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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ FRANCISCO PINTO DA FONSECA FILHO. POLÍTICA DE DROGAS E CONTROLE SOCIAL: reflexões sobre o campo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

FRANCISCO PINTO DA FONSECA FILHO

POLÍTICA DE DROGAS E CONTROLE SOCIAL: reflexões sobre o campo

CURITIBA 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

FRANCISCO PINTO DA FONSECA FILHO

POLÍTICA DE DROGAS E CONTROLE SOCIAL: reflexões sobre o campo

Monografia apresentada à disciplina de Orientação Monográfica II do curso de Graduação em Ciências Sociais, Departamento de Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais.

Orientador: Pf. Dr. Pedro Rodolfo Bodê de Moraes

CURITIBA 2014

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FRANCISCO PINTO DA FONSECA FILHO

POLÍTICA DE DROGAS E CONTROLE SOCIAL: reflexões sobre o campo

Monografia apresentada à disciplina de Orientação Monográfica II do curso de Graduação em Ciências Sociais, Departamento de Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais.

Orientador: Pf. Pedro Rodolfo Bodê de Moraes Departamento de Ciências Sociais, UFPR Pf. Pablo Ornelas Rosa

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AGRADECIMENTOS Gratidão sincera e dedicada

ao professor Pedro Bodê e ao CESPDH, referências decisivas na elaboração do trabalho, à universidade e aos colegas, pela formação e abertura de portas,

aos compas de militância, lado a lado nas lutas e nos sonhos, às amigas e amigos, companheiros preciosos de jornada, à companheira Julia, pela parceria única e inestimável,

aos familiares: mãe, tias e tios, irmãos, avós, primos, pelo amor e pelo cuidado, a todas e todos que se movem por paz, justiça e liberdade,

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RESUMO

Este trabalho busca traçar um panorama da constituição da política de drogas na modernidade, delimitando um campo em que se reconheçam os processos históricos e os atores sociais de relevância, bem como sua relação com as estruturas de poder e de controle social vigentes. Assumindo os usos de drogas para as mais diversas necessidades humanas como fenômenos universalmente presentes nas sociedades, identificamos diferentes sistemas de regulação, legislação e controle, conforme o tempo e o lugar, que expressam as consonâncias e divergências entre aqueles que fazem esses usos. Na formação da política de drogas moderna, observamos a peculiaridade evidente na extensão da economia das drogas como principal atividade comercial no planeta, ao passo da expansão da intervenção institucional e estatal nesse campo, por um lado, permitindo e incentivando certos usos das drogas, e, por outro, combatendo e declarando guerra a outros. A hegemonia mundial desse modelo - o proibicionismo - está associada com a consolidação da economia capitalista globalizada, os projetos e discursos de poder organizados nos Estados, os conflitos entre classes e grupos sociais na defesa de seus interesses e percepções sobre os problemas sociais e o fortalecimento de uma ordem baseada em instituições e mecanismos de controle social perverso, seletivo e desigual. Contrapondo a conformação proibicionista, modelos econômicos, políticos e culturais alternativos no tratamento aos psicoativos estão sendo debatidos e pautados por novos atores, os quais organizam a crítica aos efeitos da guerra às drogas no campo antiproibicionista. Interessa aqui sugerir referenciais teóricos das ciências sociais para explorar os contornos e embates desse campo, à luz das estruturas sociais e históricas.

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SUMÁRIO

1 – INTRODUÇÃO ... 7

2 – HISTÓRICO DA POLÍTICA DE DROGAS ... 14

3 – POLÍTICAS ALTERNATIVAS ÀS DROGAS ... 24

4 – POLÍTICA DE DROGAS E CONTROLE SOCIAL ... 36

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1 – INTRODUÇÃO

Para iniciar as reflexões propostas neste trabalho, é preciso antes destacar algumas intenções e definições iniciais a fim de preparar melhor a leitura.

Este trabalho pretende delimitar e abordar, de forma geral, o campo das políticas de drogas a partir dos referênciais teóricos das ciências sociais, em especial da sociologia, da antropologia e da historiografia. Traçando o contorno do debate entre proibicionismo e anti-proibicionismo, é presente o intuito de fomentar a discussão científica e democrática sobre um tema de tamanha relevância histórica e atual, reconhecendo o alcance dos métodos e teorias usadas. Este trabalho é um breve esforço que se soma à grande corrente de pesquisadores, das humanidades e de outras áreas, que constróem um debate alternativo no tratamento aos psicoativos em conjunto com a sociedade civil e o poder público1.

Sendo ainda o tema das drogas um tabu, alvo de curiosidade e preocupação, sendo produto de publicidade e de ocultações ideológicas, sendo objeto de interesses econômicos e políticos (OLMO, 1990, p. 22), este trabalho tem a intenção de apresentar algumas reflexões sobre esse campo, principalmente, sobre a construção histórica do problema das drogas, os atores sociais influentes no processo, a atual política de drogas proibicionista e os novos atores das políticas alternativas, em relação com a produção de controle social. Para isso, é essencial problematizar os conceitos de “drogas” e de “política pública”, reconhecer o campo da política pública de drogas e estabelecer seu alcance nessa discussão.

Segundo as definições adotadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS)2,

endossadas pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID)3,

drogas correspondem ao conjunto de substâncias capazes de modificar funções dos organismos vivos, resultando em alterações fisiológicas ou de comportamento. Dentro desse conjunto, encontram-se os psicotrópicos, classificação que abrange as drogas de “atração pelo psiquismo”, isto é, drogas que afetam diretamente a atividade cerebral e mental humana. Quanto ao padrão de efeitos e funções em comum na atividade do sistema nervoso central, os

1 Este trabalho se propõe a realizar um trânsito entre clássicos das ciências sociais, como um exercício de aproximação de linhas teóricas interessantes ao estudo do tema, como a criminologia crítica e a abordagem foucaultiana. Reconhecendo o limite da proposta, não há espaço para análises detidas das categorias empregadas, embora elas estejam presentes, em alguma medida, nas discussões dos autores utilizados na bibliografia.

2 Disponível em http://www.who.int/substance_abuse/terminology/psychoactive_substances/en/. Acessado em 13/12/2014.

3 Livreto informativo sobre drogas psicotrópicas. Disponível em

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psicotrópicos se dividem em três grupos: depressoras – como álcool, opiáceos, ansiolíticos, soníferos, inalantes –, estimulantes – café, chocolate, tabaco, anfetamina, cocaína – e perturbadores – maconha, LSD, ecstasy, cogumelos e cactos alucinógenos.

O uso de drogas para os mais diversos fins é um fenômeno generalizado pelas sociedades de toda a história, correspondendo a uma diversidade de necessidades humanas, tanto as do “corpo” como as do “espírito” (CARNEIRO, 2002, p. 14-19)4. Plantas, fármacos,

remédios e substratos serviram para alimentar, vestir, medicar, sentir prazer, alterar a consciência, socializar, ganhar dinheiro e conquistar poder (CARNEIRO e VENÂNCIO, 2005, p. 17). Assim, confere-se significado às drogas de acordo com seus usos, sendo essencial a relação humana estabelecida (OLMO, 1990, p. 25). Ao mesmo tempo, os diversos povos criaram sistemas próprios para produzir, regular e integrar as drogas na sua experiência e na ordem social. A definição de “droga” varia de acordo com as circunstâncias e os sujeitos históricos, e, assim, as legislações e o controle social sobre drogas em cada momento respondem a fatores de usos culturais e tradicionais, de interesses econômicos e de disputa política.

Os estímulos estéticos, ou seja, dos sentidos, oferecem um programa do prazer para a vida humana. Os estimulantes sensoriais são importantes substâncias com relevantes e múltiplos papéis culturais. Seu uso constitui o imaginário da própria felicidade, numa conexão direta com o prazer sexual. Por tudo isso, as drogas ão também objeto de um imenso interesse político e econômico. Seu domínio é fonte de poder e riqueza. Sacerdores, reis, estados, a medicina e outras instituições sempre disputaram o monopólio do seu controle e a autoridade na determinação das formas permitidas de seu uso. (CARNEIRO e VENÂNCIO, 2005, p. 16) Em nosso contexto, esse fato se expressa na íntima relação entre a formação do Estado moderno e das sociedades capitalistas globalizadas e o controle social sobre as drogas exercido oficialmente através da política de drogas, estatuto que dispõe sobre a aceitação de certas drogas e proibição de outras (CARNEIRO, 2002, p. 2). A gestão das drogas é política na medida em que a instituição que fundamentalmente regula sobre ela é o Estado, o qual centraliza a elaboração e execução de suas diretrizes, através do conjunto de instituições, agências e serviços. Assim, é possível identificar um campo de políticas públicas de drogas – a partir de um conjunto de problemas, diretrizes, instituições e atores sociais em relação ao tema – assim como existe a política pública de saúde e de segurança. No Brasil, por exemplo,

4 Paginação deduzida do documento disponível em http://www.neip.info/downloads/t_hen2.pdf. Acessado em 13/12/2014.

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esse campo tem referência jurídica em mecanismos como a Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas, de 2003, o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), instituído na Lei de Drogas nº 11.343 de 2006, a Política Nacional sobre o Álcool, válida a partir do decreto nº 6.117 de 2007, e o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, decretado pela lei nº 7.179 de 2010.

Na literatura das ciências sociais o conceito de política pública é objeto de vários debates, em que algumas definições se contrastam. Por exemplo, embora a política seja empregada “para indicar atividade ou conjunto de atividades que têm de algum modo, como termo de referência, a polis, isto é, o Estado” (BOBBIO, 2000, p. 160), é possível considerar o conjunto da sociedade civil como potencial ator desse campo, já que dele “participam tanto organizações públicas não estatais de advocacia política e de prestação de serviços, e movimentos sociais quanto empresas e indivíduos interessados nos problemas públicos”. Assim, a abordagem multicêntrica da política pública (SECCHI, 2010, p. 2) converge com o reconhecimento da historicidade do controle social de drogas, assumindo que a atividade política e a influência sobre as políticas públicas não são exclusividades das burocracias estatais, na medida em que a percepção sobre a questão das drogas enquanto “problema público” está presente no discurso e na prática de diversos atores sociais. O Estado condensa as tendências dos atores sociais no seu discurso oficial, reproduzindo nele as estruturas de poder da ordem social (RODRIGUES et al., 2008, p. 91).

Nesse sentido, ao buscar um panorama da política de drogas surgem os questionamentos: “[...] quem são os atores envolvidos na produção das políticas públicas? Quem tem poder para tomar decisões públicas?” (DIAS, 2012, p. 16). Indagar a questão das políticas públicas dessa maneira nos abre possibilidade de tratá-las como são em comparação com o que elas se propõem a ser. Além disso, podemos compreender, a partir daí, a política pública como campo de atividades constituídas historicamente e orientadas por interesses políticos e econômicos, por discursos em disputa pela visão legítima do “problema” e pela manutenção de relações de poder entre grupos e classes.

Se “uma política pública é uma orientação à atividade ou à passividade de alguém” e se ela “possui dois elementos fundamentais: intencionalidade pública e resposta a um problema público” no sentido de que ela “é o tratamento ou a resolução de um problema entendido como coletivamente relevante” (SECCHI, 2010, p. 2), é fundamental reconhecer quem são os atores da política e, na mesma medida, qual é a percepção construída por eles

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sobre o “problema” em questão e qual sua intencionalidade na ação. Também é preciso destacar os objetivos políticos da política pública como uma atividade que busca “sanar os conflitos e estabilizar a sociedade pela ação da autoridade” em um “processo de construção de uma ordem” (DIAS, 2012, p. 3), noções familiares à de controle social, enquanto produto dos mecanismos de regulação da sociedade. “Controle social” aqui indica as formas de manutenção da vida em comum – a ordem e a coesão social – fundamentada em instituições, práticas e atributos, internalizada entre grupos e indivíduos e negociada dentro de uma margem conflitiva inerente. Visto que as políticas públicas são instrumentos efetivos de intervenção estatal, tratá-los como meios de controle social – normais ou perversos – coloca o problema de identificar o que se percebe como a “ordem” e os efeitos que o controle gera para os atores sociais (MORAES e BERLATTO, 2013a).

Assim, a política pública de drogas toma evidência a partir das definições legislativas do Estado, criando dispositivos de ação em duas categorias: drogas lícitas, cuja economia é permitida, regulamentada e, em grande medida, incentivada conformes os interesses organizados no poder público – é o caso do álcool, do tabaco e dos remédios; e drogas ilíticas, cuja economia é proibida e reprimida pelo aparelho judicial-criminal, e se estrutura em paralelo à repressão do Estado – o narcotráfico. As organizações que o compõe são responsáveis pela gestão de drogas como a maconha, a cocaína, a heroína, dentre outras atualmente proibidas (CARNEIRO e VENÂNCIO, 2005, p. 22). As doutrinas jurídicas que dispôem sobre essa classificação correspondem à demandas históricas pró e anti drogas, refletidas nos embates da estrutura social de conhecimento, discurso e poder, configurando o proibicionismo como

[...] uma prática moral e política que defende que o Estado deve, por meio de leis próprias, proibir determinadas substâncias e reprimir seu consumo e comercialização. (RODRIGUES et

al.., 2008, p. 91)

Nesse processo, principalmente nos séculos XIX e XX, o discurso científico oficial exerceu considerável influência sobre os critérios de classificação farmacológica de efeitos, usos, riscos e danos à saúde e à sociedade. Definindo usos legais e ilegais – cientificamente legítimos e ilegítimos – a autoridade médica-sanitária fortaleceu-se junto ao proibicionismo e sua rede de interesses (Ibidem, p. 97). Assim, a comprovação cientificista da nocividade das drogas amparou o discurso legal, privilegiando pesquisas alinhadas com os relatórios policiais, os comunicados de imprensa e a burocracia “especialista”, em detrimento de um

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sólido histórico de estudos indepentendes que obtiveram resultados diferentes quantos aos reais impactos das drogas, contrariando a irracionalidade da saída criminal para lidar com a questão (ZIMMER e MORGAN, 1997, p. 19-20).

O proibicionismo também institui-se via discursos morais e criminais sobre o “problema da droga”, eregido no senso comum, na mídia, nas doutrinações moralistas e, inclusive, em discursos políticos e institucionais, que ofuscam a percepção das substâncias legais como “drogas”, e tão pouco se atentam às classificações farmacológicas dos psicoativos – estimulantes, depressores, alucinógenos – e à diversidade de usos sociais das drogas. Nesses discursos, “drogas” e “drogados” referem-se de forma generalizada somente a psicoativos proibidos e aos grupos que os usam. Tal referência é feita como forma de estigma, em que as “drogas” são vistas como substâncias extremamente viciantes e degradantes, usadas e comercializadas tipicamente por grupos marginais e pessoas doentes, fracas, degeneradas material e moralmente, e, enfim, criminosas (OLMO, 1990, p. 22-23). Assim, grupos em condições marginalizadas na sociedade – seja pela segregação, pela pobreza, pela discriminação – são vistos como propensos a “cair no mundo das drogas” e são prioritariamente associados ao vício, ao crime, à violência, à insegurança, ao mal e à desordem social (MORAES e KULAITIS, 2013, p. 9). Segundo essa visão, a qual sustenta em grande medida a força irracional do proibicinismo, as “drogas” e os “drogados” são verdadeiros inimigos públicos a serem combatidos e exterminados, considerados como a fonte de diversos problemas sociais ou, pelo menos, sérios agravantes deles (GARCIA e ASSUMPÇÃO, 2005, p. 16).

O importante, portanto, não parece ser nem a substância nem sua definição, e muito menos sua capacidade ou não de alterar de algum modo o ser humano, mas muito mais o discurso que se constrói em torno dela. Daí o fato de se falar da droga, e não das drogas. Ao agrupá-las em uma única categoria, pode-se confundir e separar em proibidas ou permitidas quando conveniente. Isto permite também incluir no mesmo discurso não apenas as características das substâncias, mas também as do ator – consumidor ou traficante –, indivíduo que se converterá, no discurso, na expressão concreta e tangível do terror. Algumas vezes será a vítima e outras, o algoz. Tudo depende de quem fale.Para o médico, será 'o doente', ao qual deve-se ministrar um tratamento para reabilitá-lo; o juiz verá nele o 'perverso' que se deve castigar como dejeto. Mas sempre será útil para a manifestação do discurso que se permita estabelecer a polaridade

entre o bem e o mal – entre Caim e Abel – que o sistema social necessita para criar consenso

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desenvolvem-se novas formas de controle social, que ocultam outros problemas muito mais profundos e preocupantes. (OLMO, 1990, p. 22)

Na cruzada contra psicoativos, usos e grupos criminalizados, as instituições estatais de policiamento, repressão e punição se expandiram ao longo do século XX, tornando-se hegemônicas na condução da política de drogas. Ao mesmo tempo, a ideologia de “um mundo livre das drogas” consagrou-se nos foros internacionais e discursos oficiais como uma missão civilizatória, uma panacéia dos males humanos, um programa de ações governamentais intencionalmente orientado. O consenso e o apelo em torno dos princípios da proibição – a repressão, a abstenção, o encarceramento – encobrem suas origens e consequências. Dado que toda a investida policial das últimas décadas não impediu o crescimento do consumo e da produção das drogas, e esteve cada vez mais distante de cumprir a promessa de livrar a sociedade do vício e do crime, a lógica proibicionista manobra seu retorno de forma perspicaz: o fracasso sugere que o investimento na proibição é insuficiente e que, para evitar o risco do avanço da criminalidade e da dependência, é preciso ampliar o seu alcance (RODRIGUES et al., 2008, p. 102). Por outro lado, a persistência no fracasso das políticas de proibição sugere que, além de força ideológica, ela se apoia em estruturas políticas e econômicas históricas em que privilégios, lucros e dominação estão em jogo, atendendo aos interesses de uma série de atores sociais, tanto “perseguidos” como “perseguidores” (RODRIGUES, 2003a, p. 10; CARNEIRO, 2002, p. 19).

Há, porém, um conjunto de atores sociais que despontou nas últimas duas décadas questionando a criminalização e a repressão das drogas. Eles se baseam na crítica à ideia de “mundo sem drogas” e na avaliação dos efeitos perversos das políticas criminais e penais, do fortalecimento do crime organizado e da incapacidade de lidar com o abuso de substâncias. Como alternativa, eles apontam para a regulamentação dos mercados de drogas ilegais, a flexibilização da repressão ao varejo ilgeal e a ênfase no combate ao sistema macroeconômico do narcotráfico (RODRIGUES, 2004, p. 16). Ademais, esta compreensão pauta o tratamento da política pública pelo campo da saúde, da educação e da assistência social, argumentando que a redução de danos é mais efetiva na prevenção de usos abusivos e problemáticos de drogas (ROSA, 2013, p. 165).

A tarefa, então, é explicitar os fundamentos e os efeitos do proibicionismo, contemplada no capítulo 2; a geração de políticas alternativas, presente no capítulo 3; e a

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convivência delas no atual quadro das políticas públicas de drogas e sua relação com a estrutura de controle social, no capítulo 4.

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2 – HISTÓRICO DA POLÍTICA DE DROGAS

No mundo moderno, a feição da atual política de drogas tem raízes no colonialismo emergente a partir do século XV, em que certas drogas em voga – açúcar, café, tabaco, álcool, ópio, chocolate, chá e outras “especiarias” – constituíram peças fundamentais do nascente sistema mercantilista de acumulação primitiva do capital (CARNEIRO e VENANCIO, 2005, p. 17). Até o século XX, os Estados colonialistas empreenderam, juntamente com as companhias comerciais, um poderoso modelo liberal de produção e gestão das drogas, impulsionando e consolidando uma economia das drogas deveras estratégica.

Paralelamente ao surgimento de um mercado global de drogas, as instituições coloniais – o Estado, a Igreja e a Ciência – por meio da dominação do discurso e da força, ensaiaram reprimir usos de certas drogas nativas das colônias – especialmente as alucinógenas – que eram desinteressantes ou “perigosas”. Assim, cogumelos, chás e ervas utilizados de forma sagrada e medicinal para grupos indígenas, africanos e asiáticos foram perseguidas pela dominação colonial, que além da exploração do trabalho, da terra e das riquezas também se expressava enquanto dominação simbólica e moral sobre as populações autóctones (Ibidem, p. 16).

A América e o Oriente integraram-se assim no mundo moderno fornecendo suas riquezas vegetais e sofrendo a empreitada colonizadora que buscou regulamentar o consumo das plantas. O tabaco, traficado pelos jesuítas, após uma resistência inicial dos protestantes e dos orientais, foi aceito e valorizado, juntando-se ao álcool, ao açúcar, ao café, ao chá e ao chocolate para constituírem o universo das drogas oficiais da vida cotidiana moderna, enquanto outros, como os cactos e cogumelos alucinógenos americanos foram proibidos pela Igreja no período colonial, assim como os derivados do ópio, da coca e da maconha, a partir do século XX, conheceram o estatuto da proscrição, nas diversas formas de proibicionismo. (CARNEIRO, 2002, p. 2)

Assim, as primeiras políticas de drogas se manifestaram em dois sentidos: certas drogas são estimuladas, integradas e comercializadas livremente enquanto outras têm produção e uso perseguido ou restrito. Os fatores que condicionam o interdito ou o estímulo variam nos casos específicos de cada droga, cada lugar e cada período, respondendo à ação de seus atores. Na modernidade, esses fatoresse se associam primordialmente com a consolidação do sistema colonial mundial a partir da época quinhentista, a saber, através da exploração comercial de especiarias e gêneros exóticos das colônias, consumidas como

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mercadorias de luxo pelas classes abastadas das metrópoles europeias (Idem); em seguida, conectam-se com a expansão das necessidades humanas e do potencial mercadológico de certas drogas, que, antes objeto de requinte e luxo, passaram a ser consumidas em escala massiva pelos povos, como o açúcar e o tabaco, e representaram, assim, pilares da constituição da modernidade capitalista e de fenômenos que a acompanham – revolução industrial, tráfico, genocídio e escravidão (Ibidem, p. 9-10); paralelamente, associam-se também à estrutura de poder socialmente estabelecida que estratifica a criação e a fruição das necessidades e do consumo (Ibidem, p. 16); integram-se com as políticas de controle e disciplinamento da vida privada das classes trabalhadoras de acordo com as demandas produtivas e com a racionalização generalizada da experiência ocidental (Ibidem, p. 18); e, atualmente, relacionam-se com estratégias econômicas e geopolíticas de imperialismo, especulação e policiamento (Ibidem, p. 19-20).

A política sobre o ópio dentre os séculos XIX e XX expressa as transformações referidas e testemunha o aparecimento dos paradigmas políticos de tratamento às drogas na esfera do Estado moderno. Enquanto que em meados do século XIX o Império Britânico levou a cabo duas guerras contra a China para abrir seus grandes mercados para o ópio, produzido na Índia e traficado pelos ingleses, logo na virada do século são realizadas as primeiras conferências internacionais com orientações restritivas ao ópio, protagonizadas pelos EUA e seus ascendentes interesses geopolíticos entre as nações do extremo oriente. Naquele momento, o livre mercado não estava na agenda governamental e o consenso produzido sobre a nova política de opióides instituía os usos em duas categorias oficiais: os legais, restritos ao uso médico, e os ilegais, agrupando todos os demais usos, como religiosos e recreativos. Ao passo dos foros sobre drogas das duas primeiras décadas do século XX, as nações adéquam suas legislações e mecanismos de controle às políticas restritivas do ópio, criando modelos de proibição que logo se aplicam a outras drogas. Certamente os EUA tiveram papel de destaque nesse avanço, cujo projeto de poder se realiza tanto externamente quanto internamente, afinal, os povos a serem conquistados o serão primeiramente na pátria do conquistador, através da associação direta entre negros e cocaína, hispânicos e marijuana, irlandeses e álcool, chineses e ópio (RODRIGUES et al., 2008, p. 95).

É nesse contexto que a questão das drogas, até então majoritariamente comercial, amplia sua dimensão como “problema”, na medida em que se acirra um conflito social entre discursos e práticas sobre drogas de grupos e classes distintas. Nos EUA, protagonistas da

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proibição mundial, as legislações e mecanismos de controle restritivos são articulados através de diversos discursos de poder: o discurso médico-sanitarista, único que possui a legitimidade científica e os recursos da saúde pública, constrói seu monopólio sobre o uso farmacêutico das substâncias ao mesmo tempo em que combate os demais usos “perigosos” e “doentios”; o discurso moralista-racista, representado no puritanismo e no sistema de apartheid social, que dita quais condutas morais são legítimas (e dominantes) e criminaliza e segrega grupos minoritários e seus usos de drogas; os industriais, que pressionam os governos conforme as cotações das suas mercadorias; e os policialescos, que autorizam a expansão da repressão e do controle governamental sobre as “classes perigosas”:

O despontar de associações moralistas contra psicoativos e da vinculação entre minorias e drogas não foi exclusividade dos estadunidenses, sendo localizável em outros países da América e da Europa (Carneiro, 1993; Escohotado, 1998; Rodrigues, 2004a). É possível identificar o período em que o uso de drogas psicoativas deixa de ser considerado pelos governos como um problema sanitário de menor importância para ser entendido como uma “epidemia” e, como desdobramento quase imediato, como um “caso de polícia”: é justamente nos anos 1910 e 1920 quando o hábito de intoxicar-se deixa de ser uma exceção em meio aos filhos da “boa sociedade”, gracejando entre prostitutas, pequenos criminosos, nas classes trabalhadoras urbanas etc. Para o moralismo proibicionista, significava a difusão do “Mal”; para a classe médica e as autoridades sanitárias, o crescimento de um grave problema de saúde pública; para os estrategistas da segurança pública, a proliferação de criminosos. A um só tempo, um pecado e um crime de lesa sociedade. (Idem)

Logo, a confluência dos interesses e percepções sobre o “problema” das drogas nos diversos países gerou as primeiras leis de proibição, sendo o Volstead Act, a Lei Seca de 1919, a política pública inaugural e modelar para o proibicionismo. Através dela, foram criminalizados os circuitos da produção, circulação e comercialização das bebidas alcoólicas no território estadunidense, lançando a economia dessas drogas na clandestinidade. Nesse caso, a demanda e a pressão pela proibição eram pautadas por diversas associações puritanas, as quais se compreendiam encabeçando uma luta contra as “mazelas morais” da sociedade – como, também, os jogos de azar e a prostituição –, em nome dos “bons costumes” (RODRIGUES, 2004, p. 4).

Enquanto política de drogas, o proibicionismo surge com o objetivo (ou o “problema”) de não somente de acabar com uma substância, mas toda uma variedade de práticas sociais que envolvem usos da droga específica. Sua intenção proclamada se compromete a eliminar o

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mercado da droga por meio da repressão de toda a cadeia econômica, incluindo produtores, distribuidores e usuários. O princípio manifesto do proibicionismo é de que o combate à oferta e demanda da droga encarece o preço e desestimula o mercado, ocasionando sua extinção gradual. Em paralelo, um combate ideológico também é executado através dos discursos governamentais, educacionais e midiáticos, para desencorajar subjetivamente qualquer tipo de uso do psicoativo. Na maioria dos casos, a propaganda antidroga é composta de pré-noções moralistas e racistas sobre usos e usuários, sem qualquer evidência científica coerente (Ibidem, p. 9).

Em termos de políticas públicas, o proibicionismo se efetiva no incremento do aparelho judicial-criminal, do sistema prisional e manicomial, do aparato policial de repressão, da intervenção médico-sanitária e das campanhas ideológicas enquanto mecanismos estratégicos para tratamento do “problema social” percebido: a existência da droga e do usuário em si é o problema, e é um “caso de polícia” ou de “doença”. A execução das políticas se dá mediante a seletividade do controle social, enquadrando preferencialmente as “classes perigosas” segundo critérios de classe, raça, geração, gênero e geográficos em um sistema de desigualdades e exclusões históricas da estrutura social.

A partir do instante em que determinados grupos são diretamente associados a um crime, quaisquer que seja sua natureza, o aparato coercivo estatal volta-se contra ele sob a justificativa de aplicar a lei. É interessante reparar que o 'novo crime' do tráfico e consumo de drogas foi imediatamente conectado a camadas das crescentes populações urbanas que representavam uma ameaça ao Estado e às classes que o controlavam: perigo de insubmissão, de greve, de higiene, de ataques à pessoa e à propriedade. Na Europa, Estados Unidos ou Brasil, essa massa amedrontadora era conformada por negros, imigrantes e migrantes rurais, socialistas, anarquistas, ladrões, prostitutas, operários, mulheres, homens e crianças de 'hábitos exóticos e não civilizados'; eram eles a antítese do progresso e das maravilhas do mundo moderno. (Ibidem, p. 96)

Em 1930, quando a proibição do álcool foi revogada nos EUA, dois efeitos da política repressiva já estavam claros: o primeiro é a larga expansão dos instrumentos estatais de repressão e controle; o segundo é, em vez da neutralização da economia da droga, o fortalecimento de um mercado ilegal para clientes ilegais, originando um ramo de atividade extremamente lucrativo em vista do risco e da desregulamentação (e omissão) do Estado, uma verdadeira máquina de gerar criminalização, criminalidade e violência – eis o narcotráfico e

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sua gama de cartéis, máfias e gestores da droga alastrando suas redes de poder, inclusive entre instituições e agentes estatais (CARNEIRO, 2002, p. 3).

Apesar de explicitamente produzir efeitos contrários aos seus objetivos nessa experiência, a política de drogas proibicionista continuou e se expandiu para um rol cada vez maior de drogas nos EUA e, por sua influência, na maioria dos países, impulsionados pelos foros internacionais da Liga das Nações e, no pós-guerra, da Organização das Nações Unidas (ONU). O proibicionismo se consagrou definitivamente como política padrão global no tratamento aos psicoativos ilícitos nas décadas de 60, 70 e 80, tornando-se hegemônico até os dias atuais, em um processo que tem como episódios marcantes a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988, realizadas pela ONU, e a declaração de "guerra às drogas" pelo presidente estadunidense Richard Nixon, em 1972 (KARAM et al., 2008, p. 118). No compasso do avanço da geopolítica do “problema das drogas” como questão de “segurança nacional” e intervenção militar, a economia da droga e os efeitos nefastos e manifestos do paradigma repressivo também se mundializaram (RODRIGUES et al., 2008, p. 99). Nas últimas décadas, diversos países adaptaram suas legislações conforme as pressões internacionais, mesmo que as políticas proibicionistas significassem explícitas violações às declarações universais de direitos e às constituições democráticas nacionais (KARAM et al., 2008, p. 105).

Com a guerra às drogas, as ligações entre grupos e psicoativos se internacionalizam. Novos “responsáveis” pela disseminação das drogas ilegais são apontados. Eles estão na América Latina – colombianos, peruanos, bolivianos, mexicanos –, na África – nigerianos, marroquinos, senegaleses – e na Ásia – birmaneses, afegãos, tailandeses. A lógica em operação é a da identificação da ameaça no além-fronteiras, idéia condensada no discurso do governo estadunidense que divide o mundo em países consumidores, as “vítimas”, e países produtores, os “agressores”. (RODRIGUES, 2004, p. 8)

No Brasil, o processo de instituição das leis de drogas está marcado, fundamentalmente, pelos primeiros mecanismos do Decreto-Lei de Fiscalização de Entorpecentes n° 891/38 e do Código Penal de 1941, pela promulgação da Lei de Tóxicos, nº 6.368 de 1976, e do Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização e Repressão, na década de 70, pelo Sistema Nacional Antidrogas, na década de 90, e, hoje em dia, pela Lei nº 11.343 de 2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD). Há um

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evidente aprofundamento do paradigma proibicionista no percurso da mudança legislativa, em consonância com o endurecimento da aplicação da política pública criminal e a legitimação dos argumentos da proibição no imaginário social, ao passo que uma margem estreita de políticas alternativas é permitida (GARCIA, LEAL e ABREU, 2008).

Juridicamente, o aumento da criminalização se expressa nas disposições da lei mais recente sobre os mecanismos: 1) de aumento das penas, alterando o tempo mínimo de 3 para 5 anos de reclusão, e agravando as circunstâncias qualificadoras (por exemplo, comércio ilegal com porte de armas); 2) de criminalização antecipada, ignorando as fronteiras entre tentativa e consumação do crime (por exemplo, combatendo produtos considerados matéria-prima de fabricação de drogas ilícitas); 3) de equiparação do fornecimento gratuito com o tráfico; 4) de tipificação de crime por associação ao tráfico de drogas (por exemplo, o financiamento das atividades ilegais); 5) de aplicação de penas privativas de liberdade, impedindo a execução de penas alternativas (como penas restritivas de direitos); 6) de grande aumento nos valores de aplicação de multa; 7) de negação dos pedidos de liberdade provisória, equiparando o crime de tráfico aos crimes hediondos (como homicídio e estupro); 8) de restrição ao recurso contra a sentença condenatória para reincidentes criminais; 9) de legitimação de meios invasivos e abusivos na obtenção de provas, executados principalemente por agentes policiais antes e durante o processo; 10) de necessidade de comprovação da origem de patrimônio do incriminado; e 11) de manter a criminalização da posse de psicoativos para consumo pessoal, através de penas de advertência, prestação de serviços à comunidade, comparecimento a cursos educativos, repreensão, multa e, em certa medida, prisão. À custa de direitos humanos e constitucionais, o proibicionismo viola uma míriade de princípios jurídicos, como o princípio da lesividade da conduta proibida, que caracteriza a conduta criminal quando ela afeta direta ou indiretamente bens jurídicos relacionados a direitos individuais; o princípio da proporcionalidade, que estabele que o Estado não pode cometer excessos em sua atuação; o princípio da individualização da pena, que impede a generalização abstrata das condutas criminais; o princípio da culpabilidade, o qual garante que “ninguém pode ser punido pelo que é, mas apenas pelo que fez”; o princípio da isonomia, o qual prevê que todas as pessoas em igualdade de situação têm de ser tratadas de forma igual; a garantia do estado de inocência e da possibilidade de recurso no processo; a garantia do direito a não se auto-incriminar; e o princípio da liberdade individual (KARAM et al., 2008, p. 106-117).

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Mantendo a criminalização da posse para uso pessoal, a Lei 11.343/06 repete as violações ao princípio da lesividade e às normas que, assegurando a liberdade individual e o respeito à vida privada, estão ligadas ao próprio princípio da legalidade, que, base do Estado de direito democrático, assegura a liberdade individual como regra geral, situando proibições e restrições no campo da exceção e condicionando-as à garantia do livre exercício de direitos de terceiros. (Ibidem, p. 116)

Assim, o aparelho judicial-criminal do Direito Penal, teoricamente instituído para lidar com os conflitos somente quando outros meios de controle social falham – segundo o princípio da “ultima ratio” –, tornou-se a principal via de execução da política de drogas (MORAES e KULAITIS, 2013, p. 7). Como um instrumento de guerra ao “inimigo”, o aparelho escamoteia percepções estruturais e integradoras dos problemas sociais, gerando em larga escala os efeitos perversos do controle social, como violência, medo, insegurança, segregação e ódio. À medida que o fracasso da política de drogas fica mais evidente, os interesses na sua manutenção propagandeiam que há, na realidade, uma “crise da segurança pública” em vista de uma situação emergencial e incontrolável da criminalidade, e que a solução para o quadro é intensificar a repressão e a criminalização (KARAM et al., 2008, p. 117).

Teoricamente, “segurança pública” é efeito de mecanismos de controle social com finalidade de integração e interação sociais, gerando sensação de segurança e ausência de medo. A nível prático, o termo designa mecanismos de manutenção da ordem, a exemplo brasileiro, representados no conjunto do sistema de justiça criminal e penal (instituições do judiciário, ministério público, defensoria pública, secretarias estaduais e federais de segurança pública, polícias, sistema penitenciário). Deve-se observar a definição de ordem tomada na orientação da ação dessas instituições. Geralmente, a noção de “ordem” se remete a interesses de estruturas de poder, as quais orientam a ação de manutenção da ordem como manutenção de privilégios minoritários em detrimento de direitos da maioria. Os mecanismos da segurança pública presentes no Brasil são herdeiros de estruturas sociais e políticas marcadas pela desigualdade e repressão, como a ditadura militar. Essas características são determinantes na seletividade com que opera o sistema de justiça criminal. Assim, o escopo da segurança pública restringe-se a segmentos sociais despossuídos ou em conflito com a “ordem”, como as populações periféricas, reproduzindo o fenômeno de criminalização da marginalidade e da pobreza (MORAES e BERLATTO, 2013c). A seletividade baseia-se na concepção de que os

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excluídos da sociedade de bem-estar são pontenciais criminosos, verdadeiras ameaças a seguridade da civilização, associando diretamente as condições de pobreza material com a degradação moral. Daí que o discurso da segurança pública se constitui como fundamento prioritário da intervenção estatal, tomando referência na elaboração e execução das políticas públicas. Em nome da “pacificação social”, a militarização das polícias, o patrulhamento e a repressão ostensiva, e a ocupação de territórios demarcados como locus do crime tornam-se regras e condicionantes para qualquer abordagem de políticas sociais. Em se tratando de políticas de drogas proibicionista, essa é a regra. O fenômeno da policialização das políticas públicas e dos conflitos sociais está na raiz da manutenção dos efeitos perversos sentidos pela sociedade em geral (MORAES e KULAITIS, 2013, p. 7-9).

De forma muito resumida, mas suficiente para iniciar a reflexão, o que estamos definindo como a policialização das políticas publicas é o processo por intermédio do qual os discursos sobre a produção da segurança pública tomam a centralidade na elaboração de uma política pública se constituindo pela prevalência ou priorização da utilização das polícias na implementação da política. (Ibidem, p.6)

[...] Sendo assim, talvez fosse mais preciso para tratar da policialização das políticas públicas, a observação de que isto ocorre quando o sistema de justiça criminal é acionado pela utilização das polícias na elaboração das políticas ou, pior ainda, quando as polícias são as proponentes das políticas públicas de cunho social, cujos exemplos, pelo menos no caso do Paraná, seriam a Patrulha Escolar e o PROERD, nos quais a polícia se faz presente no cotidiano escolar. (Ibidem, p.7)

[…] Talvez fosse melhor dizer uma policialização militarizada das políticas públicas. Que teria sua base no que dissemos logo que iniciamos a elaboração desta análise, a saber, a associação entre criminalidade e marginalidade social parece estar presente na concepção de políticas públicas voltadas a esta população “marginal” dado que as ações propostas, sejam na área de assistência social ou de segurança pública, identificam a pobreza como premissa para entrada no mundo da criminalidade e buscam manter os jovens pobres ocupados e isolados do seu próprio grupo. Estas políticas acabam por reforçar a dinâmica de marginalização que pretendem combater e lançam sobre essa população um estigma de grupo e de território, ou seja, de uma área supostamente marcada pela violência e habitada por criminosos e ou futuros criminosos. (Ibidem, p. 9)

No caso do narcotráfico, a seletividade classista e racista do combate policialesco cria um estigma sobre a figura do “traficante”, ocultando toda a rede de organizações, legais e

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ilegais, que operam a economia das drogas em simbiose com o Estado ao longo dos séculos. A imagem do “criminoso” é definida de acordo com discursos condicionados pelas estruturas de poder e dominação, em que os papéis das elites econômicas e políticas e das instituições estatais na conformação das economias e organizações ilegais é invisibilizado pelas ideologizações das “classes perigosas” e do “inimigo” (MORAES e BERLATTO, 2013b). O crime organizado se estrutura em relação íntima com a lógica das instituições, da burocracia e das elites, da mesma forma que setores de mercados legais e ilegais combinam-se na gestão das drogas. Empresas narcotraficantes estão inseridas em posições centrais em mercados financeiros globais e políticas econômicas nacionais, setores de alta rentabilidade e menor violência. A guerra às drogas e o narcotráfico no proibicionismo mundial tornaram-se fontes de estratégias geopolíticas e militares. Essa característica simbiótica é reconhecível no contexto brasileiro em fenômenos como a influência dos grupos do varejo em São Paulo e Rio de Janeiro, o poderio das milícias, os casos de comprovação ou suspeita de envolvimento de profissionais políticos, operadores do judiciário e oficiais da polícia com o tráfico, e a ampliação das rotas e centros de produção e consumo de drogas, principalmente maconha e cocaína, articuladas, em alguma medida, ao poder público (RODRIGUES, 2003a, p. 10)5.

A permanência da “face oculta da droga”, das estigmatizações convenientes e das generalizações que impedem a percepção e o conhecimento sobre as questões econômicas e políticas das drogas é alimentada fundamentalmente pelos discursos midiáticos. Meios de comunicação de massa são portadores de uma legitimidade informativa determinante na formação do imaginário a respeito dos problemas sociais, muitas vezes se assumindo como porta-vozes da agenda pública. As construções simbólicas midiáticas perpassam arranjos de discursos propagandistas, morais, científicos e didáticos que informam as percepções e ações individuais e coletivas, dentro de um campo de lutas simbólicas e produção de representações sociais a respeito dos conflitos e fenômenos. Em grande medida, elas tem cumprido um papel relevante na percepção sobre o medo, a violência, os problemas e as saídas para eles, constituindo-se, assim, como fontes de controle social e mecanismos de manipulação de interesses diversos. O uso do medo como mercadoria estimula uma indústria de consumo renovável de produtos de segurança, e, como relação com o “outro”, canaliza a culpabilização dos problemas sociais sobre aqueles que não compõem a normatividade social (MORAES e ALMENDRA, 2012, p. 268-269). Assim, o discuro proibicionista se atualiza constantemente

5 Paginação deduzida a partir da versão encontrada em http://www.neip.info/downloads/artigo2.pdf. Acessado em 13/12/2014.

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mobilizando o imaginário social em torno de informações parciais, ocultamentos ideológicos e sentimentos de ordem bastante sensível.

Porém, tão logo notam-se os seus efeitos, críticas e reações ao proibicionismo crescem em variados grupos sociais, em vários países, expressando-se inclusive em projetos alternativos de políticas públicas para as drogas e movimentos pró-legalização (SILVESTRIN, 2013, p. 119).

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3 – POLÍTICAS ALTERNATIVAS ÀS DROGAS

Nas últimas décadas, discursos inovadores na abordagem às drogas vem galgando espaço, tanto entre os grupos de usuários e suas redes, como nas regulações oficiais das políticas de segurança pública, saúde, educação e assistência social. No Brasil, esse movimento ganha força após a reabertura democrática, atravessando as décadas de 90 e de 2000, chegando aos dias atuais com inserção concreta na agenda pública e no imaginário social. Suas várias tendências tomaram forma no que se chamou de antiprobicionismo, agrupando diversos atores num consenso a respeito do fracasso da proibição e da necessidade de alternativas.

Esses atores – principalmente usuários, operadores da segurança, profissionais da saúde, pesquisadores, movimentos sociais, micro e grandes empresários – destacam-se na pequena abertura dentro do proibicismo, a qual se traduz em mudanças na percepção sobre as drogas e na efetivação de algumas políticas públicas alternativas à guerra e à repressão, baseadas na regulação dos usos e mercados na educação sobre as drogas. Dentre a miríade de influências no campo antiproibicionista, destacam-se, a seguir, a Redução de Danos (RD), a justiça restaurativa e o abolicionismo penal, a Marcha da Maconha e a cultura canábica.

O movimento de Redução de Danos tornou-se um marco nesse campo, constituindo-se formalmente a partir de meados da década de 1980, em países como Holanda, Reino Unido e Suíça, com projetos focados na prevenção de HIV e outras doenças entre usuários de heroína e cocaína injetáveis, distribuindo seringas descartáveis para evitar o compartilhamento do instrumento, criando ambientes para uso controlado e admitindo a prescrição de metadona para o tratamento de depententes. As políticas de redução de danos inovaram na abordagem da questão, reconhecendo a impossibilidade de extinguir os hábitos de intoxicação da sociedade, mas atentando-se às chances de previnir e minimizar os impactos colaterais dos usos de drogas entre os indivíduos, os grupos e a sociedade em geral (RODRIGUES, 2004, p. 10). Elas surgiram como iniciativas para tratamento de usuários de drogas lícitas e ilícitas, em risco ou dependentes, colocando-se como alternativa ao modelo preventivo da medicina sanitarista e ao modelo compulsório e manicomial das comunidades terapêuticas. Ora, rejeitam a abstinência como regra terapêutica e integram a gestão dos usos com a liberdade individual, abandonam a estigmatização patológica dos usuários e os reconhecem como sujeitos de direito (ROSA, 2013, p. 164).

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No Brasil, as primeiras iniciativas de redução de danos despontam a partir de 1989, vinculadas a estratégias de prevenção de AIDS e outras Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), enfrentando, porém, processos e retaliações judiciais pelo Estado. A resistência à RD parte do paradigma da abstinência, composto por uma rede de instituições que dispõem sobre os controles sociais das drogas, almejando a hegemonia das formas de tratamento e da submissão do campo da saúde ao poder jurídico, psiquiátrico e religioso (PASSOS e SOUZA, 2011, p. 157-158). Em 1994, com o Programa Nacional de DST/AIDS, em 2003, por meio da Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas, e na instituição de outros Programas de Redução de Danos (PRDs) é que as alternativas são sistematizadas e efetivadas como orientações da política pública nacional, entretanto, ainda bastante limitadas perante a margem da burocracia institucional e o escopo dos princípios da guerra às drogas.

Por isso, a militância dos redutores de danos fundou a Associação Brasileira dos Redutores de Danos (ABORDA), em 1996, organizando-se políticamente e difundindo a rede de entidades e Organizações Não Governamentais (ONGs) parceiras pelo país. A emergência do movimento de redução de danos permitiu a expansão de uma abordagem mais autônoma, crítica e propositiva sobre os PRDs instituicionais e os próprios métodos. Pouco a pouco, usuários de drogas, travestis, profissionais da saúde, pesquisadores e portadores de DSTs foram apropriando-se dos princípios e práticas da RD, endossando as mobilizações nacionais por mudanças na política de drogas, como a descriminalização dos usuários, a sua inclusão democrática na gestão terapêutica e o fim dos tratamentos punitivos. Enfrentando as contradições de financiamento e vinculação estatais das ONGs, o movimento da redução de danos articulou-se com diversos outros movimentos de minorias, como o antiproibicionismo, a comunidade LGBT, a organização das prostitutas e a luta antimanicomial. O fortalecimento da rede de articulação, cogestão e cuidado é fundamental para a efetividade das alternativas de redução de danos (Ibidem, p. 159-160).

Não podemos esquecer, e certamente isto é o mais essencial, que a RD é um método construído pelos próprios usuários de drogas e que restitui, na contemporaneidade, um cuidado de si subversivo às regras de conduta coercitivas. Os usuários de drogas são corresponsáveis pela produção de saúde à medida que tomam para si a tarefa de cuidado. reduzir danos é, portanto, ampliar as ofertas de cuidado dentro de um cenário democrático e participativo. […] A RD se torna uma estratégia ampliada de clínica que tem ofertas concretas

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de acolhimento e cuidado para pessoas que usam drogas, dentro de arranjos de cogestão do cuidado, tendo como um dos principais desafios a construção de redes de produção de saúde que incluam os serviços de atenção do próprio Sistema Único de Saúde, Emergências Hospitalares e internações breves, Postos de Saúde, Estratégias de Saúde da Família, Caps-ad. (Ibidem, p. 161)

Apesar da efetividade demonstrada mesmo em um limitado conjunto de ações de RD, as abordagens alternativas ao modelos preventivo e manicomial ainda encontram sérios entraves para ganhar espaço em instituições e políticas públicas voltadas às drogas e aos usuários, como nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (Caps-AD), organizados na Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Drogas, de 2003 (Idem; GARCIA, LEAL e ABREU, 2008, p. 271).

Se a redução de danos pretende superar os estigmas patologizantes imputados aos usuários, as propostas da justiça restaurativa e do abolicionismo penal têm como meta a flexibilização dos sistemas punitivos e criminais, inclusive na sua incidência sobre usuários e comerciantes de drogas, e a busca de alternativas jurídicas para a resolução de conflitos.

A crença moderna de que há no corpo social uma parcela de grupos e pessoas tão desviantes e degenerados, incapazes de adequarem-se plenamente ao convívio social, está na base da construção de sistemas punitivos, incumbidos de fazer valer a normatividade, o castigo e o sofrimento como maneiras de lidar com os agentes considerados corruptores. O exercício desses sistemas compreende o rol de instituições policialescas e criminais do Estado – como as polícias e a prisão – e também um grande número de microrrelações políticas e organizações do cotidiano – como as da escola, da indústria, do lar – as quais reproduzem seletivamente os mecanismos de controle social sobre as “classes perigosas”, sejam povos e Estados externos sejam os “inimigos internos”. Desse modo, a justiça retributiva e seu conjunto de dispositivos judiciais e penais tornaram-se a via de regra na lida com aqueles que representam a origem dos conflitos e da instabilidade social, como, no curso do proibicionismo, os usuários e pequenos varejistas de drogas (RODRIGUES, 2004, p. 2-3).

Questionando os resultados de uma ordem vingativa e desigual, o abolicionismo penal e a justiça restaurativa partem de premissas distintas na abordagem e resolução dos conflitos, compreendendo as limitações e os efeitos perversos que o uso amplo e universal de métodos punitivos apresentam nesses casos. Em vez de generalizar os contextos criminais e as penalidades retributivas, as diretrizes abolicionistas tratam a conflitividade como uma

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situação-problema, em que o acompanhamento das especificidades do fenômeno buscam uma solução local e conciliatória entre as partes, na qual toma centralidade a reparação dos atos danosos envolvendo algoz e vítima. Para a política de drogas, especificamente, a localidade e a singularidade das práticas a serem reguladas encontram-se nos modos e padrões de consumo dos usuários, interessantes delineadores de métodos individuais e coletivos para autocontrolar e integrar as experiências com psicoativos (Ibidem, p. 14-15).

Enquanto na justiça retributiva o Estado se coloca no lugar da vítima, que deixa de ser protagonista do processo, tornando-se mero coadjuvante, e o acusado deixa de ser sujeito, tornando-se objeto das determinações do poder judiciário, na justiça restaurativa tanto as vítimas quanto os seus infratores são reconhecidos como sujeitos, tendo o Estado apenas como mediador do conflito, no intuito de reparar o dano causado por uma das partes. Com a redução de danos ocorre de forma análoga, pois enquanto se tem no modelo médico-sanitário a presença do poder do médico em prescrever e muitas vezes obrigar o usuário a um tratamento pautado na abstinência, considerando-o mero objeto em relação às suas determinações, o modelo alternativo surge no intuito de dar voz a esses sujeitos e reconhecê-los como cidadãos. (ROSA, 2013, p. 175)

Tais linhas apontam para um tratamento às drogas alternativo, questionando em certa medida os parâmetros políticos binários de políticas públicas para drogas legais e ilegais. A constatação da defasagem entre o conhecimento e a legislação nasce da percepção do complexo campo das drogas, e da necessidade de reconhecer e tratar cada um de seus usos a seu modo (RODRIGUES, 2003b, p. 4-5). Embora na academia venha se consolidando um consenso em torno do fracasso da proibição das drogas como política de Estado, na sociedade em geral, a visão de que a economia de certos psicoativos deve ser criminalizada ainda é hegemônica, generalizando a via criminal para combater os usos, a produção, o comércio. Por outro lado, compreendendo as limitações das propostas alternativas no cenário da proibição e da repressão, atores e movimentos que encabeçam as proposições de políticas radicais para a superação do proibicionismo se apropriam das práticas e discursos da RD e do abolicionismo, considerando-as como medidas importantes num quadro mais vasto de reformas.

A crítica ao proibicionismo presente nos discursos de redução de danos não implica necessariamente numa defesa de posturas mais radicais no que se refere à situação legal das drogas. Conforme apontam Weingardt & Marlatt, “a abordagem de redução de danos é compatível com uma grande variedade de opções políticas que se situam em um espectro entre a legalização total e a proibição total”. Por “legalização total” poder-se-ia supor uma situação

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na qual não houvesse controles governamentais sobre a produção, circulação, venda e consumo de psicoativos compondo um cenário de desregulamentação ultra-liberal. Os autores, no entanto, fazem questão de salientar que tal grau de liberalização não seria prudente devido à ausência de controles públicos efetivos sobre o circuito comercial das drogas psicoativas. Em todo caso, “as intervenções de redução de danos são compatíveis com todas as opções de políticas de drogas, inclusive a proibição”. Em um ambiente proibicionista alguns movimentos são possíveis, como a troca de seringas, mas as chances de ampliação do auxílio aos consumidores de psicoativos aumentam com a flexibilização das políticas antidrogas. Assim, o terreno para a redução de danos é mais fértil num país como a Holanda, em que há descriminalização de facto do uso de psicoativos, do que nos Estados Unidos ou Brasil. (Ibidem, p. 8-9)

Está em curso o fortalecimento de uma frente em prol da legalização das drogas, que faz a conexão dos debates acadêmicos, culturais, jurídicos e políticos com a sociedade civil e o mercado. Destaca-se nesse processo a discussão sobre a legalização da planta Cannabis sp., a droga ilícita mais consumida mundialmente, e seus derivados alimentares, medicinais e industriais, como primeiro passo na flexibilização das proibições e da repressão. No contexto brasileiro, o movimento “Marcha da Maconha” e a “cultura canábica” congregam esses atores sociais e suas bandeiras, e se constituem como contrapontos da hegemonia proibicionista (SILVESTRIN, 2013, p. 11-12).

Inicialmente, a militância pela legalização da maconha enfrenta os discursos morais, sanitários e criminais sofrendo uma estigmatização de face dupla: a primeira recai sobre a planta em si e a segunda atinge aqueles que colocam-se publicamente em defesa de transformações legislativas e políticas no tratamento dela (Ibidem, p. 7). Desse modo, o movimento se incumbe das tarefas de disseminar informações históricas, culturais e ecológicas a respeito da canábis entre os usuários e suas redes, e de pautar os debates políticos sobre os fundamentos e as consequências da proibição, os projetos de mudança nos países do mundo e no Brasil e os próprios rumos do movimento antiproibicionista entre apoiadores e não apoiadores de suas demandas. Iniciando a década de 70, com breves iniciativas de discussão, e atravessando as décadas de 80, com os primeiros manifestos públicos pela legalização da canábis e os primeiros encontros organizados de estudiosos e militantes no tema a ter certa expressão, e 90, quando alguns profissionais políticos defensores da legalização foram eleitos e a cultura canábica recebeu grande impulso, contorou-se um

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movimento germinal de defesa da legalização da maconha, mas de pouca inserção e relevância no cenário político nacional (Ibidem, p. 122-123).

Internacionalmente, os movimentos pela legalização despontaram com a realização da Million Marijuana March, a qual teve sua primeira edição brasileira em 2002, na cidade do Rio de Janeiro. Nos anos seguintes, usuários, personalidades políticas e organizações, como a Psicotrópicus – ONG antiproibicionista –, o fórum de internet Growroom – dedicado a cultivadores da planta – e o Movimento Nacional pela Legalização das Drogas (MNLD), reuniram forças para consolidar a marcha na cidade e, aliados a diversos outros coletivos regionais, associações de redução de danos e de usuários de drogas, partidos políticos, entidades estudantis, ONGs e movimentos pró liberdades individuais, buscaram articulá-la no Brasil todo:

[…] As edições locais da marcha são organizadas por coletivos regionais, autônomos em suas decisões, mas com acesso às discussões nacionais que ocorrem, em sua maioria, na lista de emails da marcha e no fórum do site do evento. Estas discussões não tem caráter decisório, em sua maioria, mas são antes troca de experiências e de escopo gerencial, como acerto de datas, postagens nos blogs, etc., sendo que a única regra que percebi estar bem estabelecida e valer para todos os coletivos diz respeito às datas do evento, que, em obediência ao calendário mundial da GMM6, deve ocorrer no mês de maio. Nos últimos dois anos, no entanto, por conta do elevado número de cidades que realizaram manifestações, algumas acabaram por ocorrer no começo do mês de junho. Esta preferência pelo mês de maio sofreu a mesma adaptação ao contexto nacional, o mesmo 'abrasileiramento' que o nome do evento – de Global Marijuana March para Marcha da Maconha – e ganhou a alcunha de “Maio Verde”, em alusão ao “Abril Vermelho”, mês de protestos e invasões de terras como meio de pressão do Movimento Sem Terra e outros congêneres da luta no campo. (Ibidem, p. 124)

Para além de pautar as discussões políticas sobre a canábis e a proibição, o evento da Marcha da Maconha, realizado, a partir de 2007, foi assumindo o caráter de manifestação catártica, comemorativa e afirmativa entre seus participantes, cada vez mais influenciada pelo universo da cultura canábica. Progressivamente com mais adeptos e organizadas em mais cidades – como Curitiba, São Paulo, Recife e outras –, as marchas passaram a chamar a atenção da sociedade, da mídia e da ação judicial e policial, sendo várias vezes proibidas e perseguidas nos anos seguintes, em especial no ano de 2008, principalmente sob o argumento de que o movimento fazia apologia às drogas. Entretanto, o conjunto de fatos, notícias,

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prisões e violências trouxe, em certa medida, uma publicidade positiva para movimento, extendendo o alcance do debate sobre a legalização da maconha no país (Ibidem, p. 129).

Ademais, a interdição das marchas por autoridades do judiciário propiciou a mobilização do movimento para pressionar o poder público e garantir a realização do evento com respaldos constitucionais e jurídicos, alegando o direito à liberdade de expressão e à discussão sobre a mudança na política de drogas. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal, pressionado pelo movimento, pela sociedade civil e pela péssima repercussão da repressão policial à manifestação em São Paulo, julgou inconstitucional a criminalização da Marcha da Maconha por acusação de apologia ao crime, fato que legalizou incontestavelmente a realização do evento e que representou um considerável recuo proibicionista no país (Ibidem, p. 131).

De lá para cá, as marchas e outros diversos eventos culturais e políticos no âmbito do movimento pró legalização da maconha vem sendo realizados, aumentando sua força social e sua importância na arena política. Percebendo esse avanço, atores do meio reconheceram a profusão de uma cultura canábica, relacionada a estilos de vida em torno dos usos da planta, com plenos potenciais para desenvolver um mercado próprio. Assim, uma parte da atividade militante integrou-se a modestos empreendimentos e negócios no ramo cultural, procurando atender a demandas localizadas de produtos e serviços relacionados ao universo da canábis, ao mesmo tempo mantendo-se no cenário do movimento social (Ibidem, p. 161). Um exemplo que ilustra bem esse fenômeno é a criação da revista “semSemente”7, em 2012, a qual

converge tendências empresarias, culturais e políticas do campo em uma publicação periódica.

Os movimentos políticos e culturais em defesa dos psicoativos e seus usos, como a cultura canábica, são expoentes num contexto de mudanças no tratamento às drogas. Integrando o antiproibicionismo, eles tornaram-se atores sociais destacados nas proposições de legalização das drogas.

A defesa da necessidade de legalização das drogas sistematiza uma série de propostas para a reorientação do discurso e da prática das instituições e políticas públicas, de acordo com os princípios da liberdade individual, da redução de danos e do abolicionismo penal, e com objetivo de regulamentar a economia dos ilícitos, dispôr sobre os potenciais usos e

7 “A revista semSemente é a primeira publicação sobre cultura canábica do Brasil, e a primeira revista em língua portuguesa do mundo dedicada ao tema.” http://www.semsemente.com/. Acessado em 13/12/2014.

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minimizar os riscos e impactos sociais de usos problemáticos. Compreendendo o imperativo de regulamentar todas as drogas, os atores antiproibicionistas organizam um movimento de influência na agenda pública, visando um conjunto de reformas que se contraponham aos ditames da proibição. Embora haja setores heterogêneos no mesmo campo e conflitos internos quanto à condução das estratégias políticas visando mudanças na lei e na sociedade à longo prazo, alguns acordos básicos sobre a pauta da legalização são identificáveis.

Em primeiro lugar, é um consenso antiproibicionista que a descriminalização do uso das drogas significa um passo progressista no caminho das mudanças. Através dela, usuários de qualquer substância proscrita deixam de ser tratados através do Direito Penal para serem amparados pelo Direito Civil e Administativo (GARCIA e ASSUMPÇÃO, 2005, p. 4). Como passo inicial, algumas iniciativas se restringem a propor descriminalizar apenas “drogas leves”, especialmente a maconha. Enfrentando o argumento de que a descriminalização incentivaria o consumo de todas as drogas, as pesquisas não indicam correlação entre as políticas flexibilizadoras e o aumento exponencial do consumo, permanecendo o índice abaixo ou na média do crescimento nas últimas décadas de proibição (Ibidem, p. 14). Ademais, ao mudar o estatuto proibido de uma substância e, consequentemente, poder criar compreensão sobre seus usos e desconstruir os atributos de “fruto proibido”, objeto de transgressão das normas e prática desmoralizante, a descriminalização é uma forma possível de previnir e reduzir a incidência de usos de drogas sob essas influências e outros preconceitos ideológicos.

A proibição e o estigma também impedem o tratamento terapêutico e assistencial adequado a usuários em risco e dependentes. Visto que todos os usos são impedidos pela lei, o usuário encontra resistências para buscar tratamento quando necessário, temendo sofrer as consequências da criminalização e da segregação (KARAM et al., 2008, p. 118). Por outro lado, o investimento na estrutura de saúde pública dedicada a tratamentos de redução de danos fica muito aquém dos gastos com a segurança pública, que financiam as demandas penais de policiamento, prisões e burocracia. Eis que a descriminalização pauta a exoneração dos custos com a perseguição militar e criminal aos usos de drogas, como forma de poupar recursos financeiros e vidas humanas disperdiçadas na guerra, os quais podem ser investidos no sistemas de saúde, prevenção, educação e redução de danos, como políticas públicas realmente eficazes na mitigação dos impactos e na educação sobre drogas.

Referências

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