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Palavras chave Economia política da barbárie; guerra civil; crise do capitalismo

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Academic year: 2021

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Estados dissolutivos da guerra civil: entre rapina e autodestruição

Marildo Menegat1

Resumo: Neste artigo o autor analisa criticamente as transformações do político contemporâneo e suas relações com a guerra e a economia. O fim da Guerra Fria é tomado como o resultado de uma crise estrutural do capitalismo, iniciada nos 1970. Desde então, será um tempo de instabilidade, devido à ampliação do espaço de dominação da última superpotência, sustentado com recursos em queda. Por essa razão, os EUA se vêm compelidos à guerras de ordenamento mundial para manter a credibilidade do poder de suas armas e do dólar. Em outras épocas, a guerra ocupou com frequência o lugar da política, e após a Segunda Guerra Mundial, a política foi tensionada a se subordinar mais intensamente à economia. Na crise atual, estas melànges continuam se reproduzindo, agora numa espécie de economia política da barbárie, que é um emaranhado entre guerra, economia e política. Isso porque a gravidade da crise econômica, que faz dela o centro nervoso da vida social, exige esta fusão, que pode ser observada nas epidemias de guerras civis, conduzidas por bandos armados desideologizados que exercem poder em pequenos territórios. Eles são a expressão desse recrudescimento, em que esta modalidade de poder sustentado nos estilhaços do que foi o Estado, seguem a necessidade da rapina dada pela economia - seja em pequena ou grande escala. Esta situação, para levar adiante a irrealidade da acumulação, conduz à aliança do capital globalizado, que requer este trabalho sujo, com esses bandos, elevados a modelo de gestão imediata da barbárie como ordenamento local combinado ao mundial.

Palavras chave – Economia política da barbárie; guerra civil; crise do capitalismo

Abstract: In this article, I analyze the transformations of the contemporary political and its relations with war and economy. Here, the end of the Cold War is read as the result of a structural crisis of capitalism, initiated in the 1970s. Ever since, our times have been going through instability due to the expansion of the domination space of the last superpower, sustained with declining resources. For this reason, the United States are compelled to world ordering wars aimed at keeping the power credibility of its weapons and dollars. In other epochs, war has often taken the place of

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politics, and after the Second World War, politics was gradually – and more intensively – subordinated to economy. In the current crisis, these mélanges continue to reproduce themselves – now in a sort of political economy of barbarism resulting from an entanglement of war, economy, and politics. This is so because the gravity of the economic crisis (which makes it the core of social life) requires fusion – witnessed, for instance, in the epidemics of civil wars, conducted by de-ideologized armed gangs, exerting power in small territories. They are the expression of this recrudescence, in which this modality of power sustained in the ruins of what the state once was, follow the economy’s need for prey, both in small and large scale. In order to advance the irreality of accumulation, this situation leads to an alliance of globalized capital, which demands this dirty work, with its gangs, now elevated to a model for immediate management of barbarism as local-global ordering.

I.

Viver atolada num pântano, até onde alcanço, é uma experiência da humanidade sem precedentes na história. Os movimentos de captura para baixo, num efeito vertiginoso, se traduzem ideologicamente em passos projetados para frente. A temporalidade, também abocanhada por esta vertigem, simplesmente apagou o futuro. Por estas razões, tem sido um obrar de Sísifo demarcar a escala e a tendência das transformações da moderna sociedade produtora de mercadorias na atualidade. A memória não ajuda muito quando a proporção dos acontecimentos é gigantesca. Este é um dos motivos para que uma sequência desse tipo de acontecimentos não tenha sido percebida como uma ruptura imediata de época e, em contrapartida, tenha produzido esta experiência sui generis de prisão no presente que, no entanto, se move – e ameaçadoramente. Eles foram o início de uma alteração profunda do mundo herdado do pós-Segunda Guerra. Tomado o devido distanciamento, os anos 1970 podem ser compreendidos como um efeito dominó que apenas ficou plenamente visível em 1989, quando caiu a última peça, com a queda do muro de Berlim e o colapso do socialismo real. Tais eventos começaram com o fim de Bretton-Woods (1971), continuaram na crise dos petrodólares (1973) e tiveram seu ápice na primeira grande recessão mundial depois de 1929, entre 1974-752. O que permaneceu oculto nestes episódios foi a grande

virada que as técnicas da microeletrônica, há pouco iniciadas, começavam a delinear. No desenvolvimento posterior ficou claro que as novas técnicas, ao mesmo tempo em que pareciam ser

2 Sobre este tema ver Mandel, E. A crise do capital – Os fatos e sua interpretação marxista. Campinas: Ensaio-Unicamp, 1990; especialmente os capítulos I e II.

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a senha para a entrada num admirável mundo novo, também significavam uma barreira intransponível para a continuidade da acumulação de capital, que encontrou então o seu limite lógico interno absoluto (Kurz, 2018)3 .

A Guerra Fria - que foi a unidade do mundo bipolar que findou -, para além de ter sido uma estranha guerra sem destruição exposta, mas potencialmente anunciada em todos seus detalhes4,

configurou as condições de estabilidade da dinâmica contraditória da acumulação de capital deste período, na fase fordista avançada, em que os contornos da mundialização já apareciam nitidamente. Quando um dos polos ruiu, no caso, a ex-URSS, não foi apenas ao seu infortúnio que se assistiu nesse acontecimento, mas o ponto de chegada da crise iniciada antes (Kurz, 1993). O socialismo real e os países do Terceiro Mundo, que nas décadas finais do século XX quebraram endividados, foram a primeira rachadura de uma estrutura que passou a dar sinais de um evento sem paralelo. A política doméstica dos países centrais, no entanto, na chave dos programas neoliberais, mostrou que rir do naufrágio alheio pode não ser mais do que um exercício macabro de rir do próprio infortúnio, mesmo que este ocorra mais lentamente. A economia de bolhas que desde os anos 1980 domina o mercado mundial, tem retardado os efeitos mais apocalípticos que estes acontecimentos carregam, mas o faz apenas na condição de ampliar as consequências incontornáveis do que está por vir5. Todo o assim chamado aparato conceitual de decisões da

economia desse período é parte de uma ‘ciência da destruição e da morte’6, cuja racionalidade não

passa de um exercício extremado de sadismo. Sua eficiência constitui uma relação esquizoide com a realidade, em que causa e efeito foram dissociados em favor das objetivações fetichistas da acumulação de capital que, a esta altura, é tão somente uma acumulação de escombros. Dessa forma, a humanidade se mantém presa a uma espécie de chantagem inconsciente: se escolher a sua sobrevivência, a avalanche das forças do mercado precipitarão o seu fim; se escolher a continuidade

3 Esta é a tese central da teoria da crise de Robert Kurz (1993; 2011; 2014; 2018). Para o autor alemão, o trabalho vivo produz uma objetivação abstrata real, que é a substância que mede e dá realidade à forma valor. Na medida em que a composição orgânica do capital passa a ser cada vez mais composta por trabalho morto (máquinas), em detrimento do vivo, a capacidade do processo de acumulação continuar produzindo mais valor é afetada drasticamente. A crise do capital descrita nesta passagem de tempo é um sintoma deste estado avançado de impossibilidade da acumulação, a qual, por esta razão, ocorre somente na sua forma fictícia da financeirização. 4 Cf. Arendt (1988: 14) sobre os testes nucleares e sua função de manobra: “Dezessete anos após Hiroshima, nosso

domínio técnico dos meios de destruição está se aproximando rapidamente do ponto em que todos os fatores não técnicos da guerra (…) são completamente eliminados, de tal sorte que os resultados podem ser calculados previamente, com absoluta precisão. Uma vez atingido esse ponto, os simples resultados dos testes e demonstrações poderiam ser, para os peritos, uma prova tão conclusiva da vitória ou da derrota, como o campo de batalha (...)” foi em outra época.

5 Sobre esta leitura da financeirização e as bolhas ver BRENNER (2003).

6 Esta é, a propósito, a definição dada por Montaigne para a guerra, segundo BONANATE (2001: p. 21). Mostraremos mais adiante como a guerra é a economia por outros meios, o que justifica a aparente inversão do uso da definição do autor francês.

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da acumulação (que já não é logicamente possível), terá que aceitar que extratos cada vez maiores de seres humanos sejam abandonados, por razões econômicas, aos sacrifícios grotescos que tal escolha implica, além do que, deverá ficar de olhos bem fechados ante a destruição irreversível da natureza. Retardar por ora o curso da barbárie, nesse caso, é torná-la irrevogável quando se esgotar o arsenal de astúcias que as bolhas proporcionam e, então, possivelmente, as alternativas não mais estarão postas como um dado atuante da realidade. Para quem não fica satisfeito apenas com a paisagem que os olhos alcançam, a dissolução das formas de sociabilidade baseada no dinheiro e na mercadoria já é bastante perturbadora e incomensurável.

A relativa curta duração deste tempo, iniciado com o fim da Guerra Fria, foi essencialmente o da alteração completa do frágil equilíbrio de forças anterior e, por isso, a imposição de um novo regime de regulação da guerra. Deixada momentaneamente de lado a ameaça da hecatombe nuclear, a política dissuasiva foi rapidamente substituída por um novo tipo de guerra, este agora de ordenamento mundial realizado como medida profilática da gestão das condições que ainda mantém possível a continuidade seletiva da globalização, apesar das incontornáveis dificuldades. Dentre as modalidades do novo tipo de guerras estão as intervenções militares da última potência, ela própria em decadência econômica, cujos objetivos em desalojar do poder antigos aliados, repentinamente descobertos em maquinações potencialmente ameaçadoras contra a ordem global, oferece uma pequena amostra do grau de paranoia e niilismo que a combinação de ocaso do frágil equilíbrio do passado e crise estrutural do capitalismo produziram nas relações internacionais. Entretanto, intervenções como a Guerra do Golfo (1991) e a invasão do Iraque (2003) indicam também que o aquecimento das ações bélicas dos EUA tem o sentido explícito de tentar recuperar a credibilidade do seu poderio militar e, sobretudo, a credibilidade do dólar (Fiori, 2018: 16), estabelecendo com isso os fundamentos da gestão pela força de uma espécie de estado de sítio planetário (Arantes, 2006: 40).

A maior parte das guerras atuais no mundo, porém, são guerras civis e estão estreitamente ligadas e submetidas - por serem impulsionadas pelas contradições da globalização - ao novo tipo de guerras de ordenamento. Este fato indica a amplitude e dramaticidade da alteração do espaço de intervenção estratégica que os novos conflitos engendraram. O aumento dos litígios internos em países colapsados não ocorre apenas por falta de disposição ao acordo de forças fundamentalistas, mas, principalmente, devido a penosa e talvez impossível tarefa de se extrair tal acordo numa situação de autofagia de sociedades conflagradas e tuteladas por Estados falidos, num contexto em que,

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segundo a própria ONU, quase a metade da população do mundo vive abaixo da linha de pobreza7,

e do aumento de escala e intensidade dos efeitos destrutivos do aquecimento global8. A globalização

produziu basicamente uma gigantesca legião de indivíduos e países perdedores. Seus ganhos foram generosos, mas para muito poucos. Um mapa cognitivo desta distribuição das perdas e ganhos poderia revelar a óbvia sobreposição de regiões do planeta arruinadas, em que os conflitos armados são sua consequência, e pequenas ilhas de bem aventurados ameaçadas pelo alastramento destes conflitos. Com isso, as guerras de ordenamento adquirem o papel de reposicionamento da última superpotência mundial, disposta a cumprir, em colaboração com aliados, a função de policia dos escombros.

II.

Num discurso de agradecimento a um prêmio recebido, em 1993, o poeta Hans Enzesberguer observou, não sem certa frustração, que ‘inexiste uma teoria útil sobre a guerra civil’. Alguns anos depois foi a vez de Giorgio Agamben (2016), na apresentação de um livro justamente sobre o tema, fazer um comentário semelhante. O curioso na persistência dessas observações é que a guerra civil sofreu mudanças imensas nos últimos 40 anos, tornando-se inclusive o elemento ativo da política, ao ponto de ser seu meio por excelência em diversos países. A não existência de elaborações teóricas consistentes sobre esta modalidade de conflito armado, talvez revele um posicionamento inconsciente da intelligentsia mundial de não querer perceber o significado e as consequências destas mudanças. Uma sociedade governada pela violência, por certo, é um agregado humano agonizante, mas não um espaço de relações sociais capazes de direcionar o bem-estar comum. Como diz o próprio Enzesberguer (1995:11), frente a explosão deste tipo de guerras: “É possível que estejamos diante de uma nova fase política. Para compreendê-la, é necessário uma revisão das guerras civis do passado”.

No tempo em que a guerra civil já era um desdobramento das guerras imperialistas, Leon Trotsky (1977: 13), então comandante do exército vermelho, proferiu uma palestra bastante elucidativa sobre o tema. Dizia ele nesta ocasião que a guerra civil insurrecional era “uma etapa precisa do processo histórico”. A julgar pela história da guerra civil, ao menos a moderna, nem sempre foi óbvio o nexo de precisão que ele estabeleceu. É verdade que a “Revolução Inglesa começou quando

7 Cf. https://nacoesunidas.org/banco-mundial-quase-metade-da-populacao-global-vive-abaixo-da-linha-da-pobreza/ 8 Para um quadro bem realista desta situação, com projeções de cenários a partir dos dados disponíveis sobre o

aquecimento global, que partem do fato de que as mudanças climáticas são irreversíveis, e as alternativas (importantes e urgentes) podem no máximo tratar da mitigação desses efeitos, veja Wallace-Wells, D. A terra

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Carlos I tentou contornar o Parlamento a fim de adquirir receitas para a guerra” (Tilly, 1996: 266). Também é verdade que as guerras de ocupação napoleônicas deram origem a páginas heroicas de resistência e guerras de libertação nacional. A luta pela expulsão das tropas inimigas uniu numa forma comum nações tão díspares como a Espanha, os minúsculos Estados da fragmentada Alemanha, a Rússia, entre outras, inventando um tipo de guerra, a de guerrilha, que será um modelo destes acontecimentos. Em certo sentido, porém, como observou por esta época Carl von Clausewitz, havia algo de eminentemente político nelas9, o que em si pode ser um paradoxo, uma

vez que a palavra e o entendimento, que deveriam ser a matéria-prima da política, são substituídos pela violência das armas. Parece razoável deixar assinalado que, dada a natureza e os fundamentos da sociedade e do Estado modernos, há momentos importantes de atualização de sua lógica constitutiva, enquanto fenômeno histórico, que requerem uma dose de violência que pode parecer estranha ou paradoxal para uma concepção do político “como maneira de viver baseada exclusivamente na persuasão, e não na violência” (Arendt, 1988: 10), mas não tem nada de estranho para os desígnios da política estreitamente articulada ao processo de modernização capitalista. Se na concepção de Hannah Arendt está compreendida certa capacidade de forjar destinos em comum, a existência de uma força imperativa impessoal que atua através dos indivíduos, e não por deliberação desses, condicionando duramente o campo de escolhas, pode ser um elemento relevante (e preocupante) para se avaliar o real alcance, no que diz respeito à política, do espaço de liberdade que resta nestas sociedades. Desse ponto de vista, as revoluções ‘da etapa precisa’ seriam mais reações políticas reconstitutivas da supressão das causas materiais da derrota na guerra em que esses países se viram envolvidos, do que outro projeto de sociedade fundado na paz. Como dentre as causas da guerra moderna está a competição extremada por nacos do mercado mundial, este objetivo não seria negado pela natureza dessas revoluções, mas simplesmente recolocado num nível mais elevado de organização, para posteriormente continuar, movido pelas leis fetichistas da economia, a mesma corrida, então, presumivelmente, com mais chances de vitória.

Se aceitarmos a tese de Charles Tilly (1996), de que a guerra inventou o Estado e o Estado inventou a guerra, é possível se verificar que a violência está contida desde a origem da esfera política do capitalismo. O impacto do uso das armas de fogo sobre as guerras medievais e sua força atuante para o surgimento do capitalismo é hoje um argumento incontestável para muitos autores10. Um

adágio antigo dizia que, para o pássaro que sempre viveu preso, o mundo é a própria gaiola. O fato da guerra condicionar o modo de estruturar a esfera pública, numa relação tensa e frequentemente

9 Cf. Losurdo, 2018, p. 141.

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subordinada com a economia, se infiltra no pensamento europeu moderno como algo natural, por isso, oculto e não discutido nesses temos. No entanto, a realidade histórica é mais ampla e crua. A questão de que “[a] criação de forças armadas por um governante”, diz Tilly (1996: 127), tenha gerado “uma estrutura de estado duradoura”, fez com que não apenas o exército se tornasse “uma organização expressiva dentro do estado”, mas, para além disso, fez com que a “sua criação e manutenção induzissem a instalação de organizações complementares: tesouros, serviços de abastecimento, mecanismos de recrutamento, órgãos de coleta de impostos e muitas outras”. Sem a guerra, portanto, o Estado não pode realizar a razão da sua existência.

Depois de 1789, quando a Revolução Francesa precisou mobilizar todos seus varões adultos para defender suas conquistas, a guerra e o Estado mudaram de patamar destrutivo. O alistamento militar obrigatório desqualificou os exércitos de mercenários, comuns no Antigo Regime, da mesma forma que as armas de fogo tinham desestabilizado a guerra senhorial anteriormente. O recrutamento em massa representou um profundo golpe no modelo de guerra surgido com o Acordo de Westfália (1648), e fez com que as exigências de grandes sacrifícios nas guerras nacionais obrigassem os Estados a estabelecer novos pactos com a sociedade: “a ação coletiva popular nacionalizou-se e tornou-se mais independente; quando as políticas e exigências dos estados nacionais passaram a decidir cada vez mais os seus destinos, os trabalhadores, os camponeses e outros cidadãos comuns se agruparam para fazer reivindicações ao estado – reivindicações de reparação, certamente, mas também reivindicações de direitos de que nunca haviam desfrutado antes em escala nacional” (Tilly; 1996: 267). Parte dos direitos políticos no século XIX, assim como a seguridade social no XX, estiveram marcados por esta grande transformação. O capitalismo, que desde a origem precisou da guerra para se desenvolver, foi obrigado a estabelecer parâmetros democratizantes para poder prosseguir com este curso competitivo que o determina. Curiosamente, essas conquistas não impediram novas carnificinas, como a Primeira e Segunda Guerra Mundial, mas, possivelmente, expliquem o entusiasmo com que o povo alemão, por exemplo, acolheu a aprovação do orçamento de guerra pelo Bundestag em Agosto de 1914.11

Arendt (1988: 12) considerava este nexo, entre guerra e política, um traço perverso da sociedade moderna, mas talvez seja ingênuo pretender uma esfera pura da política no processo constitutivo da imposição deste sistema social. Se em parte do século XIX foi possível, como vimos, estabelecer uma relação entre guerras nacionais e guerras civis12, elas nada têm, contudo, daquilo que 11 Conta Losurdo (2018: 310) que: “Na Itália de 1912, a introdução de um sufrágio masculino quase universal (…) foi

contemporânea da invasão e conquista da Líbia”.

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acontecerá após 1871, “quando, à guerra Franco-Prussiana, seguiu-se a transformação do Segundo Império na Terceira República da França; e a Revolução Russa de 1905, que surgiu após a derrota da Guerra Russa-Japonesa”. A derrota nos campos de batalha representará também a deposição do regime político do perdedor. A partir desse momento, não é apenas o vínculo nebuloso entre política, guerra e economia que fica exposto, mas – o que é provavelmente uma decorrência deste fato – uma submissão maior da política à guerra, e esta, fazendo às vezes da economia por outros meios.

Portanto, a afirmação de Trotsky, ao que parece, faz todo o sentido. Nesta perspectiva, ele estava certo também quando comentou que - na mesma chave clausewitziana - “na guerra civil, a política participa mais intimamente” dos acontecimentos do que nas “guerras nacionais” (1977: 13). A guerra civil deixa mais visível que o fundamento do Estado colapsou e o poder de decisão soberana está em disputa. Uma das características da mudança do padrão da guerra surgido com – e, segundo Domenico Losurdo (2018: 370) , em reação – a Revolução Francesa, foi o apagamento dos limites do campo de batalha que haviam sido estabelecidos, depois de um elevado custo humano, em 1648: “Promovida pelo Antigo Regime, iniciava-se assim, de acordo com (...) Jules Michelet, ‘uma guerra estranha, nova, totalmente contrária ao direito das nações civis’, uma guerra que não distinguia mais entre combatentes e população civil (...)”. Arendt (1988: 14) também situa a principal característica deste novo tipo de guerra, a guerra total, neste mesmo aspecto: “a distinção entre soldados e civis deixou de ser respeitada”; apesar de que, para ela, a origem desta destruição em massa estaria na Primeira Guerra Mundial. Independente das diferenças sobre a data de nascimento, a questão é que nas guerras totais, como são as guerras imperialistas, principalmente depois de 1871, se produz a mobilização do sistema econômico e de toda a nação para essa finalidade, até o limite do insuportável. Em caso de derrota, o Estado perde sua soberania e fica sem as bases que o legitimava. Por estas razões, dentre outras mais imediatas, como a fome, a humilhação e a rapina que as tropas de ocupação impõem sobre a população civil, cria-se nas massas um estado de espírito que é de desamparo e revolta. Estas condições podem tomar, eventualmente, a forma de guerra civil.

Theodor W. Adorno (2005: 56), no ensaio O que significa elaborar o passado?, escrito depois da experiência do holocausto (e provocado a pensar a ocorrência deste a partir de uma pergunta – que no texto, entretanto, permanece oculta –: por que a democracia ocidental não foi capaz de impedi-lo?), constata que “a democracia [na Alemanha] não se afirmou de modo que as pessoas realmente a

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vivam como algo seu, sabendo-se sujeitos dos processos políticos”. Esta observação é reforçada não apenas pela reconstrução dos países no pós-Segunda Guerra, um processo cujo modelo é imposto pelas condições da derrota, mas também por uma tradição autoritária que prevaleceu na Alemanha desde os tempos clássicos do liberalismo, quando esta forma de governo foi constituída em outros países, como na Inglaterra e na França, a partir de lutas contra a ordem feudal. A livre iniciativa e a competição universal precisaram, diante disso, ganhar primazia no ordenamento da vida civil, e a legislação, então, foi concebida em harmonia com tais fins. Na Alemanha, esse tempo calhou de ser o da luta de libertação nacional, durante a ocupação napoleônica, no início do séc. XIX. Porém, como é sabido, esta oportunidade acabou em desapontamento com o triunfo da Santa Aliança. Posteriormente, foi Otto von Bismarck quem recolheu os cacos desta chance perdida e impôs um regime democrático restrito de cima para baixo. Desse modo, conclui Adorno (idem), “A democracia chegou à Alemanha muito tarde, ou seja, ela não coincidiu com o tempo de esplendor do liberalismo econômico (...)”. Tal defasagem tem a ver com os momentos de atualização da lógica constitutiva da dinâmica do capital acima comentada. Com a era dos monopólios e dos impérios coloniais, iniciada no último quarto do séc. XIX, o esforço social capaz de sugerir uma esfera autônoma de decisão, inclusive contra as imposições dessa atualização, tornou-se impotente13. O poder do dinheiro e dos negócios já havia estabelecido seus mecanismos de controle,

de tal modo que a violência presente desde a origem do Estado Moderno passou a ser agora um fator de propaganda, se bem que aparentemente deslocada do seu objetivo de precaução defensiva, para a mobilização total dos indivíduos na adesão à ordem social. Este deslocamento da violência transformou cidadãos passivos em ativos e agressivos agentes do Estado, voltados com ódio extremo à caça de inimigos - tanto faz se externos ou internos – que viessem a atrapalhar esse processo de totalização da forma social. A corrida armamentista e seu desdobramento, o militarismo nacionalista, explicam, portanto, o sentido preciso da guerra civil naquela ‘etapa da história’, mas ainda não explicam mais profundamente a intimidade da política com a guerra civil.

É provável que a observação de Trotsky já estivesse articulada à outra margem deste raciocínio, na qual, mais do que a oportunidade de se opor ao destino, ele desejasse abrir-se à tal conjuntura, pondo-se a nadar a favor da correnteza, em que a guerra civil poderia ser o caminho mais curto para uma modernização retardatária. Luigi Bonanate (2001), num comentário sobre a temporalidade das guerras de libertação, afirma que sua primeira fase data de 1776, com a Revolução Americana, e

13 “Atingida a sua fase mais madura, o capital financeiro, que rege tanto o destino industrial quanto o bancário, percebe o limite alcançado na exploração dos recursos internos do Estado e adverte, ao mesmo tempo, que somente a ampliação da escala das próprias atividades no plano global pode assegurar-lhes novos e renovados proveitos”. Cf. Bonanate, 2001, p. 109.

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teria chegado a um clímax na era de esplendor e crise do liberalismo, em 1848, na Itália. A partir de 1917, com a Revolução Russa, a natureza originalmente liberal dessas guerras teria se alterado para uma segunda fase, em que um programa mais amplo de transformações políticas e sociais se tornou uma exigência da nova etapa da história do processo de modernização. Esta circunstância explicaria alguns caminhos cruzados entre Alemanha e Rússia que, por exemplo, terminaram a Primeira Guerra Mundial com a derrota de suas monarquias, inadequadas para dar continuidade às inovações do capitalismo em sua fase fordista e, depois de substituídas por revoluções mais ou menos traídas (depende do grau de crítica à ‘etapa precisa’) e de intensa modernização sob regimes totalitários, tenham voltado a se enfrentar na Segunda Guerra Mundial. Neste caso em que o totalitarismo já era uma dessas manifestações concretas da adesão dos indivíduos ao Estado por meio do militarismo, ele assinala o quanto o princípio democrático do sufrágio universal, que esteve ativo na experiência alemã deste período, inclusive em 1933, havia se separado do sentido elementar de espaço real de escolhas. Ou, na chave adorniana, de como também a democracia ocidental poderia ser apenas o regime mais adequado a esta submissão da política às necessidades da lógica produtora de mercadorias no tempo da dominação do capital amplamente imposta como forma social total do mundo.

Voltemos à última citação de Trotsky (1977: 38), nela, ao que parece, o jogo camaleônico entre política e guerra fica posto à luz do dia: “Não é possível medir a política pela bitola da guerra,” diz ele na sequência, “assim como não é possível medir a guerra pela bitola da política”. Uma é a outra por outros meios – ou, precisamente, pelos meios da outra, conforme observa Arendt sobre o problema da violência, quando a guerra pretende ser a política. Portanto, uma vez assumida uma das duas formas, elas obedecem às leis desta forma. É uma verdade, então, que nessa metamorfose se perdem elementos essenciais (e não somente formais) da constituição anterior, pois a forma que prevalece na mudança é obrigada, em parte, a trair o conteúdo que a constituiu. A não ser que se equipare guerra e política como categorias homólogas, e se reconheça que a paz é um curto acaso que acontece entre duas guerras, a guerra civil somente pode ser a política se, ela mesma, for reduzida ao papel de legitimadora do programa que pretende instituir ou atualizar o processo de modernização. Diante disso, o que Trotsky diz é que, uma vez instalada a guerra civil, não se faz mais a política com suas instituições, na medida em que o objetivo já não é a ampliação da liberdade da vida civil em tempos de paz, ou uma forma superior da sua auto-organização, mas sim, o incremento da produção de mercadorias que se afirma, como sabemos, independente da vontade dos indivíduos. Esta forma ‘superior’, nos termos da concorrência, depende de um pensamento estratégico para se realizar, ao qual a guerra não é estranha, mas – ao contrário – plenamente

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adequada, inclusive para a organização e o sentido que o sistema produtivo deve assumir. Este é o caso do lugar de destaque que o complexo industrial militar tem no desenvolvimento nacional. As aspirações da modernidade podem ser tomadas como um circuíto fechado entre a produção de mercadorias e o consequente desejo – que para esta sociedade é imanente - de consumo compulsivo, sem que isto necessariamente venha a significar uma vida melhor. O nexo que incomodava Arendt, entre guerra e política, tem aqui um aprofundamento que faz com que se derive da política não mais a paz, mas um momento da preparação para a próxima guerra. A necessidade da guerra se justifica devido aos conflitos que a concorrência mundial impõe. Este vínculo estreito entre guerra e guerra civil, portanto, tem mais familiaridade com as necessidades do processo de modernização do que com as qualidades elásticas da política que, ao fim, parece tornar-se crescentemente irrelevante, até o momento em que é dado o alarme da sua morte.

Ao afirmar a correspondência de bitolas, entende-se que na guerra civil se está diante do Estado sem suas cerimônias e mediações, ou seja, ele fica reduzido às manifestações brutas da força. Isto não depende da consciência cívica dos protagonistas, mas da realidade em que o poder está destroçado. Não é um exercício de vigor, mas um canteiro de obras do caos.

III

A formação de milícias tem um vínculo importante com o quadro de despolitização e politização14

frequente a estes contextos. Segundo Trotsky, elas são inevitáveis e, naquele tempo, puderam até ser “profundamente progressistas, num período de luta”, mas podiam se tornar, após a conquista do poder, “na causa de grandes perigos, capazes de abalar o Estado” (1977: 21). Como as milícias não têm um caráter regular, tampouco de unidade militar de tipo superior, elas estariam mais abertas à porosidade da disciplina política. Diferente do exército, que é um corpo técnico centralizado e hierárquico, as milicias são este elo mais estreito, se bem que paradoxal, com a politica por meios violentos.

É um fato que as milícias modernas surgiram com as guerras de libertação nacional, em especial, as da Espanha e Alemanha, entre outras nações, mobilizadas contra as invasões napoleônicas do início do século XIX. Depois continuaram numa longa linha intensa e marcante da história até os anos 1970, quando este sentido histórico se transfigurou praticamente no seu inverso. O princípio que

14 Sobre este tema comum às guerra civis, Agamben diz: “a stasis [guerra civil, MM] funciona como um reagente que revela o elemento político em situação extrema (...)”. Ela obriga os membros da comunidade política a viverem “‘como cidadãos’ (bürgerlich), isto é, no sentido grego, ‘politicamente’ (...)” (2016: p. 25).

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defende a transformação política dos cidadãos em soldados armados contra as forças de ocupação estrangeiras, não tem nada em comum com os lobbies atuais de empresas de armamentos que defendem a estupidez liberal de todos comprarem armas para defesa pessoal contra a violência criminal. Segundo Losurdo (2018: 138-9) as lutas patrióticas do século XIX eram concebidas como uma escola política que tinha um papel singular na formação do caráter dos indivíduos: “O cidadão em armas se torna o […] protagonista da levée en masse e da nação em armas, empenhado em rechaçar o ataque das potências [...]” inimigas. O heroísmo que tal princípio parece conter, tem uma inspiração tanto na Guerra de Independência Americana (1776) como na Revolução Francesa (1789). Principalmente desta última, que colocou literalmente em marcha a concepção que tornou possível pela primeira vez na história moderna “mobilizar todas as energias humanas e materiais” de um país. A defesa da existência física da pátria, pelo visto, acrescentou um elemento que torna a violência decorrente desta ação, na leitura que Losurdo (2018: 141), uma forma superior de violência em relação a agressão dos invasores. A violência destes é fundamentalmente concentrada na rapina e no terror, enquanto a outra forja um sentimento político de pertencimento à nação que passou a ter um papel crescente nas grandes guerras do século XX. Somente esta violência defensiva adquire um caráter político, pois é, ao menos inicialmente, uma violência contra a guerra que criou a situação que mobiliza a comunidade a preservar sua existência por este meio, cuja finalidade é a paz.

As milícias nas guerras civis contemporâneas, cujo sentido é inteiramente outro das velhas guerras civis, em que não está mais em questão a tomada do poder para atualizações progressistas do processo de modernização, mas, a dissolução do Estado, mudaram profundamente de caráter. Hoje elas são, por vias tortas, o meio politizado do caos - se ainda insistirmos na tese de que a guerra pode ser a política por outros meios. A manutenção do monopólio da violência pelo Estado foi a primeira grande avaria que a crise produziu, ainda nos anos 1990. No mundo inteiro Estados Nacionais de diferentes tamanhos e consistências históricas se viram na contingência de reconhecer que, eventualmente, determinadas regiões de seus territórios estavam tomadas por bandos armados que não reivindicam qualquer participação no poder. Tal reconhecimento, feito pelos governos de ocasião, era também a confissão da impossibilidade material de recuperar a plena soberania sobre essas áreas. Tudo se resumia, bem entendido, a um exercício de autoridade às avessas da violência do Estado, num exíguo pedaço de chão. O que ocorria nessas regiões talvez estivesse mais próximo à soluções precárias em relação a mera sobrevivência - que tornam cruas práticas latentes da economia nesta nova ‘etapa precisa do processo histórico’, de crise e colapso do capitalismo, como o comércio de mercadorias ilícitas, a rapina ou a extorsão -, do que o algo ‘eminentemente político’

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da observação de Clausewitz. Neste sentido, as milícias, que eram meros bandos isolados de achincalhe e extorsão econômica da população de bairros pobres da periferia de grandes cidades – este é o caso do Rio15 - se tornam uma força politizadora em meio a despolitização, porque surgem

desse ambiente social de crise e percebem, ao menos recentemente, que o Estado enfraquecido em sua razão de existir, pode ser assaltado – no duplo sentido – para benefício de uma coincidência de propósitos, ambos particulares e destrutivos, que cabem no espírito de um bando e nas necessidades do capital, que precisa substituir uma valorização abstrata que já não ocorre, pelo despedaçamento da substância física das economias nacionais colapsadas (Kurz, 2016: 41). Rapina em pequena e grande escala. Parece que isso é tudo o que sobrou do processo de modernização após o colapso de 2008.

IV.

As guerras convencionais entre nações tornaram-se economicamente insustentáveis. Desde os acontecimentos que levaram ao fim da Guerra Fria, quando o capital atingiu seu limite lógico interno absoluto com a revolução microeletrônica, são impossíveis de serem financiadas por meio de “uma produção regular de mais-valor”. A economia de guerra, que deu forma à dinâmica do capitalismo desde 1914, já não tem como bancar o seu objetivo elementar, a própria guerra. Acontece que desde sempre “o consumo militar improdutivo viveu da criação de créditos” (Kurz, 2011: 175), ou seja, a guerra consome um mais valor que deve ser produzido em algum momento, independente dos resultados nos campos de batalha. É a possibilidade de que os gastos poderão ser cobertos pelo andamento dessa produção que fornece o substrato realista do impulso que deflagra os litígios. Por esta razão, a guerra foi ao longo do século XX um poderoso mecanismo de sustentação da expansão da economia. Ela permitiu dar um destino à ficcionalização do capital – que já naquele momento era relevante – por meio de dívidas estatais que, até a década de 1980, contaram com o realismo dessa arquitetura para serem pagas. Com a debacle do fordismo, o crédito tornou-se necessariamente podre, pois o dinheiro tomado de empréstimo não terá mais como ser pago por meio de investimentos amparados na expansão produtiva. Dessa forma, a sua mobilização em grandes proporções para financiar uma nova guerra seria absolutamente ineficaz. A guerra nesse caso teria que ser a mobilização de uma grande quantidade de capital para um 'consumo-destrutivo

15 Mas é também o caso de outras cidades no Brasil e no mundo. As maras na América Central fazem negócios muito semelhantes (e piores!), assim como os bandos que ocupam fragmentos de territórios na Líbia, ou no Afeganistão, ou em Ruanda, ou as máfias russa, chinesa ou italiana etc. Enfim, diante da crise, estas práticas de dissolução violenta das relações sociais dominadas pelo dinheiro são uma moeda corrente nos cinco continentes.

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improdutivo' que só se manteria – isto é, se pagaria – pela mera impressão de mais dinheiro, sem que esse pudesse ter qualquer valor real. Como o valor, em termos econômicos, não é um dado subjetivo, mas depende de uma objetivação real imanente ao sistema, formalizado em mercadorias como medida do tempo de trabalho socialmente necessário, a simples impressão de mais dinheiro -numa época em que o trabalho vivo que cria o mais valor foi praticamente eliminado pelas novas tecnologias -, tem apenas efeito inflacionário, logo, para a vida social, quase tão destrutivo quanto a própria guerra.

Por isso, a nova crise econômica mundial, que tem como um de seus sintomas o endividamento impagável dos Estados, “não pode mais ser resolvida por uma guerra” convencional (KURZ, 2011: 175), como ocorreu no passado, tanto em 1914 como em 1939 – e mesmo na Guerra Fria. Naqueles momentos a expansão da economia ancorada na produção ainda era possível, e o desenvolvimento fordista desta fase histórica do capitalismo pôde levar ao limite esta capacidade. As próprias guerras foram, num circuito que se retroalimentou, empurrões importantes para isso. Assim como a expansão do fordismo dava garantias econômicas para fazer a guerra, a guerra permitia à industria a escala que o fordismo precisava para consolidar a produção em massa. A industria automobilística, assim como a da aviação, por exemplo, adquiriram força e presença mundial após as duas hecatombes europeias, graças à escala de investimentos e produção que atingiram nestes conflitos. Revelador neste quadro é que, para além das condições tecnológicas e da decisão política para efetivá-la - incluindo o apoio da sociedade -, a guerra é a destruição de um mais valor que em algum momento precisa ser produzido. Esse fato aponta, portanto, o quanto esta crise atingiu os fundamentos do capital e escancarou seus limites ao legar uma economia de guerra que não pode mais fazer a guerra (Kurz, 2011) – ao menos a convencional. Como dessa vez não será possível salvar a sociedade burguesa por meio do consumo improdutivo-destrutivo do excesso de capital, resultante do enorme desenvolvimento das forças produtivas sociais, esse capital, que não encontra mais condições rentáveis para o seu investimento, corre contra o tempo para não se desvalorizar16.

Esse nervosismo do dinheiro em vias de uma brutal desvalorização, produz uma urgência que se apresenta socialmente por meio de destruições constantes.

Dada, portanto, a inviabilidade de se financiar uma guerra convencional, além da destrutividade

16 A financeirização, como um processo exacerbado de abstração, cria dificuldades imensas para representar o real. Uma breve história da acumulação de capital produz paroxismos como: em 1820 a produção total de bens e

serviços na economia mundial era de U$ 694 bilhões; em 1913 ela chegava a U$ 2,7 trilhões; em 1950, U$ 5,3

trilhões; em 1973 U$ 16 trilhões, em 2003 U$ 41 trilhões; hoje calcula-se que gire em torno de U$ 80 trilhões. No entanto, estima-se que no mercado de futuro a soma prometida seja de aproximadamente U$ 1 quadrilhão. Quando as contas não fecham... Sobre este tema ver, entre outros, Kurz (2014); Harvey (2011).

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total imediata que ela produziria, as guerras hoje tendem a ser mais e mais esse tipo de guerra irregular que são as novas guerras civis. Diferente do que Trotsky entendia como o caráter principal da guerra imperialista no seu tempo, a guerra de reordenamento mundial não tem como ser uma guerra de conquista. A expansão e ocupação de novos territórios excede em grande medida os recursos de qualquer país, inclusive da última super-potência. Jeremy Greenstock (2016: xi), embaixador da Inglaterra e enviado especial ao Iraque em 2003, observou exatamente este ponto de virada, ao perceber que a reconstrução do país destruído não era economicamente viável e tampouco o esforço de atualização do processo de modernização já findado produzia um resultado progressista. A destruição da guerra, neste caso, apenas repete devastações como as do furacão Katrina em New Orleans, onde apenas uma parte da cidade pôde ser reconstruída após sua passagem, ou a de Detroit, depois da ruína econômica e sua falência em 2013.

As guerras irregulares possuem um carácter abertamente destrutivo e autodestrutivo como fim em si mesmo. Para Enzensberguer, nesta modalidade de guerras do presente, a “violência libertou-se completamente de fundamentações ideológicas” (1995: 16). A elas estão ligados cada vez mais fenômenos cotidianos que podem ser vistos crescentemente mundo afora, mas que não ficam restritos à rua. Fazem parte, por mais perplexidade que produzam, das práticas econômicas e, com muita ênfase, da política. Ou seja, na irrelevância da capacidade de governabilidade do atual estado da política, as guerras irregulares – que são a expressão de uma economia de guerra sem guerra -foram o seu sucedâneo lógico. Elas são um tipo de economia política da barbárie, em que as formas fetichistas desta somente encontram sua objetivação real em práticas de rapina: “A estratégia […] é, de fato, o roubo, o assassinato e a pilhagem” (Enzensberguer, 1995: 16). Um momento autofágico generalizado da sociedade que, fundada na transformação de dinheiro em mais dinheiro, é incapaz de abolir o poder destrutivo deste. Tanto as guerras da era neoliberal travadas pelo último império, como as guerras locais, obedecem a esta estratégia. Agora a guerra é, sem nenhum desvio, a economia (e a política) por esses meios.

A violência no Brasil continuou ampliando sua degradação na última década, e suas características cabem perfeitamente no conceito de guerra irregular. A entrada em cena das milícias – que, apesar da crítica ao uso corrente do termo, algo dessas mutações da guerra acompanha suas práticas – obedece a esta noção de economia de pilhagem comum a este tipo de conflito armado. Ela ocorre junto com a dissolução dos fundamentos da moderna sociedade produtora de mercadorias e atinge também o que restava da reprodução política. Faz parte de mais um desses momentos de atualização da lógica constitutiva da dinâmica do capital, num estado em que a sociedade

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objetificada fica totalmente opaca para seus membros, que se situam, agora, no mesmo nível de objetos dissolutos. O tempo em que hábitos minimamente amparados em padrões de solidariedade garantiam a coesão social e a força dos regimes democráticos nos países centrais e, em menor proporção, na periferia do capitalismo, após a Segunda Guerra, está encerrado. Este sistema de reprodução da política pressupunha o realismo de um horizonte de expansão econômica e da possibilidades de guerras, assim como uma relativa disponibilidade de negociar contrapartidas na distribuição da riqueza realizada por meio do emprego disciplinado em massa e de direitos sociais. Isso somente foi possível enquanto o capital não encontrou obstáculos intransponíveis para sua acumulação.

Desde o início da crise, na década de 1970, no entanto, as democracias entraram num quadro de fadiga e de perdas de conquistas, junto com o esgotamento das políticas keynesianas, que coincidiu com o início do processo de enfraquecimento de suas instituições (como o Legislativo) e do fim do tipo médio (o homo-democraticus) que encarnou esta época17. Após o Maio de 68 começou uma

reação que ganhou corpo nos anos 1990. Alguns autores entenderam este movimento como uma contrarrevolução neoconservadora. Contudo, como já assinalado, este processo não foi vivido propriamente como uma ruptura de época, provavelmente se afine mais a uma evolução interna dos impasses da democracia ocidental que, assim como em outros tempos não foi capaz de impedir a ascensão do nazismo, hoje produz, como uma adequação à sua continuidade formal, justamente uma aproximação revisitada àquele horror. Com efeito, desde o fim do século XX, a crise tem se manifestado com rigor e, pelo visto, ela tem funcionado nos regimes democráticos como um superego, cujo papel é lembrar dos limites a qualquer mudança possível dessas sociedades, ao invés do seu inverso. Contudo, não foi a bancarrota fiscal dos Estados, que é uma consequência das dificuldades em andamento, que derrotou o keynesianismo dominante no período fordista, mas a impossibilidade do capitalismo contornar o fato de que o desenvolvimento tecnológico inviabilizou a continuidade da valorização do capital acumulado. Tal situação força a economia a amparar-se na ficcionalização do capital e na dependência dos mecanismos de ampliação gigantesca das dívidas públicas, o que gera resultados regressivos ainda maiores sobre a reprodução social, pois, ao enredar-se nesse circuito, são justamente essas funções que primeiro são abandonadas quando as dívidas ameaçam o Estado de insolvência. Talvez no futuro próximo ocorram outras modalidades de percepção destas mudanças catastróficas da sociedade produtora de mercadorias. Por agora as pessoas estão petrificadas, como naquelas esculturas vivas comuns nas saídas de estações de metro,

17 Da mesma forma que Svetlana Aleksiévich descreveu dramaticamente em o fim do homo sovieticus, seria necessário se fazer também a exumação do seu correspondente histórico ocidental.

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em que esperam o som de uma moeda para fazerem movimentos mínimos.18

As tendências descivilizadoras estão em campo e corroeram as condições de existência do exercício da política. A violência cotidiana assumiu contornos que existiam desde sempre, mas eram contidos. O asselvajamento do que Scholz chama de moderno patriarcado produtor de mercadorias (1996), é um desses escombros dinâmicos da nova era geológica. O movimento de passagem sem angustia da subjetividade democrática do pós-segunda guerra para os restos mortais do sujeito moderno, esta encruzilhada em que a crise do capitalismo parece, para seus agentes ainda pseudo-rentáveis, que pode ser suspensa pelo aumento da violência, funciona como uma dessas situações em que a totalidade social é revelada pelo detalhe. Com efeito, se percebe que “estamos diante de uma mudança”, mas não apenas política. Outro ícone sagrado do Estado Democrático, para ampliar a ilustração desses casos de mudanças sem registro da ruptura, o direito é sistematicamente estraçalhado, ao ponto de direitos antes tidos como patamares irrevogáveis do que se pensou ser o padrão civilizatório, que na Guerra Fria foi a propaganda de distinção do Ocidente em relação ao seu concorrente (totalitário) do Leste, são suprimidos sem protesto em sessões banais do parlamento. Enfim, as instituições do regime democrático parece que chegaram mesmo ao seu ocaso. Com a corrosão da esfera política e a impotência de seu poder decisório, quem está ocupando o espaço é esse tipo escombroso da personificação das demandas do capital em crise, que resulta dos desdobramentos locais do patriarcado asselvajado. Sua vitória neste instante se deve a uma fantasmagoria ideológica, na qual se projeta a concepção de que a dissolução da estrutura social se deve à falta – tanto no sentido de intensidade e força como de onipresença – de autoridade masculina (branca). É a partir dessa falsa consciência que a violência adquiriu o poder paradoxal de legitimação do político por meios cruéis19. Como já não há nada de eminentemente político nesta 18 Siegfried Kracauer, num conhecido ensaio sobre o cinema alemão anterior a ascensão de Hitler, propunha que nesta modalidade de artefato cultural, que é um filme, por ser uma produção em equipe, fosse possível se flagrar no próprio conteúdo do filme um inconsciente coletivo, com as tensões a que está submetido. Três filmes lançados em 2019, com origens nacionais distintas e pretensões de complexidade muito díspares, como Bacurau, de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles (BR), Coringa de Todd Phillips (EUA) e Odisseia dos tontos de Sebastián Borensztein (ARG), andam em torno desse fenômeno que são as reações explosivas das massas frente ao mal-estar do arranjo social e político, resultante das necessidades econômicas da conjuntura recente. Sempre foi um enigma o quanto a arte consegue imitar a vida e o seu inverso, mas a questão é que as imagens de tais filmes se misturaram com imagens reais de convulsões sociais que abalaram países no mundo inteiro nos últimos meses, como os coletes amarelos na França, os indígenas do Equador, o povo chileno, boliviano, iraquiano. Essas reações têm, ao menos na aparência, a característica de um despertar assustado, como se a casa estivesse pegando fogo. Um paralelo dessas reações poderia ser encontrado em outro filme, Adeus Lênin, de Wolfgang Becker (ALM), em que uma das personagens acorda de uma coma meses depois da queda do muro de Berlim. Todo esforço de seus familiares é de evitar que ela tenha outro choque com a nova realidade. Algo desse entorpecimento da percepção tem acompanhado as pessoas, mesmo que acordadas, em relação ao estado da crise do capitalismo.

19 Cf. Cunca Bocayuva (2018: 62): “A economia política da segurança e da guerra se articula com a força da destruição e da crueldade (…). (...) não existe comunidade de cidadãos, mas seres divididos entre a indiferença e o ódio pelo outro”.

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situação, o que se assiste é o regurgitar autofágico do processo de modernização em que os esforços de sua atualização perderam a capacidade de produzir algo que vá além de uma distopia, na qual tecnologias high-tech se misturam à camadas pesadas de ruínas.

Num dos primeiros estudos sociológicos sobre as milícias, suas autoras as definiam como o “controle e a exploração para fins lucrativos de um território”, que frequentemente desemboca no “uso abusivo da força” para sustentar as imposições (Zaluar; Conceição, 2007: p. 98). Esta exploração pode ser aprofundada ao se acrescentar outro elemento: “os milicianos vêm tentando ocupar espaços cada vez maiores nos poderes Legislativo e Executivo municipais e estaduais, construindo redes no interior do poder público, e até no Judiciário” (Zaluar; Conceição, 2007: p. 91). A transformação deste poder num modelo de gestão policial da crise começou a ser esboçado apenas recentemente. José Cláudio Alves (2019), que também é pesquisador do tema, foi - até onde acompanho -, o primeiro a relacionar estes fenômenos: “Me parece que a expansão da extrema direita no Brasil começa a avançar como forma de interferência desse poder político também no controle e na disputa territorial ao lado das milícias no Rio de Janeiro”. A política para as milícias, até esta mutação, era parte de uma frente de ganhos articulada com o ramo dos negócios mais rentáveis de controle territorial, e servia para eventual proteção contra os ataques da lei. O desenvolvimento dessas atividades parecia seguir com razoável nitidez a demanda de organização marginal de uma economia centrada na extorsão e na rapina. Todavia, a crise de 2008 impôs uma ampliação da rachadura da estrutura do sistema, cuja acomodação dessa na totalidade social fez das milícias um dos instrumentos precários da sua estabilização. O capitalismo já não subsiste sem o imenso aparato de violência extra econômica que se efetiva enquanto um sistema total, com toda a crueldade que lhe é inerente.

A população que vive nos territórios que as milícias controlam, está sitiada com o mesmo rigor que qualquer monopólio submete clientes para realizar seus lucros. Para os milicianos tal poder nunca havia possuído natureza ideológica, fato que apenas recentemente veio a se somar aos seus cálculos, compondo uma carga extra que ajuda a encobrir o seu interesse principal, que são seus ganhos monetários. Nas suas motivações, o dinheiro está à frente de tudo e, quando uma ideia os mobiliza, é por que ela facilita e amplia esses ganhos20. Este é o caso da expansão das posições de extrema 20 “Saber quanto eles movimentam financeiramente é mais difícil ainda, porque a milícia pulverizou a sua prática de cobrança de taxas, que é cobrada semanalmente. Por exemplo, do pipoqueiro, a milícia cobra 40 reais, do mototaxista, 70 reais, do cabeleireiro, 50 ou 100 reais de salões maiores, das lojas do comércio, varia de 200 a 500 reais, dos supermercados, fala-se em mil reais. Os areeiros — tratores ilegais de areia — pagam em torno de mil reais [...]. [...] tem o transporte clandestino, o tráfico de drogas, a venda de votos, a pesca do camarão na Baía de Sepetiba. […]. Também controlam o acesso a empregos no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro

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-direita como um programa de mobilização. Sem prejuízo de três ou quatro coincidências com o que sempre pensaram, mas nunca julgaram necessário transformar em plataforma de organização, entre eles a política sempre fez parte do pragmatismo dos negócios. O dinheiro e o seu culto tem um carácter social definido, e a extrema direita o incorpora com acentuado entusiamo. Na sua lógica intrínseca, na medida em que é uma expressão fetichista das relações sociais, o dinheiro nunca se apega a alguém em particular, mas a consciência reificada que o personifica tem por ele precisamente a postura inversa: o ama acima de todos. Nada mais próximo ao espírito de um miliciano (ou empresário, ou pastor) do que este tipo de amore fati.

Em certo momento do seu estudo sobre a coerção estatal, Tilly (1996) comenta que nos primórdios, a sua função impositiva constituía-se na chantagem da proteção sobre as populações do território em que atuava. Aliás, o termo imposto não esconde esta barganha. O serviço de proteção que as milicias impõe recupera esta função, mas para fins muito modestos de ganho de um bando soberano sobre um exíguo território. Próximo ao que pensava Hobbes, o direito de proteção implica em certo dever de obediência. Este aspecto é importante na atuação dos milicianos. Eles partem do pressuposto de que o território ‘pacificado’ é uma potestas sob seu governo. Como a proteção é um bem primordial para a vida, julgam legítimo, mesmo que ilícito, derivar dele este conjunto de obrigações, a maior parte delas pagas religiosamente com dinheiro. Portanto, as milícias não subvertem os fundamentos econômicos da sociedade, antes os realiza nas condições da crise atual. Como as necessidades básicas estão submetidas à economia, as imposições desta exercem um poder de vida ou morte sobre os indivíduos. O uso da violência, que no caso das milícias é ilícita, está legalmente subentendido nos demais monopólios.

No entanto, a demanda por participação política no Executivo, parece ser mais uma necessidade de agentes econômicos dedicados a grandes rapinas corporativas, e que veio a propósito, do que um interesse propriamente miliciano. Pelo visto, a consciência do protagonismo político desses veio de fora. O chamado fundo público do Estado, naquilo que sobra de sua carcaça, é disputado com rinha por toda sorte de aglomeração de capital em busca aflita pelo despedaçamento da substância física das economias nacionais colapsadas. Desta carcaça fazem parte dívidas públicas, empresas estatais

Comperj em Itaboraí, o acesso a atendimento de hospitais, consultas e exames. Enfim, eles têm uma capacidade exponencial de avançar em vários serviços e bens presentes na vida urbana, principalmente nas áreas periféricas. Estão ampliando, crescendo e unificando essas várias áreas, portanto os valores obtidos são cada vez maiores. Isso no campo econômico, porque quanto maior a expansão territorial, maiores os lucros e, também, quanto maior a diversidade dos serviços e bens que monopolizam e controlam a partir da violência, maior também o seu poder”. Cf. Alves, http://www.ihu.unisinos.br/592300-a-milicia-avanca-nos-territorios-do-comando-vermelho-entrevista-especial-com-jose-claudio-alves Acesso 15/11/19.

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e um sem número de questões que a legislação protege ou coíbe, como por exemplo, as leis de proteção ambiental, a previdência, as leis trabalhistas, as verbas para saúde e educação etc. A nova rodada de políticas fundamentalistas do neoliberalismo, depois de 2008, é um programa que não fica em pé sem a ajuda de um trabalho sujo. Como a capacidade financeira para uma gestão social da barbárie afundou com o estouro da bolha de commodities em 2012, para salvaguardar a busca dos aflitos do mercado global, qualquer miliciano de gravata pode se tornar no estadista da ora! O cenário histórico em que as milícias surgiram era de despolitização – crise aguda do Estado –, mas sua atuação agora é de “um reagente que revela o elemento político em situação extrema”, (Agambem, 2016: p. 25), ou seja, tornou-se politizadora, como se vê no movimento recente de ocupação (e constrangimento) dos três poderes. O vínculo entre esta situação de dissolução violenta das relações sociais e a presença de um espaço sem mediação pacificada da política, se erigiu em modelo de gestão imediata da barbárie. Ela aparece na sequência do fim da gestão social da crise que o PT realizou entre 2003 e 2016. Segundo informações da CPI das milícias da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro21, os milicianos são em grande medida policiais civis e

militares, com uma presença, mesmo que minoritária, de militares do exército. A ditadura civil-militar ao enfrentar à luta armada no final dos anos 1960, criou um corpo técnico de repressão e tortura. Estes profissionais não queimaram suas posições após o término do regime, e permaneceram ligados e ativos nas corporações policiais nos anos posteriores de ‘guerra contra o crime’, que está na origem do ‘salto qualitativo’ do estado de coisas atual. Eles fizeram escola e receberam, inadvertidamente, essa utilidade recauchutada nos anos de redemocratização. Foi a conjuntura de agudização da crise que lhes deu amplitude para se tornarem esta força terrorista paraestatal convocada para segurar os desmoronamentos após 2013. Enquanto o mundo do trabalho se esfumava com o impacto das tecnologias da microeletrônica, o aparato policial do Estado se robusteceu. Formaram funções invertidas. Como não há milagre econômico que recupere o emprego de milhões de pessoas que o perderam nesse período, manter essas massas sob controle e, se possível, esfolar o ainda pouco que podem ganhar, é o trabalho sujo que os mercenários milicianos estão dispostos a fazer.

A potência de desordem dessa situação ocupa um lugar central na simulação das capacidades de alguma governabilidade. Os exércitos foram organizados para guerras, porém, seus recursos estão minguados para enfrentar a dimensão dessa ameaça que, por sua vez, mudou de fronteira. Parece

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que o primeiro comandante da MINUSTAH, general Alberto Heleno, disse para alguém22 que era

um médico a procurava de um paciente, e o encontrou na intervenção do Haiti. O médico da fantasia do general procura doenças de policial, não de um militar23. Há muito tempo que o tema

central do exército brasileiro é a repressão à população civil. Esta é uma tarefa relevante nas guerras de ordenamento mundial, às quais o exército brasileiro passa a se engajar como seu novo horizonte estratégico depois da Guerra Fria. Como foi dito, as guerras civis desse tempo estão ligadas às contradições da globalização e estão submetidas a um choque de ordem das guerras de ordenamento da última superpotência. O poder de decisão no estado de sítio mundial tem ali sua origem e sentido. O fato é que o aparato policial e o exército, numa época em que o custo da guerra disputa prioridade no orçamento do Estado com o dinheiro sem condições de investimento produtivo em vias de desvalorização, foram convocados a dar forma a esse emaranhado. O arranjo com a bengala paramilitar é uma resposta tanto ao problema da eficiência da ação nas guerras irregulares, como de seu (auto)financiamento. Esta situação, para levar adiante a vertigem do fim da ficcionalização da acumulação, conduz à aliança do capital globalizado, que precisa deste trabalho sujo, com esses bandos, elevados a modelo de gestão imediata da barbárie como ordenamento local combinado ao mundial.

Isso está apenas começando!

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22 Cf. Victor, F. “Terra desolada – O que o Brasil deixou para trás no Haiti”. Revista Piauí, nº 155, Agosto de 2019, p. 26.

23 Segundo Tilly, as Forças Armadas do Terceiro Mundo: “[…] se especializaram, então, muito mais no controle das populações civis e no combate aos insurgentes do que nas guerras entre estados” (1996: 283).

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Referências

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