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Negociação de sentidos : violência e direitos da mulher na prática de ONGs em Marrocos

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Academic year: 2021

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Rebecca de Faria Slenes

Negociação de Sentidos: Violência e Direitos da Mulher na Prática de

ONGs em Marrocos

CAMPINAS

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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Rebecca de Faria Slenes

Negociação de Sentidos: Violência e Direitos da Mulher na Prática de

ONGs em Marrocos

Orientadora: Profª. Drª. Guita Grin Debert

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Antropologia Social

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação, defendida pela aluna Rebecca de Faria Slenes, orientada pela Profª. Drª. Guita Grin Debert e aprovada no dia 26/11/2014.

CAMPINAS 2014

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RESUMO

Essa dissertação tem como objetivo analisar as práticas de ativistas marroquinas dentro de organizações não governamentais (ONGs) que prestam atendimento a mulheres vítimas de violência. Com base em pesquisa etnográfica realizada em uma ONG marroquina de direitos da mulher e em entrevistas com ativistas em diferentes regiões do país, analiso as experiências e estratégias de mulheres trabalhando dentro de ONGs no combate à violência contra a mulher em Marrocos. Interessa explorar como noções de violência e direitos são concebidos e instrumentalizados por essas mulheres e como elas traduzem e negociam conceitos de direitos para as populações com quem trabalham. Refletindo sobre o papel das ativistas como mediadoras de uma linguagem de direitos entre a população, instâncias governamentais e órgãos financiadores internacionais, procuro mostrar que o trabalho delas é influenciado por fatores diversos, incluindo discursos religiosos e de direitos humanos. Atentando para as diferenças entre ONGs feministas e ONGs islâmicas, a dissertação realça também os pontos em comum nas práticas desenvolvidas por essas associações e argumenta que tanto uma abordagem jurídica em prol dos direitos como uma abordagem que protege a família não dão conta dos dilemas enfrentados pelas ativistas. A pesquisa busca contribuir para reflexões antropológicas sobre como fluxos de direitos de caráter global são articulados em contextos específicos.

Palavras chave: direitos, violência contra a mulher, Marrocos, feminismo, Islã

ABSTRACT

The aim of this master‟s thesis is to analyze the practice of Moroccan activists working in nongovernmental organizations (NGOs) to support women victims of violence. Based on an ethnographic study in an NGO that works with survivors of violence and on interviews with activists in different regions of the country, I analyze the experiences and strategies of women working inside NGOs to fight violence against women in Morocco. This research intends to observe how notions of violence and rights are conceived and instrumentalized by these women, and how they translate and negotiate concepts of rights to the populations that they work with. Reflecting on the role of activists as mediators of a rights-based language between local populations, governmental bodies and international human rights agencies, I attempt to show that their work is influenced by a diversity of factors, including religious and human rights discourses. Attentive to the differences between liberal feminist NGOs and Islamic NGOs, the thesis also highlights the points in common in the practices developed by these associations and argues that both a judicial approach in favor of rights as well as an approach that protects the family, do not account for the dilemmas faced by the activists. This research hopes to contribute to anthropological reflections on how global rights-based networks are articulated in specific contexts.

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ... xiii

LISTA DE SIGLAS ... xv

INTRODUÇÃO ...1

Organização dos capítulos ... 7

CAPÍTULO I: CONSTRUINDO DIREITOS E VIOLÊNCIA ...9

Primeiras impressões no campo ... 9

Construindo Direitos ... 15

Transformação da violência contra a mulher em uma violação de direitos humanos ... 15

Discurso de direitos em Marrocos ... 17

Fluxos de direitos humanos: entre o global e o local ... 18

Etnografando processos transnacionais ... 20

Movimentos e associações em torno da questão da mulher em Marrocos ... 22

Feminismo, religião e direitos: um espectro associativo ... 22

ONGs feministas e islâmicas ... 24

Mudawana: origem e reivindicações ... 26

Estado e Lei da Família ... 30

Entre direitos e cultura: a questão da mulher no mundo árabe-islâmico ... 32

Construindo violência ... 36

Violência doméstica ... 36

Violência estrutural ... 39

Traduzindo direitos e violências ... 41

CAPÍTULO II: MEDIAÇÃO ENTRE A CLIENTELA E AS INSTITUIÇÕES DE JUSTIÇA ...43

Um dia na Associação Warda ... 43

As ativistas e a rotina de trabalho ... 45

Violência como violação de direitos ... 47

Casamentos sem contrato como violência ... 48

Limites da lei ... 52

Disputas de gênero ... 56

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CAPÍTULO III: AS SESSÕES DE ESCUTA E A JUDICIALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA 61

O sofrimento e os direitos humanos ... 61

A violência em números ... 63

A violência sentida ... 66

Escolhas pessoais: entre pressão familiar e limites da lei ... 71

Algumas considerações sobre a lei: pensão divórcio e reconciliação ... 72

Limites de ajuda: barreiras linguísticas, diferenças sociais e a falta da família ... 76

Transformações na família e na sexualidade ... 81

CAPÍTULO IV: AULAS DE EDUCAÇÃO LEGAL E DE DIREITOS HUMANOS: EMARANHADOS INSTITUCIONAIS E SABER SOBRE OS DIREITOS ...85

Desconstruindo fluxos transnacionais através de emaranhados institucionais ... 87

Global Rights e a promoção dos direitos humanos internacionais ... 89

Global Rights em Marrocos e a relação com a Associação Warda ... 90

Traduzindo saberes sobre os direitos ... 96

Estratégias de negociação ... 101

Negociação de sentidos e diferentes entendimentos ... 106

Honra e virgindade ... 109

Prostituição e falta de direitos ... 113

CAPÍTULO V: FAMÍLIA, RELIGIÃO E TRANSFORMAÇÕES EM ATIVISTAS FEMINISTAS E ISLÂMICAS ...117

Família, direitos e violência na perspectiva de ativistas em ONGs islâmicas ... 117

Linguagens religiosas e de direitos ... 123

Transformações na vida pessoal das ativistas em ONGs feministas ... 127

Novos saberes e novas subjetividades ... 127

Cuidado dos filhos e visões sobre casamento ... 130

Tensões e transformações nas relações familiares ... 133

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 137

ANEXO: Conjunto de acordos e tratados internacionais dos Direitos Humanos ... 141

GLOSSÁRIO ...143

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Dedico este trabalho as minhas avós, Sonia e Maxine, que me ensinaram a fé e a ver beleza em tudo

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AGRADECIMENTOS

Não consigo nomear todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram em minha trajetória e para que essa dissertação fosse realizada. Há, no entanto, alguns a quem não posso deixar de manifestar o meu apreço e sinceros agradecimentos:

À professora Guita Grin Debert, interlocutora e leitora solícita e sensível, por me acompanhar e estimular em cada etapa do processo de pesquisa, sempre com dedicação, paciência e entusiasmo.

À professora Souad Slaoui pelo caloroso acolhimento e acompanhamento da pesquisa de campo durante os três meses em Marrocos. À Mohamed Yachoulty e Souad Belhorma pelas importantíssimas sugestões e indicações de ONGs.

Aos membros da banca de qualificação pela leitura minuciosa e sugestões inestimáveis que levaram ao presente trabalho, e por terem aceitado o convite para a banca de defesa. Muito obrigada professora Heloisa Buarque de Almeida e professora Francirosy Campos Barbosa Ferreira!

À professora Maria Cardeira da Silva pelo incentivo durante o V Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia (APA) e por aceitar a participar da banca de defesa, mesmo não podendo estar presente pessoalmente. Meus sinceros agradecimentos!

A todos os professores do IFCH, em especial ao Omar Ribeiro Thomaz, Ronaldo R. M. Almeida, Nádia Farage, Mauro Barbosa de Almeida e Bibia Gregori: obrigada pela inspiração e desafios intelectuais. E a todos os funcionários, em especial à Maria José, Márcia, Sônia e Reginaldo: agradeço a enorme atenção e paciência.

Ao Anthony Chase, Malek Moazzam-Doulat e à Alexandra Puerto, por fomentar meu interesse por pesquisa na graduação. À Franci Ferreira que, através do GRACIAS (Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes), estimulou minhas indagações, desde o início, e me incentivou a fazer o mestrado. À Heloísa Pontes e à Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, pelas preciosas sugestões que foram fundamentais para o meu direcionamento e para a elaboração das questões de pesquisa. À Mariza Corrêa e à Ángeles Ramírez, pelo interesse na pesquisa e incentivo.

À Cat, companheira de todos os momentos, pela força e amizade. À Mari, pela delicadeza e positividade sempre. À Ana Elisa, pelo interesse sincero. Ao Adriano, pela ótima companhia e a inteligência admirável. Ao Thiago, pela inspiração contagiosa com a qual escreve e fala sobre seu avô. À Lis, por sempre alegrar o dia. Ao Liniker, pelas sugestões de leitura e conversas instigantes. À Ana, que escreve e encena poesia. Ao David, que sonha comigo pela paz. Ao

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Lucas, por compartilhar da yoga e da meditação. Ao Christol, pelos deliciosos almoços vegetarianos. Ao Hugo, por sempre me fazer rir. À Bruna, que tem o mais belo sorriso e que faz todos se sentirem especiais. Ao Vitor e Luciano, os mais carinhosos e os mais engraçados. À Berê, que mesmo de longe, consegue estar perto. Ao Julian, pela ajuda infinita. À Shamaila, exemplo de dedicação e amiga em todas as horas. A todos vocês e ao Mauro, Ernenek, Patrik, Inácio, Rodrigo, Marco, Juçara, Edna, Paula, Gabor, Anita, Fernanda, Vanessa, Léo, Steve, Hawa, Arthur, Gabi, Berhman e Marie Claire: obrigada pelo carinho!

À Sabrina, Daniela, Gláucia, Paola, Talita, Amanda, Tatiana e ao Guilherme, pelas leituras generosas, as sugestões importantíssimas e pelo incentivo ao longo desse processo.

Às meninas do GRACIAS, em especial à Isabel, Flávia, Patrícia, Luana e Karina, pela atenção e pelas leituras estimulantes e discussões interessantes.

À Najwa, Meryem, Khadija, Nina, Mohsine e Mohammed pela imensa ajuda na transcrição e tradução das entrevistas em árabe. E à Ana Carolina pela revisão do português.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado São Paulo – FAPESP e ao CNPq pelas bolsas e apoio financeiro que permitiram essa pesquisa.

Às mulheres lutadoras e inspiradoras, interlocutoras dessa pesquisa, que compartilharam comigo de maneira tão especial o seu tempo e os seus sonhos. Sem elas, esse trabalho não seria possível. E àquelas que, ao longo de minhas estadias em Marrocos, foram amigas, irmãs e mães: Shaimae, Latifa, Rakia, Loubna, Sabah, Basma, Kenza, Rim, Meriem, Zaynab, Baraka, Fatima, Amina, Khadija, Laila, Sherifa. É impossível retribuir a generosidade que vocês me mostraram.

Às amigas de longa data - Talia, Lu, Bru, Janie, Thais, Yasmin, Joana e Parisa - que sempre me apoiaram. E à Fernanda, Thomaz, Lucélia, Eliana, Virgínia, Bianca, Ursula, Mohamed, Katija, Jamila, Eva, Marriam, Batool, Antonio, Niaz e Lauren pela compreensão e pelo interesse na pesquisa. Agradeço do fundo do coração à Suryyia, Sherrin e Jonas, pelo amor e incentivo em tantos momentos, e em especial ao Jonas, que me lembrou do mais importante.

À Mara, pelo carinho e cuidado ao longo de tantos anos. À Bia, por sempre acreditar em mim. Ao meu irmão, Gabriel, pelo amor e compreensão. Agradeço também a todos os familiares e amigos que me acompanharam - de perto e de longe - nesse caminho, e principalmente a meus pais, Eliana e Robert. Fonte de apoio incondicional e grandes modelos de humildade, paciência, excelência e amor, foram eles que me permitiram chegar aonde cheguei.

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LISTA DE SIGLAS

ADFM Association Démocratique des Femmes du Maroc - Associação Democrática de

Mulheres do Marrocos

ANARUZ Réseau National des Centres d‟Ecoute des Femmes Victimes des Violences - Rede

Nacional de Centros de Escuta de Mulheres Vítimas de Violências

AMVEF Association Marocain de lutte contre la violence a l‟egard les femmes - Associação

Marroquina de luta contra a violência contra a mulher

CEDAW Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher

DDHI Declaração dos Direitos Humanos no Islã, ou Declaração do Cairo sobre Direitos

Humanos

FDHM Fonds Pour Les Droits Humains Mondiaux - Fundo Mundial para os Direitos Humanos

JECrim Juizados Especiais Criminais

IHRLG International Human Rights Law Group - Grupo Jurídico Internacional de Direitos

Humanos Internacional

MRA Mobilising for Rights Associates - Associados Mobilizando para os direitos

ORCF Organisation du renouveau de la prise de conscience feminine – Organização da

Renovação e da tomada de consciência feminina

PJD Partie de la Justice et du Développment – Partido da Justiça e do Desenvolvimento

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INTRODUÇÃO

Existem hoje em Marrocos várias organizações não governamentais (ONGs) lideradas por mulheres trabalhando com diversas questões relacionadas à mulher, como, por exemplo, direitos humanos, desenvolvimento, educação e cultura, bem estar da família, participação política e luta contra a violência. Essa pesquisa discute o trabalho de mulheres dentro de uma pequena parte dessas ONGs: àquelas que oferecem apoio às mulheres vítimas de violência e que se mobilizam para combatê-la. A maioria dessas organizações utiliza a abordagem dos direitos humanos, apoiando-se em documentos internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW1), que o Marrocos ratificou em 1993. Como exatamente é promovida essa abordagem de direitos? A partir de observações etnográficas dentro de ONGs marroquinas que lutam contra a violência, observo como noções de violência e direitos são instrumentalizadas pelas ativistas e como elas dialogam com a clientela e com instituições governamentais e órgãos internacionais. O objetivo central é refletir sobre o processo de tradução da ideia de direito - um conceito supostamente ocidental, supostamente universalizante – para um contexto específico em Marrocos. Considero ativistas todas as mulheres nesse estudo que se mobilizam social e politicamente dentro de organizações não governamentais para promover os direitos da mulher e o fim à violência contra a mulher. Atendendo mulheres vítimas de violência e dialogando com instituições jurídicas, com o governo e, às vezes, com órgãos financiadores internacionais, elas estão na “linha de frente2” do combate à violência contra a mulher.

Como parte dessa pesquisa3, passei cinco meses (maio a outubro de 2013) em Marrocos observando o trabalho de ativistas dentro de diferentes ONGs, entituladas localmente como

1 O CEDAW (Convention on the Elimination fo All Forms of Discrimination Against Women) foi codificado em

1979 pela Assembléia Geral da ONU e assinado por 180 países. Estados que assinam esse documento precisam incorporar a igualdade de gênero dentro de suas leis nacionais e anular as leis que discriminam a mulher.

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O termo “linhas de frente” (frontlines) veio do título do livro, Anthropology at the Front-Lines of

Gender-Based Violence de Wies, et al. O livro aborda as perspectivas de ativistas e pesquisadores em organizações que

trabalham no combate à violência contra a mulher. Achei esse termo interessante para pensar o papel das interlocutoras nessa pesquisa, pois elas lidam diariamente com mulheres vítimas de violência, assim como vários outros atores, e enfrentam uma série de dificuldades na tentativa de mudar as realidades sociais.

3 A pesquisa é parte do projeto de mestrado desenvolvido no PPGAS/IFCH da UNICAMP e foi possível graças ao

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associações (jem‟iat). Visitei, no total, 15 associações em diferentes regiões do país que atendem mulheres vítimas de violência, e conversei com 30 ativistas. A maioria dessas associações trabalha através do que elas chamam de um “referencial de direitos humanos”. Mas algumas visitas a ONGs que tem um “referencial islâmico” serviram de contrapartida, onde foi possível notar diferenças – assim como convergências – entre as estratégias de ativistas dentro desses diferentes tipos de associações4. Além disso, passei três meses observando e acompanhando diariamente o trabalho das ativistas em uma ONG que promove uma abordagem dos direitos humanos. Trata-se, portanto, de uma pesquisa qualitativa com uma abordagem etnográfica envolvendo entrevistas, conversas informais e observação de comportamentos.

Procuro mostrar o modo pelo qual as ativistas operam uma delicada negociação de sentidos entre a especificidade do contexto local e a abordagem transnacional dos direitos humanos no combate à violência contra a mulher. Argumento que as estratégias e visões das ativistas são influenciadas por fatores diversos, incluindo linguagens religiosas e discursos transnacionais de direitos, e que elas ocupam um lugar central em um complexo processo de tradução que produz novas concepções de direitos e de violência, assim como novas configurações de gênero. Atentando para as diferenças entre feministas laicas e feministas islâmicas, a dissertação realça também os pontos em comum nas práticas desenvolvidas por essas mulheres. Trata-se de mostrar que para as mulheres em ONGs feministas a ênfase está nos direitos, já para as mulheres em ONGs islâmicas, a ênfase está na reconciliação do casal e na promoção do bem-estar da família. Em ambos os casos, a religião é uma presença constante na relação entre as ativistas e sua clientela. O interesse da pesquisa é mostrar os dilemas envolvidos na tentativa de articular os significados da ideia de violência e de direito, propondo práticas capazes de minimizar o sofrimento do público que recorre a essas organizações.

exterior) da FAPESP e contou com o apoio da Professora Souad Slaoui da Universidade Dhar el Mahraz em Fez, Marrocos.

4 As visitas às associações islâmicas não estavam previstas inicialmente na pesquisa, mas depois de algumas leituras

bibliográficas sobre o tema, fiquei interessada em explorar de fato como essas ONGs funcionam. Tive essa possibilidade no campo. Discuto as observações referentes a essas ONGs no capítulo 5.

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As associações onde desenvolvi essa pesquisa se encontram nas seguintes cidades em diferentes regiões do país: Meknes, Ijmet5, Fez, Tetouan, Rabat, Salé, Casablanca e Marrakesh. As ONGs têm características diferentes entre si, mas todas trabalham com mulheres vítimas de violência. Listo elas por cidade: Initiatives pour la Protection des Droits des Femmes- IPDF e Aspirations Féminines em Meknes; Associação Warda6, Centre Multifonctionel pour la Femme e Association Badr em Ijmet ; Centre des Droits des Gens e Centre Saiss Multidisciplinaire pour l‟Insertion des Femmes em Fez ; Association Tawaza pour le Plaidoyer de la Femme em Tetouan) ; Association Démocratique des Femmes du Maroc (ADFM), Union des Actions Feminines (UAF) e Forum Azzahrae de la Femme Marocain em Rabat; Centre Wiam pour l‟accompagnement de la Famille em Salé, Association Marocain de Lutte Contre la Violence à l‟egard des Femmes (AMVEF) em

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Ijmet é o nome fictício dado à cidade onde fica a ONG em que passei três meses. Por ser muito pequena, a cidade não está no mapa, mas ela fica ao sul de Meknes, com cerca de 31600 habitantes (dados de 2012). O mapa usado está disponível no site <www.ephotopix.com> (2012).

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Trata-se de um nome fictício. Escolhi mudar o nome do local, como também da ONG onde fiz a maior parte da pesquisa, para preservar as identidades das mulheres que trabalham nela.

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Casablanca; Association El Amane pour le développement de la Femme e Association Ennakhil pour la Femme et l‟Enfant em Marrakesh.

Localizado no extremo noroeste da África, às margens da Europa, e considerado por muitos como parte do mundo Árabe, o Marrocos faz parte de todos esses contextos ao mesmo tempo. O país foi colonizado pela França (em um protetorado que durou de 1912 até 1956), assim como pela Espanha (com um protetorado de 1912-1956 na região norte do país), e mantém fortes ligações econômicas e sociais com a Europa. Mas, ao mesmo tempo, ele tem relações estreitas com países no Oriente Médio, compartilhando o Islã como religião oficial e o árabe como língua oficial. O Marrocos é liderado por uma monarquia que detém poder político e religioso. Grande parte da população vive em áreas rurais (em 2010 essa taxa era de 43.3%7) e o analfabetismo nessas áreas é alto, afetando especialmente as mulheres8.

Ativistas marroquinas de direitos da mulher travam sua luta dentro de um campo contestado por vários atores sociais. Os seus ideais por vezes convergem e por vezes se chocam com aqueles de agentes do Estado, da justiça e de grupos islamistas9. A Primavera Árabe e o maior envolvimento de mulheres marroquinas em movimentos sociais contribuíram para a crescente mobilização em torno dos direitos da mulher e da luta contra a violência no país (Belhorma, 2011)10. Mas feministas marroquinas vêm se mobilizando com força diante dessas questões desde pelo menos os anos 80. O foco do movimento feminista marroquino tem sido a mudança legal. Sua luta emblemática está na reforma do Código da Família, ou Mudawana, “que constitui o lócus de discriminação legal e civil contra a mulher11” (Sadiqi, 2008b: 329) e que regula tudo o que está ligado à família, como o casamento, o divórcio e a guarda dos filhos, entre outras coisas. A reforma de 2004 da Mudawana foi um marco para o país; ela trouxe um

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Morocco Statistics. Rural Poverty Portal. International Fund for Agricultural Development (IFAD). Disponível em: <http://www.ruralpovertyportal.org/en/country/statistics/tags/morocco> Acesso em: 20 junho 2014.

8 Em 2009, 56% da população era alfabetizada. Morocco Statistics. Rural Poverty Portal. 9 Movimentos que se organizam em trono do islã político.

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A Primavera Árabe em Marrocos foi conhecida pelo Movimento 20 de Fevereiro que teve forte inspiração em outros movimentos em países árabes-islâmicos. Liderado por jovens marroquinos através do uso de redes sociais, o movimento pediu reformas constitucionais e um governo mais democrático. Como resposta ao movimento, o Rei Mohamed VI convocou uma comissão para a reforma da constituição (de 1996). A nova constituição marroquina foi votada em referendum em julho de 2011. Ela prevê mais comprometimento com os direitos humanos e a necessidade de adequar as leis do país às convenções internacionais assinadas pelo governo, assim como um reconhecimento da igualdade de gênero (Global Rights, 2013). A relativa não violência do movimento comparada com outros movimentos em países árabes e a rápida resposta do Rei contribuíram para a noção de um “excepcionalismo marroquino” (Belhorma, 2011).

11 The Mudawana “constitutes the locus of the legal and civil discrimination against women”. Tradução própria.

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aumento na idade mínima de casamento de 15 para 18 anos, grandes limites para a poligamia e a facilitação do divórcio para as mulheres12. A reforma foi fruto de 20 anos de mobilização do movimento feminista, jogando para o debate público temas antes considerados sagrados, devido à inspiração religiosa da lei. Apesar de garantir igualdade para a mulher vis-à-vis o seu marido, a Mudawana de 2004 não tocou no assunto da violência doméstica, mas coletivos de ONGs vêm exigindo uma lei que criminalize a violência contra a mulher. O governo marroquino, na figura do rei Mohamed VI, tem driblado as pressões de grupos feministas e da comunidade internacional de um lado, e de grupos mais conservadores, especialmente os islamistas, de outro. Em novembro de 2013, foi apresentada a primeira proposta de uma lei que criminaliza a violência contra a mulher, a qual o governo vinha prometendo desde 2006. Mas, ativistas de direitos da mulher estão insatisfeitas, alegando que suas demandas não foram incluídas na proposta (Tahiri, 2014) e continuam exigindo mudanças legais.

Com o crescimento dos departamentos universitários de estudos de gênero e a proliferação de ONGs feministas em Marrocos desde os anos 80, existe um grande número de estudos sobre relações de gênero e sobre a situação da mulher no país. Algumas dessas pesquisas abordam a questão da violência e as mudanças no âmbito legal13, mas são quase inexistentes os estudos etnográficos sobre os discursos e práticas de ativistas dentro de organizações que lutam contra a violência. Este trabalho visa preencher essa lacuna, olhando as formas de ativismo dentro de associações de mulheres marroquinas, e, particularmente, como noções de direitos e de violência são construídas no processo de tradução entre diferentes atores. Partindo do pressuposto de que só podemos compreender movimentos feministas e suas ligações com o islâmico e o cultural através de fatores locais (Ramírez, 2006: 108), é importante conhecer um pouco sobre a história dos movimentos de direitos da mulher no país e sobre a influência de leituras religiosas nas leis que regulam as relações dentro da família. Porém, ao entrar nessas questões, não é meu objetivo discutir o que a religião islâmica ou seus representantes qualificados dizem sobre o Islã e nem fazer uma análise histórica sobre a questão da mulher no país.

12 As mobilizações em torno da reforma são discutidas no capítulo 1. 13

A maioria desses estudos sobre violência são produzidos por ONGs que trabalham com essa questão, como a AMVEF (Association Marocain de Lutte Contre la Violence à l‟égard des Femmes) e a ADFM (Association Democratique des Femmes du Maroc). Ver Benradi (2007) e Bordat (2004) sobre violência contra a mulher e a lei em Marrocos.

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Meu interesse em estudar essas associações em Marrocos se iniciou em 2010 quando estava em Fez com uma bolsa de pesquisa Fulbright14 observando o acesso das mulheres ao novo tribunal da família15 em casos de divórcio. Cheguei ao Marrocos em 2009 querendo entender melhor as mudanças sociais depois da reforma da Mudawana. Estudos mostravam que a falta de conhecimento sobre a lei, especialmente em áreas rurais, era uma das grandes barreiras para a sua aplicação. Foi então que comecei a me interessar pelo trabalho, crescente no país, de ONGs que promovem programas de orientação jurídica e educação legal para mulheres. Ao mesmo tempo, um estágio de um mês em uma ONG marroquina de direitos humanos (o Centre des Droits des Gens) e visitas à nova célula para mulheres e crianças vítimas de violência no tribunal da família em Fez me chamaram a atenção para a questão da violência contra a mulher, tão presente em casos de divórcio16. Em 2009, quando acabava de chegar a Marrocos, aconteceu a primeira caravana de educação legal promovida pela organização não governamental internacional Global Rights, que trabalha desde 2000 em Marrocos para a promoção dos direitos da mulher. A Global Rights lidera um programa inovador de educação jurídica e sobre os direitos humanos para mulheres. Queria conhecer uma das associações marroquinas que fazem esse trabalho com as mulheres. Foi assim que cheguei até a Associação Warda, uma das ONGs marroquinas que fazem parte da rede da Global Rights. Quando visitei a associação pela primeira vez em 2010 fiquei impressionada com a abertura que as ativistas demonstraram em me receber17, bem como com o número de programas sobre os quais trabalhavam. Assim, quase três anos depois, quando procurava uma associação onde poderia passar alguns meses como parte de minha pesquisa de mestrado, lembrei-me da Associação Warda. Novamente, as ativistas se prontificaram a me receber, dessa vez durante três meses, nos quais eu acompanharia e ajudaria

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Depois de terminar a graduação em Occidental College nos EUA, morei em Fez entre setembro de 2009 e setembro de 2010 com uma bolsa de pesquisa Fulbright do governo norte-americano. A bolsa tem duração de nove meses, mas durante os três meses anteriores estudei o árabe clássico e o árabe marroquino (darija).

15 Com o Código da Família de 2004 o governo criou esses tribunais específicos para a família a fim de acelerar os

procedimentos de divórcio, de pensão, de guarda dos filhos, etc. Mas não são todas as cidades que tem esses tribunais específicos. Em cidades pequenas como Ijmet, por exemplo, existe só o tribunal de primeira instância.

16 Meu trabalho no centro de educação e prevenção de violência sexual em Occidental College nos Estados Unidos,

entre 2006 e 2007, e um treinamento que fiz no LA Center on Assaults Against Women (que depois virou o Peace

Over Violence) para atender vítimas de violência através de uma linha telefônica de emergência me haviam

mobilizado para essa questão.

17 Esse contato com ONGs e com qualquer instituição era sempre mais fácil quando alguém conhecido me

apresentava. A professora Souad Slaoui (minha orientadora durante a pesquisa BEPE no país), algumas estudantes de pós-graduação da Universidade Dhar El Mahraz em Fez e as ativistas que ia conhecendo me colocaram em contato com diferentes ONGs. Mas quando eu chegava a uma associação sem conhecer ninguém eu não era sempre tão bem recebida.

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em todas as atividades: as campanhas de sensibilização, a orientação e o acompanhamento jurídico para mulheres em situação de violência, as aulas sobre educação legal e direitos humanos, as aulas de costura e as reuniões, mesas redondas e outros eventos organizados por elas.

Organização dos capítulos

O texto é dividido em cinco capítulos. No primeiro capítulo introduzo as questões centrais a essa discussão sobre direitos e violência, situando-as no contexto histórico e politico do Marrocos. Utilizo as abordagens de Cyntia Sarti e Daniel Simião para pensar tanto na construção do conceito de violência, como também do conceito de direito. Ao discutir o vasto campo de ONGs marroquinas de direitos da mulher, argumento a favor de compreender o trabalho dessas associações como parte de um espectro e não através de um modelo polarizante que as define como “feministas” de um lado ou como “islâmicas” de outro. E através das leituras da Lila Abu-Lughod, reflito sobre como pensar na questão dos direitos a mulher em contextos árabes-islâmicos.

Nos capítulos dois, três e quatro concentro-me na etnografia mais detalhada das atividades da Associação Warda, observando a centralidade de estratégias jurídicas para a promoção dos direitos da mulher. Descrevendo uma campanha educativa para promover o registro oficial de casamentos costumeiros, mostro, no capítulo dois, como concepções de direitos e violência são constantemente interpeladas pelas interlocutoras dessa pesquisa, como elas definem violência legal e as aproximações e tensões que elas têm com instituições do Estado.

No capítulo três descrevo, através de casos específicos, o atendimento prestado às mulheres em situação de violência, o que permite observar as maneiras de enunciar a violência dentro de um modelo de políticas públicas que prioriza a demonstração do sofrimento, como apontado por Didier Fassin, mas que também prescreve a judicialização dessa violência. Através de casos específicos, também observo as diferenças sociais entre as ativistas e a clientela da ONG e discuto o papel da família.

No quarto capítulo, descrevo as aulas de educação legal e de direitos humanos promovidas pela associação, observando como noções de direitos humanos são transmitidas às

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mulheres nas aulas, assim como as tensões decorrentes desse processo. O trabalho da antropóloga Sally Engle Merry foi fundamental para compreender esse processo como uma tradução de conceitos e sentidos. Para melhor compreender como esses discursos de direitos em torno da mulher são criados e circulados, tento mapear também as redes de relações que ligam a Associação Warda com seu principal parceiro internacional, a Global Rights, uma ONG baseada em Washington que trabalha junto com associações marroquinas na defesa dos direitos da mulher. Inspirando-me na análise de Anna Catarina Morawska Vianna tento compreender os “emaranhados institucionais” que ligam as duas instituições em torno de um projeto didático em prol dos direitos humanos.

No último capítulo, discuto o trabalho de ativistas nas três associações islâmicas contempladas nesse estudo e comparo suas abordagens com a de ativistas feministas, olhando para o papel da religião nos discursos delas. Termino o capítulo explorando os relatos de ativistas em ONGs consideradas feministas, mostrando como o trabalho associativo produz profundas transformações nas vidas delas ou, “novas subjetividades” nas palavras de Sally Engle Merry, que contribuem para diferentes visões e práticas de gênero.

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9 CAPÍTULO I

CONSTRUINDO DIREITOS E VIOLÊNCIA

Primeiras impressões do campo

Em minhas primeiras duas semanas em Marrocos estava morando em Meknes na casa de Malika18, uma professora conhecida, pois não havia encontrado um lugar para morar na cidade da ONG onde eu ficaria três meses observando diariamente as atividades. Todos os dias eu pegava um grand taxi19 de Meknes até a cidadezinha de Ijmet onde fica a Associação Warda. A estrada é tranquila e passa por uma região agrícola com áreas verdes abertas e plantações de uva, maçã e azeitonas. A entrada da cidade fica logo atrás de uma rede de montanhas rochosas, um relevo constituinte dessa região, que marca o inicio da cordilheira de montanhas Atlas que atravessa o Marrocos. As palavras “Allah, Watn, Malik” (Deus, País, Rei) pintadas em letras gigantes na montanha na entrada da cidade saúdam o visitante lembrando, no discurso nacional, daquilo que é o mais importante: em primeiro lugar Deus, seguido pela Nação e depois o Rei, considerado líder não só político, mas também religioso e herdeiro de uma dinastia que comanda o Marrocos desde a segunda metade do século XVII. Prestei muita atenção em tudo principalmente no primeiro dia; o táxi parou na estação de grand taxi em Ijmet, um estacionamento fechado por paredes cheio de táxis velhos e brancos. Os motoristas gritavam os nomes de cidades da região para onde iam: Fes, Meknes, Azrou. O estacionamento estava cheio de homens. A maioria ficava de pé ou sentava na greta da parede esperando chegar um táxi para seus destinos. Outros talvez estivessem lá para passar hora: conversavam, fumavam e olhavam o movimento. Saí do portão da estação para uma grande avenida e chamei o primeiro táxi que passou, mas o motorista disse que dava para ir a pé até o endereço da associação. Os nomes das ruas não eram visíveis então fui perguntando pelo caminho enquanto andava. Era uma sexta-feira de manhã e estava um frio incrível para o mês de maio. Usava um longo casaco marrom e por baixo uma blusa de lã que Malika havia me emprestado. Uma quadra depois da estação passei um belo jardim, com flores e uma grama muito macia, alguns bancos e um monumento preto

18 Todos os nomes das pessoas mencionadas foram mudados.

19 São táxis que fazem transporte entre cidades. Cada taxi leva 6 passageiros. O trajeto entre Meknes e Ijmet leva de

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rochoso gigante que era uma fonte que ficava desligada durante o dia. De noite a água corria e a fonte ficava iluminada. Um riacho cortava o gramado e uma pequena ponte passava por cima. A cidade de Ijmet é conhecida pelas suas fontes de água pura. Do outro lado do jardim vi um grande prédio com portões altos e uma grande faixa na qual se notava a presença de escritos em três línguas com três alfabetos diferentes: o francês, o árabe e tamazight20, língua muito utilizada nessa região do Atlas. Era o centro administrativo da cidade. Fui percebendo um comércio movimentado na avenida principal, com lojas de roupas, consultórios médicos, farmácias, um Western Union, bancos, restaurantes, e cafés. Os prédios, colados um no outro, são da mesma cor, um bege meio amarelado, e mais ou menos da mesma altura, não passando de quatro andares. De um lado da avenida é possível ver as grandes montanhas rochosas que surgem logo atrás dos prédios. Isso me dava a sensação de que a cidade acabava ali, que ela não passava daquela longa avenida, e que logo atrás vinha a montanha. Mas quando comecei a conhecer as ruas, os riachos e as pessoas por detrás dessa fachada principal, descobri que existem bairros escondidos na encosta da montanha e, como um mapa que ia se abrindo, minha visão da cidade mudou.

Naquele primeiro dia tentei seguir sem olhar muito para os lados, como quem sabia onde estava indo, pois não queria chamar a atenção por ser estrangeira. Malika e sua prima haviam me alertado para tomar cuidado porque, segundo elas, “Ijmet não é uma boa cidade”. A cidade tem fama de ser um polo de prostituição21 e muitos marroquinos com quem conversei tinham uma impressão negativa da cidade. Decidi, também, cobrir o cabelo com o véu, como fazem a maioria das mulheres na cidade. Mantive o uso do véu durante o tempo inteiro em que estive no país22.

20 Tamazight é um dos três dialetos falados pelos Berberes, ou povos Amazigh, que são grupos étnicos no Norte da

África. Sua origem é muito anterior à presença dos árabes no continente. A região do Atlas central em Marrocos tem uma grande população Amazigh. O berbere – que é o nome genérico para essas línguas ou dialetos desses grupos - virou língua oficial do governo em 2011 com a nova constituição marroquina. O árabe e o berbere são línguas oficiais, mas o francês é muito utilizado no país (é estudado nas escolas, ensinado em universidades e é a língua do comércio e também muito utilizada pelo governo). Minha fluência em francês e meu bom conhecimento do árabe marroquino (o qual aprendi mediante aulas e vivências durante o ano em Marrocos) e do árabe clássico (que estudei de 2009 a 2012) possibilitaram minha comunicação com as ativistas, mas houve momentos (especialmente quando elas falavam todas ao mesmo tempo entre si), em que não consegui acompanhar os detalhes das conversas na associação.

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Uma ativista explicou depois que isso é devido ao fato da cidade ter uma das maiores bases militares do país e que mulheres de fora eram trazidas pelos soldados para fazer trabalhos sexuais. Outra disse que a cidade ficou conhecida como tal depois de um caso que explodiu no noticiário marroquino em 1998 onde uma menina que morava em uma casa de prostituição foi assassinada. De acordo com ela, nessa época os policiais quebraram as redes de prostituição, mas a fama da cidade contínua.

22 Com o véu, as pessoas me identificavam mais facilmente como muçulmana. Ao saberem que eu era estrangeira (e

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Passei uma quadra cheia de cafés com mesinhas na calçada onde homens bebiam café e chá, olhando as pessoas passarem. Fiz mais força ainda para seguir reto sem olhar para os lados. É algo que havia aprendido e automatizado durante o ano em que morei em Fez onde quase toda quadra tinha os famosos cafés, cuja grande clientela é os homens. As cadeiras nas calçadas eram sempre voltadas para a rua permitindo uma visão de tudo e de todos que passavam. Os alertas de Malika e de sua família, as primeiras pessoas a me acolherem em Marrocos, fizeram-me ainda mais atenta a esse comportamento aprendido23. Fui andando e parando para perguntar o caminho até a rua da associação. Perguntei a um homem idoso que não me entendeu e a duas mulheres que não sabiam. Finalmente, um moço jovem que estava em frente a uma loja esvaziando um balde de água na rua me ajudou. Ele foi simpático e me levou até a associação que ficava só mais uma quadra para frente. Ele perguntou de onde era. Quando falei Brasil, ele indagou, sorrindo, sobre o Ronaldinho. Caminhando, ele falou de sua irmã que tinha uma gravidez complicada e que ia precisar de uma cirurgia muito cara para separar os gêmeos siameses. Não entendi direito o que ele estava querendo dizer e comecei a pensar que talvez ele utilizasse a história da irmã para pedir dinheiro em troca do favor prestado. Estava acostumada com os falsos guias na cidade antiga de Fez que faziam isso com turistas e estava disposta a lhe dar alguns trocados. Mas assim que viramos a esquerda na esquina da farmácia o moço me mostrou o prédio da Associação Warda à direita e se despediu, dizendo que se eu precisasse de alguma coisa ele estaria na loja. Censurei-me por ter desconfiado dele. Naquele dia, a primeira vez que visitava Ijmet sozinha, uma cidade pequena e desconhecida que muitos marroquinos consideravam perigosa, sentia medo. Os constantes alertas de Malika sem dúvida contribuíram para isso. Como para confirmar esses temores, na volta, andando pela avenida principal, um homem me abordou, falou “assalam

explicando que era convertida. Muitas vezes isso gerava exclamações de admiração como tabarak Allah „alik (que Deus te abençoe). Creio que o uso do véu, assim como o fato de ser muçulmana, facilitou minha entrada nas três ONGs islâmicas que visitei. Usando o véu e tendo a mesma religião, eu compartilhava, pelo menos em teoria, algumas linguagens e entendimentos (embora ainda era diferente delas por não ser marroquina ou de família muçulmana). Na Associação Warda creio que o fato de ser muçulmana também foi um fator que me aproximou das ativistas que eram mais praticantes. Por outro lado, para algumas ativistas em ONGs de direitos humanos que não usavam o véu e que se mobilizavam mais em torno de ideais considerados feministas, creio que o uso do véu pode ter sido um fator de estranhamento. Uma, por exemplo, quis deixar claro que o véu “não é obrigatório” e outra disse que era uma “escolha” de cada uma. Isso demonstra como um determinado posicionamento do pesquisador causa entendimentos e reações diversas que dependem de cada circunstância e pessoa.

23 Logo me acostumei a passar diariamente pela quadra sem ficar tensa como nesse primeiro dia. Lembro que Zakia,

uma estagiária da Tunísia que ficou um mês na ONG comigo, teve uma reação semelhante quando chegou ao Marrocos. Na primeira vez em que eu e ela passamos pela quadra ela segurou mais forte em meu braço que estava entrelaçado com o seu e me puxou para caminhar na rua, ao invés de na calçada onde tinham as mesas, dizendo para grudar o olhar no caminho em frente. Não notei a mesma reação nas moradoras da cidade que conheci e nem entre as mulheres que trabalham na ONG.

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alaykum24” e começou a me seguir. Perguntou para onde ia e insistiu que queria conversar. Continuei andando sem responder. Quando ele insistiu em falar comigo respondi bruscamente, sem olhar para o rosto dele, que não queria conversar, tentando falar o menor número de palavras possíveis para ele não perceber meu sotaque. Mas ele continuou me seguindo, perguntando para onde ia até eu chegar à estação de táxi. Ele só desapareceu depois que entrei no próximo táxi para Meknes. O incidente mostrou que minha tentativa de passar por uma nativa para não chamar a atenção não teve o efeito desejado. Será que o homem havia percebido que eu era nova na cidade, que era estrangeira? Será que ele havia percebido que eu estava tensa e que andava sem saber muito bem o caminho? Durante os cinco meses em que estive no país não passei por outro incidente como esse, apesar de muitas estrangeiras e marroquinas reclamarem do assédio nas ruas25.

No final de semana voltei para Ijmet com Aziza, uma prima de Malika, e o seu marido para procurar um lugar para morar. Queria muito morar na cidade, perto da associação. O marido de Aziza era de Ijmet, e segundo Malika ele conhecia pessoas que poderiam nos ajudar. Além disso, segundo Malika, era necessário estar com um homem, pois duas mulheres sozinhas não poderiam procurar um lugar para alugar naquela cidade; “você verá,” disse ela. Fomos de carro de Meknes e quando chegamos em Ijmet descemos na rua da Associação Warda. O marido de Aziza perguntou a um moço na rua se ele conhecia algum lugar para alugar ali perto. Enquanto andávamos, Aziza me explicava que ali não era como na Europa ou nos EUA onde facilmente encontraríamos lugares mobiliados. Recomendaram que perguntássemos em um café na avenida

24 “Assalamu alaykum” é um cumprimento em árabe muito usado por muçulmanos. Significa “que a paz esteja com

vocês”. Em Marrocos, essa forma de cumprimentar é utilizada mais em contextos formais ou religiosos. No dia a dia as pessoas geralmente se cumprimentam informalmente com “labas a‟lik?” (tudo bem) ou “ça va?” em Francês.

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O assédio das mulheres nas ruas é algo característico em praticamente toda cidade marroquina; trata-se de comentários (às vezes obscenos), perseguição e, em alguns casos, assédio físico. Acontece tanto com marroquinas, como também com estrangeiras. Segundo Lina, uma jovem americana de origem marroquina, uma estratégia de “medo” é usada para convencer as mulheres marroquinas a não saírem de casa e a não se aventurarem, e o relativismo cultural também é usado para justificar isso. Assim, o primo de Lina que tentava convencê-la a não viajar sozinha pelo país dizia, “Aqui não é os Estados Unidos. Você está em Marrocos”. Mas Lina, que morava nos EUA desde pequena e que estava visitando a família em Marrocos (depois de muitos anos), disse que ela se recusava a vestir ou agir diferentemente de como fazia nos EUA. Ela não abria mão de andar com calça jeans colada, unhas pintadas e muita maquiagem. Lina passou dois dias em Ijmet comigo na ONG e em cada esquina ouvíamos comentários sobre ela, algumas vezes de adolescentes muito jovens. Eu, por outro lado, não sofri o assédio que ela sofria na rua. Creio que isso se deve, pelo menos em parte, pelo fato de eu usar sempre o véu islâmico e roupas que cobriam o corpo todo. Nesse sentido, o assédio deve ser visto como uma maneira de controlar a mulher, restringindo seu livre movimento no espaço público e exigindo formas corretas de se portar e de se vestir. As alertas e prescrições (e em alguns casos ameaças) de familiares sobre onde ir, como vestir e com quem andar (como aconteceu com Lina e também comigo através de Malika e sua família) contribuem para esse controle.

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principal. Aziza não quis entrar, pois, segundo ela, os cafés eram lugar de homem; então, esperamos na calçada do lado de fora, enquanto seu marido entrou. Quando falei que pensava em morar com uma família, Aziza disse que eu “corria um risco” (c‟est risqué), explicando que seria perigoso para uma menina bonita (zuina), pequena (sghira) e estrangeira (ajnabiia) ficar com uma família desconhecida. Seu marido voltou e disse que o homem que alugava apartamentos só voltaria no meio da tarde; não fazia sentido esperar e eu não insisti. Os dois concordaram que o melhor era eu morar em Meknes e pegar o táxi todo dia até Ijmet. Era mais seguro. Eu parecia marroquina, segundo eles, mas meu sotaque confirmava que não era. Recomendaram que eu não falasse nada no táxi: deveria só entregar o dinheiro ao motorista e se alguém falasse comigo não deveria responder. Malika confirmou o que disseram e alguns dias mais tarde quando dormi na casa de uma das ativistas da associação (íamos sair muito cedo no próximo dia para uma campanha que a associação promovia em áreas rurais) ela disse para eu tomar cuidado e para não dormir lá se tivessem homens na casa.

Penso que essa demasiada preocupação reflete a responsabilidade que Malika e Aziza sentiam por mim. Os comportamentos propostos por Malika e por Aziza e seu marido eram todos para minimizar minha visibilidade como estrangeira; como eu parecia marroquina (o uso do véu contribuiu consideravelmente para isso), o melhor era eu não falar nada no táxi para o meu sotaque não me desmascarar. Para elas, o fato de eu ser estrangeira e mulher eram fatores de risco. Eles não explicitaram por que; mas pelo comentário de Aziza sobre os riscos de ser uma menina “bonita”, “pequena” e “estrangeira” em uma família desconhecida, e as alertas de Malika para não dormir na casa de uma conhecida se nela houvesse homens, a preocupação delas tinha a ver com um perigo sexual. De acordo com a antropóloga Maria Cardeira da Silva (1997: 62), “o imaginário marroquino erotiza e disponibiliza as estrangeiras, para além de, nos meios mais pobres, as tornar acrescidamente atractivas para os homens por potencialidades económicas”. Assim, segundo a autora, é comum os marroquinos quererem uma namorada europeia e uma esposa marroquina, existindo uma divisão entre as mulheres/sexualidade e as mulheres/maternidade. De fato, alguns marroquinos acreditam que as estrangeiras são “fáceis”, não havendo as restrições das mulheres marroquinas e a exigência da virgindade no casamento. Ao tentar não me sobressair como estrangeira, eu carregava implicitamente essa impressão sobre um risco inerente de ser uma mulher estrangeira no país. Além disso, procurava agir como seria esperado de uma mulher não casada naquele contexto: para além do uso do véu, a modéstia ou o

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pudor como forma de comportamento – especialmente diante do sexo oposto - tornaram-se parte de meu repertório. Além da questão de gênero, creio que o fato de ser estrangeira fez com que as pessoas se preocupassem mais comigo; foi o mesmo caso com Lina, que, apesar de ter nacionalidade marroquina, era também estrangeira no país, pois havia passado a maior parte de sua vida nos EUA. Mas ao mesmo tempo, tanto Lina quanto eu não éramos totais estrangeiras: Lina tinha toda a família da mãe em Marrocos e eu tinha a familiaridade religiosa, marcada claramente pelo uso do véu e por uma postura e comportamentos considerados ideais para uma mulher naquele contexto. Creio que é esse pertencimento parcial que foi o que nos fez passíveis de ser “cuidadas” ou, como coloca Lina, “controladas” pelos familiares de sangue ou fictícios (no meu caso); se fôssemos totais estrangeiras sem nenhum vínculo com o país, as pessoas talvez não ligariam e se não fôssemos estrangeiras, as famílias de Lina e a de Malika talvez não se preocupariam tanto conosco.

Depois de tantos alertas, eu estava praticamente desistindo de morar em Ijmet até que duas semanas depois as mulheres da ONG encontraram uma família que tinha um quarto onde eu e Zakia, a estagiária tunisiana na ONG, poderíamos ficar. Quando me mudei para a casa dessa família – uma família grande com quatro irmãs e dois irmãos - e comecei a conhecer melhor as mulheres que trabalhavam na associação, minha relação com a cidade mudou completamente. No início tinha uma visão de fora, passada por aqueles que desconheciam a cidade e que temiam por mim. Um local que antes parecia pequeno, provincial e perigoso foi se abrindo na medida em que ia percebendo que a cidade era muito mais do que a avenida principal e a Associação Warda, minhas únicas referências iniciais quando ia e voltava diariamente da estação de táxi até a ONG. Na medida em que fui me aproximando da família e de algumas mulheres na associação, fui conhecendo outros caminhos percorridos por essas mulheres. Além da geografia institucional da cidade (entre o tribunal e as inúmeras instâncias burocráticas) e da região rural em torno dela (onde as ativistas promoviam campanhas de sensibilização e aulas de direitos humanos), acompanhei as mulheres até as casas de parentes e amigos, até os hammāms26, o mercado, as mesquitas e os parques que beiram os riachos e entrecortam a cidade desde o lago na parte alta, até a fonte na parte baixa. Ao trabalhar diariamente com essas mulheres, deparei-me com diferentes formas de conceber os direitos, novas configurações jurídicas e novas definições de

26 São os tradicionais banhos públicos marroquinos. Silva (2003: 191) faz uma discussão interessante sobre como a

escolha dos hammāms (a preferência por um e a recusa de outro) funcionam como “marca identitária”, podendo mostrar distinções socioeconômicas entre as mulheres.

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violência. Observei também algumas redes de relações - profissionais e pessoais - construídas por essas mulheres com funcionários do governo local e com ativistas em ONGs nacionais e internacionais. Essas questões, que contribuíram para compreender o processo de negociação entre conceitos de direitos para as populações locais, serão detalhadas ao longo do trabalho.

Construindo Direitos

Transformação da violência contra a mulher em uma violação de direitos humanos

Na maioria das associações contempladas nesse estudo, a principal atividade é a orientação e o acompanhamento jurídico de mulheres vítimas de violência. Mas muitas associações também promovem projetos educativos e de sensibilização para mulheres27 e fazem lobby político para reformas legais. Em todas essas atividades, as ativistas estão em contato direto com mulheres em situação de violência e com a população local, mas elas também estão em constante diálogo com instituições governamentais e às vezes com órgãos internacionais, traduzindo concepções de direitos e de violência entre esses diferentes atores. Para compreender como essas ativistas articulam um discurso de direitos e como elas concebem a violência e os direitos, é importante observar como a violência contra a mulher se tornou um tema de direitos humanos e como essa questão entrou em Marrocos e influenciou o movimento feminista no país.

Mostrando que o regime internacional de direitos humanos, assim como o conceito de direitos, não é fixo ou estável, a antropóloga Sally Engle Merry (2001: 39) traça a evolução do conceito de direitos, desde os direitos civis e políticos para a inclusão de “direitos coletivos, culturais, e direito social e econômico”. Segundo a autora, o conceito moderno de direitos humanos surgiu no século 20 depois da Segunda Guerra Mundial, quando, diante do Holocausto, percebeu-se a necessidade de proteger cidadãos dos poderes do Estado. Junto com as Nações Unidas criou-se um regime internacional de direitos humanos que foi baseado em um conceito de

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O foco desses projetos é na sensibilização jurídica, mas algumas associações também oferecem cursos de capacitação técnica, como aulas de costura, cozinha, alfabetização, etc.

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direitos universais e inalienáveis que não podem ser infligidos por tradições culturais ou religiosas (Merry, 2001:40).

A transformação da violência contra a mulher em um tema de direitos humanos, uma ideia que se consolida nos anos 90, é fruto de um longo processo envolvendo a aliança entre ativistas de direitos da mulher e de direitos humanos, e é um exemplo dessa expansão do conceito que tem ocorrido ao longo dos últimos 50 anos (Merry, 2001: 36). A ONU foi fundamental nesse processo. Segundo Keck e Sikkink (1998), uma série de encontros internacionais da ONU reuniram ativistas dos países do norte e do sul, possibilitando a articulação de redes feministas transnacionais sobre uma causa em comum: “violência contra a mulher”. Em um desses primeiros encontros no Ano Internacional da Mulher em 1975, na Cidade do México, notou-se uma clivagem entre as demandas das mulheres do norte e do sul global. Enquanto as ativistas do norte concentravam-se na discriminação, as do sul preocupavam-se mais com temas de desenvolvimento e justiça social que atingia tanto homens quanto mulheres (Keck e Sikkink, 1998: 170). Segundo as autoras, essa clivagem diminuiu efetivamente na conferência da ONU de Nairobi em 1985 em que saíram várias recomendações para tratar da questão de violência contra a mulher. A questão da mulher no desenvolvimento (inspirada pela Década de Desenvolvimento e Década da Mulher da ONU) também ajudou na direção de unir os grupos de mulheres. Mas, segundo as autoras, a questão da mulher no desenvolvimento não levou à criação de redes internacionais de ativistas como aconteceu com a violência contra a mulher. Através de uma articulação comum em torno de violência contra a mulher, temas que não eram ligados anteriormente como “estupro e violência doméstica nos EUA e na Europa, mutilação genital feminina na África, escravidão sexual na Europa e na Ásia, mortes por dote na Índia e tortura e estupro de prisioneiras políticas na América Latina”, foram unidos (Keck e Sikkink, 1998: 171).

Em 1992 uma cláusula definindo violência de gênero como uma forma de discriminação foi incorporada à Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW) 28. Com isso, violência contra a mulher passou a ser uma violação de direitos humanos (Merry, 2001: 36). Em 1993, na Conferência de Viena, o tema de violência contra a mulher ficou ainda mais importante na agenda internacional quando a Assembleia Geral da ONU adotou a Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres (Hemment, 2011;

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Merry, 2001). E em 1995 a Plataforma de Ação de Beijing na quarta conferência sobre a mulher citou uma série de fatores que perpetuam a violência e que países precisam eliminar, afirmando também a necessidade de combater a violência doméstica (Hajjar, 2001: 14).

Discursos de direitos em Marrocos

Conceber violência contra a mulher como um tema de direitos humanos significa judicializar o conceito, significa “introduzir o mundo da lei, da justiça e da impessoalidade no âmbito privado” (Moraes e Sorj, 2004: 14), uma tendência demonstrada internacionalmente, como no Brasil com as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher que se expandiram para outros países da América Latina. Em Marrocos, o governo criou células nos tribunais de primeira instância que mantêm contato com profissionais em hospitais e na polícia para atender vítimas de violência. A criação de políticas públicas e instituições específicas para mulheres vítimas de violência é fruto dessa inserção da questão no âmbito legal. É também um exemplo de como a noção de direitos produz, nas palavras de Cynthia Sarti (2011: 53), “uma intrincada relação entre particularidade e universalidade”.

A retórica de direitos humanos e de desenvolvimento entrou em Marrocos como parte de uma política estatal nos anos 80 e 90 e moldou também as estratégias de grupos feministas. A década de 1983-1994 foi marcada por uma política de neoliberalismo através dos programas de reajuste estrutural implementados pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (IMF)29. Com isso, o governo marroquino privilegiou o investimento privado no lugar de investimentos estatais. Durante esse período, a mídia e o Estado abriram-se para um discurso de cidadania e de direitos humanos. Dessa forma, segundo Pittman (2007: 259), um discurso de igualdade entre homens e mulheres na esfera política mudou para uma “abordagem de direitos” (rights-based approach). O Estado também embarcou nesse discurso com a criação do Conselho de Direitos Humanos nos anos 90 que depois virou o Ministério de Direitos Humanos (Salime, 2011: 26). Como recomendação do programa de desenvolvimento da ONU (no Relatório de

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Esse projeto de liberalização também foi marcado por uma mudança democrática que incluiu abertura para a participação de partidos de oposição (partidos de esquerda e nacionalistas) e para o primeiro partido islâmico (Salime, 2011). O país é uma monarquia constitucional parlamentar, com o primeiro ministro sendo chefe do governo e eleições parlamentares.

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Desenvolvimento Humano de 1990), criaram-se alianças entre organizações feministas e alguns departamentos federais que trabalham para o desenvolvimento. As demandas desses grupos eram articuladas dentro de um discurso enfatizando a importância de mulheres no desenvolvimento30 que emergiu nos anos 80 nos países do Maghreb31 (Sadiqi, 2008a: 458; Salime, 2011: 26). Esse discurso permitiu a criação de novas instituições dirigidas por mulheres e encorajou a criação de ONGs que trabalham com essa perspectiva de desenvolvimento e de direitos humanos. Foi nessa época, com o que Pittman (2007: 259) chama de a segunda geração de ativistas, que as organizações feministas marroquinas começaram a ter um papel principal na mudança de normas sócio-legais.

Fluxos de direitos humanos: entre o global e o local

Com convenções de direitos humanos sendo implementadas e monitoradas por instituições nacionais e internacionais, o regime de direitos humanos tem se expandido globalmente. Essa globalização de discursos de direitos e sua inserção em contextos locais é complexa. Para Aparecida Fonseca Moraes e Bila Sorj (2009: 11) que estudam práticas feministas no Brasil, existe uma “articulação tensa” entre as instituições baseadas nos direitos humanos e sua inserção em contextos locais, já que essas normas jurídicas internacionais são fundadas “numa sociabilidade individualista, igualitária e universalizante (Moraes e Sorj, 2009: 17). Diante dessa expansão dos direitos humanos, Jane Cowen et al. (2001:12) apontam para um “discurso estruturante” de direitos, que pode ser compreendido como um “aspecto da cultura global, transnacional”. Como um conjunto de ideias estruturantes, uma “cultura de direitos” “é individualista em concepção; trata o sofrimento com uma lente legal/técnica; e enfatiza certos aspectos da coexistência humana (os direitos do indivíduo) sobre outros (os deveres ou

30 Women in development (WID) é uma abordagem que dá importância a questões das mulheres em projetos de

desenvolvimento.

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Maghreb refere-se à região do noroeste da África e especialmente ao Marrocos, à Argélia e à Tunísia. A região também inclui a Líbia e às vezes a Mauritânia. Mas frequentemente os primeiros três países (Marrocos, Tunísia e Argélia) são comparados por terem algumas características em comum, entre eles o legado da colonização francesa e a influência da escola de jurisprudência islâmica Maliki.

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necessidades do indivíduo)” (Cowen, 2001: 12)32

. Em um contexto diferente, mas com implicações semelhantes, Lawrence Cohen (1998) relata como na Índia um discurso internacionalista sobre gerontologia foi criado com base nas experiências do ocidente. Pressupunha-se que a produção de saber sobre a velhice americana funcionaria no contexto indiano e assim foi necessário “criar” a velhice na Índia como um “problema”. Para Cohen (1998: 73),

A „gerontologia internacional‟ é, portanto, o esforço de universalizar uma epistemologia cultural específica por meio da comunicação unidirecional. Qualifico de „internacionalista‟ o

procedimento de invocar uma comunidade global de saber, a fim de difundir as pretensões de verdade de uma visão de mundo particular (grifos meus).

Ao invocar uma visão de um mundo particular baseada na modernidade liberal e em sujeitos individuais e autônomos, promovendo a “democracia, o regulamento legal, o capitalismo e o mercado livre” (Merry, 2004: 49), o discurso dos direitos humanos é internacionalista. De acordo com Boaventura de Sousa Santos (1997: 19-20), a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 é uma “marca ocidental-liberal [desse] discurso dominante de direitos humanos” onde “pressupostos [...] tipicamente ocidentais” são expostos33

. Mas, segundo Santos, é possível conceber os direitos humanos como multiculturais através de um diálogo onde os direitos passariam a operar na forma de um “cosmopolitismo” (quando grupos subordinados se mobilizam em práticas contra hegemônicas): “é precisamente no campo dos direitos humanos que a cultura ocidental tem de aprender com o Sul para que a falsa universalidade atribuída aos direitos humanos no contexto imperial seja convertida, na translocalidade do cosmopolitismo, num diálogo intercultural” (29). Para Anthony Chase (2012), estudioso político sobre os direitos humanos no mundo islâmico, esse diálogo já acontece na medida em que os direitos humanos são “redefinidos em maneiras que os fazem significativos localmente”34

(Chase, 2012: 66). Por isso, segundo ele, não se pode falar de um fluxo unidirecional do global sendo imposto no local:

Os direitos são continuamente redesenhados em campos de contestação pelo mundo, incluindo o mundo islâmico. Isso não é nem um processo universalista, no qual o global é imposto sobre

32 “It is individualistic in conception; it addresses suffering through a legal/technical, rather than ethical, framework;

and it emphasizes certain aspects of human coexistence (an individual‟s rights) over others (an individual‟s duties or needs). These are foundational ideas, even though they are contested and modified in an ongoing process”.

33 Como, por exemplo, a ideia de “uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza

humana é essencialmente diferente e superior à restante realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tem de ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica” (Santos, 19).

Referências

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