capital
-
descreve o
palpitar da cidade em plena vida do dia a dia. Ao mesmo
tempo revela o descompasso entre o ritmo, usemos a pala
vra do cronista ao referir-se à locomotiva, trepidante da ci
dade e o próprio ritmo mais lento do narrador que vinha da
vida pacata e vagarosa no sertão.
Essa crônica, "Minha chegada a Fortaleza'', que
.
abre o
livro, desenvolve-se, estabelecidas as diferenças, quase como
a Rhapsody in blue de Gershwin, com relação a Nova York.
O cronista , em primeira pessoa, registra seu espanto com a
multidão que encontra na praça da Estação ao descer do trem,
e o ritmo de sua narrativa se acelera para acompanhar a pres
sa de seu irmão, que o recebe em Fortaleza e que tudo lhe
quer mostrar: "Vimos cafés, lojas, bilhares, restaurantes e
longas avenidas. Muitas vezes assustava-me pensando que
estávamos perdidos"3• Em velocidade desconhecida para um.
sertanejo, o jovem conhece, ainda, os bondes - diz ele: "To
mamos um estranho veículo puxado a burros que corria sobre
trilhos: era um dos veículos da Companhia de Bondes"4e, nos
dias seguintes, a Praça do Ferreira com seus quatro quios
ques em que funcionavam os cafés Java, do Comércio, Ele
gante e o Café-Re
staurante Iracema; os cinematógrafos
Amerikan Kinema, Cinematógrafo Rio Branco, Cinema Júlio
Pinto, Cinema Di Maio; e, ainda, o Mercado de Ferro, os jor
nais, as lojas que vendiam rendas francesas.
Diferentemente de alguns famosos cronistas do Rio,
como Machado de Assis e João do Rio que, quase sempre,
escreveram sobre a Capital no calor dos acontecimentos,
Otacílio de Azevedo escreveu suas crônicas já passados nltli
tos anos dos fatos narrados, guiado pela memória. O
•
I I
I•
I
ta
f
z então conviver em seus textos dois momentos dis-
' 'ti11tos do 11arrador: o 1110n1et1to elos acoi1tecin1entos e o
1110-mento da escrita que narra os aconteci1110-mentos. Assim, no
instante em que escreve tenta ressuscitar os sentimentos que
viveu quando os fatos eram seu presente, agregando, po
rém, a esses sentimentos sua experiência do momento da
escrita. Importa ressaltar que o narrador é personagem das
crônicas que revelam não só os acontecimentos mas sua
in1ersão nos fatos narrados. Se, ao narrar os acontecimentos
do momento de sua chegada a Fortaleza, prevalecem suas
sensações de estranhamento e perplexidade diante da vida
agitada da capital que lhe parecia grande e moderna, ao fi
nal da crônica, percebe a armadilha da memória e já se refe
re a Fortaleza como: "Pobrezinha descalça, ainda, mas já
sonhando com os primeiros calçados de pedra- o calçamento
desigual e áspero, prenunciando as ricas futuras sandálias
de asfalto"
.5Nesta leitura de Fortaleza descalça, detenho-me
prefe-rencialmente nas crônicas da primeira parte do livro, intitulada
"A cidade e as lembranças", e que se refere a fatos, impres
sões, pessoas, costumes, sobretudo, da segunda década do
século XX, de
191 O
a
1920.
A primeira data, a da chegada do
cronista a Fortaleza, coincide com um dos grandes balizadores
da modernidade em nossa cidade - a inauguração do Theatro
José de Alencar- e a segunda, com o que também considero
um momento simbólico de ruptura com o passado: o da der
rubada do Cajueiro Botador (aliás, fato também narrado por
Abelardo Montenegro e Raimundo Girão, entre otitros cro
nistas), rito de passagem da Fortaleza risonha e n1oleque para
a Fortaleza moderna do progresso.
Essa década é, aliás, etnble111ática para as cidades bra
sileiras que tentavam ajt1star-se aos 111odelos de cidade'"'
a111e-254
•
ricanas e européias. "A cidade torna-se um organismo cada
vez mais complexo onde cada nova engrenagem é o fruto de
un1a alta tecniciclacle6�', diz Jean
-
Lottis Harouel, em sua Hi
s
tória
do
urbct11is11trJ.
Assi111, letnbr!:l o 1nesmo a·utor que a
"urbanização de Haussmann pretende dar a ilusão de uma
perfeita homogeneidade do espaço urbano"7
•Se em Paris ,
Louis Napoléon tentoLt implantar um urbanismo que sonhou
em seus nove anos d.e exílio em Londres, ou seja, a criação
de uma cidade ordenada, saudável e bela, no Rio de Janeiro,
Pereira Passos, que estudou urbanismo em Paris, tentou re
produzir o mesmo modelo de demolições e construções que
o Barão de Haussmann implantara na capital francesa, em
bora num processo a que se aplicaria a expressão de Liberal
de Castro - "hausmannização doce"8 , ou seja, processo
menos traumático do que o que se passara em Paris.
Paulo Linhares, em seu livro Cidade de água e sal, lem
bra que , "quando Adolfo Herbster inclui na sua planta um sis
tema de grandes bulevares, ele imitava o modelo parisiense
implantado pelo Barão de Hausmann"9• No entanto, o sociólo
go ressalta que não houve uma modificação radical no traçado
da cidade que mantém o desenho em xadrez criado por Silva
Paulet, agregando a ele uma espécie de cinta de bulevares: (as
atuais avenidas Imperador, Duque de Caxias e Dom Manuel).
,
E inegável, porém, que, no início do século XX, tentava-se
impor no Brasil um modelo progressista de cidade que, desde
o final do século XIX, assombrava a Europa.
Os dois acontecimentos balizadores da
'
segunda déca
da, a que anteriormente me referi, foram registrados pela
memória atenta de Otacílio de Azevedo nas crônicas "A inau
guração do Teatro José de Alencar" e " O 'Caj tleiro
Botador'". Como artista plástico que era, o cronista descre
ve todos os detalhes de pinturas, desenhos e outros
ele111et1-•
I
,
tos de decorações que adornavam o teatro e reconstrói na
memória a noite de
17
de setembro de
191
O,
dia da inaugu
ração artística dos palcos com a peça O dote de Artur Aze
vedo pela Companhia de Operetas Leopoldo Fróes e Lucila
Pérez.
o
segundo acontecimento, a derrubada do cajueiro,
é
narrado de forma a que se possa entender a importância dessa
árvore na cultura da cidade e se possa, assim, aquilatar
0prejuízo representado por sua perda.
Recordemos com Otacílio o papel do cajueiro no que o
cro-nista considerou "a maior festa popular da Fortaleza Antiga" :
Era o Cajueiro dos mexeriqueiros, dos desocupados ... mas também de muita gente boa. No dia primeiro de abril, feriado naci onal da mentira , juntavam-se ali dezenas de pessoas - homens da sociedade, plebeus, pequenos comerciantes, brancos e pretos,
en
fim, toda casta de gente que lia cartazes pregados no tronco nodoso do cajueiro. Era uma gargalhada ininterrupta que vibrava,
repercu-tindo por toda a avenida
7
de Setembro10•O cronista narra o processo de eleição do maior
potoqueiro da cidade: realizava-se um simulacro de eleições
políticas, com chapas de candidatos, bandeirolas, bombas,
foguetes, banda de música e, até, pancadaria .. Nas palavras
de Otacílio:
.
... à noite, o nome vitorioso era colocado no cajueiro .. havendo dis cursos, aplausos, urros, os mais calorosos vi v as sob estrépidos
de
palmas.Em
1920,
o prefeito Godofredo Maciel, num gesto frio e desumano�mandou que cortassem o cajueiro botador. Houve um levante surdo contra o desalmado prefeito.11
Na crônica "O Oitizeiro do Rosário,, ao narrar ot1tra
derrubada de árvore, a do célebre oitizeiro que se situaYa
atrás da igreja do Rosário, Otacílio explicita que o ato re
presentava uma ruptura com o passado, ao con1e11tar:
Mandara abater a nobre árvore o prefeito Álvaro Wcyne�
de-256
I
---�---:;
pois de - magro consolo! - mandar tirar-lhe uma fotografia_.
�
cre ditamos que o ilustre edil sofreu também ao tomar essa dec1sao.O
verdadeiro algoz d{) Oitizeiro foi o progresso, en1 no1ne do qua] se•
cometem tantos cr1n1es ...
O velho Oitizeiro já não era n1ais que um intruso, uJn trambo]h() que impedia o en1beleza1nento da cidade que crescia. Começavam a apa recer os automóveis que deveriam transitar por todas as artérias da
cidade.
A queda do Oitizeiro do Rosário marcou o desmoronamento de mais uma tradição para dar lugar às correrias desenfrea,das dos
novos habitantes da pacata urbe- os bêbados de gasolina! 12
Ao contrário do que preconizava na época registrada
por Otacílio, o urbanismo tenta, hoje, reabilitar a cidade
antiga. O conhecido planej ado r urbano Sir Patrick Geddes
13
realça que é preciso conhecer a história e a literatura de
uma cidade para compreender seu espírito e poder planejar
"'
seu redimensionamento urbano sem desfigurá-la. E
possí-vel mesmo notar, em muitas cidades brasileiras, a força dessa
nova tendência urbanística que, felizmente, tenta recuperar
os traços do passado , antes negligenciados. Nesse sentido,
acho que as crônicas memorialísticas de Otacílio de Aze
vedo e as de outros escritores de Fortaleza deveriam ser
leitura obrigatória para nossos planejadores urbanos desde
a época de sua formação nas escolas de Arquitetura.
As crônicas de Otacílio, repito, registram especialmen
te a segunda década do século
XX,
anos da juventude do cro
nista em Fortaleza e momento de transformações na cidade que
entrava, com atraso, no chamado século do progresso. O cro
nista tem a sensibilidade de perceber o momento dessas mu
danças ao registrar suas reminiscências de Fortaleza.
Além do que chamei de fatos balizadores da
modernidade em Fortaleza, como a inauguração do Theatro
José de Alencar e as derrubadas de árvores que pertencian1
•
I
a derrubada do Café Riche, onde se reuma a mte]ectuahdade
fortalezense, para a construção do Excelsior Hotel, com oito
andares ( "o maior prédio de alvenaria do mundo- segundo
dizem",
14),
a inauguração do Cine-teatro Majestic, em uma
de suas crônicas mais risonhas, em que transparece sua veia
cômica e seus dotes de narrador ágil.
Depois de relatar que, ao realizar o seu maior sonho
de rapaz - possuir e usar uma calça de flanela creme e um
paletó de casemira azul marinho - , acontecera-lhe o desas
tre de derramar tinta na roupa e ter que mergulhá-la em ga
solina para limpá-la, Otacílio conta sua ida ao Majestic na
sessão de inauguração, com essa mesma vestimenta:
À
noite, lá eu estava presente à inauguração, acompanhadodo pintor Gerson Faria, meu amigo inseparável. Quando entramos, o cheiro de gasolina que se elevava do meu paletó, espalhou-se pelo salão revestido de espelhos e de flores. Toda a fina flor da socieda de cearense ali se encontrava e notei que algumas pessoas começa vam a tossir discretamente. E, coisa estranha, eu mesmo comecei a sentir cócegas na garganta. Entramos no salão de espetáculos. Gér son, sabedor de minha infelicidade, ria à socapa. Sentou-se do meu lado um velhinho que me olhou de esguelha e. pouco depois, per guntou com voz sumida: 'O senhor está sentindo um vago cheiro ... não sei bem de que?' Levei o lenço ao nariz e tossi levemente.
E
uma necessidade de tossir forte me dominou. Uma espectadora, sen tada à minha frente, começou a reclamar contra o desleixo da casa de espetáculos que, na sua inauguração, se apresentava assim. 'Foi bem um carburador que deixaram aberto' - sentenciou outro. Quem quer que olhasse para mim nunca acreditaria que o causador de tudo
aquilo era o meu lindo paletó, obra-prima do Santa Rosa"15•
A maior parte das crônicas de Otacílio centra-se na
retomada do passado, ou, utilizando o títt1lo de t1n1a delas,
das "coisas antigas", no intuito de preservá-las do esqueci
mento. Deste modo, relembra o Cine1natógrafo Júlio Pinto
I
•
(pioneiro do cinema falado com o sistema Vitaphone, atra
vés de discos gravados 'que começavam a rodar no momen
to em que tinha início a fita'). Conta-nos Otacílio:
"Lembro-me de que, certa vez, uma fita já bastante avariada foi levada á tela. Como não houvera substituição dos quadros avari ados, no melhor momento do idílio, a bela estrela começou a falar •
com voz de homem e o fogoso galã em voz de contralto. Isso fez a
delícia da arraia-miúda, sempre atenta à comicidade"16; o café do Pedro Eugênio que atendia em altas horas da noite aos seresteiros; os cabriolés que Norberto Golignac construía com suas próprias mãos e que, no dizer de Otacílio, "muito serviam à nossa população como meio de transporte e de recreio"17; os carnavais com seus carros ale
góricos; o acendedor de lampiões:
Ao cair da tarde, o acendedor de lampiões surgia., com uma vara comprida a acender, um por um, os combustores de caixas retan gulares, dentro das quais se incendiavam ao contacto do cotó de vela ou fósforo, os bicos de acetileno, resguardados por camisetas apro priadas. A praça adquiria, assim, um aspecto poético e agradável.
Havia silêncio que ajudava o recolhimento e o repouso do cé rebro - silêncio este apenas interrompido pelos risos das crianças ou o pregão de um vendedor de guloseimas. Nem um apito, nem uma buzina
antipática de automóvel vinha perturbar a nossa tranqüilidade ... 18
O Passeio Público, tão decantado por quase todos cronistas da cidade, também merece páginas de reminiscências de Otacílio, intituladas de "Elegia ao Passeio Público":
O Passeio Público era uma ampla praça dividida em três par tes iguais. A primeira era a Caio Prado, onde fervilhava a fina· soci edade local; a parte do meio era chamada Carapinima, destinada ao
pessoal da classe média e onde a Banda da Polícia Militar executa va operetas e valsas vienenses. A terceira era a Avenida Padre
Mororó, freqüentada pela ralé- as mulheres da vida, os rufiões e os operários pobres ...
O Passeio era um logradouro ornamentado com muito bo111 gosto e onde havia uma porção de belas estátuas vindas da Europa.
259
I
I
I
•I
I
I I
• •Algumas delas, que escaparam á sanha de certos prefeitos,
continu-outras tomaram rumo ignorado - como que se envolveram nas am.
dobras do tempo que passou ...
Havia, ainda, uma bela coleção de jarros japoneses, de faiança e de sevres, sobre colunas artisticamente erigidas. Em pisci nas de águas límpidas, nadavam peixes multicores.19
o
cronista também nos oferece um detalhado retrato
da Praça do Ferreira:
Na praça propriamente dita, até
1920
aproxima�amente,er-guiam-se cinco artísticos quiosques que abrig
�
vam quatro cafés e um servia de posto de fiscalização da Companhia de Luz. No centroda praça, rodeada por colunas de concreto e grades de ferro, ficava a Avenida ou Jardim
7
de Setembro. Ali existiam também os céle bres frades de pedra, com argolas, onde se amarravam os animais; eram feitos de pedra de lioz, vinda de Portugal. Havia também , nocentro do jardim, uma caixa d'água e um cata vento, que puxava a
água para aguar os jardins.
Depois, os quiosques foram retirados e surgiu em seu centro
um coreto, onde a banda da Polícia executava às quinta-feiras suas
animadas retretas. 20
Depois de descrever os quatro cafés da praça - Café
Java, Café do Comércio, Café Elegante e Café Iracema, o
cronista volta ao tempo de sua escrita: "Foi essa a Praça do
Ferreira que conheci e que vi modificar-se com o correr dos
tempos, até a construção da coluna da hora, antes de se fa
zer aquele aleijão que lá está e que é repudiado por quantos
têm oportunidade de se pronunciar a respeito
. . ''21Referia-se à praça construída na década de
60
e que,
ao não atentar para os valores ct1lturais e históricos da cida
de e, ainda, não apresentar valor estético e funcional, foi
rejeitada por todas as variadas parcelas da população de
Fortaleza e que, hoje, felizmente, foi substituída por outra
que relembra, através de várias referências - os bat1cos, a
,
coluna da hora, os postes de iluminação -, a história desta
praça.
Ainda entre as reminiscências culturais da cidade,
Otacílio inclui o banco da opinião pública, a !apinha do
velho Paula Barros, a
s
s e r e n at a s ,
o s c o n g o s ,
fandangos e reisados. Em suas palavras:
Em
19 18
foi fundada, na Praça do Ferrei r a, a Sociedadedos Banquistas, ou seja, o Banco, pois os associados apropria ram-se de um banco da praça situado defronte ao Majestic Palace.
Ali se reuniam velhos respeitáveis - advogados, farmacêuticos, políticos, comerciantes, escritores, poetas, artistas pintores e de teatro, além de músicos.( ... ) Com o decorrer do tempo, aquele seio de Abraão foi-se desfazendo sob o estrepitoso barulho das buzinas agudas e irritantes dos automóveis e a gritaria dos
chauffeurs. O progresso sufocava, aos poucos, aquelas vozes
[
...]
O Banco foi mais uma tradição tipicamente de Fortaleza que de sapareceu para sempre, engolida em nome do que se convencionou
chamar de progresso ... 22
Diferentemente desta constatação amarga do
pas-sado vencido pelo progresso, a crônica "A La
:P
inha do Ve
lho Paula Barros" é mais um ameno exercício de saudade
e nostalgia:
A lapinha era semelhante a muitas outras, mas a diferen ça residia no fato de ser , toda ela, movimentada. Na manjedou ra, o Menino Jesus movia as p erninhas e, às vezes, choramingavaLevantava os bracinhos rosados para sua Santa Mãe sob os olhares complacentes de São José. A vaca berrava, o car
neiro balia, o jumento zurrava e o galo. Batendo as asas, lançava alto o seu co-co-ro-có.
Um velho engenho rodava as almanjarras puxada por uma junta de bois tardas e sonolentos. No alto, urna linda estrela de papel prateado guiava os Três Reis Magos- Melchior, Gaspar e Baltasar, que ofereciam ouro, incenso e mirra .
.
Mulheres lavavam roupa e as estendiam em barbantes
'
As vezes, toda aquela engrenagem emperrava e era um
deus-nos-261
•
•
acuda para 0 velho Paula Barros, que tratava de consertar tudo
na hora, sob as risotas impertinentes dos visitantes.
Um velho gratnofone fazia a parte musica], t<.1cando valsas
chorosas à luz de meia dúzia de lampiõesde acetilenc).
Tudo isso me vem à memória milagrosamente, como num
pre-sente divino. E eu penso estar ali, ao lado dos meus velhos e queridos amigos, alegre e descuidoso, com a cabeça cheia de projetos e o cora
ção batendo forte, jovem, cheio de inabalável esperança . .
Y
Transcrevi trecho tão longo desta crônica com o
desejo de também oferecer a vocês e a mim mesma a de
licadeza dessa cena rememorada por Otacílio.
Ao relembrar as serenatas antigas, Otacílio inclui
se como personagem de uma patuscada de seus jovens
anos: "Uma noite, sob límpido e claro luar de agosto, sa
ímos em um bando de alegres folgazões, com violões ,
•
flautas, bandolins e cavaquinhos", conta Otacílio. Depois
que vários moços, entre eles o próprio cronista, canta
ram, com "muito sentimento" e "aprimorada expressão",
às janelas das amadas .... Demos a voz ao cronista:
Quando chegou a vez de um rapaz chamado Fenelon, a coisa mudou de figura. Começou por pigarrear e dar um tom que pareceu aos músicos impossível de pegar. Todos se esforçaram, certos de que salvariam, embora, a situação. Eram músicos acostumados a . acompanhar valsas e schottishes mais difíceis, de Ernesto Nazaré,
Zequinha de Abreu e Chiquinha Gonzaga. Antes que os instrumen tos pegassem o tom, Fenelon abriu uma boca imensa e, com toda a força dos pulmões, começou:
Perdão Emília se roubei-te a vida '
Se fui impuro, fui cruel, ousado,
Perdão Emíia se manchei-te os lábios" Perdão Emília para um desgraçado ...
Mas parou por aí. Gritos e berros, Ian1úrias, reclat11ações,
262
insultos troaram. Não sei como, mas ouviam-se vidros quebrados, móveis saindo, soluços c 1naldiçoes e u1n barulho infernal que nos
pareceu uma tempestade. Um verdadeiro pandemônio. s
�
.formoudentro da casa e, antes que se abrisseJn as suas portas, InJcJamos a fuga, às carreiras, dentro da noite, agora escura como se um mundo de alcatrão se houvesse derramado sobre aquela rua desprezada de
Deus.24
Para encurtar a história lhes direi que, na carreira , o
cronista pisou em um violão que recolheu e depois pôde de
volver a um infeliz amigo que já o tinha pedido emprestado
a outro amigo que o conservava como única lembrança do
pai já falecido.
. / .
Nesse momento, em que rememoramos o aniversario
de nossa cidade, sem muitos motivos para festejos, ao vê-la
assaltada pela violência e aviltada pela miséria, vale lem
brar seus dias de tranqüilidade, quando era ainda possível
ver e viver tais inocentes patuscadas.
Da mesma época, Otacílio lembra tradições
popula-. / - .
res que Ja nao existem:
Os Congos, Fandangos, Reisados e, ainda, os Pastoris, tive ram fim, pelo menos como instituição tradicional em Fortaleza, como ocorria por volta de
1918.
Foram essas as grandes diversões populares dos tempos dos nossos pais. Seis meses antes do início dessas representações, há se inicia vam os ensaios. Os sons dos tambores, zabumbas e maracás eram ouvidos nos quatro cantos da cidade.
Freqüentei, com meus amigos mais chegados, esses festejos folclóricos que se prolongavam até as altas horas de madrugada.
Em grandes terrenos, armavam-se palcos nos quais se representa vam as estórias e lendas entremeadas de cânticos e cenas empolgan tes, ao som de uma cadência de ritmos envolventes. O Rei e as prin cesas, envoltos em rendas e cetins, impunham sua majestade e gran deza pelos ares donairosos que assumiam. 25
Depois de descrever com detalhes as festas gravadas
•
I
•
na memória, Otacílio retoma, como o faz em quase todas as
crônicas, seu presente para lamentar a perda dessas tradições:
Com o decorrer do tempo tudo aquilo se acabou. A chegada
do rádio, com seus programas dançantes- 'os bazares' -seus anún
cios gritados e permanentes, tudo mudou. Acabaram os reisados,
congadas, fandangos. Fala-se muito de que ainda existem aqui e além,
mas, na verdade, acabaram de uma vez. O que resta é a propaganda dos departamentos de turismo que procuram a todo custo e sem re sultado, reviver essas festividades legítimas, as quais não mais exis tem porque não têm mais razão de existir. Tudo que se fizer nesse sentido será simples caricatura daquilo que era feito com intenção verdadeiramente artística e por necessidade orgânica de alimentar o
espírito popular.26
É
interessante notar como o cronista teve plena
luci-dez quanto à dinâmica da cultura e rejeitou os simulacros da
realidade tão comuns, por exemplo na cultura americana, e
preferiu conservar o passado através da escrita. Assim, tenta
•
salvar o passado descrevendo minuciosamente aquilo que
deixava de existir, ao mesmo tempo em que registra os sig
nos de modernidade que vão surgindo. Incluindo-se como
personagem no cenário que desenha da Fortaleza dos anos
1 O
a
20
, dá maior autenticidade e graça aos fatos narrados em
1
apessoa, não deixando, porém, de também incluir-se enquanto
senhor da escrita e da rememoração, com os comentários a
posteriori dos fatos. Ao inscrever costumes, espaços, pesso
as que já haviam desaparecido no momento de sua escrita ou
estavam prestes a desaparecer, encontra o modo de perpetuá
las através da escrita que, aliás, não viu publicada em livro
mas que sobreviveu à sua morte.
A exemplo de Otacílio, seus filhos, de diferentes nlo
dos, têm percorrido o mesmo caminho de an1or a Fortaleza e
vêm contribuindo para a preservação e análise de sua
n1en1ó-•
• A
rta, como o pesquisador Miguel Angelo Azevedo, o Nirez, co111
264
(
seus preciosos arquivos de dados sobre a cidade e de imagens
fotográficas da cidade, e o poeta, professor e maior pesquisa
dor de nossa literatura, Sânzio de Azevedo, que se tem debru
çado sobre a letras cearenses, em especiaJ a de Fortaleza, de
que é exemplo
A
Padaria E.�piritual e o Simbolismo no Ceará,
entre tantas outras obras. Aos filhos de Otacílio dedico minha
incipiente leitura de Fortaleza descalça e a todos recomendo
esta simpática e instigante coletânea de crônicas.
1
BRISSAC, Nelson. O olhar do estrangeiro. ln: NOVAES,
Adauto (Org.)
.O
olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1989,
p.363.
2
AZEVEDO, Otacílio. For taleza descalça. Fortaleza: Edi
ções UFC/Prefeitura Municipal de Fortaleza, 1980, p.23.
3
Idem, ibidem.
•4
Idem, ibidem.
5
Idem, p.26.
6
HAROUEL, Jean-Louis. História do urbanis1no. Cam
pinas: Papirus, 1990.
7
Idem, p.113.
8
Apud LINHARES, Paulo. Cidade de água e sal; por uma
antropologia do L itoral N ordestte sem cana e sem
açúcar.Fortaleza: Ed. Fundação Demócrito Rocha, 1992, p.186.
9,
Idem, p.185.
10
Op.Cit.,p.28.
11Idem ibidem.
I
•
12 Idem,
p.l18.
..
13