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III SEMINÁRIO DE ESTUDOS CULTURAIS, IDENTIDADES E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GT 5 ESTUDOS CULTURAIS E A PESQUISA EM SUAS MÚLTIPLAS POSSIBILIDADES

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INTERÉTNICAS

GT 5 – ESTUDOS CULTURAIS E A PESQUISA EM SUAS MÚLTIPLAS POSSIBILIDADES

UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DO CANGAÇO NA “DANÇA DE CABRA MACHO”

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UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DO CANGAÇO NA “DANÇA DE CABRA MACHO”

Autora: Jéssica da Silva Souza 1 Orientador: Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá 2

1 – Introdução

Há muito o cangaço é tema recorrente em diversas áreas. Seja na Literatura, no cinema, nas artes plásticas, no jornalismo, no teatro, na historiografia, e afins, o tema desperta o interesse de muitos estudiosos, interesse este que vai além do ambiente acadêmico. Estados e municípios nordestinos que de alguma maneira tiveram alguma ligação com o cangaço, têm evocado essa memória que por muito tempo esteve adormecida. E mesmo alguns que não tiveram a presença de cangaceiros em seu sólo, têm se apropriado delas como algo que seria parte de sua cultura.

Dentro os municípios que possuem ligação com o “comandante das caatingas”, faremos apontamentos sobre Serra Talhada/PE e Poço Redondo/SE, como locais imersos numa certa “cultura cangaceira” e/ou “cultura lampiônica”, mais precisamente no caso da cidade pernambucana.

Serra Talhada, 1897, nasce Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião. Este que seria considerado um dos principais líderes de cangaceiros no Nordeste brasileiro, conhecido também, por conta disso, como “rei do cangaço”. Mais precisamente no sítio Passagem das Pedras, à época localizado na Comarca de Vila Bella, no atual município de Serra Talhada, filho de José Ferreira dos Santos.

Poço Redondo, 1938, morre Lampião e parte do seu bando em confronto com uma volante comandada pelo tenente João Bezerra. Mais precisamente na Fazenda Angicos, que na época pertencia à região de Porto da Folha, tombaram estes cangaceiros, dando fim ao cangaço, apenas restando alguma resistência por parte de Corisco, que é assassinado dois anos depois.

Essas duas cidades, assim como outras que tiveram alguma relação com o fenômeno, tentam (re) afirmar sua importância na História do cangaço mediante ações culturais referentes a salvaguarda das memórias do cangaço nos municípios.

1

Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe. Bolsista do Programa de Educação Tutorial - PET História/UFS (MEC/FNDE). E-mail: jessik.livres@gmail.com

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Principalmente, a partir da década de 70, é possível perceber em ambas as localidades, uma tentativa de inserir nos calendários dos municípios, espaços para se pensar a história do cangaço ligada às suas próprias.

Esse artigo buscará fazer algumas considerações sobre as criações dos Grupos de Xaxado Cabras de Lampião e Na Pisada de Lampião, de Serra Talhada/PE e Poço Redondo/SE, respectivamente, dentro desse hall de salvaguarda e difusão das memórias do cangaço nos municípios.

Para entendermos melhor um pouco do universo da dança típica dos cangaceiros, seu significado social para os integrantes do grupo, e o que do cangaço podemos perceber em suas apresentações, primeiro faremos uma abordagem sobre as características da dança através do processo histórico em que ela está inserida. Logo após, tomaremos como base roteiros de apresentações dos grupos e entrevistas realizadas com alguns integrantes, para fazer uma descrição e, por conseguinte, algumas reflexões sobre o tema.

2 – Xaxado: “dança de cabra macho”

Desde que existe o homem, existe a dança. Alguns autores comentam que, antes mesmo de usar a palavra, o homem já se servia do movimento corporal para expressar seus sentimentos. Dançar era algo natural. Unindo-se a música ao gesto, nasceu a dança. Descobertos, o som, o ritmo e o movimento, o homem passou a dançar [grifo nosso]. 3

Como é possível perceber, não há datação específica para o início do hábito de dançar. Os movimentos do corpo, ordenados, acompanhados por um ritmo pré-estabelecido como expressão dos sentimentos, é um costume muito antigo. Os grupos sociais produzem e reproduzem seus ritmos e sons com múltiplos intentos. No caso dos bandoleiros que viveram no final do século XIX e início do XX no Nordeste brasileiro, não foi diferente. Dentro do cangaço surgia uma dança que lhes era bastante peculiar, pelas letras, batidas ritmadas e pelos movimentos da “pisada”.

Não há consenso entre os pesquisadores sobre a origem do xaxado. Existe a defesa de que a dança teria sido criada pelos cangaceiros de Lampião, mas há ainda a versão que afirma que sua criação foi mais remota. Segundo pesquisas realizadas para o documentário Alpercata de Rabicho, de 1991, dirigido por Petrônio Lorena, o registro mais antigo da dança se deu no final da década de 10 do século XX no bando do

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cangaceiro “Sinhô Pereira”. Em 1920 o “Sinhô Pereira” recebia no seu bando mais três homens, dentre eles, Lampião, que assumiria a chefia do mesmo em 1922, com a saída do antigo líder. Segundo Frederico Pernambucano de Mello, em sua fala no documentário, Lampião teria sido o responsável em divulgar a dança nos sertões do Nordeste brasileiro. 4

Ainda segundo esse pesquisador, o xaxado é caracterizado por ser uma dança guerreira, normalmente com estrofes improvisadas que falavam de situações referentes ao cotidiano da experiência no cangaço. Ligada ao lazer, dançava-se em comemoração, por exemplo, à vitória em uma batalha. A dança era tipicamente masculina, como afirma Anildomá Souza:

[...] naquela época ainda não havia mulheres no cangaço [...] originalmente a estrutura básica do xaxado é da seguinte forma: avança o pé direito em três e quatro movimentos laterais e puxa o pé esquerdo, num rápido e deslizado sapateado. 5

O passo do xaxado é chamado de pisada, sendo que existem mais de vinte passos diferentes de xaxado. Os cangaceiros seguiam em fila indiana formando também figuras geométricas, círculos e colunas, dançavam armados ao som de algum instrumento musical ou somente ao som de seus rifles marcando os compassos.

O Luiz Gonzaga cantou “a dança de cabra macho”, como ficou conhecida, trazendo para seu repertório também evocações das memórias do cangaço.

Xaxado é dança macho Dos cabras de Lampião Xaxá, xaxá, xaxado Vem lá do Sertão.

Xaxado, meu bem, xaxado Xaxado vem do sertão É dança dos cangaceiros Dos cabras de Lampião. Quando eu entro no xaxado Ai, meu Deus, eu não paro, não Xaxado é dança macho

Primo do baião. 6

4

LORENA, Petrônio. Alpercata de rabicho, Brasil, Serra Talhada, MC estúdio, português, colorido, VHS, 1998. 15min.

5 SOUZA, Anildomá Willians. Nas pegadas de Lampião. Serra Talhada; Gráfica Folha do Interior, 2004.

p. 129.

6 “Xaxado”. Autores: Luiz Gonzaga e Hervê Cordovil. Ver: PHAELANTE, Renato. Cangaço: um tema

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Atualmente, diversos grupos de estados nordestinos têm divulgado o xaxado em suas apresentações, que variam tanto no tempo da performance, como nos vestuários e canções. No entanto, todos eles têm em comum a evocação das memórias do cangaço por meio do rápido ou manso deslizar de suas alpercatas de rabicho, embalados pelo ritmo que teve sua gênese dentro dos grupos de cangaceiros no Nordeste brasileiro.

2 - Serra Talhada: “berço de Lampião” e “capital do xaxado”

Município pernambucano localizado a 415 km de Recife, Serra Talhada possui 79.232 habitantes de acordo com o último censo pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 7 É conhecido como “capital do xaxado” e muito famoso por conta do nascimento de Lampião ter se dado na localidade. Sua relação com o cangaço é bastante acentuada, sendo possível perceber no município várias ações visando a salvaguarda das memórias do cangaço na região.

Tornou-se hábito para serra-talhadenses, reunir materiais diversos sobre o cangaço, construindo verdadeiros acervos domésticos sobre a temática. Por volta de meados da década de 1970, o senhor Manuel Martins, que era da família de um dos ex-professores de Lampião, criou o Grupo Folclórico Lampião e o Cangaço no Nordeste. Segundo Marcos Clemente 8, ele, que havia sido soldado volante, reunia em sua residência uma série de artefatos referentes ao cangaço, e criou o grupo folclórico baseado em suas lembranças da época de volante. Em 1977, após sua morte, sua casa foi transformada em museu e criou-se o Grupo de Xaxado Manuel Martins, em sua homenagem.

A partir de algumas mobilizações e pesquisas referentes ao cangaço, a casa em que nasceu Lampião, localizada no Sítio Passagem das Pedras, foi reformada e transformada em museu para visitação. Chamada de Museu do Cangaço, a antiga residência dos Ferreira conta com um acervo de cerca de 400 fotografias sobre a temática, e ainda alguns objetos que pertenciam à família, bem como outros mais da época.

Vale salientar que, até o fim da década de 70, essas pequenas iniciativas buscavam trazer à memória a temática do cangaço, mas somente a partir de 1986, com a

7 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Disponível em

http://www.ibge.gov.br. Acesso em 04 de Agosto de 2013.

8 CLEMENTE, Marcos Edilson de Araújo. Lampiões Acesos: o cangaço na memória coletiva.São

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criação do Museu da cidade, o poder público mostrou interesse pelo assunto, visto ser um tema bastante polêmico. Conforme Marcos Clemente:

Pela primeira vez o tema, polêmico e capaz de reabrir novas feridas, passa a ser abordado também na esfera pública municipal. As autoridades acolhem as vozes das ruas e começam a praticar uma nova concepção sobre os valores do cangaço e sobre a personalidade de Lampião. Aos poucos, porém sistematicamente, vai sendo substituída a imagem de Lampião como bandido cruel e sanguinário por uma imagem do mesmo como patrimônio cultural do município. 9

Havia a tentativa, cada vez mais acentuada, de trazer a existência de Serra Talhada como “berço de Lampião” em meio a muitas dessas ações, inserindo a imagem do cangaceiro no “resgate” da memória cultural do município. É possível perceber também, a figura de Lampião relacionada à luta do povo sertanejo contra as injustiças sociais.

Na cidade, desde a década de 90, durante o mês de aniversário de sua morte, ocorre o evento “Tributo a Virgulino”, e dentro dele, atualmente, ocorre um “Festival de xaxado”, que reúne vários grupos do Nordeste, dando destaque para a dança. Da “capital do xaxado” são os grupos Maria Bonita, Cangaceiros do Pajeú, Manoel Martins, Cabras de Lampião, dentre outros. Destes, escolhemos o Grupo de Xaxado Cabras de Lampião, ligado à Fundação Cultural Cabras de Lampião, que muito contribuiu no tocante às iniciativas relacionadas à memória do cangaço no município, para trabalharmos nesse artigo.

3 – Os Cabras de Lampião

A criação do Grupo de Xaxado Cabras de Lampião é resultado de diversas pesquisas realizadas sobre o cangaço, onde a dança chamou a atenção de seus idealizadores pela herança que teria surgido dentro do próprio cangaço. Uma de suas idealizadoras e coreógrafa, em entrevista realizada para o DVD Grupo de Xaxado Cabras de Lampião (s.d.), diz que o grupo se apresentou pela primeira vez em 20 de março de 1995, em um dia de feira em Serra Talhada. Afirma ainda que toda a confecção de figurino e arranjo de coreografias deveu-se à busca de informações com ex-cangaceiros, ex-volantes, e outras pessoas de alguma forma ligadas ao cangaço. 10

9

Idem. Ibidem. p. 35.

10 FUNDAÇÂO CULTURAL CABRAS DE LAMPIÃO. Grupo de Xaxado Cabras de Lampião. Brasil,

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[Fig. 1] Grupo de xaxado Cabras de Lampião. Disponível em:

http://horizontegeografico.com.br/exibirMateria/1769. Acesso em 09 de novembro de 2013.

Passaremos agora para uma breve descrição semiológica e análise de uma das apresentações do grupo, realizada no município de Serra Talhada.

O cenário é a céu aberto, terra de chão batido em um dia ensolarado. Os quatro músicos tomam seus lugares, iniciando o momento ao som do sanfoneiro, vestidos de forma diferenciada, blusas vermelhas com detalhes brancos e a parte inferior da cor cáqui. Os dez dançarinos presentes no momento aparecem logo enfileirados, um ao lado do outro começando a dar os primeiros passos. Suas vestes são de cor cáqui e azul. As roupas de cor azul são dos personagens Maria Bonita e Lampião, enquanto que o restante do bando veste cáqui. Todos bastante ornamentados com seus lenços, anéis, cartucheiras, chapéus de couro, suas armas, punhais, e todo o código vestimentar dos bandoleiros.

Já de início se percebe o destaque dado aos dançarinos em detrimento dos músicos, e às figuras de Lampião e Maria Bonita em meio aos próprios dançarinos. Tudo isto ao som do hino de Pernambuco, exaltando o estado e celebrando seus moradores como “bravos guerreiros”. Nesse momento é bastante notória a figura do cangaceiro e do pernambucano como personagens “valentes” e “lutadores”. A postura e a expressão facial, principalmente dos homens, induzem à leitura do sertanejo viril, onde o tempo inteiro suas armas estão em evidência.

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Logo em seguida um pout-pourri do folclore nordestino põe em evidência Lampião, logo após Maria Bonita, e depois, o restante do bando, respectivamente. Aos poucos vão ocupando o centro do local, e ao final se ajoelham para o discurso do personagem Lampião. Seu discurso é dotado de uma leitura próxima à de Rui Facó 11 e de outros escritores ligados à corrente marxista. É apresentado como “rei do cangaço” e como “senhor absoluto de todo esse sertão”. Na maioria dos intervalos das músicas, o personagem Lampião é ouvido. Sempre em forma de poesia, todos os seus discursos percorrem o mesmo caminho. Com o intento de discorrer sobre a história do bandoleiro, o personagem enfoca além da valentia, as desgraças de sua vida.

Seguem em fila indiana, em alguns momentos formando figuras geométricas, alternando sempre os passos do xaxado. A música posterior, Cavalos do cão, de Zé Ramalho, remonta as perseguições das volantes. E é no mais deslizado sapateado que o personagem Lampião retira seu punhal e junto com Maria Bonita o faz companheiro de dança, mais uma vez demonstrando habilidade com as armas e espírito de liderança.

Com um ritmo mais suave, agora todos dançam compassadamente novamente em fileiras, formando círculos, levantando e abaixando suas armas de acordo com a batida da zabumba e marcação do triângulo. Após este momento mais “manso”, a mulher do cangaço é posta em evidência através da música “Sebastiana”. O ritmo fica mais apressado e as alpercatas de rabicho levantam bastante poeira.

Nesse momento, vale ressaltar uma das falas do personagem Lampião, vivido pelo dançarino Karl Marx, na tentativa de uma melhor compreensão acerca das memórias do cangaço nas apresentações do grupo.

Os Cabras de Lampião é a viva chama acesa do que queria o nosso comandante das caatingas. Depois de tanto tempo, ainda temos fome, miséria, abandono e seca. Homem nenhum nasceu pra ser pisado, e é por isso que a marca dos Cabras de Lampião é terra, trabalho e liberdade. [todos] – Terra, trabalho e liberdade! 12

É perceptível aqui, mais uma vez a apropriação das memórias do cangaço associadas à luta do sertanejo contra as suas mazelas. E mais do que isso, nesse caso, o grupo é apresentado com uma função social, a de dar voz ao povo “dando vida” aos cangaceiros que os representariam, sob a sua ótica, nessa busca por melhorias.

Aproximando-se do fim da apresentação, a cantora anuncia como teria ocorrido a morte de Lampião e parte de seu bando em Sergipe, onde o personagem diz a frase

11 FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. – 7ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. 12 FUNDAÇÂO CULTURAL CABRAS DE LAMPIÃO. Op. Cit.

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“uma causa só morre quando ninguém morre por ela”. É atribuída uma causa à morte do bandoleiro, e esta seria bastante justa para se morrer, se aproximando bastante da leitura de um herói que morreu pelo povo.

[Fig. 2] Karl Marx Santos Souza. Faz o papel de Lampião no Grupo de xaxado Cabras de Lampião. Disponível em:

http://clebiomarques.blogspot.com.br/2011/11/karl-marx-e-cabra-de-lampiao-na-funarte.html. Acesso em 09 de novembro de 2013.

4 – Poço Redondo: “capital do cangaço”

A relação de Poço Redondo com o cangaço começa quando Lampião chega a Poço Redondo com mais seis cangaceiros no final da década de 20 do século XX. Segundo Alcino Alves Costa, a cidade iria viver, a partir desse momento, o que chama de “era Lampião”. 13

Segundo Marcos Clemente, Lampião e seu bando viam em Sergipe um novo desafio para suas vidas, sentiam-se protegidos aqui, tanto que “até a sua morte, ele dispôs de mais de trinta cangaceiros, filhos da terra, um número impressionante”. 14

O fim do rei do cangaço no sertão de Sergipe deixaria na memória dos cidadãos poço-redondenses lembranças marcantes daquele episódio. As memórias que se têm do cangaço na cidade também vêm mudando ao longo do tempo, de bandido

13

COSTA, Alcino Alves. Poço Redondo: a saga de um povo. Aracaju: Editora do Diário Oficial, 2009. p. 45.

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sanguinário violento, Lampião passa a representar a luta do povo sofrido do sertão em prol de melhoria de vida. As pessoas começam a ver o cangaço como algo constituinte de sua própria identidade, como algo que de alguma maneira eles se identificam, bem como diz Fernando Catroga, nesse sentido, a memória se tornaria um dos fundamentos da identidade. 15

Uma das iniciativas referente à memória do cangaço no município, diz respeito às diversas atividades comemorativas realizadas na cidade em decorrência dos cem anos do nascimento de Lampião. Desde “seminários, projeção de filmes, apresentação de peças de teatro e festas”, sendo que estas atividades foram palco de muitas disputas no plano político-ideológico no município. 16 Havia àqueles que defendiam a festividade, visto o cangaço como parte da história local, enquanto que outros não aceitavam tal ato na concepção de que Poço Redondo não deveria fazer apologia a um suposto bandido.

“Poço Redondo, capital do cangaço”. Assim estava escrito no folheto “Cem anos do Capitão da Caatinga”, publicado pelo Centro de Cultura Zé de Julião, na ocasião dessas comemorações. 17 O título de “capital do cangaço”, atribuído por moradores do município neste momento, indica uma afirmação e defesa da importância de Poço Redondo para a história do cangaço.

Outra iniciativa que também foi palco de conflitos diz respeito à criação da ‘Praça Lampião’, inaugurada em julho de 1988 com a finalidade de se comemorar os cinquenta anos da morte do cangaceiro. Através de um abaixo-assinado liderado por Raimundo E. Cavalcante e Manoel Dionísio da Cruz – “militantes do movimento popular e sindical preocupados em resgatar a memória do cangaço” 18

– conseguiu-se a legalização da praça junto à Câmara de Vereadores do município, que chegou a ser ameaçada de destruição alguns anos depois pela administração municipal, mas sem sucesso.

De acordo com dados do último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Poço Redondo atualmente se encontra com uma população de mais de 30000 habitantes. 19 Fica localizado a aproximadamente 184 Km da capital de Sergipe, Aracaju, e é muito lembrado por suas manifestações culturais. Além de músicos de forró pé de serra e pífano, tem-se as famosas cavalhadas, as

15 CATROGA, Fernando. Memória e História. In: PESAVENTO, Sandra (org.). Fronteiras do Milênio.

Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFGRS, 2001.

16 SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Combates entre história e memórias. São Cristóvão; Editora UFS;

Aracaju: Fundação Oviêdo Texeira, 2005. p. 286.

17

CLEMENTE, Marcos Edilson de Araújo. Op. Cit. p. 58.

18

SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Combates entre história e memórias. São Cristóvão; Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Texeira, 2005. p. 299.

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rendeiras, o artesanato local, o grupo de teatro Raízes Nordestinas, as tradições religiosas da cidade e zona rural, e no que diz respeito a sua relação com o cangaço, a própria disseminação do xaxado.

5 – Na Pisada de Lampião

Como mais uma iniciativa em prol da memória do cangaço, em 17 de julho de 1997, Alberto Patriota da Silva, o Beto Patriota, como é mais conhecido, Dionísio Cruz e Raimundo E. Cavalcante, formam o Grupo de Teatro e Xaxado Na Pisada de Lampião, todos eles já envolvidos em atividades culturais no município. No princípio, segundo Beto Patriota 20, o grupo era formado apenas por ele e mais três ou quatro pessoas, sendo alvo de muitos preconceitos. Foram taxados de loucos quando saíram pelas ruas vestidos de cangaceiros, causando muito espanto, principalmente nas pessoas mais idosas da cidade.

Naquele período as manifestações culturais relacionadas às memórias do cangaço ainda eram vistas de uma forma muito diferente do modo como são vistas hoje. Isto está intrinsecamente ligado a todas as iniciativas citadas anteriormente em relação à salvaguarda dessas memórias. Como afirma Rogéria Gomes Dantas, uma das coordenadoras do grupo, “hoje em dia as pessoas aceitam bem mesmo, tem uma referência muito boa”. 21

Veremos de que forma Lampião e seu bando é representado através do xaxado de Poço Redondo.

Em local a céu aberto, “chão batido”, e sob a noite fria do sertão sergipano, sob o olhar atento de muitos sertanejos, aparece “Serginho”, que faz o papel de Lampião, relatando o desfecho do rei do cangaço na Grota do Angico. Serginho com sua voz firme, como afirma Beto Patriota, “um timbre de voz interessante que chama a atenção”22

, típica de um bravo sertanejo, descreve o cerco que se formou na grota e que acabou dando fim a vida de Lampião. Com o seu ímpeto e voz viril, é perceptível através de sua encenação, o quanto que a música e a dança do xaxado buscam representar a postura épica e valente do homem do cangaço, de um homem que

20

SILVA, Antônio Alberto Patriota da. Entrevista à autora. Poço Redondo/SE, 2 de novembro de 2011.

21 DANTAS, Rogéria Gomes. Entrevista à autora. Poço Redondo/SE, 2 de novembro de 2011. 22 SILVA, Antônio Alberto Patriota da. Op. Cit.

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precisava andar armado para sua própria proteção e que parecia não temer a vida corrida e “aperreada” – como afirmou a ex-cangaceira Adília – do cangaço. 23

[Fig. 3] Grupo de Teatro e Xaxado Na Pisada de Lampião. Acervo pessoal.

Contando a sina do bando de Lampião, o grupo expressa a importância de Poço Redondo no cenário da história do cangaço, já de início. Isto é algo que está presente não só neste momento da apresentação, mas permeia toda ela. Com vestes de cor cáqui, bastante ornamentados, com alpercatas e caneleiras, lenços coloridos, cabaças, chapéus de couro, símbolo do cangaço até os dias de hoje, além de suas armas e bolsas também bem coloridas e bordadas. A indumentária do grupo é basicamente de couro e algodão, o couro que continua presença marcante na vida dos sertanejos.

Outro momento é o que entra em cena o jovem Marcos fazendo o papel do cangaceiro com o nome de Corisco dizendo: “o fuzil de Lampião tem muitos laços de fita, no lugar que ele atira não falta moça bonita”. Mais uma vez a figura de Lampião é representada pela fala do personagem como um homem valente que não teme a própria morte. É interessante perceber também como esse “cabra macho”, homem valente tipicamente sertanejo, atrai as mulheres do sertão. Esse seria o homem mais cobiçado no sertão pelas mulheres, e o mais respeitado também.

23 SÁ, Antônio Fernando de Araújo. O cangaço nas batalhas da memória. Recife: Ed. Universitária da

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Nos momentos seguintes, em que são cantadas as músicas Assim cantava os cabras de Lampião e Mulher rendeira, o grupo põe em evidência a atuação dos demais cangaceiros do bando, como também a da mulher no cangaço. A presença feminina está representada no grupo principalmente pela figura de Maria Bonita, mulher de Lampião. Ela representa a mulher que desafiava a sociedade machista e conservadora da época. Na dança, é possível perceber uma imagem da mulher cangaceira relacionada a atividades atribuídas a elas – como a fabricação da renda, por exemplo – com a da mulher forte e valente do sertão.

Depois disso, ocorrem alguns diálogos entre os personagens que retratam um pouco do dia a dia do bando de Lampião nas caatingas, no que se refere às suas festas e a como o grupo se alimentava, geralmente com carne e farinha seca. Destarte, é notório associada à imagem dos cangaceiros, o sertanejo comum que sorria, fazia festas, se alimentava com as comidas típicas da região, inserindo este indivíduo em um lugar comum aos demais sertanejos, trazendo, inclusive, situações anedóticas que divertem bastante o público.

De uma maneira geral, no deslizar de suas alpercatas, da poesia, do teatro e da música, os dançarinos fazem uma leitura do cangaço relacionada a um movimento de luta. É evidente que o cangaço está cada vez mais vivo na memória dos poço-redondenses. É perceptível também que as memórias, que o grupo passa através de sua dança e encenações, revelam os cangaceiros como pessoas com quem eles de alguma forma se identificam, não pela violência exacerbada ou pelo suposto desafio à ordem vigente, mas pelas mazelas comuns ao homem sertanejo.

6 – Considerações finais

Segundo Robatto, a dança poderia ser enquadrada dentro de seis funções: “auto-expressão, comunicação, diversão e prazer, espiritualidade, identificação cultural e ruptura e revitalização da sociedade”. 24

Assim como outros tipos de arte, ela pode buscar revelar, refletir e transformar as condições do ser humano na sociedade quando enquadrada nessa função de “ruptura e revitalização da sociedade”. É possível perceber em ambos os grupos, muitas semelhanças no tocante a apropriação das memórias do cangaço. Segundo Henri Bergson, “não há percepção que não esteja impregnada de lembranças”, e o corpo seria um “centro de ação” do qual se partiria todos os nossos

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estímulos, que estariam, por sua vez, carregados de memórias. 25 Nesse sentido, o corpo seria um condutor de memórias numa tentativa de dar voz às memórias subalternas relacionando-as à realidade atual.

Referências Bibliográficas

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espirito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

CATROGA, Fernando. Memória e História. In: PESAVENTO, Sandra (org.). Fronteiras do Milênio. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFGRS, 2001.

CLEMENTE, Marcos Edilson de Araújo. Lampiões Acesos: o cangaço na memória coletiva. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2009.

COSTA, Alcino Alves. Poço Redondo: a saga de um povo. Aracaju: Editora do Diário Oficial, 2009.

FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. – 7ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

HASS, Aline Nogueira; GARCIA, Ângela. Ritmo e dança. 2.ed. – Canoas: Ed. ULBRA, 2006.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE – Disponível em http://www.ibge.gov.br. Acesso em 04 de Agosto de 2013.

SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Combates entre história e memórias. São Cristóvão; Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Texeira, 2005.

SÁ, Antônio Fernando de Araújo. O cangaço nas batalhas da memória. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2011.

SOUZA, Anildomá Willians. Nas pegadas de Lampião. Serra Talhada; Gráfica Folha do Interior, 2004.

PHAELANTE, Renato. Cangaço: um tema na discografia da MPB. Recife: Bagaço, 1997. p. 52.

25 BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo:

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Referências audiovisuais

FUNDAÇÂO CULTURAL CABRAS DE LAMPIÃO. Grupo de Xaxado Cabras de Lampião. Brasil, Serra Talhada, português, colorido, DVD, s.d., 36:12min.

LORENA, Petrônio. Alpercata de rabicho, Brasil, Serra Talhada, MC estúdio, português, colorido, VHS, 1998. 15min.

Fontes Orais

DANTAS, Rogéria Gomes. Entrevista à autora. Poço Redondo/SE, 2 de novembro de 2011.

SILVA, Antônio Alberto Patriota da. Entrevista à autora. Poço Redondo/SE, 2 de novembro de 2011.

Referências

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