• Nenhum resultado encontrado

A responsabilidade civil do administrador da insolvência perante os credores

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A responsabilidade civil do administrador da insolvência perante os credores"

Copied!
90
0
0

Texto

(1)

Universidade de Lisboa

Faculdade de Direito

A

R

ESPONSABILIDADE

C

IVIL DO

A

DMINISTRADOR DA

I

NSOLVÊNCIA

PERANTE OS

C

REDORES

Dissertação de mestrado

Mestrado em Direito-Jurídico-Empresariais

2017

H

UGO

A

DRIÃO

B

ANDEIRA

R

ODRIGUES

(2)

Agradecimentos:

À Professora Doutora Maria Raquel Aleixo Antunes Rei, pela aceitação e disponibilidade revelada. Aos meus familiares, pelo apoio sempre presente. Aos meus colegas de estudo, pela paciência e companheirismo.

(3)

3 ABREVIATURAS E SIGLAS

A./AA. --- Autor/Autores Ac. --- Acórdão A.I./Administrador --- Administrador da insolvência Al./Als. --- Alínea/Alíneas Art./Arts. --- Artigo/Artigos CAAJ --- Comissão para o Acompanhamento dos

Auxiliares de Justiça

CC --- Código Civil CCom --- Código Comercial Cfr. --- Conferir CIRE --- Código da Insolvência e da

Recuperação de Empresas

CPC --- Código de Processo Civil CPEREF --- Código dos Processos Especiais de

Recuperação da Empresa e de Falência

CRP --- Constituição da República Portuguesa CSC --- Código das Sociedades Comerciais Dec. --- Decreto DL --- Decreto-lei DR --- Diário da República EAI --- Estatuto do Administrador da Insolvência EAJ --- Estatuto do Administrador Judicial Ed. --- Edição i.e. --- id est op. Cit. --- opere citato ss --- seguintes STJ --- Supremo Tribunal de Justiça ROC --- Revisor Oficial de Contas TRC --- Tribunal da Relação de Coimbra TRE --- Tribunal da Relação de Évora

(4)

4

TRG --- Tribunal da Relação de Guimarães TRL --- Tribunal da Relação de Lisboa TRP --- Tribunal da Relação do Porto TC --- Tribunal Constitucional v.g. --- verbi gratia

(5)

5 RESUMO

Esta dissertação versa sobre o tema da responsabilidade civil do administrador da insolvência perante os credores, órgão que no processo de insolvência tem assumido um papel central em virtude do aumento considerável dos seus poderes funcionais, resultado de uma progressiva desjudicialização daquele, o que levou o nosso legislador a criar já tardiamente, um regime privativo de responsabilidade civil plasmado no art. 59.º do CIRE, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março. Tal regime permite aos credores obter o ressarcimento por eventuais danos originados pela atuação do administrador da insolvência, durante o exercício das suas funções, quando este não observar os deveres aos quais está funcionalmente adstrito. A criação deste regime implicou o afastamento da regra geral de direito civil dos arts. 483.º e ss do Código Civil, que até então era aplicável para regular a matéria da responsabilização civil do administrador da insolvência perante os credores.

Perante a insolvência de um dos seus devedores, os credores deverão gozar de um regime que garanta a satisfação integral dos créditos que possuem, evitando assim o desfalque do património que deve ser aproveitado para lhes pagar e tal desiderato incluirá necessariamente a possibilidade de ressarcimento por eventuais danos causados por actos do órgão encarregado de administrar e liquidar os bens do insolvente.

A inobservância culposa dos deveres funcionais, implica que o administrador atue de forma menos diligente que aquela que a lei lhe impõe, o que configura uma conduta ilícita. Esta diligência é de cariz mais reforçado que aquela exigível a um bom pai de família, tal como a que consta do n.º 2 do art. 487.º do CC, já que é necessária a diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado, própria de um sector profissional específico.

O regime privativo da responsabilidade civil do art. 59.º do CIRE, cuja legitimidade ativa está nos credores e no devedor, não se afastou muito em relação ao regime geral do art. 483.º e ss do CC, no que toca à maioria dos seus aspectos fundamentais, pelo menos, no que respeita à responsabilidade por atos próprios, regulada no n.º1 e n.º2 do preceito. Já no que toca à responsabilidade por atos dos auxiliares, prevista no n.º3, o afastamento relativamente à regra geral do art. 500.º do CC, foi muito maior.

(6)

6

Acreditámos que a criação de um regime privativo que trás consigo um afastamento da regra geral, inevitavelmente acarreta a criação de outro com traços muito próprios e não teria o legislador ido por esse caminho se aquele respondesse adequadamente ao problema da responsabilização civil do administrador perante os credores.

No n.º1 do art. 59.º prescreve-se que o administrador da insolvência é responsável pelos danos que cause aos credores da insolvência e da massa insolvente e ao devedor pela inobservância culposa dos deveres funcionais que lhe incumbem. A culpa é apreciada pela bitola de um administrador criterioso e ordenado. A prova de culpa, por não haver presunção, cabe ao lesado.

O n.º 2 é uma extensão do referido n.º 1 pois reza que o administrador da insolvência é responsável por danos também perante os credores da massa insolvente, em virtude de esta se vir a revelar insuficiente para satisfazer os respectivos direitos. Por outro lado, este preceito comporta uma inversão do ónus de prova, já que este órgão pode livrar-se da responsabilidade se provar que tal insuficiência era imprevisível.

No n.º 3, é consagrado um regime de responsabilidade culposa do administrador da insolvência por atos praticados pelos seus auxiliares, tratando-se de um afastamento notório em relação a regime geral da responsabilidade objectiva do art. 500.º do CC. Assim, pelos atos danosos dos seus auxiliares, o administrador responderá solidariamente com estes, salvo se provar que não houve culpa da sua parte, ou que mesmo com a diligência devida, os danos não poderiam ser evitados.

No n.º 4 reza que o preceito só regulará as situações anteriormente referidas, se as condutas ou omissões danosas ocorrerem após a nomeação deste órgão. O prazo de prescrição, referido no n.º 5, será de dois anos a contar da data do conhecimento do direito por parte do credor, em concorrência com o prazo de dois anos a partir do registo público da cessação de funções do administrador lesante.

Assim, cumpre escrutinar o referido regime privativo de responsabilidade civil ao ponto de se poder concluir da sua adequação para responder ao problema das condutas lesivas da esfera jurídica dos credores, por parte do administrador da insolvência.

Palavras-chave: processo de insolvência, administrador da insolvência, responsabilidade civil, credores da massa insolvente, credores da insolvência, prescrição

(7)

7 ABSTRACT

This dissertation deals with the subject of civil liability of the insolvency administrator before creditors, a body that in the insolvency process has assumed a central role due to the considerable increase of its functional powers, as a result of a progressive unfairness of that, which led to our legislator to create late, a private regime of civil liability set forth in art. 59 of the CIRE, approved by DL no. 53/2004 of 18 March. This regime allows creditors to obtain compensation for any damages caused by the insolvency administrator's performance during the performance of his duties, when he does not observe the duties to which it is functionally attached. The creation of this regime implied a departure from the general rule of civil law of art. 483.º and ss of the Civil Code, which until then was applicable to regulate the matter of civil liability of the administrator of insolvency to creditors.

In the event of the insolvency of one of their debtors, creditors must enjoy a system that guarantees the full satisfaction of the debts they hold, thus avoiding the embezzlement of the assets that must be used to pay them, and such desideratum will necessarily include the possibility of reimbursement for eventual damages caused by acts of the body in charge of administering and liquidating the assets of the insolvent.

Misconduct of functional duties implies that the administrator acts less diligently than the law imposes on him, which constitutes an unlawful conduct. This diligence is of a more reinforced nature than that demanded by a good father of a family, such as that contained in no. 2 of art. 487 of the CC, since the diligence of a prudent and orderly insolvency administrator, specific to a specific professional sector, is necessary.

The exclusive regime of civil liability of art. 59 of CIRE, whose active legitimacy is in the creditors and the debtor, did not deviate much in relation to the general regime of art. 483 of the CC, as regards most of its fundamental aspects, at least as regards liability for its own acts, regulated in paragraph 1 and paragraph 2 of the precept. Regarding the responsibility for acts of the auxiliaries, foreseen in number 3, the departure from the general rule of art. 500, was much higher.

We believe that the creation of a privative regime that brings with it a departure from the general rule inevitably entails the creation of another with very own traits and

(8)

8

the legislator would not have gone down this path if that answer adequately to the problem of civil liability of the administrator to creditors .

In paragraph 1 of art. 59 it is presumed that the insolvency administrator is liable for damages caused to creditors of insolvency and insolvent estate and to the debtor for the culpable non-observance of the functional duties incumbent on him. Guilt is appreciated by the gauge of a judicious and orderly manager. Proof of guilt, as there is no presumption, lies with the injured party.

Paragraph 2 is an extension of paragraph 1 stating that the insolvency administrator is liable also for damages to the creditors of the insolvent estate, as it proves to be insufficient to satisfy the respective rights. On the other hand, that provision entails a reversal of the burden of proof, since that body can relieve itself of liability if it proves that such insufficiency was unpredictable.

In paragraph 3, a system of culpable liability of the insolvency administrator is established for acts committed by his assistants, being a noticeable departure from the general regime of the objective liability of art. 500 of the CC. Thus, by the harmful acts of his assistants, the administrator will respond jointly with them, unless it proves that it was not his fault, or that even with due diligence, the damages could not be avoided.

In paragraph 4, it is stated that the precept will only regulate the situations mentioned above, if the harmful conduct or omissions occur after the appointment of this body. The period of limitation referred to in paragraph 5 shall be two years from the date on which the creditor becomes aware of the right, in competition with the period of two years from the public record of the cessation of duties of the lessor.

Therefore, it is necessary to scrutinize the aforementioned private civil liability regime to the extent that it can be concluded that it is adequate to respond to the problem of conduct prejudicial to the legal sphere of creditors by the insolvency administrator.

Keywords: insolvency proceedings, the insolvency administrator, liability, mass insolvent creditors, the insolvency creditors, prescription

(9)

9

PARTE I: INTRODUÇÃO

1.1. Delimitação do objeto de estudo

No direito da insolvência português existe uma série de órgãos, que no decurso do processo de insolvência têm diversas competências. De entre esses órgãos, o administrador da insolvência vai ser objecto de estudo, no que toca ao seu regime privativo de responsabilidade civil perante os credores, pela inobservância culposa dos deveres que lhe cabem no âmbito do processo.

De há uns anos a esta parte, o legislador tem procurado livrar o juiz das tarefas mais administrativas e consequentemente atribuído ao A.I. mais poderes funcionais, o que obrigou à criação de um regime de responsabilização civil próprio. Tal aumento de poderes foi feito com o pretexto de desburocratizar a justiça e promover a sua celeridade, no entanto, esta medida aumenta inegavelmente a relevância que este órgão assume no processo de insolvência e no estudo do ramo de direito correspondente, em geral. A atividade deste órgão, na sequência do relevo que as suas funções vêem adquirido, implica também uma maior atenção para o impacto que esta tem na esfera jurídica dos credores e até na economia a nível nacional.

Embora este regime de responsabilidade civil seja também aplicável em parte ao devedor, vamos centrar o nosso trabalho na responsabilidade daquele órgão perante os credores da insolvência e da massa insolvente, já que ele exerce funções próprias no que toca à defesa dos interesses destes sujeitos. Será naturalmente excluído o estudo da responsabilidade civil perante terceiros que continua a ser regulado pela regra geral de direito civil, muito embora possa ser feita uma referência comparativa sempre que seja necessária para o nosso estudo. O estudo da responsabilidade criminal, tributária e disciplinar será também obviamente excluído deste trabalho, já que extrapola muito o seu âmbito de pertinência. A análise desta temática implicará o recurso constante ao direito das obrigações para além do direito da insolvência.

Assim, numa primeira parte e depois de uma passagem pela história do direito da insolvência, do administrador da insolvência e seus regimes de responsabilidade civil perante os credores, assim como de uma exposição geral do actual estatuto do mesmo, será tratada, a matéria dos deveres que este órgão tem no exercício das suas funções, já que a ele são conferidos os poderes de administração da massa insolvente, que no

(10)

10

decorrer do processo, deixam de pertencer ao devedor, excepto quando este é o próprio administrador da insolvência. Assume assim o controlo da massa insolvente, pela administração, liquidação e distribuição do produto final pelos credores, visto que o processo de insolvência tem como finalidade principal “a satisfação dos credores pela

forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente” ou “na liquidação do património do devedor insolvente e a distribuição do produto obtido pelos credores” como consagra o

art. 1.º do CIRE, tarefa que só deverá ser atribuída a um administrador diligente e tecnicamente preparado.

Numa segunda parte, e depois do enquadramento referido supra, será adentrada, no âmbito do estudo do art. 59.º do CIRE, a análise do parâmetro de um administrador criterioso e ordenado, averiguando o que o legislador pretende com a exigência desse requisito. Também será debatido qual a amplitude dessa diligência, já que a mesma dependerá da capacidade técnica do indivíduo que realiza a tarefa, o que no caso de gestão de património alheio, deverá ser bem maior que a de um “homem médio” como referimos.

Assim, se o administrador da insolvência faltar culposamente ao cumprimento desses deveres para com os credores, na medida em que os seus atos impossibilitem o pagamento dos créditos dos mesmos, aquele será responsabilizado civilmente, consagrando a lei no art. 59.º um regime de responsabilidade aquiliana ou extracontratual, que será analisada atendendo às divergências doutrinais quanto à adequação desta forma de responsabilidade no que toca aos credores. A análise da responsabilidade por atos próprios será feita primeiro por via dos danos causados aos credores (da insolvência e da massa insolvente) e depois aos credores da massa insolvente pela insuficiência desta. Após esta, será feita uma análise do regime de responsabilidade civil do administrador da insolvência pelos atos dos seus auxiliares.

Seguidamente, depois do estudo de vários outros pontos pertinentes relativos à responsabilidade civil do administrador, serão tratados os prazos de prescrição da mesma no caso dos credores lesados, que sendo de 2 anos na lei falimentar, não colhe grande consenso neste afastamento relativamente ao regime civil, nem na incompreensível diferenciação de prazo no que toca aos terceiros lesados.

Também será feita uma abordagem relativamente à competência jurisdicional para a resolução destes litígios, ou seja, a averiguação do tribunal competente para a proposição desta ação de responsabilidade civil.

(11)

11

Por último será feita uma exposição dos regimes de responsabilidade civil deste órgão nos demais ordenamentos jurídicos, como são os casos do alemão, espanhol e italiano, fazendo um ponto de comparação entre o que o legislador destes países decidiu normatizar e aquilo que por cá de iure condendo, se deveria fazer.

Importa, basicamente, ter em conta que o objetivo principal do processo de insolvência par além da recuperação da empresa, é a garantia patrimonial dos credores e que assim, numa situação de insolvência do devedor, onde a liquidação é a única saída, não verão o património deste ser desfalcado e a sua garantia destruída. Dai o administrador da insolvência vir por comando da lei, substituir o devedor por causa da natural desconfiança na capacidade deste em administrar os seus bens, que passam assim a integrar a massa insolvente.

Embora a administração dos bens do insolvente caiba a outra pessoa, não está excluída a hipótese de esta ter condutas que possam causar efeitos negativos similares aos que se pretendiam evitar, daí que esta seja responsabilizada por culpa.

1.2. Preceitos legais elementares

No CIRE, para além do art. 59.º que será central neste trabalho, como preceitos legais elementares para o estudo da matéria em apreço, são de realçar o art. 3.º que define situação de insolvência, já que é este facto que está na base da nomeação do administrador da insolvência; o art. 46.º que nos dá a definição de massa insolvente; o art. 47.º que esclarece quem são os credores da insolvência e quais as classes de créditos correspondentes; o art. 51.º que diz quais são as dívidas da massa insolvente, para podermos aferir quais são os credores da massa; os arts. 52.º e ss que estabelecem o regime de nomeação do administrador da insolvência e qual o estatuto aplicável e também concretamente o art. 55.º que enumera algumas das funções do administrador da insolvência, que consubstanciam deveres, embora possam ser deduzidos outros dos princípios gerais do direito.

(12)

12

CAPÍTULO 1: RESENHA HISTÓRICA

1. Os primórdios: a falência e a administração dos bens do solvens

Uma compreensão aprofundada do regime actual de responsabilidade civil do administrador da insolvência perante os credores, não prescinde de uma retrospectiva da evolução histórica do direito da insolvência e do papel e poderes funcionais das figuras a quem nos sucessivos regimes e ordenamentos foram sendo atribuídas tarefas de gestão e liquidação de massa falidas, ou grosso modo, bens dos devedores que por variadas razões deixavam de cumprir as suas obrigações para com os seus credores.

A lei nem sempre incumbiu um terceiro, não parte da relação que origina a situação de dívida, das tarefas supra aludidas, nem a sua importância numa “falência” ou “processo de revitalização” foi a mesma, ao contrário do que se passa hoje, em que tal órgão assume um papel central no processo de insolvência. Durante muito tempo, para além da própria inexistência de uma figura equivalente, a falta de consciência do legislador quanto à importância económica e social deste órgão levou-o a descurar a criação de um regime de responsabilidade civil adequado à sua função, segundo nós porque, por um lado, a atividade deste esteve quase sempre sujeita a estrito controlo e orientação por parte do próprio juiz do processo, e por outro, porque por vezes a lei atribuiu aos próprios credores as tarefas ligadas à gestão e liquidação dos bens compreendidos na massa insolvente do seu devedor, como consequência de um diferente conjunto de exigências do contexto, sobretudo económico. Isto teve como consequência que a responsabilização civil dos administradores da insolvência perante os credores, pela inobservância culposa dos seus deveres funcionais, só dispôs de uma regulamentação privativa já tardiamente, quando a sua actividade se libertou do papel interventivo do juiz e obteve assim, maior relevância no processo de insolvência e a sua actividade assumiu maior relevo económico, como veremos.

1.1. No direito romano

I. Com o direito romano, existiu primeiramente apenas a responsabilidade pessoal do devedor e não havia um sistema de execução colectiva do património deste, como existe nas legislações falimentares contemporâneas. O corpo do infractor era o meio que a lei escolhia para responder penalmente pelo dano causado a outrem pelo

(13)

13

incumprimento de obrigações. Pode mesmo dizer-se que os caminhos do direito penal e do direito civil se cruzavam e não existia uma massa insolvente ou um conjunto de bens a liquidar ou administrar que a lei tivesse em conta. De facto, a Lei das XII Tábuas estabelecia que o não cumprimento de uma obrigação por parte do devedor dava lugar ao apoderamento do mesmo e à sua venda como escravo, e na pior das hipóteses à morte por esquadrejamento, caso o credor assim legitimamente o desejasse.

Assim, talvez por se ter adquirido consciência que em termos económicos não era a melhor solução, por um lado, e por alguma sensibilidade à situação dramática em que eram colocados os devedores, por outro, entrou em vigor no ano 326 a.C. da Lex

Poetelia Papiria de Nexis, que limitou bastante o carácter penal do procedimento e as

dívidas começaram a incidir sobre os bens do devedor com a instituição da missio in

possessionem in bona debitoris, que usou pela primeira vez a metodologia da apreensão

dos bens e a sua administração pelos credores. Por via dela, aos credores era atribuída a custódia e administração dos bens do devedor que faltasse ao cumprimento das obrigações que eventualmente tivesse, o que era visto como uma forma de penhor1. A administração dos bens do devedor pelos credores durava de 15 a 30 dias, ao fim dos quais deveriam proceder à alienação dos bens através da bonorum venditio, com os bens adjudicados pela melhor oferta, a que se chamava addictio. Tal operação provocava uma sucessão no activo e no passivo do devedor a favor do aquirente, o qual ficava obrigado a pagar os débitos dentro dos limites que o património cedido permitia.

II. No entanto, a administração dos bens do falido por um terceiro, não parte da relação obrigacional que originou a divida, só ocorreu com a instituição da bonorum

distractio, que ficava a cargo de um curator bonorum, nomeado pelo pretor, a quem

competia também chamar todos os credores ao processo de falência através da

proscriptio bonorum. Este curador podia também dar uso a mecanismos de reação

contra os atos realizados fraudulentamente pelo devedor em prejuízo dos credores. Eram eles a actio pauliana, a interdictum fraudatorium e a restitutio in integrum2, e com estes mecanismos de reacção, o lado patrimonial da execução saiu bastante fortalecido. Já a venda dos bens do devedor cabia no âmbito das atribuições do magister, que era um credor eleito pelos demais. Com a incidência das dívidas sobre a esfera patrimonial do

1

Cfr. Luís MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, 2013, 5.ª ed. Almedina, págs. 23-26.

2

Para um estudo mais aprofundado destes mecanismos cfr. VANESSA CRISTINA DE VELEZ GARCIA, A Responsabilidade Civil do Administrador da Insolvência, dissertação de mestrado, 2011, pág. 22.

(14)

14

devedor, a atribuição da gestão dos seus bens a um terceiro, o curador e o uso do produto da venda da massa do falido para pagamento das dívidas, assistimos ao lançamento das bases do direito da insolvência moderno, pelo menos dos países que estão sob influência histórica do direito romano. É mister referir que esse caminho implicou, durante séculos e depois da abolição do cariz penal da sanção das dívidas, uma regulação exclusivamente de direito civil, sem a existência de um ramo de direito autónomo, portanto, o que implicava naturalmente a não existência de um regime privativo de responsabilidade civil perante os credores, dos indivíduos incumbidos de gerir os patrimónios dos falidos.

Mais tarde, durante o império jurídico-político de Justiniano (séc. VI d.C.), apareceram outros meios preventivos da insolvência, como foram a concordata e a

moratória.

1.2. Desenvolvimento comercial durante a época medieval – O direito intermédio

I. As cidades italianas, repletas de atividade comercial, como Florença, Veneza, Milão, Génova e Turim, foram o palco de fundação do Direito da Falência, enquanto figura comparável ao atual Direito da Insolvência e pensa-se que o contributo do Direito Romano para o seu surgimento, terá sido escasso3. Certa doutrina chega a esta conclusão, porque a apreensão geral de bens efetuada por autoridades estaduais é um instituto criado pelas legislações lombarda e franca, sendo os glosadores que posteriormente a aproximaram à missio in possessionem romana. Como salienta BRUNETTI, terá sido esta aproximação entre as duas figuras que lançou as bases para as legislações de insolvência modernas4.

O crescimento económico foi mais marcante em Itália, embora mais tarde se tenha passado o mesmo fenómeno, sobretudo na França e na Inglaterra, com a progressiva importância dos mercadores no circuito económico, já que foram eles que dirigiram a expansão dos mercados, com a captação de investimento de capital e com a aquisição de matérias-primas, recorrendo a trabalhadores e a distribuidores para o transporte das mercadorias. Essa situação implicava que aos compradores fossem dados prazos de pagamento. Tal ponto histórico, foi propício a dar a devida relevância jurídica a eventuais comportamentos desviantes e foi regulada a hipótese de quebra. A mesma

3

Cfr. Luís MENEZES LEITÃO, op. Cit., pág. 27.

4 Cfr. A

(15)

15

designava uma situação em que o incumprimento do devedor (solvens) afetava os seus credores, o que era considerada uma infração legal, tendo o não pagamento graves consequências económicas que as autoridades não podiam ignorar. A quebra deixou de ser vista assim como um mero azar em que os comerciantes incorriam para com os seus credores. Assim, o fenómeno de desenvolvimento do comércio originou o aparecimento de legislação mais avançada para regular quer as falências quer a punição dos comerciantes que incorressem em ilegalidade, como foi o caso do Estatuto de Génova de 1498.

Os órgãos da falência tinham um importante papel na protecção dos credores já que o solvens, ao perder a capacidade de administrar o seu património era substituído por um curador e por um magister. O primeiro era encarregado de administrar o património do devedor no interesse da comunidade política, se no fim do prazo de 30 dias, ninguém aparecesse para pagar a dívida. O segundo órgão era nomeado pelos credores para controlar a atividade do curador, pois a mesma dava por vezes lugar a danos aos credores.

II. No início da vigência da legislação falimentar, foi maior a preocupação com a fuga dos comerciantes, o que era considerado indício absoluto de falência. Esta situação ficou assim considerada como presunção iuris et de iure de falência. Assim, nalguns estatutos das cidades italianas, chegou a considerar-se a fuga como correspondente a uma falência e o falido como um fugitivus. A falência era imediatamente qualificada como crime e punida severamente com a pena de morte em muitos casos, embora fosse mais comum o banimento com a correspondente privação dos direitos.

Mais tarde, com as alterações aos estatutos foram desaparecendo as qualificações imediatas de falência-crime, reconhecendo ao devedor a possibilidade de ilidir a presunção de culpa com a demonstração da falta de responsabilidade pela situação. Como refere MENEZES LEITÃO5, ocorreu assim uma autonomização do crime falencial em relação ao processo falencial, que passou a ter como prioridade defender o interesse dos credores. Os bens que tivessem sido alienados pelo falido poderiam ser directamente recuperados para a massa falida, a menos que o adquirente demonstrasse que a compra não havia sido fraudulenta, o que se conseguia através da actio pauliana, que implicava uma inversão de ónus neste último caso.

5 Cfr. Luís M

(16)

16

Ora, para assegurar os direitos aos credores, o falido era desapossado de todo o seu património e escrituração contabilística com a consequente entrega ao curador, a quem se devia pagar as dívidas que constituíam créditos do falido, inclusivamente.

O mesmo autor refere que as inovações introduzidas pelo direito intermédio italiano sobre o sistema romano da bonorum distractio e da cessio bonorum consistiram basicamente na adopção da medida de apreensão total do património do comerciante, na notificação dos credores para reclamar em juízo os seus créditos com prova desse facto, na verificação sumária de créditos reclamados pelos credores e na admissibilidade da celebração de concordata entre o devedor e a maioria dos seus credores6.

Como decorreu da expansão comercial referida supra, a sistematização do regime jurídico italiano da falência expandiu-se um pouco pelo resto da europa.

1.3. Portugal: durante as Ordenações

Na sequência do surgimento das legislações que iam regulando as situações de quebra e a atividade dos órgãos da falência, surgiu também em Portugal, nas Ordenações, a necessidade legislativa de prevenir e regular tais situações. Quebra era então a designação daquilo que mais tarde viria a ser chamada de falência e depois insolvência. Assim, surge em 1756 a figura do Homem de Negócios da Praça de

Lisboa, que ficou encarregado de gerir e ser o depósito dos bens do devedor. Era

portanto, um administrador de bens do falido nomeado por autoridades públicas. A sua atividade era ainda assim, regulada pelos usos e costumes e não dispunha de um regime de responsabilidade suficientemente avançado como mais tarde surgiu, nomeadamente para regular a responsabilidade civil perante os credores cujos interesses tinha naturalmente que defender.

Durante esta época e até ao Código de Processo Civil de 1961, o panorama falimentar assentava no sistema de falência-liquidação7, que implicava que o fim do processo de falência era assegurar aos credores sobretudo a satisfação dos seus créditos, com a consequente liquidação integral do património do falido e até por vezes com punições severas para quem “caísse” em tal situação.

6

A Concordata, introduzida pelo Estatuto Florentino de 1415, tratava-se de um acordo entre o falido e os seus credores, como forma de evitar o banimento daquele, e era realizada com o acordo da maioria destes. Assim, o devedor era beneficiado com a suspensão das sanções pessoais que eventualmente lhe tivessem sido aplicadas entretanto.

7 Cfr. L

(17)

17

2. Na legislação comercial e falimentar portuguesa anterior ao CIRE 2.1 No Código Comercial de Ferreira Borges (1833)

Foi neste diploma que surgiu a primeira regulação legal da figura do administrador. Mas tal órgão era, diversamente do que acontece atualmente, um dos credores, eleito pelos demais (art. 1206.º), sendo portanto um sujeito da relação que originava a dívida, a assumir a função. Estava ele encarregado de preservar os bens do devedor evitando assim a sua dissipação, de vender as coisas degradáveis e representar este em juízo.

A atividade do administrador era acompanhada por curadores fiscais (art. 1132.º) e ocorria também a fiscalização do juiz comissário, que era realizada durante a liquidação da massa falida, pois conhecia-se a tendência daquele de realizar negócios pouco favoráveis aos credores.

O diploma classificava como “estado de quebra”, a impossibilidade de pagamento e o abandono do comércio com cessação de pagamentos e podia ser qualificada como casual, culposa ou fraudulenta (arts. 1145.º)8.

2.2. No Código Comercial de Veiga Beirão (1888)

Com este diploma, que revogou o anterior de 1833, a nomeação do administrador passou a caber ao tribunal e não aos co-credores, assim como deixou de ser possível escolher um dos mesmos para o cargo, passando a ser um terceiro sujeito, alheio aos credores e ao falido (art. 702.º), a ficar incumbido da tarefa de gerir e vender os bens deste (art. 716.º). Pensámos que o recurso a uma terceira figura, teve por fim promover a realização mais equilibrada da justiça, retirando aos credores o poder total de se pagarem a si próprios, deixando o devedor em situação de manifesta desvantagem, para além de que o próprio mecanismo de nomeação do administrador daria facilmente azo a vícios, pois os aqueles, no receio de verem os seus créditos insatisfeitos podiam recear nomear certos sujeitos para o cargo, que não incumpririam necessariamente os seus deveres funcionais.

Os curadores fiscais, que actuavam ao lado do administrador, passaram também a ser nomeados pelo tribunal, mas ainda eram nomeados de entre os credores (artigo 706.º).

8

Este diploma definia como negociante quebrado “aquelle, que por vicio da fortuna ou seu, ou parte da fortuna e parte seu, se acha inhabil para satisfazer a seus pagamentos e abandona o comercio”.

(18)

18 2.3. No Código das Falências (1899)

Aprovado pelo Decreto de 26 de Julho de 1899, provocou uma alteração dos pressupostos de presunção de estado de falência, que levava à sua declaração se um devedor parasse de efectuar os pagamentos, assim como nos casos de abandono de estabelecimento ou de insuficiência do activo (art. 1.º). A declaração de falência levava à interdição civil do falido (art. 16.º).

Nos termos dos arts. 82.º e ss deste diploma, a administração dos bens do falido continuou nas mãos do administrador de falência, também aqui nomeado pelo tribunal, e cabia-lhe vender os bens integralmente. Também estava prevista a existência de dois ou mais curadores fiscais, designados pelo tribunal entre os credores (artigo 14.º).

Foi por essa altura que surge a tentativa de transformar este cargo de administrador em ofício público, lançando as bases para aquilo que mais tarde se viria a chamar de Câmaras de Falência de Lisboa e Porto9.

Este código acabou mais tarde por ser introduzido no Código de Processo Comercial de 190510, que incluía também o Código de Processo Comercial de 1895 e não implicou qualquer alteração ao estatuto do administrador, a par da diferente sistematização legal da matéria falimentar e comercial.

2.4. No Decreto n.º 21758 de 22 de Outubro de 1932

Surge aqui uma separação entre as situações de incumprimento dos devedores não comerciantes e dos devedores comerciantes, criando o legislador para os primeiros o instituto da insolvência, paralelamente ao da falência, já aplicável à situação dos segundos. Entre os devedores não comerciantes estavam as sociedades civis de forma comercial ou simplesmente civis (art. 24.º).

O legislador português teve a intenção de aplicar o regime da execução colectiva aos devedores não comerciantes, de forma que este se processasse de forma menos rígida no que tocava à sua disciplina, através de um instituto a par do da falência. O Código do Processo Civil não previa um instituto próprio para não comerciantes, omissão que já era antiga e por influência do direito francês, o qual apenas considerava relevante juridicamente a situação do comerciante insolvente, em grande parte porque a burguesia não se aventurava em especulações e pouco recorria ao crédito e as classes mais privilegiadas não praticavam o comércio, geralmente. A situação dos não

9

Cfr. VANESSA CRISTINA DE VELEZ GARCIA, op. Cit., pág. 25.

(19)

19

comerciantes estava sujeita ao regime de acções e execuções individuais o que não era benéfico, nem para o devedor, nem para o credor. Para os credores não era benéfico o facto de o sistema de execução individual não atingir directamente a capacidade de administração e disposição do devedor, o que permitia o agravamento do seu estado de insolvência, até porque os actos prejudiciais não poderiam ser anulados11.

Assim, com a sentença de declaração de insolvência era nomeado de entre os administradores da falência um administrador da insolvência para administrar e dispor dos bens do insolvente até à sua integral liquidação e também ocupava o cargo de depositário judicial dos bens arrolados que lhe eram entregues12.

2.5. No Código das Falências (1935)

Este diploma entrou em vigor com a aprovação do DL n.º 25981 de 26 de Outubro e a mais importante alteração que trouxe foi uma nova definição legal da situação de falência, que deixou de ser feita por meio da presunção advinda da cessação de pagamentos, mas sim pela evidente impossibilidade de pagar as obrigações a que o devedor estivesse vinculado, que era aferida pela hipótese que constava no art. 2.º do diploma.

A insolvência dos não comerciantes continuou a ser regulada pelo Decreto de 1932 supra referido.

Outra importante inovação deste diploma foi a instituição do síndico, órgão auxiliar do tribunal, que exercia tarefas administrativas. Como refere ANTÓNIO MOTA

SALGADO13, “o síndico era responsável pelos aspetos mais administrativos do

procedimento falimentar, cabendo-lhe em especial, a orientação, a superintendência e o exercício do poder disciplinar sobre os administradores da falência”.

De acordo com os arts. 69.º e ss, a administração da massa falida cabia ao administrador da falência, mas sob tutela do síndico. Assim, apesar de o exercício do cargo de administrador ser pessoal, o síndico dispunha de variados poderes que implicavam que aquele necessitasse da autorização deste para realizar uma série de atos, que cabiam no leque de poderes atribuídos ao administrador, mas estavam condicionados, nomeadamente os atos de administração extraordinária. Era o caso da

11 Cfr. Preâmbulo desta lei.

12

O critério do balanço era o utilizado para a declaração de insolvência, que implicava que o ativo do devedor não comerciante, fosse inferior ao passivo.

13 Cfr. A

(20)

20

proposição de ações de rescisão e anulação de actos praticados pelo falido em prejuízo da massa (art 36.º).

Era o administrador que recebia e era depositário dos bens arrolados do falido e se os bens fossem deterioráveis deveria dar conhecimento disso ao juiz e requerer autorização para proceder à sua venda antecipada. É de notar que o administrador estava sujeito, no que toca aos bens da massa, às penas aplicáveis ao infiel depositário (art. 70.º) e estava autorizado a confiar a outras pessoas a respetiva guarda, sob sua responsabilidade (art. 19.º).

Também aqui se notava já a preocupação do legislador em criar mecanismos de fiscalização da atividade do administrador, como forma de zelar pelos interesses dos credores, o que se manifestava na obrigação de apresentação do relatório de contas referido à administração do mês anterior (art. 72.º). Para além de lhe caber avisar os credores por carta registada, para a reclamação dos créditos (art. 78.º), era também competente para cobrar os créditos do falido (art. 103.º).

2.6. No Código de Processo Civil (1939)

Neste diploma, que foi aprovado com o DL n.º 29637 de 28 de Maio14, é visível a preocupação em prevenir a situação de insolvência, já vista como preferível a um processo que implicasse a liquidação de bens do devedor e uma recuperação talvez parcial de créditos por parte dos credores. Para tal estavam previstos os institutos da

concordata, do acordo de credores e da moratória, nos arts. 1236.º e ss, como meios

preventivos.

A falência e a insolvência eram tratadas diferentemente com dois regimes especializados que estavam previstos na parte dos processos especiais do Titulo IV do diploma. O administrador da falência era encarregado de representar o devedor na prática de atos relativos à falência, como forma de suprimento da inibição que a declaração de falência implicava e exercia as suas funções de modo pessoal. Cabia-lhe assim a prática de atos de administração geral, carecendo de autorização do síndico para os atos de administração extraordinária (arts. 1175.º e 1177.º) que também fiscalizava a actividade do mesmo (art. 1173.º).

Foi prevista a hipótese de escusa por parte do administrador da falência por motivos de suspeição, embora permanecesse no cargo até à decisão (art. 1179.º).

14

A matéria falimentar estava inserida na Secção III (Liquidação em benefício dos credores), do Capítulo XVI (Da liquidação de patrimónios), do Título IV (Dos processos especiais).

(21)

21

Este diploma determinava que a sentença de declaração de insolvência, implicava a apreensão dos bens do falido por parte do tribunal, que procedia à sua entrega ao administrador da falência, podendo este confiar a guarda dos bens a outra pessoa, embora ficando responsável (art. 1153.º).

Importa referir que na fase de valorização do ativo, era o síndico que assumia a maior parte das tarefas, relegando o papel do administrador para segundo plano, embora este fosse obrigado a apresentar contas, sob a forma de conta-corrente e com comprovativos, do exercício da administração (art. 1205.º).

2.7. No Código de Processo Civil (1961)

I. Este código15, aprovado com o DL 44.129 de 28 de Dezembro de 1961, consagrou no ordenamento jurídico português o sistema de falência-saneamento16 e representa um ponto importante no estudo da matéria desta dissertação, pois foi com a sua entrada em vigor que se começaram a formar os contornos da responsabilização do administrador da insolvência no plano civil.

Este diploma, embora chegasse a prever matéria relativa a direito falimentar nos arts. 1135.º a 1325.º, no título relativo aos processos especiais, viu os mesmos serem depois revogados pelo DL n.º 132/93 de 24 de Abril que aprovou o CPEREF. No entanto, foi evidente a opção legislativa pela prevenção da declaração de falência de comerciantes e da insolvência de não comerciantes e o controle da atividade do administrador, que para além de consistir na representação da massa falida, era também supervisionada por um síndico, que se assumia como superior hierárquico. Tal cargo de supervisão era exercido sempre por um magistrado do ministério público junto do tribunal da comarca onde corria o processo (art. 72.º do Estatuto Judiciário). No que toca ao cargo de administrador, concretamente nas comarcas de Lisboa e Porto, onde existiam as Camaras de Falências, eram funcionários públicos que o assumiam. Assim, a existência destas câmaras implicou também a existência de estatutos diferenciados para os administradores que exerciam a atividade nas demais comarcas. Daqui resultava, que ao contrário do que ocorria nas citadas câmaras, por o administrador não ter o estatuto de funcionário público fora delas, já não se verificava uma relação hierárquica com os mesmos contornos, o que implicava que o síndico necessitasse, por

15

Tal como o seu antecessor, autonomizava a falência da insolvência.

16 Cfr. L

(22)

22

exemplo, de autorização do juiz para remover o administrador do cargo, quando se justificasse.

Apesar disso, os atos de administração extraordinária a praticar pelo administrador de falência careciam de previa autorização expressa do síndico, exceto quanto a atos de administração geral, nos quais dispunha de autonomia total, ou seja, na mesma linha do que até aqui se vinha fazendo (art. 1211.º, n.º 1). Na fase de liquidação do ativo, o administrador de falência era o principal agente de ação, sendo ele a determinar a modalidade de venda dos bens da massa, mas também sob orientação daquele (art. 1246.º. n.º 1).

II. A disciplina da responsabilidade civil do administrador, pelos bens integrantes da massa, era remetida para a aplicação do regime de responsabilidade civil do depositário judicial, pelo facto de as duas funções terem um cariz semelhante. Ao depositário cabia “a guarda e a administração dos bens com a diligência e zelo de um

bom pai de família e com a obrigação de prestar contas”, tal como constava no art.

843.º, por imposição do n.º 1 do art. 1211.º do mesmo diploma. Se cometesse uma transgressão dos deveres, aplicava-se o disposto no art. 854.º, o que poderia inclusivamente implicar uma pena de prisão por tempo correspondente ao valor do depósito, não podendo exceder dois anos. No que tocava aos bens da massa insolvente apreendidos em comarca distinta daquela em que era declarada a insolvência, não poderia ser imputada ao administrador nomeado pelo tribunal qualquer responsabilidade, pois os bens apreendidos eram entregues ao depositário judicial nomeado pela comarca deprecada (art. 1208.º).

Quanto à responsabilidade por atos lesivos que não tivessem relação com a atuação em relação aos bens da massa, não havendo um regime próprio a aplicar, seria aplicável o regime do art. 2361.º do Código de Seabra, que consistia na responsabilidade subjectiva extracontratual. Por fim, às situações lesivas decorrentes da opção do administrador nomeado em confiar a guarda dos bens da massa a uma outra pessoa por ele escolhida, seria aplicável o regime nos termos gerais da responsabilidade do comitente (art. 2380.º do Código de Seabra), que era do tipo objetivo17. É de referir que esta responsabilidade pelos actos do comitente não vinha acompanhada do elemento da culpabilidade, obviamente. Em suma, nem o Código de Processo Civil de 1961, que

17

Hipótese admitida pelo n.º 3 do art. 1211.º, que dava a possibilidade ao administrador de o fazer, mas sob sua responsabilidade.

(23)

23

regulava o processo falimentar, nem o Estatuto Judiciário de 1962, que regulava os aspectos estatutários do administrador da falência e outros, esclareciam qual a solução a adoptar na matéria, o que levava à aplicação do regime geral referido.

Por fim, com o CC de 1967, o que ficou estabelecido foi que os danos causados pelo administrador no exercício das suas funções, obrigavam a indeminização segundo os contornos da responsabilidade extracontratual, caso fossem violados os seus deveres com dolo ou mera culpa, por aplicação do art. 483.º, n.º 1. Já no tocante à responsabilidade por atos de auxiliares, seria aplicável o estatuído no art. 500.º do mesmo diploma18.

2.8. Preocupação do legislador em recuperar empresas e proteger os credores em diploma autónomo: o DL n.º 177/86 de 2 de Julho

Nesta fase, já em preparação para mais tarde ser aprovado o CPEREF, criou-se em diploma especial, em alternativa à falência, uma série de medidas de recuperação de empresas já tendo em devida conta não apenas a satisfação do interesse dos credores, mas também a dimensão e importância social daquelas no tecido económico19. A falência seria então a opção de última ratio. Como confirmado com o CPC de 1961, estávamos numa época de consagração do sistema de falência-saneamento, que levou ao aparecimento de um novo processo jurisdicional alternativo ao da falência. Este “direito pré-falimentar” veio institucionalizar a recuperação das empresas, com uma forte preocupação com a sua dimensão social, livre das ingerências do poder executivo. É de notar, que embora tal processo alternativo viesse dar protecção às empresas em processo de falência, não caiu o nosso sistema jurídico num extremo de descaso dos interesses dos credores. Assim, criou-se para além dos meios preventivos supra referidos, a gestão

controlada, que era um plano de reestruturação da empresa executado por uma nova

administração nomeada pelos credores e fiscalizada pela comissão de credores.

Neste diploma não ocorria a diferenciação entre falência de comerciantes e insolvência de não comerciantes, sendo elemento fundamental a existência ou não de empresa para a sua aplicabilidade. Interessava sim a institucionalização de mecanismos

18

Apesar da imposição ao administrador-comissário, que encarregasse outrem de qualquer comissão, da obrigação de indemnizar o lesado, independentemente de culpa, o mesmo gozava do direito de regresso contra o comissário, salvo se também tivesse culpa de sua parte.

19

Eram elas o acordo de credores e a concordata, os tradicionais instrumentos de prevenção da falência.

(24)

24

pré-falimentares com o fim de parar a eliminação de empresas, elementos fundamentais à saúde económica.

No que toca aos administradores judiciais, estes eram recrutados entre os técnicos de gestão e cabia-lhes fiscalizar a situação real da empresa sujeita ao processo de recuperação, elaborar um relatório e apresentá-lo à assembleia de credores e propor medidas adequadas com vista à revigoração20. Ou seja, ao administrador judicial era exigido que gerisse uma empresa, de forma a mantê-la no mercado.

O recrutamento dos administradores judiciais era regulado no DL n.º 276/86 de 4 de Setembro, que veio definir o Estatuto dos Administradores Judiciais. Eram os mesmos nomeados pelo juiz sob proposta dos credores, que os escolhiam a partir de uma lista nacional elaborada por uma Comissão Nacional, nomeada pelo ministro da justiça, o que garantia a preparação técnica e a idoneidade necessárias, muito embora o juiz pudesse nomear qualquer pessoa para o cargo desde que oferecesse as condições necessárias para o seu exercício21. Assim, embora existisse a lei, não existia a estrutura para a cumprir e durante muito tempo, o n.º 2 do artigo 2.º do EAJ previu a possibilidade de admitir como administradores judiciais qualquer Revisor Oficial de Contas, até durante 2 anos após entrada em vigor do estatuto, de forma a pressionar a elaboração da lista nacional, visto não existir uma.

A remuneração do administrador era decidida pelo juiz no processo e o seu pagamento recaía sobre a empresa, dentro das suas possibilidades, sob parecer dos credores (art. 8.º, n.º 1 do EAJ). O juiz poderia também, exigir aos três maiores credores adiantamento de fundos para pagar ao administrador e reembolsar as suas despesas (n.º 3), embora tal norma tenha sido contestada por alegadamente ser inconstitucional22.

Complementarmente, é de referir que estes dois Decretos-Lei não dispunham de qualquer regras especiais relativas à responsabilidade civil do administrador judicial, o que remetia a sua regulação para o regime geral do CC de 1967, nos termos referidos

supra.

20

Preâmbulo da lei.

21

Apesar de a lei prever a nomeação de qualquer pessoa inscrita como ROC, o n.º3 do preceito previa a possibilidade de o juiz designar para o cargo qualquer pessoa não inscrita na lista oficial ou não inscrita como ROC, desde que garantisse a idoneidade necessária ao cargo.

22

Cfr. Ac. TRP de 16/6/1988, Ac. Do STJ de 22/6/1989 e Ac. TC n.º 188/90 que colocou termo à questão, optando os juízes pela não inconstitucionalidade.

(25)

25

2.9. No CPEREF (Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e da Falência) (1993)

I. O DL n.º 132/93 de 24 de Abril aprovou o Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e da Falência, e para além de proceder à extinção das Câmaras de Falências, revogou os arts. 1135.º a 1325.º do CPC de 1961, o já falado DL n.º 177/86 de 2 de Julho e os arts. 71.º a 87.º do Estatuto Judiciário, na parte referente ao administrador de falências.

Neste diploma foi evidente a tentativa do legislador em acabar com as diferenciações entre falência e insolvência, optando por centralizar todo o processo em torno da última e é com este diploma que se cria o órgão da comissão de credores, que acabaria por substituir o síndico com a extinção das câmaras.

O mecanismo de reestruturação financeira foi a inovação neste diploma que estabeleceu a prioridade da recuperação sobre a falência, ao mesmo tempo que o legislador extinguiu os institutos da concordata e do acordo dos credores23. Assim, os credores poderiam adotar medidas para modificar o passivo da empresa ou alterar o seu capital, para que ficasse assegurada a superioridade do ativo sobre aquele.

Mais tarde, depois de várias alterações, nomeadamente a operada pelo DL 315/98 de 20 de Outubro, este diploma veio estabelecer como pressuposto de recuperação da empresa, a sua situação económica difícil, que não devesse ser considerada situação de insolvência, ao indiciar dificuldades económicas e financeiras por incumprimento das suas obrigações. Também foi depois criado o “procedimento extrajudicial de conciliação”, que era um procedimento administrativo de recuperação empresarial mediado pelo IAPMEI24.

O CPREF levou como referido, à extinção das Camaras de Falências de Lisboa e Porto, o que colocou termo aos síndicos e aos administradores de falências, figuras existentes até então e foi criado o liquidatário judicial, para substituir este último. Por outro lado, a figura do administrador judicial, criada pelo DL n.º 177/86 de 2 de Julho, passou a designar-se gestor judicial, que não tinha as mesmas funções, uma vez que apenas actuava no processo de recuperação de empresas, ao contrário do liquidatário judicial que incidia as suas funções no processo falimentar de liquidação. Ficava assim

23

Extinção que apenas passou pelo nome, já que o art. 4.º atribuiu ao mecanismo a denominação de “reconstituição empresarial”.

24

Tratava-se de um acordo (introduzido pelo Decreto-lei n.º 316/98) realizado entre a empresa em dificuldade económica e os seus credores, mediado pelo IAPMEI, que é um instituto publico português que oferece suporte às pequenas e médias empresas industriais. https://www.iapmei.pt

(26)

26

o primeiro com o dever legal de promover a recuperação da empresa enquanto o segundo tinha o dever legal de liquidar os bens pertencentes à massa falida. As funções que eram atribuídas ao síndico passaram a integrar as da comissão de credores, prevista no art. 139.º do diploma, que dispunha de amplos poderes no desenlace processual e ficou com a tarefa de representar as diferentes classes de credores.

II. Ao gestor judicial cabia a tarefa de determinar as causas que geraram a situação económica difícil da devedora e de procurar a solução mais adequada à sua efetiva recuperação. A nomeação cabia ao tribunal, o que determinava a sua entrada imediata em funções, podendo o juiz fazer recair a sua escolha sobre as pessoas indicadas pelos credores, ouvida primeiramente a empresa (art. 32.º, n.º 1). Devia o juiz no entanto, recorrer a pessoas que constavam da lista oficial se não fosse possível nomear alguém aconselhado pelos credores.

A tarefa deste órgão consistia em garantir à comissão de trabalhadores, no decurso do período de recuperação da empresa, o exercício dos direitos que legalmente lhes eram conferidos, para além dos direitos que o CPEREF também previa (al. e), n.º 3 do art. 35.º). Tinha também de apresentar um relatório até 10 dias antes da realização da assembleia de credores, onde constava a situação negocial da devedora e a respectiva evolução, com exposição das medidas de recuperação mais apropriadas (art. 38.º, n.º1). A remuneração do gestor era da responsabilidade da empresa devedora, apesar de ser o juiz quem estabelecia a quantia, ouvidos os credores (art. 34.º, n.º 1). Tal não impedia que a remuneração poderia vir a ser alterada, dependendo do sucesso do processo de recuperação25.

O mandato do gestor poderia cessar por trânsito em julgado da homologação da medida de recuperação de empresa aprovada; por rejeição da medida de recuperação aprovada; por decisão que declarasse a caducidade dos efeitos do despacho de prosseguimento da acção; por trânsito em julgado da decisão que declarasse extinta a acção; quando se desse o termo do processo durante a restruturação financeira e quando na gestão controlada, se verificasse investidura da nova administração incumbida de executar o correspondente plano (art. 40.º).

(27)

27

III. O liquidatário judicial, figura prevista no art. 141.º, tinha a função de administrar a massa falida durante o período de liquidação e a sua atuação era dirigida por um juiz e alvo de fiscalização da comissão de credores, com a qual também colaborava no exercício das suas atribuições. Basicamente, cabia-lhe a tarefa de vender o ativo patrimonial do falido e depois distribuir o produto pelos credores reconhecidos (art. 134.º, n.º 1). Esse desiderato era conseguido pela prática de todos os atos de administração ordinária e de atos de administração extraordinária com a autorização do juiz, ouvida a comissão de credores. Assim, para além de ser o liquidatário, também era o depositário dos bens da massa falida.

Este órgão era nomeado pelo tribunal sob indicação da empresa falida ou dos credores, sem prejuízo de poder ser escolhido por recurso à lista oficial em última opção. Assumia imediatamente funções e a sua atividade era exercida pessoalmente, eventualmente com a assistência de técnicos ou auxiliares (art. 134.º), desde que com o consentimento da comissão de credores, e cessava funções com o trânsito em julgado da decisão de aprovação das contas de liquidação da massa falida (art. 138.º). A tarefa de proceder ao rateio final e distribuir as verbas cabia à secretaria (art. 214.º).

Importante aspeto a assinalar neste diploma foi a preocupação legislativa de assegurar um exercício diligente do cargo, o que implicou uma série de deveres especiais que obrigava o liquidatário a cumprir. Entre eles, avultava o dever de vender imediatamente os bens deterioráveis ou depreciáveis, determinar o encerramento temporário ou definitivo de qualquer um dos eventuais estabelecimentos do falido e cobrar os créditos deste, nem que para isso tivesse que recorrer à ação judicial, com a autorização da comissão de credores (arts. 145.º e 146.º). Num primeiro momento, foi-lhe retirada a possibilidade, em comparação ao anterior administrador da massa falida, de reconhecer ou não reconhecer os créditos reclamados, tarefa que ficou na mão do gestor judicial, como se pode ver pelo teor dos arts. 47.º e ss. No entanto, anos depois com as alterações introduzidas pelo DL n.º 38/2003 de 8 de Março, adquiriu o poder de não reconhecer os créditos reclamados nos processos instaurados depois do início da publicação da alteração legislativa.

Também era um importante poder do liquidatário o de levantar a inibição do falido, tal como constava do art. 148.º, já que a declaração de falência conduzia à inibição do exercício do comércio dos administradores da empresa em caso de pessoa colectiva e também de pessoa singular. Para levantar a inibição da pessoa singular,

(28)

28

bastava o seu requerimento ou a proposta do liquidatário, já que dispunha de grandes conhecimentos das causas que levaram à falência.

No que toca ao regime da remuneração do liquidatário judicial, era aplicável o mesmo que regulava a matéria relativamente ao gestor judicial, o que remetia para o art. 34.º do CPEREF, excepto no tocante ao sucess fee, que não se aplicava no caso deste órgão, mas em contrapartida, gozava de uma remuneração certa que não sofria oscilações.

IV. Entre estes dois órgãos havia uma “muralha” que os separava na vigência deste diploma: o art. 132.º não admitiu a hipótese de o cargo de liquidatário judicial, ser assumido por quem no eventual antecedente processo de recuperação da mesma empresa, tivesse exercido a função de gestor judicial. Parece-nos acertada esta impossibilidade do exercício, por parte da mesma pessoa, de praticamente todos os poderes que cabem no âmbito daqueles dois processos. Ou seja, não consideramos digno de uma atividade que deve ser transparente, que a pessoa que tentou recuperar a

empresa num primeiro momento, possa desmembrar a mesma a seguir26. Seria por isso

uma incompatibilidade de funções, que poderia em certos casos provocar um comportamento tendencioso por parte do gestor judicial, no sentido de inviabilizar a recuperação com a intenção de depois liquidar a empresa e atender a interesses ocultos e não atendíveis, eventualmente mais interessantes do que uma remuneração baseado no desempenho.

O regime de remunerações, aditamentos e reembolsos de despesas dos gestores e liquidatários judiciais, constavam de diploma legal especial, tal como referiam os arts. 33.º e 133.º do CPEREF. Esse diploma era o EGLJ (Estatuto dos Gestores e dos Liquidatários Judiciais) (Decreto-Lei 254/93 de 15 de Julho), que trouxe limites à acumulação de funções de um técnico em mais de uma empresa falida e ao tempo de exercício de funções dirigentes na empresa em causa, numa preocupação em dar credibilidade às funções de tal figura. Aliás, da leitura dos arts. 1.º e 2.º do estatuto, constata-mos uma série de limitações motivadas pelo exercício de funções num número significativo de empresas e dos proventos que as mesmas tinham, no primeiro caso. No segundo, estava previsto um conjunto de incompatibilidades resultantes da atividade dos

26 A contratio, V

ANESSA CRISTINA DE VELEZ GRACIA, op. Cit., pág. 55-56. De resto, não nos parece que a

experiência adquirida em processo de recuperação anterior seja motivo para admitir o mesmo sujeito em processo de liquidação. Pensámos ser mais valorizável o conhecimento técnico em abstracto, por ser maior garante de imparcialidade, neste caso.

(29)

29

gestores e liquidatários, nomeadamente a de não poderem pertencer a órgãos sociais de empresas com atividade idêntica à da falida, ou deter por si ou por parte de familiares participações sociais em empresas concorrentes. Ou seja, no diploma onde consta o estatuto destes órgãos da falência, são estabelecidas limitações ao exercício da função, que a nosso ver prevêem situações graves em termos de manutenção da integridade dos profissionais, justificando-se plenamente a sua previsão e regulação.

O art. 3.º do diploma citado, regulava a matéria dos impedimentos a que estes órgãos estavam sujeitos depois da cessação de funções. Assim, o gestor ou liquidatário judicial, não poderiam integrar o corpo social ou órgãos dirigentes de uma empresa, durante 2 anos, depois de terem cessado funções como tal na mesma. O art. 5.º, prescrevia o sancionamento destes órgãos, caso incorressem numa das hipóteses de incompatibilidades ou de impedimentos que constam nos três primeiros artigos. Como consequência, o profissional ficava sujeito à suspensão do cargo ou ao cancelamento da inscrição. No caso concreto dos arts. 1.º e 2.º, os mesmos poderiam ainda ficar sujeitos, à perda do direito a remuneração pelos cargos e à responsabilização por atos eventualmente praticados.

O modo de ingresso nas listas oficiais era o mesmo, tanto para gestores como para liquidatários judiciais, e os requisitos de admissão eram sobretudo os de “idoneidade técnica aferida, nomeadamente pela experiência profissional adquirida”. Assim preponderava a experiência profissional sobre as habilitações académicas em gestão empresarial, como requisito para aceder às aludidas profissões.

V. A matéria relativa à responsabilidade civil específica dos gestores e liquidatários judiciais ficou também aqui esquecida por parte do legislador, não existindo neste diploma qualquer regime específico aplicável. Ou seja, nem este diploma, nem os estatutos (DL n.º 254/93 e DL n.º 188/96), continham regras aplicáveis a esta matéria, o que dentro do panorama económico, a importância da empresa num país mais desenvolvido e o acréscimo do número de insolvências, tornavam tal omissão uma falha grave, que agravou a carência de um mecanismo de responsabilização civil dos órgãos de gestão e liquidação dos bens da massa. O liquidatário judicial no entanto, ficou com o seu regime de responsabilidade civil sujeito ao do depositário judicial, previsto no art. 843.º, n.º1 do CPC, relativamente aos bens da massa falida que lhe eram entregues.

(30)

30

O art. 145.º, n.º1 do CPEREF exigia o exercício diligente do cargo ao liquidatário judicial, mas a falta de um regime próprio no que toca à responsabilidade civil, levou à aplicação constante da regra geral do art. 483.º do CC de 1967, aos dois órgãos referidos, que consubstanciava uma responsabilidade civil de natureza extracontratual, alicerçada na culpa. O liquidatário permanecia responsável também quando recorresse a técnicos e outros auxiliares no exercício das suas funções, caso obtivesse autorização da comissão de credores (art. 134.º, n.º3), pela aplicação do art. 500.º do CC, já que seria encarado como um comitente. É de notar que o regime sancionatório do art. 5.º do EGLJ por violação dos arts. 1.º a 3.º, supra referido, aplicável aos dois órgãos, consistia em responsabilidade disciplinar27.

3. No CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) (2004)

I. O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas foi aprovado pelo DL n.º 53/2004 de 18 de Março.

Aqui foi evidente a intensão do legislador de criar um sistema em que se dava prevalência à liquidação dos bens do devedor e ao pagamento aos credores. É aquele sistema que a doutrina designa de insolvência-liquidação, e neste diploma assistiu-se a uma implementação do mesmo no nosso ordenamento jurídico. Tal intenção ficou clara no conteúdo do art. 1.º do CIRE, que estabeleceu que o processo de insolvência tinha como finalidade “a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição

do produto obtido pelos credores”. Também se deixou de fazer distinção entre as

situações de falência e de insolvência, sendo que o foco passou a estar nesta última e uma eventual recuperação da empresa compreendida na massa insolvente tornou-se um objetivo subsidiário no plano de insolvência28. Temos portanto um processo de insolvência de e para credores, diferentemente do que se veio a legislar depois com a alteração que vigora hoje. Assim, bastava que os credores não vissem interesse na recuperação da empresa para que essa via fosse sem mais rejeitada e não aplicável. Aliás, como se pode ver no preâmbulo da lei, o legislador atribuiu à vontade dos credores o estatuto de “principal interesse”, o que denuncia o seu espírito

A situação de insolvência é o fundamento de aplicação de um diploma como o CIRE, seja de pessoas colectivas ou de pessoas singulares, por impossibilidade de

27

A contrario, CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, in Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e da Falência Anotado, 2000, 3.ª Ed., Quid Iuris, pág. 141.

28 Cfr. L

Referências

Documentos relacionados

O operador pode definir as suas preferências para a prioridade da lança ou de rotação, a selecção do modo de potência e para as ferramentas de trabalho opcionais com o toque de

Até mesmo por que os principais agentes do desenvolvimento hoteleiro no Brasil são os incorporadores imobiliários, para quem o mercado residencial oferece margens

Pesquisa realizada pelo site Gênero e Número, em parceria com a Associação Nacional de Jornalismo Investigativo (Abraji), em 2017, com 477 1 respondentes de 271 veículos

v Aquando da inscrição, os interessados são obrigados a entregar um cheque caução, no valor de €2.500, que lhe será devolvido após o pagamento do valor dos bens arrematados

As investigações sobre o crime foram registradas no inquérito policial n.º 119/07 do 5º Distrito Policial de Santos e autuadas como inquérito policial n.º 116/07 da 1ª Vara

Desse modo, reconhecendo as HQs da Turma da Mônica como um fenômeno midiáti- co de alcance e relevância nacional na formação cultural de crianças, jovens e adultos, com

Certificado BULATS (Business Language Testing Service - versão completa), com pontuação mínima de 60 pontos. h) Comprovante de aprovação em exame de língua portuguesa,

El vídeo anuncio o vídeo de publicidad debe tener hasta 15 segundos de duración.. Tiempo