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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

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NATAL/RN 2019

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ISABEL CAMILA ALVES DA SILVA

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NATAL/RN 2019

ISABEL CAMILA ALVES DA SILVA

A AVENTURA DO ESTRANHAMENTO EM PALOMAR, DE ITALO CALVINO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para a obtenção do título de Mestra em Estudos da Linguagem.

Orientadora: Profª Drª Marta Aparecida Garcia Gonçalves

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Silva, Isabel Camila Alves da.

A aventura do estranhamento em Palomar, de Italo Calvino / Isabel Camila Alves da Silva. - Natal, 2019.

107f.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019.

Orientadora: Profa. Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves.

1. Italo Calvino - Dissertação. 2. Palomar - Dissertação. 3. Aventura - Dissertação. 4. Estranhamento - Dissertação. 5. Cidade - Dissertação. I. Gonçalves, Marta Aparecida Garcia. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 821.131.1-3

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ISABEL CAMILA ALVES DA SILVA

A AVENTURA DO ESTRANHAMENTO EM PALOMAR, DE ITALO CALVINO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para a obtenção do título de Mestra em Estudos da Linguagem.

Orientadora: Profª Drª Marta Aparecida Garcia Gonçalves

Aprovado em: / /

Profª Drª Marta Aparecida Garcia Gonçalves Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Orientadora

Profº Dr. Orison Marden Bandeira de Melo Junior. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Membro interno

Profª Drª Vilani Maria de Pádua Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE)

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, Edilene e Inaldo, pelo apoio de sempre, em todas as minhas loucuras e em todos os sentidos.

Aos meus avós tão malucos que eu amo.

À minha irmã, Laíse, pelo companheirismo e incentivo. Aos lugares que descobri e que ainda vou descobrir.

A Emília e Maria Clara, por tanto amor compartilhado, tanto cuidado e companheirismo, em Natal ou em qualquer lugar.

À Tarcy, por atravessar o mestrado junto comigo desde o primeiro dia natalense.

Aos amigos que fiz em Natal (muitos que roubei de Emília), com quem compartilhei tantas descobertas, alegrias e angústias, principalmente: Emenson e Ana Luíza, pela amizade e companhia de casa; Thallys, pela companhia em tudo, sobretudo pelos dias na biblioteca; Stênio, pelo entendimento mútuo; Glênio, por nossos passeios no país UFRN.

Aos meu queridos amigos pernambucanos, por tanto tempo de amor, principalmente: Maria Eduarda, por nunca desistir da nossa amizade; Anne, pela amizade que me completa; Marília e Taís, pelo companheirismo em todos os momentos e pela ajuda neste trabalho.

A José Luiz, por ter me acompanhado no estágio supervisionado e na qualificação deste trabalho, pelas aulas de política, pela confiança e amizade.

Al mio caro prof Danilo Gatti, pela amizade, pelas aulas e leitura do original, e pelas cervejas!

Aos queridos professores que tive durante a vida e que são inspiração, sempre. À banca avaliadora deste trabalho, agradeço por terem aceitado o nosso convite.

Por fim, à professora Marta Gonçalves, por ter aceitado me orientar. Obrigada pela paciência e compreensão durante todo este tempo.

O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).

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- Dimi ancora un’altra città, - insisteva.

- … Di là l’uomo si parte e cavalca tre giornate

tra greco e levante… - riprendeva a dire Marco, e a enumerare nomi e costumi e commerci d’un gran numero di terre. Il suo repertorio poteva dirsi inesauribile, ma ora toccà a lui d’arrendersi. Era l’alba quando disse: - Sire, ormai ti ho parlato di tutte le città che conosco.

- Ne resta di una di cui non parli mai.

Marco Polo chinò il capo.

- Venezia - disse il Kan

Marco sorrise. - E di che altro credevi che ti parlassi?

L’imperatore non batté ciglio. - Eppure non ti ho mai sentito fare il suo nome.

E Polo: - Ogni volta che descrivo una città dico qualcosa di Venezia.

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RESUMO

Este estudo tem como objetivo analisar as relações entre homem e espaço da cidade presentes no romance Palomar (1983), última obra de ficção do escritor Italo Calvino (1923-1985), sob a perspectiva do estranhamento, procurando investigar, também, como o autor utiliza conceitos e aspectos do romance de aventura num romance moderno. Através das explorações do senhor Palomar, temos o confronto entre indivíduo e metrópole que, na aparente banalidade de seu cotidiano, proporciona imagens exóticas que dependem de interpretações diferentes do que parece já estabelecido. Além disso, temos na obra o impulso para o desbravamento, o que nos leva a pensar nela como elaboração aventuresca. Nesse sentido, a partir de uma análise imanentista, observaremos como a percepção particular do personagem senhor Palomar caminha para um sentido universal a partir do estranhamento, com a criação de um segundo olhar sobre o que já é conhecido; ele desautomatiza o significado banal de objetos, seres e espaços, redefinindo-os. Para isso, observação e descrição são pontos-chave da narrativa, no trabalho calviniano de discutir a linguagem através da criação de uma poética singular. As perspectivas teóricas que permeiam nosso estudo são, principalmente, a obra ensaística de Calvino (1990; 2009; 2010; 2015) - publicada em jornais e resultado de conferências -, sobretudo no que tange à linguagem, ao conceito de aventura discutido pelo autor, ao deslocamento e à percepção do estrangeiro; as abordagens de estranhamento feitas por Chklovsky (1917) e Friedrich (1978); e o pensamento sobre a cidade a partir das concepções de Baudelaire (2006) e Certeau (1998). Como resultados, chegamos à conclusão de que Palomar é uma obra significativa para Calvino ficcionista e ensaísta. Tanto o pensamento acerca do romance de aventura quanto a cidade como proposta fundamental de sua obra estão presentes em seus ensaios e transformam-se em material para forma e conteúdo de sua escrita literária. Assim, Palomar encerra a produção do autor reunindo num personagem moderno, de forma mais contundente e expressiva, temas como o estrangeiro, o deslocamento, a cidade e a sensação do estranhamento (de leitor e personagens), sempre pensados e discutidos por Calvino.

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ABSTRACT

This study aims to analyze the relations between man and space in the city present in the novel Palomar (1983), the last fictional work by the Italian writer Italo Calvino (1923-1985), from the perspective of the effect of making strange, trying to investigate, as well, how the author uses concepts and aspects of the adventure novel in a modern novel. Through Mr. Palomar's explorations, we have the confrontation between the individual and the metropolis, which, in the apparent banality of their daily life, provides exotic images that depend on different interpretations of what seems already established. In addition, we have the impetus for the clearing, which leads us to think of the work as an adventurous elaboration. In this sense, from an immanentist analysis, we will observe how the particular perception of the character Mr. Palomar walks toward a universal sense from the strangeness, with the creation of a second look on what is already known; he deautomates the banal meaning of objects, beings and spaces, redefining them. For this, observation and description are key points of the narrative, in the Calvinian work of discussing language through the creation of a singular poetics. The theoretical perspectives that permeate our study are, mainly, the essay work of Calvino (1990, 2007, 2009, 2010, 2015) - published in newspapers and conference results - especially with regard to language, the concept of adventure discussed by the author, the displacement and the perception of the foreigner; the approaches of estrangement made by Chklovsky (1917) and Friedrich (1978); and thinking about the city from the conceptions of Baudelaire (2006) and Certeau (1998). As a result, we come to the conclusion that Palomar is a significant work for Calvin's fictionist and essayist. Both the thought about the adventure novel and the city as the fundamental proposal of his work are present in his essays and become material for form and content of his literary writing. Thus, Palomar ends the production of the author by bringing together in a modern character, in the most forceful and expressive way, themes such as the foreigner, the displacement, the city and the sensation of of making strange (of reader and characters), always thought and discussed by Calvino.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 9

2 O MUNDO ESCRITO 13

2.1. Un viaggiatore: homem, lugar, cidade 15

2.1.2. Calvino propõe uma aventura 20

2.1.3. Outras aventuras 29

2.1.4. As lições de Calvino 32

2.2. A ideia de Palomar 41

2.3. Palomar homem-natureza: observação 43

3 A CIDADE-MUNDO 61

3.1. A cidade campo de batalha 61

3.2. A cidade estranha 70

3.3. Palomar citadino: a descrição 75

4 O MUNDO É UMA COLEÇÃO 90

4.1. A exposição Mundo é aberta ao público 90

4.1.2. A coleção de Calvino 94

4.2. Palomar mundano: reflexão 96

CONSIDERAÇÕES FINAIS 102

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– Quando conhecer todos os emblemas – perguntou a Marco –, conseguirei possuir o meu império,

finalmente? E o veneziano: – Não creio: nesse dia, Vossa Alteza será um emblema entre os emblemas. (As cidades invisíveis)

1 INTRODUÇÃO

É notória a figura de Italo Calvino como leitor, estudioso e pensador de obras clássicas da literatura mundial. Exemplo disso são seus inúmeros ensaios, produzidos em períodos diferentes de sua vida e depois agrupados e publicados em livros, explorando a importância de tais obras para a formação tanto de escritores quanto de leitores, e apontando o valor de constante atualidade que tais obras carregam - “Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos” (CALVINO, 2007, p.12); “É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível” (CALVINO, 2007, p. 15). Nessas obras, o autor elabora pensamentos que embasam sua própria produção literária. Um dos assuntos que aborda com frequência em sua obra crítica é o da não continuidade da narrativa de aventura. Aqui, por exemplo, ele a menciona ao falar da literatura italiana:

Mas algo sempre faltou ao romance italiano, a coisa de que mais gosto nas literaturas estrangeiras: a aventura. Sei que, em tempos não muito distantes, essa foi a palavra de ordem de Bontempelli, que talvez só tivesse uma ideia teórica dela, eivada de irracionalismo, quando a aventura é prova racional do homem diante de coisas contrárias a ele. Como poderia existir, hoje, um romance de aventura na Itália? Se eu soubesse, não estaria aqui tentando explicar: o escreveria (CALVINO, 2015, p. 17).

A aventura, típica das novelas de cavalaria, se apresenta para Calvino como inerente ao gênero romance, ainda que ele não tenha a estrutura formal e de conhecimento popular, características conferidas ao gênero. Nos textos reunidos em Por que ler os clássicos (2007),

Assunto encerrado (2009), e Mundo escrito e mundo não escrito (2015), Calvino retoma

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escritor de ficção. Isso fica evidente se observarmos qualquer um dos romances da trilogia Os

Nossos Antepassados (1985), na qual o escritor trabalha a aventura situada em seu espaço-

tempo de origem, o medievo, envolta por elementos da fábula, gênero este que se dedicou a pesquisar e organizar.

Assim, o trabalho realizado por Calvino seria não só o de releitura dos clássicos, mas dos conceitos pertencentes a eles, haja vista a natureza universal dessas narrativas, que permitem questionamentos dos mais diversos e em diferentes períodos da história das artes. Na Itália moderna, do pós-guerra ou preocupada com a aproximação do novo milênio, Calvino resgata a aventura como ação possível para esses contextos e a explora em muitas de suas obras, apropriando-se muitas vezes do espaço citadino como ambientação e o colocando num lugar de personagem. Prova disso é As cidades invisíveis (1972), que tem a ficcionalização de Marco Polo como símbolo do homem viajante presente na literatura do autor. O protagonista é um explorador que, através da interlocução com o imperador Kublai Khan, narra as cidades que percorreu apenas em seu imaginário, revelando espaços que não seguem à risca sua gênese passiva e contribuem para a experiência do indivíduo em movimento; na obra, a cidade é uma instituição que agrupa desafios a serem enfrentados não só fisicamente ou no campo da objetividade, mas também a partir da fabulação.

Entendemos aqui que há algumas constantes nas personagens criadas por Calvino: a) são personagens que extrapolam a compreensão de seus espaços, criando assim novos modos de ver seu entorno; b) ressignificam o que veem, explorando os territórios do material e do imaginário; c) estão dispostas no tempo-espaço de maneira fronteiriça, que compreende as distâncias, a sua relação com outras espécies da natureza, e o próprio ato de se locomover, seja numa geografia territorial ou de si. Portanto, essas recorrências dão conta de uma literatura que urde a íntima relação entre os indivíduos desbravadores que apresenta e os lugares a explorar.

A proposta deste trabalho é contribuir para os estudos calvinianos fornecendo uma discussão sobre Palomar1

, publicado em livro no ano de 1983. Na obra, Calvino divide a jornada do senhor Palomar em três etapas, sendo elas “As férias de Palomar”, “Palomar na cidade”, e “Os silêncios de Palomar”. Calvino nos apresenta uma personagem que se dispõe a circular por diversos lugares construindo seu relatório final do mundo, seu inventário particular. Esses lugares vão desde o terraço de sua casa à visita a outros continentes, e a ação,

1 Utilizaremos Palomar, em itálico, para nos referirmos ao título do livro, e Palomar ou senhor Palomar para nos referirmos à personagem.

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via de regra, segue a mesma estrutura sequencial em todos os episódios: o senhor Palomar define uma atividade e se desloca para realizá-la.

Elegemos aqui a cidade como principal localização geográfica das aventuras pelas quais as personagens de Calvino enveredam, sobretudo a da obra que aqui tratamos. O senhor Palomar é uma personagem inserida no contexto da metrópole, afetada por ele, com todos os questionamentos e angústias evidenciados pela modernidade. Portanto, uma personagem que reúne a disposição para o deslocamento, a relação entre o eu e o espaço, e o olhar como instrumento de desautomatização; tudo isso é motivado por uma busca à origem das coisas e acontecimentos, e revelado na experiência do estranhamento.

Desde o lançamento de As cidades invisíveis, muitos são os estudos acerca da obra e suas relações com a cidade. Esses estudos se espalharam por outras obras de Calvino, como

Marcovaldo ou as estações do ano e Palomar. Em Marcovaldo, os estudos geralmente se

atém aos impactos da industrialização e da modernização das cidades, ressaltados pela integração falha entre o homem e o que restou da natureza no ambiente citadino. Em Palomar, os pesquisadores se voltam para as relações entre ele e o livro Seis propostas para o próximo

milênio, pela proximidade em seus processos de escrita – ambos pertencem a uma mesma fase

–, pelo valor da cidade como símbolo, pelos movimentos sugeridos pela narrativa.

Cabe ao nosso trabalho, portanto, desvendar a cidade-metrópole, mas reconhecemos que a ideia de cidade é muito mais ampla e totalmente inserida nos estudos calvinianos. Logo, a cidade aldeia, aglomerado humano, povoado, as diversas localizações geográficas, enfim, são contempladas pelo autor. Aliás, o intuito de estudar uma literatura que fala sobre determinada confiuração urbana parte das variadas percepções e experiências, geográficas e afetivas, que não se resumem à metrópole.

Ainda sobre os pensamentos que permearam a proposta que aqui se apresenta, apontamos que a ideia de estudar Palomar como uma aventura se deu a partir da leitura de outro livro de Calvino, chamado Os amores difíceis. Nele, o escritor apresenta todos os contos que compõem a obra como “aventuras” - A aventura do leitor, A aventura do fotógrafo, etc. O segundo critério foi estudar a cidade e, como Palomar apresentava os três aspectos que, integrados, guiariam a pesquisa (a aventura, a cidade e o estranhamento), a obra foi escolhida.

A partir do que foi exposto, o caminho a ser percorrido no presente estudo é observar como Calvino se ancora na ideia de aventura contida em sua crítica para desenvolver

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excelência - e que conflitos essa interação indivíduo-espaço é capaz de fornecer, proporcionando novos olhares e interpretações para o mundo a partir da perspectiva do estranhamento, do movimento de desconhecer para conhecer.

Como objetivo geral, nossa proposta é uma leitura de Palomar observando a trajetória do personagem como um movimento de percurso geográfico e ontológico, considerando a perspectiva do estranhamento na experiência proporcionada pelos espaços, sobretudo pela cidade. Como objetivos específicos, investigaremos i) como Calvino trabalha a questão da aventura em sua épica moderna; ii) como entende a cidade e a utiliza em sua obra; iii) como cidade, linguagem e homem estão relacionados; iv) como o estranhamento é utilizado como prática em Palomar.

O trabalho está estruturado da seguinte maneira: no primeiro capítulo, apresentaremos a crítica calviniana a respeito do desenvolvimento da aventura em suas narrativas, a partir de ensaios apresentados em Assunto Encerrado, Por que ler os clássicos, e Mundo escrito e

Mundo não escrito, seguido das perspectivas de dois outros autores sobre o tema, Agamben

(2018) e Paes (1990). Em sequência, um breve comentário acerca das lições de Calvino, em

Seis propostas para o próximo milênio. Fechando o capítulo, apresentaremos a ideia de Palomar e a primeira parte da leitura da obra, que compreende capítulos da primeira parte do

livro.

No segundo capítulo, discutiremos o conceito de estranhamento através das perspectivas apresentadas por Chklovski (1917) e Friedrich (1978), que tratam da desautomatização perceptiva do mundo através do enfoque na linguagem, na relação entre imagem e palavra. Segue-se a isso nossa percepção teórica sobre a cidade a partir de Baudelaire (2006) e Certeau (1998) e, logo depois, a segunda parte da leitura de Palomar, que mostra o senhor Palomar na cidade.

No terceiro e último capítulo, falaremos sobre o mundo como coleção com base na discussão presente em A coleção de areia, também de Calvino. Concluindo, faremos uma leitura do capítulo “As viagens de Palomar”, no qual o autor explora tanto o deslocamento quanto a construção do mundo em relação ao homem, visando entender o mundo-museu ou o mundo-exposição.

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Marco Polo imaginava responder (ou Kublai imaginava a sua resposta) que, quanto mais se perdia em bairros desconhecidos de cidades distantes, melhor compreendia as outras cidades que havia atravessado para chegar até

lá, e reconstituía as etapas de suas viagens, e aprendia a conhecer o porto de onde

havia zarpado, e os lugares familiares de sua juventude, e os arredores de casa, e

uma pracinha de Veneza em que corria quando era criança. (As cidades invisíveis)

2 O MUNDO ESCRITO

É certo pensar que Italo Calvino teve sua vida marcada por uma poética do deslocamento. Tal tendência ao trânsito é perceptível desde uma mínima busca em seus dados biográficos2. O mundo o toma como se estivesse posto que o escritor não pertenceria a lugar algum tão especificamente, e sim a lugares que o acolhesse por serem dotados, como humanos, de personalidades caras a Calvino, e por reunirem espaços, pessoas e modos de viver que se transmutam numa relação de opostos: ora o lugar é casa, espaço do reconhecível e do acolhimento, ora é novidade e abandono, espaço da reinvenção e da aprendizagem.

Assim, manteve relações mais estreitas com Turim, cidade italiana de suas raízes familiares, Roma e Paris, esta última por reunir a sensibilidade e a funcionalidade que o escritor considera características de uma metrópole, e é sobretudo por ser metrópole que Paris atrai Calvino.

É pela tendência aos caminhos múltiplos que percebemos no escritor o apreço pelo espaço urbano e tudo o que nele se concentra, como se esse espaço oferecesse um espetáculo, conservando certa atmosfera circense, e interagisse o tempo todo com o seu público

2 Filho de pais cientistas que moravam em Cuba a trabalho, Calvino nasceu em Santiago de las Vegas em 1923. O retorno para a Itália, que só aconteceu em 1925, foi atrasado em virtude de seu nascimento. De Paris, cidade onde vive durante muito tempo, formula muitos de seus pensamentos acerca da metrópole. Esses são apenas alguns fatos que nos mostram o quão entrelaçados podem estar o deslocamento do escritor e o deslocamento tratado em suas obras.

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(habitantes, visitantes). Dessa forma, vivências afetivas desdobram-se num processo de escrita afetiva e, consequentemente, no pensamento sobre a existência nesse espaço.

Apresentaremos neste capítulo o resultado de uma visita à obra crítica do autor, visando expor seu pensamento acerca da linguagem e suas diferentes manifestações, da narrativa e, sobretudo, de como a ideia de aventura está presente nela. Analisaremos também alguns capítulos da primeira parte de Palomar, intitulada “As férias de Palomar”, com base no que a crítica do autor sugere. Assim, posto em sequência, falaremos sobre aspectos de seu pensamento crítico acerca dos temas de interesse deste trabalho, seguido de uma breve ideia de Palomar, baseada no prefácio da edição italiana e, por último, a análise da primeira parte da obra.

Para a construção da teoria que servirá de base para a leitura de Palomar, utilizaremos, como já foi dito, os textos escritos por Italo Calvino durante sua trajetória de trabalho como crítico, ensaísta, teórico e tradutor. Calvino faz parte da geração de escritores críticos que se estabeleceu durante o século XX. Segundo Perrone-Moisés, “O exercício intensivo da atividade crítica pelos escritores é uma característica da modernidade. O próprio fato de que numerosos escritores de nosso século tenham acrescentado, à sua obra poética ou ficcional, uma obra paralela de tipo teórico e crítico tem a ver com o mal-estar da avaliação” (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 10), isto é, tratava-se de escritores que não recebiam mais o que a crítica realizada por uma academia especializada fazia. Essa ideia dizia respeito a uma “concepção da história que predominou e se instalou como disciplina acadêmica” e era “uma percepção linear, causalista e finalista” (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 27). A crítica produzida pelos escritores críticos não tinha contas a prestar com essa história linear e muito menos com a imparcialidade dos valores que apresentavam.

A base crítica calviniana que vamos expor a partir de agora compreende, primeiro, o pensamento do autor sobre o termo “aventura” e que, para nós, auxilia a situar outros conceitos, que são eles: estranhamento, deslocamento, e relação homem-natureza-história; segundo, a percepção de romance e de concepção narrativa e, dentro disso, o conceito de cidade, entidade essa que permeia a obra do autor e é apresentada ora abstrata, ora objetivamente, mas sempre como símbolo de mutabilidade, de uma elaboração geográfica e poética em construção, no tempo que compreende os mais diversos períodos de suas transmutações, das antigas civilizações à modernidade. Em Palomar, a objetividade e a subjetividade são trabalhadas como polos complementares.

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Os textos de Calvino reunidos nos volumes que aqui abordaremos foram escritos durante quatro décadas, dos anos 50 a meados dos anos 80. Em todos esses anos de ensaios e artigos para editoras, revistas, jornais e conferências, ao falar de outros escritores, Calvino acaba por falar, nas entrelinhas, de sua própria obra, de modo que se nota certo alinhamento de seu pensamento acerca do texto literário. Também fica claro, coincidentemente ou não, que as obras e autores abordados pelo escritor apresentam pontos em comum, tanto entre si, quanto pelos assuntos de interesse de Calvino.

Assim, ao menos a seguir, quando tentaremos elaborar um fio do pensamento do escritor sobre uma teoria da aventura, consideramos de bom tom dispor nossa escrita por obra, partindo dos textos que abordam temas mais abrangentes, presentes em Assunto Encerrado, seguido de considerações mais específicas sobre a aventura em Por que ler os clássicos e

Mundo escrito e Mundo não escrito. Exceto este último, as outras duas obras citadas estão

teorizadas aqui por data de publicação dos ensaios, inclusive para percebermos os pensamentos que se aproximam da data de lançamento de Palomar, entre o final dos anos 70 e começo dos anos 80. Apenas Seis propostas para o próximo milênio não entra nesse esquema, já que foi escrito no propósito de um todo, e falaremos sobre ele em um tópico separado.

2.1. Un viaggiatore: homem, lugar, cidade

A aventura em sua definição primeira diz respeito a um romance que prioriza a ação. Mas a ação percebida por Italo Calvino tem menos a ver com a agilidade de uma determinada personagem do que com o modo pelo qual se dão os acontecimentos, pelo que essa personagem é capaz de fazer e de que modo realiza a superação dos obstáculos que surgem durante sua jornada. Esses homens e mulheres inseridos nas trajetórias de provações não poderiam ser “nunca entusiasmados, nunca satisfeitos, nunca espertos ou soberbos” (CALVINO, 2009, p. 23). Não apresentar tais características é um indício de personagens que nunca se conformam, e que se questionam sempre sobre o que há além daquilo com o que se deparam.

Efetivamente, sempre interessou a Calvino a questão do homem de batalha, que vai à luta e se doa às disputas por território. Os embates indicam, em sua literatura, conflitos do campo ideológico e existencial, além das conquistas geográficas, e, longe de ter outro homem como inimigo, marca o descompasso entre o discurso do eu e o discurso do mundo. Por mais

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que a épica clássica seja influenciada por uma força mítica, “os duelos de heróis, seus itinerários aventurosos, a matéria, em suma, da narrativa é toda humana, desdobra-se segundo as leis da terra” (CALVINO, 2009, p. 30); isso porque já não se espera uma resolução divina para tais conflitos, visto que o mundo já sofreu alterações feitas pelo estabelecimento das sociedades. Logo, “a épica moderna já não conhece deuses: o homem está sozinho e tem diante de si a natureza e a história” (CALVINO, 2009, p. 30). O estar no mundo por si só já é o pior dos enfrentamentos que pode acontecer ao ser humano, não apenas no sentido de simplesmente estar, mas de se perceber nesse lugar.

A existência, então, parece fazer uso de uma balança em que ora está no alto a objetividade, ora a subjetividade. São essas duas constantes a esmagar e dar forma ao indivíduo. A mesma modernidade que inflou a subjetividade por meio das vanguardas europeias é a modernidade que sufoca pela objetividade do mundo prático, e é essa objetividade castradora que Calvino critica; ela é responsável por “anegar o eu”, ao perceber que “o vulcão de onde se derrama a efusão de lava já não é o ânimo do poeta: é a cratera fervente da alteridade, na qual o poeta se precipita” (CALVINO, 2009, p. 50).

A imagem de um mundo dividido e dilacerado também é resultado do Calvino que lutou contra o fascismo durante a Segunda Guerra Mundial. Já que não se conseguia o mínimo indício de uma unidade de sujeito, essa busca foi transferida para o mundo enquanto conceito, enquanto ideia: “Procurávamos imagens do mundo, procurávamos alguma coisa que, no mundo das palavras e das imagens, valesse a força e a tragicidade de nossa época” (CALVINO, 2009, p. 61). Assim, a literatura seria capaz de usar a linguagem como potência reconstrutora desse lugar perdido.

Mesmo com a experiência da guerra, o escritor continuou a investir no propósito de uma literatura de conflito, porém de forma metafórica e filosófica, diferente do que significava um conflito nas literaturas de viagens e aventura em sua gênese, que ocorriam, muitas vezes, de forma sangrenta. Talvez tenha sido justamente essa carga de ter participado da guerra que o fez retomar, senão de todo, pelo menos palavras do mesmo campo semântico. Não só é interessante a ligação que faz entre seus gostos de jovem leitor, sua atividade política e sua prática de escritor, mas em como sente a necessidade de transpor isso para seu tempo:

Eu também estou entre os escritores que começaram na literatura de resistência. Mas aquilo de que não quis abrir mão foi a carga épica e venturosa, de energia física e moral. Já que as imagens da vida contemporânea não satisfaziam essa minha necessidade, para mim foi

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natural transferir essa carga para aventuras fantásticas, fora de nossa época, fora da realidade (CALVINO, 2009, p. 69).

O escritor poderia ter enveredado por uma literatura de cunho político ambientada em seu tempo histórico, na qual suas referências também fossem para o viés do romance histórico. Contrário a isso, busca uma outra ambientação para narrar a sociedade do pós- guerra. Percebe-se que o que suscita essa troca é a necessidade de outra imagem mental que possa exprimir seu tempo tanto quanto as imagens produzidas nele. Além disso, Calvino vê na mecanização3 do século XX o exemplo necessário para desenvolver seus temas; ele não tem uma posição totalmente antagônica aos processos de modernização, mas entende que muito se perdeu com isso. Mesmo assim, defende uma literatura que aborde essas características, porque provocam discussões e questionamentos. Logo, aponta que “devemos expressar a vida moderna em sua dureza, em seu ritmo e também em sua mecanicidade e desumanidade, para encontrar os verdadeiros alicerces do homem de hoje” (CALVINO, 2009, p. 79).

O que Calvino critica mais ferrenhamente é a reificação do homem pela modernidade. A profusão de objetos e de um pensamento materialista domina a sociedade a ponto de não poder se distinguir o que é homem e o que é coisa. O escritor não deixa de atribuir a isso uma noção de inimigo, de perigo, comparando-os à barbárie. Em suma, é como se a sociedade tivesse conflitos em suas diversas frentes em relação ao eu, e por isso mesmo exigisse tal postura de combate, de ir contra:

Não adianta olhar em torno, buscando identificar os bárbaros em algumas categorias de pessoas. Os bárbaros, desta vez, não são pessoas: são coisas. São os objetos que acreditamos possuir e que nos possuem; é o desenvolvimento produtivo, que deveria estar a nosso serviço mas do qual estamos nos tornando escravos; são os meios de difusão de nosso pensamento, que procuram nos impedir de continuar a pensar; é a abundância de bens, que nos dá não o conforto do bem-estar, mas a ansiedade do consumo forçado; é a febre da construção civil, que impõe um aspecto monstruoso a todos os lugares que nos eram caros; é a fingida plenitude de nossos dias, nos quais amizades, afetos, amores murcham como plantas sem ar e todo diálogo se apaga logo ao nascer, seja com outros, seja com nós mesmos (CALVINO, 2009, p. 93).

O excerto acima é um pensamento de Calvino da década de 60, auge dessas transformações. Visto de hoje, é lugar-comum, pois temos conhecimento dos efeitos positivos

3 Neste trabalho, utilizaremos o termo “mecanização” nos sentidos modernos do termo: a substituição do

trabalho do homem pelo da máquina não só no âmbito do trabalho, mas também na padronização ou no apagamento de um eu integrado à vida sem a necessidade de mediações ou processos automáticos.

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e negativos dos processos de modernização do século XX. Mesmo assim, atentemos para dois pontos interessantes discutidos no trecho supracitado. O primeiro deles é a influência do mundo externo para o indivíduo, alterando seu comportamento e seu poder de decisão, enfim, deslocando seu lugar de pessoa e naturalizando-o como banalidade. O segundo consiste em como o espaço se transfigura nessa relação, perdendo vínculos de afetividade e importância no tempo, na memória e na cultura da sociedade.

A alteração da configuração de uma concordância entre indivíduo e espaço sugere um confronto que, para ser vencido, necessita da experiência4

, porque ela será capaz de desmontar e refazer o mundo de acordo com uma perspectiva própria, e não mais induzida ou massificada; é a experiência que vai dar direção a uma “humanização do mundo (isto é, do homem)” (CALVINO, 2009, p. 159). Ela será responsável também por conduzir o indivíduo aos processos de ordem, busca, entendimento, categorização e classificação dos diferentes elementos existentes. Logo, os obstáculos que encontramos em Palomar envolvem descortinar o mundo, estranhar o que já se colocou num estado de normalidade, e ir à origem para saber o que se vive na atualidade.

Por conta dessa mecanização, Calvino sugere uma percepção da literatura como máquina (2009, p. 204), mas uma máquina que sirva à desordem, que questione a ordem estabelecida não só na sociedade, mas na ficção. Desconstrução e reconstrução se dão não só pelo autor, mas principalmente por quem lê; é o contato do “olho de quem lê” (CALVINO, 2009, p. 206) que irá sempre duvidar dessa literatura que, por sua inconformidade, sempre duvidará do mundo. As imagens que a literatura moderna produzirá vão conduzir os leitores ao que ela deixou encoberto, vão “dar a palavra a tudo aquilo que, no inconsciente social ou individual, permaneceu não dito” (CALVINO, 2009, p. 209).

Nesse sentido, cabe ao leitor também a função de criador, aderindo também ele à batalha, ao enfrentamento de uma nova (des)ordem, pois “da prisão das representações do mundo que sublinham ou repetem a cada frase a tua escravidão, evadir significa propor outro

4 O conceito de experiência que aqui utilizamos diz respeito à experiência tradicional muito presente, por exemplo, em fábulas e provérbios. Nesse sentido, a experiência diz de uma vivência, com erros e acertos, que agrega ensinamentos que possam ser repassados entre os personagens e que levem o leitor a pensar sobre seu próprio estar no mundo. Segundo Morais (2017), “Benjamin revisa a noção de experiência, de Kant, para conceder-lhe um caráter metafísico. Assim, o traço científico do termo, que remete a um saber e a uma posse do mundo natural (para benefício do homem), transforma-se em sabedoria que é transmitida em forma de uma história que leva o outro, o ouvinte, a refletir e agir. Para isso, o autor convoca “objetos culturais”, como a pintura, a arquitetura, o cinema e a literatura, a fim de que seja possível a definição de experiência”. Calvino, em Palomar, mobiliza muitos saberes de várias áreas do conhecimento através das experiências da personagem, como veremos mais a frente.

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código, outra sintaxe, outro léxico por meio do qual dar uma forma ao mundo de teus desejos” (CALVINO, 2009, p. 298).

A aventura de Calvino vai se definindo como modo de sobrevivência, seja pela caça, pela guerra, ou pela linguagem; ela comunica um desejo de querer sair vivo. Não seria diferente ao homem, mastigado pela cidade-símbolo palco das mecanicidades modernas, que empunha uma espada imaginária e observar o lugar que habita, a intenção de pensar numa cidade

que não poderá ser fundada por nós mas fundar a si própria dentro de nós, construindo peça por peça em nossa capacidade de imaginá-la, de pensá-la até o fim, cidade que pretende habitar-nos, e não ser habitada, e, dessa forma, fazer de nós os possíveis habitantes de uma terceira cidade, diferente da utopia e diferente das cidades bem ou mal habitáveis de hoje, que surgiu do choque entre novos condicionamentos internos e externos (CALVINO, 2009, p. 300).

A constância da referência à cidade na obra de Calvino é perceptível em todos os períodos de sua crítica. O escritor também a compara ao que outrora comparou a literatura: a uma máquina, o que nos leva a pensar sobre a importância, geográfica e afetiva, da cidade em sua produção. Ela também é linguagem, se impõe e se expressa, está disponível para ser decifrada. Tal comparação também se dá pelo reconhecimento de que ela é, além de arquivo de um povo, funcionalidade; a crítica do autor se direciona para o apagamento da memória para uma incorporação total da cidade servidora. Por isso, retorna à criação de um processo imagético: “Para uma cidade, não basta ficar de olhos abertos. É preciso primeiramente descartar tudo aquilo que impede de vê-la, todas as ideias recebidas, as imagens pré- construídas que continuam a estorvar o campo visual e a capacidade de compreensão” (CALVINO, 2009, p. 333).

Antes de pensar seu funcionamento de máquina, é preciso estranhá-la, afastar para ver,

desfamiliarizar. O autor atenta para a vivência e o entendimento da cidade como algo que

precisa ser visto e analisado como um sistema, para só então ser possível refazê-la. Isso se aplica a Palomar quando sua experiência se resume ao movimento de compreender seu entorno sabendo que muitas coisas não podem ser totalmente apreendidas, mas sim vistas por perspectivas diferentes. Por isso o olhar é tão presente na obra de Calvino, porque o mundo já é produto de uma intervenção humana e será a imagem a encarregada de transformá-lo.

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Assim, “o homem é um instrumento de que o mundo se serve para renovar a própria imagem ininterruptamente” (CALVINO, 2009, p. 352).

Esta é a trajetória de aventura que sugere Calvino, atravessar a cidade como campo de batalha, desvendando-a com sua arma mais potente: a experiência que une olhar e questionamento para entender sua própria existência. Vejamos, agora, como o escritor enxerga a aventura nos clássicos que indica como essenciais.

2.1.2. Calvino propõe uma aventura

Na década de 50, ao falar de Joseph Conrad5

, Italo Calvino cita-o como inspiração para a sua geração, por pertencer aos “escritores “aventurosos”, e nessa característica não está somente a qualidade estética da narrativa, e sim a aventura como significação para outros períodos e espaços, para contar histórias de povos diversos, emaranhando o tempo para que o antigo ressignifique o contemporâneo. Já aqui fica evidente a vontade de um resgate de costumes não no sentido estabelecer uma verdade absoluta que anula o tempo vindouro, mas a vontade de colocar o homem perante ele mesmo, pensamento e pensamento, matéria e matéria, para que troquem confissões. A percepção de aventura aqui está no sentir/fazer e no ocupar/existir.

Em ensaio escrito por ocasião do Nobel dado a Ernest Hemingway6, evidencia como positivo na literatura do escritor o reconhecimento da relação entre homem, trabalho e cotidiano, e de que há nisso matéria de ação, não sendo necessário um espaço-tempo extraordinário ou fantástico para que haja uma travessia de obstáculos nem para que o eu em questão deixe de perceber seu protagonismo (frutífero ou medíocre, há sempre que se extrair algo) em sua própria narrativa.

É em Daniel Defoe7

que Calvino verifica o que seria a “matriz do romance moderno, bem distante do terreno da literatura culta” (CALVINO, 2007, p. 105). Em Robinson Crusoé (1719), além da moral característica dos romances populares, de cunho instrutivo, chama a

5 Joseph Conrad (1857-1924), escritor britânico de origem polonesa. Nascido Józef Teodor Konrad Nalecz

Korzeniowski, filho de pais poloneses, na cidade de Berdichev, na Ucrânia. Escreveu, ao todo, dezessete romances, sendo os principais Lord Jim, de 1900, Nostromo, de 1904, O agente secreto, de 1907, e Sob os

olhos do ocidente, de 1911; e sete novelas, com destaque para O coração das trevas de 1902.

6 Hernest Hemingway (1899-1961), jornalista e escritor norte-americano. Foi correspondente de guerra em Madrid e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1954. Escreveu livros de ficção e não ficção, dentre eles Por quem os sinos dobram (1940), O velho e o mar (1952), e Paris é uma festa (1964, póstumo).

7 Daniel Defoe (1660-1731), escritor e jornalista inglês, autor, dentre outras obras importantes, de Robinson

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atenção de Calvino “o modo direto e natural com que um costume e uma ideia da vida, uma relação do homem com as coisas e as possibilidades ao alcance de sua mão se exprimem em imagens” (CALVINO, 2007, p. 105). Nesse ensaio, também se percebe uma atenção para a formação da imagem, seja no tempo da narrativa, quando produz uma trajetória do olhar, seja para o leitor, que transforma a palavra escrita num conteúdo imagético. Além disso, há a valorização da narrativa do cotidiano, do que é possível de ser grandioso dentro da banalidade.

Outro ponto observado por Calvino, fora a formação das imagens, é a descrição. Para ele, a descrição está distante de somente inserir o leitor num quadro o mais fiel possível, mas sim aproveita o que ela pode oferecer dos elementos que habitam a narrativa, pois “o acúmulo de minúcias visa persuadir o leitor da veracidade do relato, mas também exprime do melhor modo possível o sentido da importância de cada objeto, de cada operação” (CALVINO, 2007, p. 107). Tanto a imagem quanto a descrição serão trabalhadas por Calvino (esta última, inclusive, retomada, posto que o autor afirma que já estava em desuso) em suas obras, sobretudo quando pensamos no percurso humano do olhar, no deslocamento poético e geográfico do eu. Calvino trabalhará o ato de ver como criação e descoberta.

A verdade é que todo tempo em que Calvino trabalhou como crítico e tradutor, que coincide com seu tempo de ficcionista, o que pensou e escreveu sobre os escritores sempre serviu como exercício para o seu próprio processo criativo. É escrevendo sobre Boris Pasternak8 que ele pensa sobre natureza e história não como matérias indissociáveis, mas sim complementares para a existência, e é essa junção que a trajetória humana vai perseguir. Assim as narrativas modernas escrevem sobre o instante agora e, se se voltam para o passado, é sempre sem saudosismos. Nem história nem natureza são juízos conclusos para o homem, são sempre construção a partir do estranhamento do mundo e da instabilidade do homem contemporâneo.

É nos anos 60 que Calvino apresenta seu apreço pela multiplicidade, sobretudo acerca do desvendamento que ela oferece. Quando escreve sobre Carlo Emilio Gadda9

, descreve o mundo como uma alcachofra, realidade que “se apresenta a nossos olhos múltipla, espinhosa, com estratos densamente sobrepostos. [...] O que conta para nós na obra literária é a possibilidade de continuar a desfolhá-la como uma alcachofra infinita, descobrindo dimensões

8 Boris Leonidovitch Pasternak (1890-1960), poeta e romancista russo. Atuou na Primeira Guerra Mundial e venceu o Prêmio Nobel de Literatura em 1958, ano de publicação de sua obra mais famosa, Doutor Jivago. 9 Carlo Emilio Gadda (1893-1973), escritor italiano. Dentre suas obras mais conhecidas estão O conhecimento

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de leitura sempre novas” (CALVINO, 2007, p. 210). Não só a literatura é assim para o leitor, como também o mundo se apresenta dessa forma para muitas personagens calvinianas, dentre eles o senhor Palomar. O mundo é possibilidade de desvendamento, e a cidade é símbolo disso; há sempre uma sensação de que existe um atravessamento que precisa ser feito para sanar dúvidas colocadas no início da narrativa, porém a conclusão disso é a de que nunca há respostas concretas.

Cesare Pavese10

foi tema de muitos ensaios de Calvino, e ele aproveita as falas a respeito do poeta e amigo para discutir sobre dois assuntos presentes em Palomar: silêncio e origem das coisas. Os não ditos de Pavese certamente reverberam na obra de Italo Calvino, em sua escrita construída no mistério da palavra oculta, confiada na contribuição que o leitor pode dar. A obra de Pavese também leva Calvino a pensar sobre a investigação de origens, seja de coisas, memórias, ou lugares. Tal investigação sugere sempre um deslocamento, no tempo e no espaço, influenciado pela vontade de reconhecer para então conhecer. A origem das coisas também é observada por Calvino em Raymond Queneau11

, em texto de 1981, porém desenvolvida a partir de uma linguagem que prioriza a ordem e o jogo de combinações perante o caos do mundo.

Já nos anos 70, de Honoré de Balzac12 chega a influência da cidade como personagem e, claro, o exemplo é Paris, cidade em que Calvino também viveu, e que é evocada em

Palomar. Para o escritor, Balzac faz “com que em cada momento mutável a verdadeira

protagonista seja a cidade viva, a sua continuidade biológica” (CALVINO, 2007, p. 150), e o que extrai disso é a possibilidade de pensar o mundo através dela. É em Balzac que está, primeiramente, a ideia de “cidade como linguagem, como ideologia, como condicionamento de cada pensamento e palavra e gesto” (CALVINO, 2007, p. 152); essa cidade acolhe e repele, imprime em sua fisionomia certas ideias contra as quais estamos indefesos. Logo depois de Balzac, Baudelaire consagra a cidade na literatura. Em ambos, e que será também em Calvino, a cidade estimula a curiosidade, como se sempre tivesse algo a ser revelado e seu esgotamento de sentido fosse uma quimera; o fato de não receber a cidade como ela é dada causa a sensação de estranhamento: desmontar para descobrir.

10 Cesare Pavese (1908-1950), escritor italiano, foi amigo pessoal de Calvino e colega de trabalho na Editora Einaudi. Escreveu poesia, prosa, e traduziu clássicos como Moby Dick e Moll flanders para o italiano. Das suas produções se destacam Trabalhar cansa (1936) e Diálogos com Leucó (1947).

11 Raymond Queneau (1903-1973), escritor francês. Particiou do OuLiPo, grupo de oficina literária, junto com outros escritores, entre eles Georges Perec e Calvino. Escreveu Pierrot meu amigo (1942) e Zazie no metrô (1959).

12 Honoré de Balzac (1799-1850), escritor francês, inaugurou o realismo na literatura moderna. Escreveu obras importantes como Ilusões perdidas (1837) e A mulher de trinta anos (1842).

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Em Tolstoi13, Calvino percebe o herói que está em sociedade, não só pelas fraquezas humanas apresentadas, mas em como isso surge a partir da cidade, dos lugares mais banais, e que por isso mesmo exigem uma postura de enfrentamento. Assim como em Pavese, Calvino percebe em Tolstoi “aquilo que não se vê, aquilo que não é dito, aquilo que poderia existir e não existe” (CALVINO, 2007, p. 169), o que coincide com o narrador em terceira pessoa de

Palomar, que consegue a objetividade através da descrição para que depois, tanto no

personagem quanto nas leituras, o pensamento sobre as coisas observadas não seja resolutivo ou conclusivo. As descrições seguem um crescente até onde a personagem pode alcançar o pensamento sobre aquilo, e as interrupções em Palomar geralmente surgem por uma falta de paciência dele ou por ação da natureza, como veremos na leitura que faremos da obra.

Quando Calvino fala sobre Robert Stevenson14

, nota que o elemento estranho precisa fazer parte de um espaço para que ele possa ganhar força e importância dentro da narrativa. O estranho que ele aponta aqui é o mesmo que está presente na fábula, a personagem cara a cara com o desconhecido, com algo que evoca mistério, e que figura não só na fábula, mas no romance de aventuras. Um autor de romances de aventura precisa ter, para Calvino, um estilo “seco e objetivo” (CALVINO, 2007, p. 183) e, claro, é uma narrativa que evidencia a ação, como já discutimos, porém ação não no sentido de rapidez, mas de acontecimentos encadeados, episódios em sequência. Em Palomar essa ação se dá pelo propósito do personagem em fazer algo, deslocar-se para tal, e pensar sobre o que faz, levando em consideração a relação entre ele, o espaço e o fenômeno observado; é uma ação que implica menos as atitudes físicas e mais o pensamento, e que Calvino também percebe em Ovídio15: “Do oriente, por meio do romance alexandrino, vem até Ovídio a técnica da multiplicação do espaço interior à obra mediante os relatos encadeados uns nos outros, que aqui fazem aumentar a impressão de densidade, de aglomeração, de enredamento” (CALVINO, 2007, p. 36).

O que diz sobre Ariosto16, “sobretudo ligar o tempo mítico da cavalaria às vivências contemporâneas” (CALVINO, 2007, p. 72), é algo que sempre usa em sua ficção, principalmente quando a estética do pós-guerra não supria isso. Encontramos tal ambientação,

13 Liev Tolstoi (1828-1910), escritor russo, um dos mais influentes, traduzidos e estudados de todos os tempos.

Escreveu, entre outras obras, Guerra e Paz (1869), Ana Karenina (1877), e A morte de Ivan Ilitch (1886).

14 Robert Louis Stevenson (1850-1894), escritor escocês. Foi jornalista e escritor de roteiros de viagem.

Escreveu A ilha do tesouro (1883) e O médico e o monstro (1886).

15 Públio Ovídio Naso (43 a. C.-17 ou 18 d. C), poeta romano. Escreveu sobre amor e mitologia. São dele as obras Metamorfoses e A arte de amar.

16 Ludovico Ariosto (1474-1533), poeta italiano. Estudou a composição poética dos latinos. É autor do poema

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por exemplo, na trilogia Os Nossos Antepassados17, em que usa a idade média como alegoria para o homem moderno.

O não-lugar pensado por Calvino não é demonstrado pelo mal estar físico e emocional da inadequação, mas sim da inconformidade dos significados que estão já definidos, porque são limitados. Dessa forma, insere a descrição como desmonte de tudo o que está dado e o pensamento como multiplicidade do que vê: quanto mais percebido em sua singularidade, mais possibilidades apresenta. Essa percepção é dita ao falar sobre Girolamo Cardano18

, que começa “o novo caminho do saber humano, destinado a desmontar o mundo parte por parte, mais do que mantê-lo unido” (CALVINO, 2007, p. 88). O imaginário trabalha para reverter a inexistência do objeto/fenômeno/lugar como possibilidade.

Calvino fala sobre o mal estar do homem no mundo a partir de um poema de Eugenio Montale19

. Esse mal estar está associado à incapacidade de apreendermos tudo o que se encontra ao nosso redor. A modernidade dá ao homem a dimensão de uma sabedoria esfacelada, porque essa seria a verdadeira busca pelo conhecimento. A sensação de mal estar é percebida a partir da formação das imagens pela cognição; esse é outro viés pelo qual Calvino trabalha a ida à origem das coisas: a tela branca em que as imagens brotam, como no cinema.

Na leitura que faz do escritor Francis Ponge20, Calvino pensa sobre o estranhamento quando observa na poesia de Ponge o seu apreço por “pegar um objeto dos mais humildes, um gesto dos mais cotidianos, e tentar considerá-lo fora de todo hábito perceptivo, descrevê-lo fora de qualquer mecanismo verbal gasto pelo uso” (CALVINO, 2007, p. 245). Essa técnica é também prática da literatura calviniana, sobretudo em Palomar, quando ele afasta o objeto, ou se afasta do mundo em que está aquele objeto, para tentar esgotá-lo de hipóteses que não sua existência banalizada. Fala também sobre o homem-coisa, como se por um instante o existir fosse colocado de lado, ou a hierarquia que classifica o mundo fosse abandonada, e o homem saísse de cena para observar de fora. É no isolamento do objeto que podemos “construir em torno dele o discurso” (CALVINO, 2007, p. 248).

Estamos nos anos 80, e Calvino afirma que “a visualidade romanesca começa com Stendhal e Balzac, e com Flaubert atinge a relação perfeita entre palavra e imagem”

17 Trilogia que contempla as obras O visconde partido ao meio, O cavaleiro inexistente, e O barão nas árvores. 18 Girolamo Cardano (1501-1576), polimata italiano, escreveu principalmente sobre medicina e matemática, e

formulou as primeiras regras da teoria da relatividade.

19 Eugenio Montale (1896-1981), escritor e tradutor italiano. Foi também jornalista e trabalhou como redator do periódico Corriere della Sera. Sua obra mais conhecida é Ossos de sépia (1927).

20 Francis Jean Gaston Alfred Ponge (1899 – 1988), poeta francês. Costumava produzir variantes de um mesmo texto.

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(CALVINO, 2007, p. 163). Palomar possui o crescente cidade-linguagem-imagem, a observação que produz para o narrador: texto, para o leitor: texto seguido de imagem. Nessa década, a última de sua vida, ele está cada vez mais interessado em como a narrativa pode oferecer ao leitor a possibilidade da criação de imagens mentais.

Chegamos ao famoso ensaio Por que ler os clássicos, que dá nome à antologia que abordamos aqui. Um ensaio enumerado, uma lista de motivos que convence sobre a influência dos clássicos não só na formação do leitor, mas na existência dos estudos literários. As proposições lançadas por Calvino possuem uma clara relação com o tempo, isto é, na sua concepção, os clássicos estão numa relação temporal diacrônica com a história e o indivíduo. Aliás, toda a importância dos clássicos, mote do ensaio de Calvino, se sustenta pelo ato de ler e pela figura do leitor.

Um dos pontos abordados pelo escritor é a maturidade, que na relação entre leitor e obra clássica, figura em via de mão dupla, visto que “na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) muitos detalhes, níveis e significados a mais” (CALVINO, 2007, p. 10), e que o tempo é um dos fatores que firmam uma obra em sua importância. Pensemos, então, na maturidade do leitor e da obra, e na existência metamorfa de ambos. O senhor Palomar pode ser visto nessa figura do leitor maduro, que relê uma obra, reconstruindo todos os seus significados. Na narrativa, vemos essa obra ora de forma ampla, que é o mundo, ora de forma reduzida, como amostra, que é a cidade. Homem e discurso (aqui do espaço) são ambos mutáveis, afetados pelo tempo:

deveria existir um tempo na vida adulta dedicado a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os mesmos (mas também eles mudam, à luz de uma perspectiva histórica diferente), nós com certeza mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo

(CALVINO, 2007, p. 11).

Por isso, Calvino utiliza muitos exemplos da literatura clássica para fundamentar seu romance moderno, e isso nos faz pensar o uso da narrativa de aventura, a realocação dessa estrutura na modernidade. Tendo em vista que a leitura de um clássico deve sempre trazer uma novidade, como algo descoberto pela primeira vez, esse pensamento está incutido na filosofia de Palomar, quando a personagem se decide a observar a natureza ou os lugares para que toda a relação com aquilo que observa possa ser repensada e, de certa forma, ele passeia por clássicos que estão disponíveis para sua visão, afinal “A leitura de um clássico deve

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oferecer-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos” (CALVINO, 2007, p. 12).

As duas últimas considerações ilustram o pensamento de Calvino sobre a importância do clássico para a modernidade e como ambos se visitam: “É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo” (CALVINO, 2007, p. 15) e “É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível” (CALVINO, 2007, p. 15). O escritor é bastante crítico, como já vimos, acerca de instrumentos que chegaram com a modernidade e que achatam o homem, que o enlatam num comodismo. Muito se discute sobre essa visão do clássico como privilégio erudito de homens como Calvino, por exemplo; aqui, ele quebra um pouco dessa categorização mostrando que as diferentes gerações recebem esses clássicos21, e seus discursos se interpenetram. Além disso, os clássicos serão sempre predecessores e sucessores, nunca se perde em número de clássicos, mas pelo contrário, o volume aumenta de acordo com o tempo. Isso porque os enredos se repetem, já que se fala sempre de uma mesma história, a da humanidade.

Falando sobre a História Natural, de Plínio22, Calvino afirma que “quando também você encontra a explicação dos fatos, nem por isso os fatos deixam de ser maravilhosos” (CALVINO, 2007, p. 46), o que nos faz pensar que não só o fato em si é prazeroso numa descoberta, mas também como ele acontece, o que o fez chegar até aquele modo de acontecer, porque definição e explicação de um elemento também fazem parte do que ele é. Existem na natureza os fenômenos inexplicáveis, ou desvios de uma ordem já estabelecida e conhecida, porque a natureza, segundo Calvino, é um território de fronteira, onde “quem existe poderia não existir ou ser diferente, e tudo é decidido aí mesmo” (CALVINO, 2007, p. 49). A vida do homem, estável ou por um fio, é regida pela natureza; nesse movimento cíclico, há o repasse das narrativas ao longo do tempo.

Citando as várias odisseias presente na Odisséia, o escritor reflete sobre a questão do retorno da jornada, da viagem. É algo que se nota em Palomar como composição, porque para as coisas e os fenômenos, o narrador onisciente enxerga um passado que as explique, mas para o senhor Palomar isso não está no ato da fala; construímos o senhor Palomar, então, através do que ele observa e das informações dadas pelo narrador. A memória em Palomar é

21 É pertinente lembrar que há ruídos, sociais e culturais, quanto ao acesso desses clássicos, à sua mediação, etc. 22 Plínio (23-79), mais conhecido como Plínio, o velho, naturalista romano. Durante muito tempo se dedicou a escrever uma enciclopédia de história natural, com livros de matemática, geografia, botânica, farmacologia, entre outros.

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menos afetiva que teórica, e possui a função de legitimação ou questionamento científico. Porém, passando a limpo essa revisitação pelos espaços, reconstrói o próprio mundo, existindo assim um retorno para fins de conclusão, de definição última das coisas, porém fracassa, visto que os questionamentos vencem. Mas podemos pensar esse retorno como o início do fim, o retorno para a dúvida que é não existir.

Em ensaio da mesma época, Mundo escrito e mundo não escrito, Calvino apresenta de maneira didática como é a experiência com essas duas formas de interação. O mundo não escrito é o campo do inesperado, isto é, os acontecimentos tendem a fugir de uma pretensão de entendimento e, na literatura, a experiência é sempre possível. Embora afirme não ser um observador, reconhece que o fator desencadeante e renovador dos processos de escrita é a interação com esse mundo não escrito, mas é como se a escrita viesse carregada de credibilidade através da própria construção da linguagem.

Dessa forma, o mundo já estaria classificado, “julgado”, porque tudo já está lido e interpretado, sem a necessidade do outro olhar. Calvino chega a essa conclusão ao pensar em sair a andar; logo, podemos perceber a aparente passividade da paisagem citadina, que não se apresenta ao caminhante de maneira a ser desvendada, descoberta, e sim como algo que sempre existiu e que não permite mais o questionamento. Por isso, ler o mundo não escrito é um exercício tão importante quanto a atividade letrada, e não deveria existir uma hierarquia entre essas duas práticas. O que Calvino pretende com o livro enquanto objeto é pensá-lo como questionamento perene. A “palavra escrita se liga ao vivido como origem e como fim” (CALVINO, 2007, pp. 256-257). É a narrativa a responsável por guardar a experiência humana e fazer com que ela vire herança do mundo, para que exista além da sua função de documento, mas como história para contar e para figurar no imaginário.

Ao pensar Palomar, Calvino assume a necessidade de se colocar no papel de observador para desenvolver a característica da observação no personagem. Elabora isso de forma muito específica: imagina um livro que gostaria de ler, criando também um escritor, e escreve na tentativa de se aproximar desse escritor inventado. Logo, a atividade de Calvino como escritor, segundo o próprio, pode se resumir a: tentar “apagar” alguma coisa já escrita, ou seja, partir disso para algo novo; influência de um outro escritor; aprendizagem de algo que não conhece/domina.

O escritor continua pensando, nos últimos anos de sua vida, sobre a aventura como proposta. Diz sobre o primeiro romance de cavalaria: “todo livro de cavalaria pressupõe um

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livro de cavalaria precedente, necessário para que o herói se torne cavaleiro” (CALVINO, 2007, p. 62). Talvez seja por isso que seus personagens possuem a necessidade de buscar um embasamento teórico para as coisas que surgem em sua jornada. E completa sobre Dom Quixote: “Uma vez que Cura Barbero, Sobrina e Ama tenham ateado fogo à biblioteca, a cavalaria terminou” (CALVINO, 2007, p. 62). Além da instrução, que passa como uma tradição ou herança, existe o apreço pelo conhecimento, pela palavra escrita, e pelo objeto livro. Cada ser humano é um livro na medida em que vive e faz circular a bagagem que acumulou. É esse imaginário geral que guardamos que acompanha nosso cotidiano.

Quando relaciona o universo e a linguagem presente em Galileu23

, entende que o universo é um livro que se encontra aberto e disponível para consulta. Galileu possui a “metáfora livro-mundo” (CALVINO, 2007, p. 91). Sugere uma reconstrução do mundo a partir da palavra, uma “refeitura”? Da mesma forma que o mundo é um sistema em funcionamento e constantes mutações, a linguagem escrita e a falada também o são. Há um questionamento que permeia toda a jornada do senhor Palomar maduro, de quando ele começa a passar a limpo o universo; é o que existia antes dele e o que vai continuar existindo quando ele não estiver mais, e é justamente a linguagem.

Encerrando o pensamento do escritor acerca da aventura, Calvino (2015) referencia dois nomes importantes para ilustrar o porquê desse resgate em suas narrativas, e são eles Giacomo Leopardi24 e Leo Spitzer25. Em Leopardi estariam vivos os grandes componentes do romance moderno, “a tensão aventurosa, (...) a assídua pesquisa psicológica introspectiva, a necessidade de dar nomes e rostos de personagens a sentimentos e pensamentos dele e de seu século” (CALVINO, 2015, p. 16). Para Calvino, faltava à literatura italiana esse apreço pela aventura.

Já a definição que utiliza de Spitzer é a seguinte: “é uma situação singular, extraordinária, imprevista, que vem de fora do homem, que “acontece” e precisa ser superada por ele com coragem e argúcia, numa vitória que representa uma prova moral de si mesmo” (CALVINO, 2015, p. 162), isto é, trata-se de uma ação que não pertence só a gêneros clássicos, e pode se manifestar em outros momentos da literatura, pois contempla a universalidade que é o humano extrapolar seus limites a partir de uma interação com o meio.

23 Galileu Galilei (1564-1642), cientista italiano. As áreas estudadas por Galileu contemplam a física, a matemática, a astronomia, a filosofia. Fez descobertas importantes sobre o sistema solar e desenvolveu instrumentos científicos para medição e observação.

24 Giacomo Leopardi (1798-1837), poeta e filólogo italiano. Seus poemas eram dotados de pessimismo e melancolia.

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Logo, nas novelas de cavalaria, a aventura seria capaz de extrapolar a experiência individual e tornar-se a situação excepcional “de um lugar, ou de um objeto, ou de uma série de fenômenos” (CALVINO, 2015, p. 163).

2.1.3. Outras aventuras

O filósofo Giorgio Agamben ao escrever sobre aventura define o termo francês

aventure como a palavra que o cavaleiro usa não só para definir o ato de sua procura; a

palavra ou o ato de aventurar-se define também o indivíduo, diz dele mesmo. Trover, em francês, ou trovare, em italiano, possuem ambas a tradução “encontrar”, mas também não querem dizer só isso. Em literatura temos a trova, composição em verso e que, segundo Agamben, trover possuía o significado de “compor poesia” (por isso os poetas chamavam a si mesmos trobadors, troubères ou trovatori)” (AGAMBEN, 2018, p. 24, grifo do autor). Logo, a prática da aventura se confunde com a prática do fazer poético, e “a aventura do cavaleiro é a mesma aventura do poeta” (AGAMBEN, 2018, p. 25).

O termo aventura, independente de onde ele se origina, “designa o fato de que aconteça a um certo homem algo de misterioso ou maravilhoso, que pode ser tanto positivo quanto negativo” (AGAMBEN, 2018, p. 25). Já vimos em Calvino que não necessariamente esse acontecimento pertence ao lugar da fantasia, seja dentro ou fora do que se considera conhecido da narrativa em que o personagem está inserido. Também em Agamben funciona dessa forma, porque aventura está associada a evento, que pode ocorrer no cotidiano ao qual o cavaleiro pertence; o cotidiano pode fornecer algo extraordinário a depender da relação que esse homem estabeleça com o que o rodeia.

A aventura citada por Agamben tanto pode ocorrer via evento inesperado quanto num evento que segue uma sequência de acontecimentos interligados. O filósofo também fala de dois aspectos importantes para o que discutimos neste trabalho. O primeiro deles diz que “a aventura é para o cavaleiro tanto encontro com o mundo quanto consigo mesmo” (AGAMBEN, 2018, p. 26); o segundo, que “quanto mais estranha e arriscada é a aventura, mais ela é desejável” (AGAMBEN, 2018, p. 27). O simples fato de estar deslocado já acrescenta modificações no homem e, ao passo que avança em sua jornada, o evento que para ele surge, quanto mais diferente lhe for do que já possui costume, melhor. Junto a isso, a

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