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Les justes de Albert Camus: uma tradução comentada

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Academic year: 2021

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UFBA – UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE LETRAS

EDSON CÉSAR DE SOUSA SOBRINHO

LES JUSTES DE ALBERT CAMUS: UMA TRADUÇÃO COMENTADA

SALVADOR 2016

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EDSON CÉSAR DE SOUSA SOBRINHO

LES JUSTES DE ALBERT CAMUS: UMA TRADUÇÃO COMENTADA

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao, Colegiado de Letras – Língua Estrangeira, do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção de título de Bacharel em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Ana Maria Bicalho.

SALVADOR 2016

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RESUMO

Les Justes (1949), de Albert Camus (1913 – 1960), é uma peça teatral francesa, ainda inédita em português brasileiro, que recebe, aqui, a sua primeira tradução. Este trabalho de conclusão de curso, assim, apresenta a tradução integral da obra francesa além de uma reflexão acerca dos processos de criação do texto em português e as suas respectivas notas do tradutor. Essa reflexão mencionada, tem por objetivo esclarecer parte do processo tradutório e, acima de tudo, demonstrar as orientações teóricas das quais se serviu para sua realização. Por isso, foi necessário ressaltar algumas das influências históricas e metafisicas que acercam e fundamentam tanto o campo da tradução, bem como, da ação de traduzir. Para tanto, este trabalho, recorreu à leitura desconstrucionista do filósofo argelino Jacques Derrida atrelada à concepção de autoria do filósofo francês Michel Foucault, como esteio fundamental e além de outras visões para, partindo disso, produzir e refletir sobre todo processo. Objetando, a produção de um texto em português, este trabalho, ainda, tem como centro de análises a relação direta do tradutor a partir das suas escolhas, teóricas e metodológicas, a fim de constituir um cenário adequado para a sua conclusão, para a sua feitura.

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RÉSUMÉ

Les Justes (1949), d’Albert Camus (1913 – 1960), est une pièce théâtral française, encore inédite en portugais brésilien, qui reçoit ici sa première traduction. Ce travail de conclusion de cours, presente, ainsi, la traduction complète de l'œuvre française et en plus, une réflexion sur les processus de création du texte en portugais et leurs respectifs notes du traducteur. Cette réflexion mentionnée, a l'objectif de clarifier partie du processus de traduction et, surtout, démontrer les orientations théoriques qui ont servi à sa réalisation. Par conséquent, il a été nécessaire mettre en évidence certains des influences historiques et métaphysiques, qui ont établi le domaine de la traduction, ainsi que l'action de traduire. Donc, ce travail, a recours à la lecture déconstructiviste du philosophe algérien Jacques Derrida, lié à la conception autour de l’idée de l’auteur du philosophe français Michel Foucault, comme base fondamentale et en plus d'autres points de vue pour, à partir de cela, produire et réfléchir sur tout le processus. Objectant, la production d'un texte en portugais, ce travail a aussi comme centre d'analyse la relation directe du traducteur à partir de leurs choix, théoriques et méthodologiques, afin de fournir un cadre approprié pour sa réalisation, vers sa conclusion.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 5

1. A TRADUÇÃO COMO TEORIA, TRADUÇÃO COMO PROCESSO ... 8

1.1 A teoria em suspensão ... 8

1.2 Albert Camus e Os Justos ... 12

1.3 Ação e silêncio: a teoria para traduzir ... 15

1.4 Os Justos: criando uma tradução ... 19

2. LES JUSTES: TRADUÇÃO COMENTADA ... 24

2.1 Os Justos, peça em cinco atos ... 24

CONCLUSÃO ... 117

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Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem.

Traduzir-se uma parte na outra parte - que é uma questão de vida ou morte - será arte? Fagner, Traduz(c)ir-se1

Traduzir parece um ato pessoal. Se quer dizer com isso que o tradutor – imbuído de alguma tradução – realizará em última instância escolhas das quais permitirá a essa tradução características singulares, próprias.

Por isso e partindo da epígrafe acima, retirada da canção Traduzir-se de Raimundo Fagner, do seu disco de mesmo nome, o tema da tradução ganha contornos poéticos e por isso ainda mais pessoais2. Não se trata apenas de traduzir partes alheias a si – um texto, um poema ou um livro – mas, também, se incluir no jogo, no ato da tradução enquanto se traduz; não se quer com isso impor-se durante a tradução, no entanto passaria ao largo a exclusão do tradutor como agente nas características finais da obra traduzida. Nem tampouco se quer dizer que o tradutor, por isso, seria o autor da obra, não há aqui, uma tentativa de inverter lugares. Tal dilema, servem para inserir a questão do autor como função; e do tradutor, também como, função-autor (FOUCAULT, 2009), entretanto essa questão será retomada mais adiante.

Retomando e partindo das associações dicotômicas que se fazem, quase espontaneamente, em relação à tradução enquanto “partes”, lados: fidelidade versus liberdade, língua fonte versus alvo, original versus tradução e tantas outras, chama-se a atenção para uma, a da canção citada na epígrafe – uma parte de mim é vertigem a outra é linguagem (grifo meu). Atendendo a este apelo da vertigem versus linguagem; é preciso explicitar que, nesse caso, são

1 Fagner, Traduz(c)ir-se – canção do disco homônimo de 1981, feita sobre o poema de Ferreira Gullar.

2 Entre os séculos XVII e XVIII, o poético era, em termos literários, algo estritamente pessoal e por isso mesmo

muitos estudiosos não considerava a poesia inscrita nas Belas-Artes, por ser pessoal não se trata de uma arte mas, e sobretudo, expressão dos sentimentos.

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na canção, um único lugar. Seguindo com isso, a vertigem é a “perturbação dos sentidos ou da razão”, de acordo com o dicionário Aurélio e a linguagem não seria algo que poderíamos esclarecer aqui tão facilmente. Entretanto, sabe-se que, como este Trabalho de conclusão de curso tem por objetivo a tradução da peça Les justes de Albert Camus, do francês para português, algumas tarefas linguísticas, sintáticas e semânticas e tantas outras, serão requisitadas, assim nossa matéria será de alguma maneira, e em diversos níveis, o de trabalhar com a linguagem, mas este não é o ponto central – a reflexão da linguagem nessas instâncias mencionadas.

Por conseguinte, a imagem a que se recorre aqui, entre vertigem e linguagem, e a questão que agora se completa, da tradução como arte (parte final da epígrafe), demonstra exatamente o ponto a que se quer aqui chegar: a linguagem que se instala ali entre a razão e o delírio – vertigem –, não se deixa depreender por completa em imperativos categóricos que, fundamentados no logocentrismo tenta estabelecer razões gerais e fundamentais para o seu funcionamento, por isso, é exemplar este trânsito entre o delírio e a razão que expõe poeticamente a canção ao falar da tradução. Da mesma forma, a arte não se deixa cativa a prerrogativas generalizantes. Por isso, a questão que se levanta – Será arte? – é pertinente, uma vez que a tradução assume semelhantes entraves e por tal, nos envolve em suas possibilidades.

É (e sempre será) difícil circunscrevê-la numa teoria; aprisioná-la numa rede de categorias; acercá-la de fronteiras; tendo em vista que a tradução se mantém numa deriva de conceitos e metáforas que jamais a impedem de continuar, pelo contrário, é cada vez mais presente e necessária. Ou melhor – “é uma questão de vida ou morte” – ou da sobrevida da língua e da perpetuação do a-ser-traduzido. (DERRIDA, 2002, p. 31).

Dito isso, o trabalho com a linguagem, com a tradução enquanto linguagem, se movimentará aqui, entre a experiência (do ato tradutório; da tradução como experiência;), e a reflexão provocada por estes atos e por todas as implicações das nossas escolhas. É preciso, entretanto, esclarecer esses pontos, de início, com Berman, que diz:

Assim é a tradução: experiência. Experiência das obras e do ser-obra, das línguas e do ser-língua. Experiência, ao mesmo tempo, dela mesma, da sua essência. Em outras palavras, no ato de traduzir está presente um certo saber, um saber sui generis. (BERMAN, 23, 1999).

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somente se expressa no ato de traduzir. E ainda assim, essa reflexão, à maneira filosófica, não se destinará ou se submeterá ao estabelecimento de uma nova doutrina pois, “a tradução é sujeito e objeto de um saber próprio” (BERMAN, 1999, p. 23), que se estabelece a cada ato, a cada escolha, estando sujeita às suas especificidades, que se singularizam a cada obra, tradutor e tempo, e por isso, esses mesmos agentes indeterminam qual será a experiência e o que se pode refletir delas. Cada tradução será, portanto, única. No entanto, sendo ela uma tradução ou mesmo em se tratando do texto a-ser-traduzido o que nos interessa é poder reiterar que

Cada texto é único e, simultaneamente, é a tradução de outro texto. Nenhum texto é inteiramente original, porque a própria linguagem em sua essência já é uma tradução: primeiro, do mundo não-verbal e, depois, porque cada signo

e cada frase é a tradução de outro (PAZ, 2009, p. 13).

Assim, diante de tais perspectivas, tentar-se-á ilustrar alguns pontos através dos quais a tradução pode levar a um esboço menos teórico, menos pragmático e mais reflexivo. Se quer dizer com isso, menos técnico e mais experimental. Ou seja, dotada de uma fonte de experiências – também artísticas – que orientem a uma reflexão, como uma atividade filosófica. Observando e retirando com cuidado tudo, ou o quanto possível, dessa atividade que pode transitar entre filosofia e arte, “e nunca seria demais insistir no arbitrário da antiga oposição entre a arte e a filosofia” (CAMUS, 2016, p. 57).

Assim, ainda no intento de demonstrar por onde segue o entendimento sobre a experiência, é preciso entendê-la no sentido com qual Heidegger a empregava, em sua acepção remota de ser passivo, deixando-se envolver com e pela linguagem e não a submetendo aos desejos teóricos apriorísticos. Também não determinando os limites e lugares do seu objeto visto ser a tradução sujeito e objeto de suas experiências e reflexões. De tal modo nos diz Heidegger:

Fazer uma experiência com a linguagem significa, portanto: deixarmo-nos tocar propriamente pela reivindicação da linguagem, a ela nos entregando e com ela nos harmonizando. Se é verdade que o homem, quer o saiba ou não, encontra na linguagem a morada própria de sua presença, então uma experiência que façamos com a linguagem haverá de nos tocar na articulação mais íntima de nossa presença. Nós, nós que falamos a linguagem, podemos nos transformar com essas experiências, da noite para o dia ou com o tempo. (HEIDEGGER, 2003, p. 121).

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com prescrições ou modelos, mas com a disposição de se deixar experimentar pela linguagem, pela tradução em sua experiência de reflexão e ato. Fazendo com a tradução uma experiência da linguagem sem estabelecer seu fim último, se ligando a um fazer que nos permita experimentar e refletir através e pela tradução, seja como arte ou como linguagem, sem reduzi-la a conceitos generalizantes.

Vertigem e linguagem, serão aqui retomados, para reiterar essas “partes” ao ato de traduzir. Não se pretende, todavia, relacioná-los ao texto “original” e a sua correspondente “tradução”, mas com o tradutor e com o ato de tradução, para tentar harmonizar essa tarefa entre as exigências dos textos, da linguagem, das filiações teóricas do sujeito envolvido nesse processo e da vertigem como falta de razão, delírio, poeticamente falando.

Da minha presença enquanto relação que já estabeleço entre a peça Les Justes e a minha tradução Os Justos, não para me apossar de sua autoria, mas para me estabelecer como produtor, ou melhor, como tradutor e por isso mesmo, daqui em diante, me referirei em primeira pessoa e não mais em terceira como fiz até aqui. Nesse fazer, tentarei, portanto, encontrar a morada da minha presença.

Dito isso, começarei a refletir sobre a tradução, o meu processo e a minha experiência dentro do jogo tradutório. E o farei, primeiro, esclarecendo, por quais motivos optei por colocar em suspensão as teorias e me estabelecer na instabilidade da reflexão filosófica. Na deriva que se tem por nome, aqui, de tradução.

1. TRADUZIR COMO TEORIA, TRADUZIR COMO AÇÃO.

1.1 A teoria em suspensão

As dificuldades dos Estudos de Tradução podem ser observadas não somente no ato de traduzir, mas logo que se empreende discussões introdutórias sobre o tema. Ao darmos os primeiros passos tem-se a sensação de pisar em terreno bastante movediço, quase sempre relativo, uma vez que trata de relações – intertextos, intermídias e interlínguas – e isso nos impõe sempre um lugar jamais confortável. Esse lugar, função (FOUCAULT, 2009, p. 328), (autor-tradutor-leitor p.ex.), nos dá uma medida quase sempre inexata do que se tem em mãos, neste caso, a tradução e um texto, digamos, original e suas relações com o ato tradutório.

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tradução? E antes de qualquer coisa quero esclarecer que não irei aqui definir ou mesmo tentar responder séculos de tentativas em fazê-lo. Entretanto, de modo figurativo, lançarei ora e outra, algumas possibilidades, sem jamais objetivar explicá-la definitivamente, como um fato encerrado em si, nem mesmo como campo teórico definido e/ou definidor, acho que já esclarecido na introdução. E de tal modo e mesmo sem uma resposta que satisfaça completamente o juízo filosófico continuamos, pois, a traduzir. O mundo a exige. A plurivocidade cultural a solicita. Os meios a reinventam. O mito babélico a impôs e a impossibilitou.

A história da linguagem tentou cercear seus passos, a metafisica ocidental de Platão até Ferdinand de Saussure, e outros além destes, tentaram torná-la cativa a partir de diversas abordagens. Mas todas as tentativas fracassaram no que havia de mais óbvio: não foi possível frustrar a tradução ou mesmo contê-la em sua ação produtora e criativa. Uma vez que, esse ato com a qual a produzimos, nos conduz enquanto a conduzimos.

O meu primeiro método de trabalho foi encontrar a teoria, depois de traduzir. E, “a razão desse paradoxo é a seguinte: por um lado a tradução suprime as diferenças entre uma língua e outra; por outro, as revela mais plenamente” (PAZ, 2009, p. 13), ou seja, sua condição própria é ir de encontro com a solução, é querer um não-acabamento, postergando sua conclusão, como um fim jamais imediato, nunca complementar. Por isso mesmo, é possível traduzir e retraduzir o mesmo texto. Assim, toda vez que falamos em uma tradução de um texto para outro, numa outra língua, estamos, em verdade, citando ao menos três (DERRIDA, 200). Essa terceira parte, quase espontânea, age como desatador das mordaças impostas pela metafisica, pela linguística ou por qualquer razão filosófica que se interponha para tentar impedir a expansão de suas fronteiras e dos seus estudos. Essa expansão, quero dizer – movimento próprio da tradução – se dá, também, pela frequente instabilização das noções estruturantes do pensamento, pois “o conceito de estrutura centrada é com efeito o conceito de um jogo fundado, constituído a partir de uma imobilidade fundadora e de uma certeza tranquilizadora”. (DERRIDA, 1995, p. 230). Certeza essa que não se obtém com o ato tradutório, mas com as teorias impostas a ela, e por ela debelada, reiniciando o jogo de inconstâncias. Por tudo isso, tentar assegurar-se na estabilidade prometida por alguma teoria me parece destinada ao fracasso da teoria e consecutivamente da tradução.

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e épocas, os problemas trazidos ou “causados” pela tradução estão longe de encontrar um lugar tranquilo ou estabelecer um consenso seja acadêmico ou artístico, como explicitado; e mesmo caracterizada com pejorações e adornada, muitas vezes, por empecilhos, demonstra que “a fecundidade e a grandeza de um gênero se medem, frequentemente, com o descrédito em que se encontra” (CAMUS, 2006, p. 59), para a partir daí reivindicar seus atributos e lugares.

A tradução, assim, se revela renovadora de si mesma enquanto campo de estudos e revitalizadora de obras a cada nova tradução. E por contrassenso, a tradução como campo de estudos se renova pelo e com o passado, pois só é possível traduzir o já realizado – uma obra acabada por assim dizer –, ao mesmo tempo, a tradução nos entrega este passado como sendo algo novo e desta forma se lança ao futuro, poderíamos assim, quiçá, encontrar um objetivo ou mesmo um adjetivo para a tradução, ou seja, ela como força renovadora do passado, e assim tranquilizar alguns. Essa tranquilidade, nos recolocaria novamente sob os conceitos estagnes e em suas propriedades confinadoras, cujas noções não queremos aqui recorrer, tais como: original; verdade; substancia; essência, e muitas outras que invariavelmente ocupam o lugar central nas correntes que analisam e estudam tradução e literatura, tradicionalmente.

No entanto, essa historicidade quase consensual, quanto à ordem do tempo, sabemos, é uma das marcas indeléveis da metafisica ocidental para confinar o homem na temporalidade de Deus, tal como nos relata Agostinho em A cidade de Deus:

As coisas que acontecem sob a condição de tempo estão no futuro, ainda em ser, ou no presente, já existentes, ou no passado não mais em ser. Mas Deus abrange tudo isso num presente estável e eterno. (AGOSTINHO, 1996, p.155)

Esta ideia de temporalidade, que nos parece óbvia, se apresenta mais profundamente como “um modo de traduzir o que há da antevisão de Deus [...] e convida-nos a pensar sobre o que aconteceu no passado como algo resolvido, plenamente determinado. Não se pode mudar o passado” (MATHEWS, 2007, p. 156), disso resulta parte fundamental do que se crê por origem das coisas ou por um passado imutável e irrefutável, original e outras amarras essencializantes.

Entretanto, esta visão de temporalidade foi relativizada pela teoria, ou melhor, pela leitura pós-estruturalista (e não somente por esta), pois a filosofia no século XX expõe diversos exemplos dessa relativização do historicismo seja com Martin Heidegger (2005) ou mesmo com

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arte é posta sob reflexão as relações com o tempo se modificam drasticamente, visto ser “a própria criação que contem embutidas as relações dos três tempos, presente-passado-futuro, modificando as relações de dominância entre eles” (PLAZA, 2003, p.8), e no caso, a tradução aí se apresenta “como uma forma privilegiada de recuperação da história como uma trama entre passado-presente-futuro” (PLAZA, 2003, p. 8), pois ela não se inscreve num presente imediato, se estabelecendo num movimento mais complexo, pois como processo criador se inaugura num momento anterior ao seu próprio produto, no a-ser traduzido. E para que isso aconteça, ela se volta para o passado, se produz no presente e imediatamente alcança o futuro em apenas um ato.

Ainda em Júlio Plaza, o passado para a tradução é uma possibilidade e não um fato que se queira consumado. Ela toma a história como “inacabada (assim como as obras de arte) é uma espécie de obra em perspectiva, aquela que avança, através de sua leitura, para o futuro”. (PLAZA, 2003, p. 8). Aqui então a encontramos, a tradução, como leitura, como uma forma de ler e não somente a história. É assim que me lanço no ato mesmo da tradução como atividade de “leitura e interpretação” (PAZ, 2009, p. 25), e como leitor traduzo e traduzi a peça que apresentarei no próximo capitulo Les Justes de Albert Camus, e assumindo o papel de autor-tradutor-leitor que me proponho aos Estudos de Tradução.

Portanto, diante dessas influências filosófico-metafísicas, não somente me disponho a encarar o ato tradutório como atividade do intelecto tal como um artista e filósofo ao mesmo tempo, como também, imbuído do desejo pragmático de entregar ao fim um produto que é a tradução do livro supracitado, e ainda apontar e discutir na medida do possível teorias e reflexões que se apresentarem ao passo em que entrego a tradução, ou melhor, à medida que traduzo.

Por isso, a opção mencionada de encarar este trabalho também como filosófico e assim buscar caminhos para a reflexão dos meus atos e teorias que corroborem com as minhas escolhas, suspendendo por um momento o a priori teórico se deu, é claro, pela própria história da tradução e pelo “conselho” teórico esclarecedor dado por Edwin Gentzler quando diz:

Eu sugiro que a mudança para uma posição mais filosófica, da qual toda a problemática da tradução pode ser vista, talvez não só seja benéfica para a teoria da tradução, mas, depois de tal confronto, talvez o discurso que limitou o desenvolvimento da teoria sofra uma transformação, permitindo novas

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noções e termos estagnados. (GENTZLER, 2009, p.184)

E para concluir este capítulo, outra abordagem filosófica - que já fora mencionada, mas não devidamente apresentada -, que será para mim de importância crucial: a corrente pós-estruturalista. Fundamentalmente, sob a forma da leitura desconstrucionista do filósofo argelino Jacques Derrida que nos conduz, assim como outros, para a reversão da leitura metafisica ocidental em relação à tradução e aos descentramentos provocados nas teorias linguísticas que analisam e estudam as traduções somente sob este aspecto, o da técnica com a linguagem.

Por tudo isso, não tentarei remediar em definitivo os problemas da tradução, pois como ação de leitura, apenas me colocarei no trânsito das funções apresentadas, para com esses elementos alcançar o objetivo final, a tradução. No entanto, antes de demonstrar minha leitura teórica da tradução, mais detidamente, esboçarei uma breve biografia de Albert Camus, a contar um pouco sobre o autor, a sua obra e de algum modo as relações de um com o outro e o meu trabalho, aqui a ser apresentado

1.2 Albert Camus e Os Justos

Albert Camus concebeu e publicou grande parte de seus livros entre a ascensão e a queda dos regimes totalitários europeus (nazismo, stalinismo, leninismo e franquismo) todos exercendo alguma influência em suas obras. Por tal, Camus se propôs a pensar estruturas de coerção, solidão, absurdo e revolta. Neste sentido a escolha da peça Les Justes se deu tanto pela sua contemporaneidade temática quanto pelo seu ineditismo em português brasileiro. Também por sua importância no conjunto da obra de Albert Camus bem como para o cenário literário nacional.

Assim, a peça se apresenta dentro de um espectro de análise bastante amplo, difuso em certa medida, pois esta peça que encenada a primeira vez no contexto do pós segunda guerra mundial, momento no qual os poderes (em geral) e suas formas políticas (especificamente) estavam sendo questionados. E de certa forma, guardado os limites, como tem feito atualmente parte dos estudos sobre tradução, representações culturais e também os revisionismos histórico-culturais. No entanto, cabe a mim, neste capítulo, apenas explorar as possibilidades críticas que

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literária e ou filosófica da obra camusiana e mais estritamente da peça Os Justos.

Por outro lado, a escolha de uma peça que traz como tema de fundo um fato histórico gera algumas implicações específicas que trataremos no âmbito dos problemas tradutórios e oportunamente. Além disso, as diversas questões filosóficas integradas ao drama camusiano nos possibilita a integração do ato tradutório e da crítica da tradução com uma obra que de forma semelhante joga como: texto (drama em prosa), ato (quando encenada) e crítica (tema da peça). Se assemelhando em tese, aos esforços de: apresentar um texto (produto/tradução), ato (tradutório) e crítica (discussão teórica e comentários). Dito isso seguirei com a biografia do autor.

Albert Camus nasceu em 1913, na cidade de Mondovi na Argélia, nascido em uma família de origens modestas vindas da Espanha e da Alsácia. Seu pai foi morto na batalha de Marne em 1914, durante a primeira guerra mundial. Bolsista no liceu de Alger se licenciou em filosofia apresentando um estudo das influências do helenismo no cristianismo através de Plotino e Santo Agostinho. Dada a necessidade de ganhar dinheiro, e apesar da saúde debilitada, Camus exerceu diversas atividades profissionais se voltando numa dessas oportunidades ao jornalismo, mesmo depois de já ter publicado dois livros de ensaios O Avesso e o direito(1937) e Núpcias(1938), cujo lirismo atravessaria seu estilo de ensaísta.

Durante a segunda grande guerra, participou da resistência no grupo Combat, cuja publicação de mesmo nome circulava de forma ilegal em Paris. Em 1942, Camus publicou o seu primeiro romance, O Estrangeiro, e ainda no mesmo ano lançaria O Mito de Sísifo, livro de ensaios no qual retoma e disserta sobre os temas, filosóficos em suma, apresentados em seu primeiro romance publicado. Depois da libertação de Paris, ou da Libération de Paris como é conhecido, ao fim do mês de outubro de 1944, Camus se tornou editor e redator chefe do jornal Combat. No mesmo ano foram montadas e encenadas duas de suas peças, Calígula e O mal-entendido, tendo a primeira alcançando um certo sucesso de crítica e público e até hoje segue sendo encenada ao redor do mundo.

Em 1947, depois do grande sucesso que obteve o seu romance A Peste, ele abandonou o jornalismo para se dedicar somente à sua obra literária. Além de sua obra autoral também se dedicou à adaptações da obra de Faulkner, Calderón, Lope de Vega e Dostoïevski, sempre para o teatro, como a exemplo de Os possessos (texto publicado pela editora Gallimard) do romance homônimo do autor russo além de A devoção à cruz de Calderón de la Barca, entre outros.

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tem por princípio a reflexão da condição do homem, partindo do absurdo em direção a análise da revolta como ação imprescindível para a afirmação do sujeito em sua existência.

Voltando um pouco no tempo, precisamente oito anos antes, quando Os Justos fora representada pela primeira vez, em 15 de dezembro de 1949, no Teatro Hébertot (ainda dirigido por Jacques Hébertot). A peça fora montada e dirigida por Paul Oettly (que também atuara no papel do agente de polícia Skouratov) e com a direção de arte de De Rosnay.

Albert Camus explicou que Os Justos fora baseada em fatos históricos ocorridos em 1905, quando um grupo de terroristas pertencentes ao partido socialista revolucionário russo organizaram e executaram com sucesso o atentado à bomba contra o grão-duque Serge, tio do tzar. Tendo se apoiado nas circunstâncias peculiares deste atentado, Camus, explicou que apesar de ser uma peça feita com fatos históricos ela não poderia se enquadrar como uma “peça histórica” mesmo que os personagens tenham sido baseados nos verdadeiros personagens, incluindo aí alguns dos seus nomes. No entanto, acrescentou Camus, o objetivo foi dar à peça características de verossimilhança ou causar essa sensação.

Mesmo que não se possa incluir Os Justos no “ciclo do absurdo” – período em que o autor escreve fundamentalmente sobre esse tema –, pois a peça explora e se compreende dentro do “ciclo da revolta” – período em que Camus explorou o tema da revolta –; é necessário, ainda assim, esclarecer que, apesar de sua obra ser caracterizada por ciclos, a revolta em Camus é fruto direto de suas considerações sobre o absurdismo assim, há um liame com o qual nos leva do absurdo até a revolta consecutivamente.

É preciso salientar que toda obra de Albert Camus é coerentemente concebida para que suas partes possam desembocar nas outras. Ou seja, que os livros reunidos possam fazer sentido enquanto obra se e quando postos lado a lado. Por isso, é inevitável que um livro auxilie a compreensão de outro assim, como exemplo, pode-se perceber que desde o seu primeiro romance O Estrangeiro, a questão da forca, da guilhotina, da pena capital perpassa muitas das suas obras. Inclui-se aí, entre elas, a própria peça que apresento neste trabalho ou o romance A Peste, quando faz menção à pena de morte do seu outro livro O Estrangeiro. Cito, ainda, livros de ensaios tais como: Réflexions sur la guillontine (1947), e Réflexions sur la peine capitale (1957), esse último em parceria com Arthur Koestler, exemplos que nos servem, se necessário, como orientação para possíveis esclarecimentos por quais caminhos seguir durante a tradução de Os Justos. É importante ressaltar também questões como revolta, fraternidade, relação de tudo isso com as biografias particulares (ações pessoais dos homens na terra), arte e o seu papel

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do período que é, a do papel da religião, e em última instância, o de Deus.

Em 4 de janeiro de 1960, Albert Camus aos quarenta e seis anos encontrou a morte em um acidente de carro no qual seu editor o conduzia. Logo após o momento de sua morte algumas teorias conspiratórias foram confabuladas pois, suspeitava-se que tanto a KGB, polícia secreta da antiga União Soviética; bem como a CIA, serviço secreto dos Estados Unidos, o tinham na mira dos seus agentes por suas críticas a ambos os sistemas políticos e econômicos. Nunca foi provado qualquer relação dessas agências em seu acidente, mas somente o fato de que tais agências o vigiavam e mantinham dossiês sobre as suas ações políticas, principalmente durante e depois da grande guerra mundial. Esse fato, aqui trazido, nos serve como medida para entender a formação crítica de Camus, pois mesmo pertencente a uma tendência esquerdista não via com bons olhos a filiação irrestrita a alguma corrente ideológica. De tal modo, por coincidência ou não, também não me atarei a uma corrente explícita para justificar as minhas escolhas durante a tradução e utilizarei as teorias como ferramentas e não como filiação ideológica irrestrita. E com isso, proponho apresentar a tradução de um romancista, filósofo, dramaturgo e homem político, com vistas também nesses requisitos tornando o trabalho, aos meus olhos, um pouco mais complexo, mas não menos interessante.

1.3 Ação e silêncio: a tradução

As muitas questões envolvidas numa tradução exigem do tradutor a liberdade em buscar múltiplas opções para resolver os seus problemas e, mais que isso, as soluções requerem não só um horizonte teórico que as justifique, como também uma certa criatividade em forma de texto. De tal modo, a constituição de um ambiente teórico favorável às intervenções necessárias no texto de partida para a criação do texto traduzido são fundamentais. Então, é imprescindível de antemão, esclarecer mais detidamente por onde seguem minhas convicções teóricas.

Em primeira instância, quando falo em “criatividade”, “intervenções” e “criação” emergem dessas palavras uma “característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade” (FOUCAULT, 2009, p. 328) que atribuímos ao autor. Ao utilizarmos essas palavras ao processo de tradução aproximamos o tradutor do autor, o colocando na primeira pessoa diante do texto traduzido, com isso estou requerendo para esta função não somente o “ônus” de tradutor como também o “bônus” de

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aproximamos estas funções e damos o primeiro passo para a criação de uma tradução e de instâncias que possam satisfazer os meus interesses teóricos e estéticos. Em ato contínuo, o ato da criação para Foucault, nos diz Gentzler é,

“na realidade, uma série de complexos processos que a designação ‘autor’ serve para simplificar. Ele prefere não pensar no autor como um indivíduo real, mas como uma série de posições subjetivas, determinadas não por uma única harmonia de efeitos, mas por lacunas, descontinuidades e rupturas. O discurso do texto mostrará como essas descontinuidades desestruturam a noção de um texto original unificado, anistórico e transcendental” (GENTZLER, 2009, p. 189).

Disso, reitero que o lugar autoral descrito por Foucault é o de relacionar textos com outros textos e que ao invés de inscrevermos um “texto original”, como tal, devemos vê-lo como uma produção temporal, marcada por seu tempo, ao contrário do que se fixou na figura metafísica do “sistema autor”. Por isso, os mesmos esforços intertextuais e históricos, ligados ao ato de tradução, fazem do tradutor, autor tanto do seu processo como do seu produto.

Seguindo com a ideia de construir um ambiente adequado onde os meus objetivos com a tradução possam ser satisfeitos, repito que, tanto o lugar teórico no qual o tradutor é colocado como empecilho da tradução ou o outro, onde ele é o único caminho para se produzir alguma tradução, são motivados pelas dificuldades de sua realização, da de se produzir uma tradução. Essa dupla orientação não revela todas as possibilidades mas “e como sempre, a coerência na contradição exprime a força de um desejo” (DERRIDA, 2009, p. 230). Esse desejo é o da teoria, o da força que se estabelece a fim de punir a tradução ou possibilitá-la. Além disso, essa coerência na contradição, expressada no texto derridiano, seria, aqui, provocada pela tradução. Porque, estando o tradutor, na via-crúcis, entre o pecado e a redenção, na possibilidade de ser o criador-autor de um texto novo ou ele mesmo, o violentador do texto original, o que é visto como regulador dessas possibilidades é sempre a tradução. Essa construção simbólica, entre a punição ou redenção do tradutor, não é somente figurativa como também factual, e é de fundamental importância para que se possa compreender a deriva teórica onde a tradução se mantém, e isso não é necessariamente visto como um problema, mas também é um caminho, pois desta maneira, a inscrevemos nesse jogo de antípodas (a tradução), e a afastamos do essencialismo, fora da estabilidade das verdades fundantes, essenciais. Passando ao largo da ideia estruturalista, pois

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O conceito de estrutura centrada é com efeito o conceito de um jogo fundado, constituído a partir de uma imobilidade fundadora e de uma certeza tranquilizadora, ela própria subtraída ao jogo. A partir desta certeza, a angústia pode ser dominada. (DERRIDA, 1999, p. 230)

Ou seja, além da ideia de estrutura centrada tentar conter essa mobilidade fundamental para a tradução, para a sua produção, há ainda, como observa Derrida, uma vontade em tranquilizar, veja-se nisso, um desejo em aplacar o silêncio criativo da tradução. Destarte, a primeira resposta dada pela tradução é a violência do seu gesto. O seu grito sem voz que renomeia as coisas. Reiterando textos em outros, a todo instante, sem cessar, palavra estrangeira em signo vernacular, onde

Diariamente as palavras chocam-se entre si e emitem chispas metálicas ou formam pares fosforescentes. O céu verbal se povoa sem cessar de novos astros. Todos os dias afloram à superfície do idioma palavras e frases, minando ainda umidade e silêncio [...]. (PAZ, 1982, p. 42).

E com Octávio Paz, esse aflorar ainda silencioso das palavras, delas em choque para produzir-se ainda úmidas e silentes dilata o processo de tradução. Suor e conflito. Silêncio dos que não leem numa certa língua estrangeira e um caminhar revelado aos poucos na contínua e muda ação do tradutor com intuito de fazer soar com o vigor renovado um novo texto ou um céu de novos astros, de múltiplos sentidos. Esse céu verbal de astros recentes nos orienta por caminhos onde os astros antigos jamais poderiam nos levar, assim também é a tradução. Uma novidade antiga. Um passado reinscrito no presente. Porque, todas essas “lacunas, reversões, diferenças, contradições e silêncios são tão importantes para determinar ‘significado’ quanto aquilo que é coerente, unificado e explicitamente articulado” (GENTZLER, 2009, p.189).

Essa concomitância de gestos sem som, próprio à tradução, é o deslocamento do logos fonocentrado, tão importantes para as filosofias Platônica e Aristotélica, seguida pela de Rousseau, também pela antropologia de Levis-Strauss e mais profundamente para o fonocentrismo de Ferdinand de Saussure (DERRIDA, 2000). Dessa história da phoné nasce um mito da relação de primariedade. Pois, a voz seria, nesse aspecto, anterior a palavra, o texto vernáculo anterior à sua tradução e assim por diante. Entretanto, Derrida, com a sua leitura anistórica, dos locais da voz e da palavra, reestabelece um jogo de permutas. Isso para

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dizer outros nomes.

Derrida (2000), ao criar, a exemplar différance, com um gesto inaudível reescreve a palavra francesa différence3, nos propondo uma, digamos, tradução, da palavra diferencia ou diferença (tradução para o português da palavra – différence), de sua língua vernácula (no caso para o próprio francês), a fim de nos integrar com um problema de tradução, e o faz para demonstrar que ambas as palavras soam da mesma maneira em sua língua sem, no entanto, significarem a mesma coisa. Desse seu neologismo mudo, podemos tirar, que a ação da voz, dominando a criação de palavras, pode ser persuadida a uma reversão, visto que, o uso fonético, no caso citado, não orientou esta novidade, esta criação da qual o som, a voz não nos orienta e sim a sua grafia. Ou a sua rasura, a rasura de uma palavra antiga para uma nova, jamais escutada mas sempre lida. E,

“Esta rasura é a última escritura de uma época. Sob seus traços apaga-se, conservando-se legível, a presença de um significado transcendental. Apaga-se conApaga-servando legível, destrói-Apaga-se dando a ver a ideia mesma de signo. Enquanto de-limita a onto-teologia, a metafisica da presença e o logocentrismo, esta última escritura é também a primeira escritura. (DERRIDA, 2000, p. 29, grifo meu).

Pois, é necessário ver essa nova palavra, encontrar esse novo texto para que as diferenças possam ser estabelecidas, pois a pronúncia de qualquer uma delas (différence ou différance), não esclarece de qual estamos falando. Com esse exemplo, a anterioridade da fala em relação a palavra não pode ser vislumbrada. Como a anterioridade do a-ser-traduzido não deve ser uma prerrogativa para a sua originalidade uma vez que, “esta última escritura é também a primeira escritura”. A última escritura do texto de partida é a sua última tradução.

Além do mais, para a tradução, pode se enxergar um horizonte onde a diferença gráfica entre um texto e a sua tradução, no caso aqui apresentado, do francês para português, não sejam

33“Esta discreta intervenção gráfica (a em lugar de e) será significativa no decorrer de uma tradição fonocêntrica,

dominante desde épocas anteriores a Platão até os estudos linguísticos de Saussure; o a da différance propõe-se como um “marca muda”, se escreve ou se lê mas não se ouve. Este silêncio, funcionando unicamente no interior do sistema da escritura fonética, vem assinalar de maneira oportuna... que não existe escritura puramente e rigorosamente fonética.” (SANTIAGO, 1976, p. 22). Assim, “a différance não é nem um conceito, nem uma palavra, funciona como foco de cruzamento histórico e sistemático reunindo em feixe diferentes linhas de significado ou de forças, podendo sempre aliciar outras, constituindo uma rede cuja tessitura será impossível de interromper ou nela traçar uma margem, pois o que se põe em questão é a autoridade de um começo incontestável, de um ponto de partida absoluto, de uma responsabilidade de princípio.”. (SANTIAGO, 1976, p. 22).

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texto do qual traduz. O gesto mudo da tradução, mudo porque não se identifica com as mesmas palavras do texto de partida, por ser tradução, grafa a différance, isso quer dizer, uma outra maneira de falar, sem ser o mesmo e ainda assim, mesmo que pudesse soar da mesma maneira não desejaria narrar da mesma forma. A complexidade estabelecida por este ato silencioso esclarece ao mesmo tempo que omite. Jogo com o qual se faz tradução. Omitindo uma língua fazendo soar uma nova. E para mim essa reescritura do texto em francês é o que domina o meu trabalho assim, e por isso “não poderemos abstermo-nos aqui de atravessar um texto escrito, de nos regularmos no desregramento que nele se produz, e isso é, antes de mais, o que me interessa” (DERRIDA, 1991, p. 35).

1.4 Os Justos: criando uma tradução.

Por tudo já dito até aqui, quero demonstrar algumas das possibilidades de trânsito entre a teoria e a prática da tradução na peça Os Justos, o que esta abertura na teoria nos permite realizar. O tradutor responde, em suma, por escolhas e serão elas que exemplificarei a seguir.

Opção 1: DORA, olhando-o.

Você não é mais um mascate? Vejam só, é um grande senhor. Que bonito está. Não sente falta de suas roupas de camponês?

Opção 2: DORA, olhando-o.

Você não é mais um ambulante? Vejam só é um grande senhor. Que bonito está. Não sente falta de tua pele de cordeiro?

Independente do caminho que eu escolher, as opções elencadas no horizonte da tradução revelam-se, para mim, como alternativas estéticas mais do qualquer interesse em tornar o texto em português fiel ao francês. Se opto por mascate, acredito restringir uma compreensão mais imediata visando que o uso corrente da palavra mascate, no português brasileiro, não ser tão

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frequente quanto a segunda opção, ambulante. Se, ao contrário, traduzo por ambulante, encontro um termo que corresponda com o meu objetivo, pois, esse último, ter um alcance mais horizontal no uso comum da nossa língua. Ainda no mesmo diálogo, nos aparece algo com maior necessidade de intervenção, digamos assim, em ambos os trechos as possíveis traduções da palavra francesa touloupe, que quer dizer: casaco feito com a pele de cordeiro e comumente utilizado por camponeses. Nos trechos apontados acima, as possibilidades de tradução não podem “traduzir” a palavra francesa touloupe, por um item lexical que corresponda sinonimicamente aquilo ao qual a palavra tenta representar como significante do significado. De tal modo, dentro da ‘impossibilidade’ mesma de ‘traduzir’ o que resta, é justamente o trabalho de tradutor, a escolha. Na opção 1, há a descrição do que a palavra tenta exprimir, mas não a sua tradução sinonímica. Já na opção 2, o que acontece é um jogo de metafórico que a situação, o jogo cênico nos possibilita. A personagem Dora, deixa claro, no texto, uma mudança no comportamento, com a postura atual de “senhor”, com a sua beleza distinta de um estado anterior, e por isso, o questiona, também, sobre a sua antiga forma de vestir, sobre a “touloupe”. Mais adiante, Kaliayev, com quem Dora dialoga, explicita a felicidade desses novos trajes (do novo disfarce), mas, acima de tudo, de sua nova maneira de se comportar. Veja-se:

KALIAYEV, ri.

É verdade, eu estava muito confiante. (Voltando-se para Stepan e Annenkov.) Eu passei dois meses observando os ambulantes, mais de um mês praticando num quartinho. (Meus colegas jamais suspeitaram.) "Um sujeito famoso, disseram eles. Ele vendeu até mesmo os cabelos do Tzar." E então, tentaram me imitar.

No trecho acima, há uma surpresa na personagem Kaliayev, sobre seu próprio comportamento e ainda um rejubilar visto que, tentam imitá-lo, seu comportamento é insuspeito. E por isso, ao invés de traduzir pela opção 1, mais ‘lógica’ e tecnicamente ‘simples’, entretanto, quase por contradição, eu opto, por traduzir, ‘de forma mais literal’ a palavra francesa e, que, todavia, em português ganhou contornos de metáfora, provocando um afastamento da palavra francesa – Não sente falta de tua pele de cordeiro? Com esse exemplo, é possível demonstrar a impossibilidade teórica de uma “tradução equivalente” (RODRIGUES, 2000) de sentidos pois, o que fiz foi traduzir quase ‘literalmente’ a palavra francesa para o português obtendo, com isso, um recurso estilístico que funcionasse no contexto dos diálogos

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de maneira nada equivalente a “uma pele de cordeiro”, no sentido de vestuário camponês, “touloupe”. Por outro lado, e, ao mesmo tempo, essa possibilidade não se perderá, pois, revelarei ao leitor a opção do tradutor duplamente nomeada, no corpo da tradução e em uma nota do tradutor. Desencadeando, com isso, um jogo de omissão de significado e ampliação do sentido. Ou seja, a tradução, como diria Derrida (2000), causou uma rasura naquela palavra, mas não apagou-a. E, mais intimamente, quem poderá dizer que isso não é uma tradução? Posso usar esse exemplo, que para mim é uma clara utilização da différance, no sentido mesmo dela ser uma metáfora. Ser uma tradução por metáfora. Da tradução podendo dizer o que diz e ainda assim, sendo uma abertura para dizer além do que pronúncia. De tal modo, prossigo com mais um exemplo, a saber:

DORA

[...] Mas a morte dos sobrinhos do Grão-Duque não impedirá nenhuma criança de morrer de fome. Mesmo com a destruição, há uma ordem, limites.

STEPAN, violentamente.

Não há limites. A verdade é que vocês não acreditam na revolução [...].

KALIAYEV

Stepan, eu tenho vergonha de mim e, mesmo assim, eu não te deixarei continuar. Eu aceitei matar para acabar com o despotismo. Mas por trás do que você disse, eu vejo se anunciar um despotismo que, mesmo tendo êxito, jamais fará de mim um assassino, então que eu tente ser um justiceiro.

Já me referi, aqui, no subcapitulo sobre a obra e autor e em outros momentos, que toda obra de Camus é construída por ciclos de ideias. Essas reflexões do autor tomam contornos sob diversas formas, seja como romance, teatro ou ensaios filosóficos. Digo isso, pois, com os exemplos acima, desejo demonstrar como a construção dos diálogos de Les Justes recorrem a uma certa formulação silogística – tese, antítese, síntese/tese –; e por qual motivo isso pode ser relevante para a criação desta tradução. No exemplo acima, é possível melhor compreender o

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que digo, veja-se: “Mesmo com a destruição, há uma ordem, há limites.” O “limite” exposto na fala da personagem é a uma tese, sustentada com os argumentos presentes no diálogo, replicada imediatamente com a sua antítese, “não há limites” e logo depois uma terceira personagem encerra a síntese/tese, ser assassino mas com ressalvas, crendo na causa e indo ao encontro de ambas as falas e ao mesmo tempo refutando-as, “aceita matar... e jamais fará de mim um assassino”.

O autor, Camus, provoca com suas personagens diversas tensões para a construção do drama, do ato cênico e com as quais, por questões diversas nem sempre foi possível recorrer ao mesmo gesto dramático na tradução para o português e isso é, exatamente, o esperado. No entanto, em outros momentos, o mesmo jogo cênico fora provocado por opção do tradutor, isso, inclusive, quando a construção na língua francesa não o proporcionava. E para ser claro, demonstro:

ANNENKOV

Stepan, todo mundo aqui gosta de você e te respeita. Mas quaisquer que sejam tuas razões, eu não posso te deixar dizer que tudo é permitido. Centenas de nossos irmãos morreram para que possamos saber que nem tudo é permitido.

STEPAN Nada é proibido que sirva a nossa causa.

Se eu traduzisse do texto em francês, claro, para um português mais constante, teria traduzido por: “Nada que sirva a nossa causa é proibido”, afastando o “é proibido” do centro da tensão cênica. Impossibilitando que o par, “tudo é permitido versus nada é proibido”, pudessem imediatamente se confrontarem. Resolvi, com isso, por deliberação, continuar a tensão silogística que o texto e o jogo dramático pode proporcionar. Esses exemplos retirados de um longo diálogo sobre a justiça, o direito de matar e o que podem os homens sobre a terra para firmar suas ideologias se conclui, justamente, na primeira fala aqui exposta, a da personagem Dora, dado no primeiro exemplo, a saber, na íntegra,

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DORA

Yanek aceita matar o Grão-Duque, pois sua morte pode nos levar a um tempo em que as crianças russas não mais morram de fome. Isso já não é fácil. Mas a morte dos sobrinhos do Grão-Duque não impedirá nenhuma criança de morrer de fome. Mesmo com a destruição, há uma ordem, há limites.

Integrando com isso uma fluência que não é somente possível obter com a tradução textual. Mas, com a locação das palavras dentro de uma frase para construção do diálogo. Para depois disso, um novo diálogo, resultante destes, possa se iniciar, agora, sob um outro tema/ensaio da peça e das preocupações camusiana, a justiça.

Por tudo dito sobre essa peça e a sua tradução, itero que as ações das personagens camusianas são os sujeitos e os objetos da minha tradução. Seu texto, sua filosofia, seu ensaio poético, no sentido grego de poiesis, do fazer, inscreve no meu ato tradutório a ideia de tradução, como já dito mais acima, também como sujeito e objeto de um agir com a linguagem. De um deixar-me compreender para ser compreendido pela forma, pelo conteúdo e por um desejo de interação, jamais excludente. Um conjunto de ações que resultou no improvável, pois

As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se aqui particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade ou, pelo menos, o único testemunho de nossa realidade. Não há pensamento sem linguagem, nem tampouco objeto de conhecimento: a primeira coisa que o homem faz diante de uma realidade desconhecida é nomeá-la, batizá-la. Aquilo que ignoramos é o inominado. (PAZ, 1982, p.37).

Dito isso, apresento, aquilo que nomeei de Os Justos, o objeto-sujeito do meu trabalho. A realidade ainda desconhecida em nossa língua, da qual soube e fiz saber, sendo o testemunho das minhas escolhas ou ainda, uma tradução.

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2. LES JUSTES DE ALBERT CAMUS: UMA TRADUÇÃO COMENTADA.

2.1 Os Justos, peça em cinco atos.

Em fevereiro de 1905, em Moscou, um grupo de terroristas pertencentes ao partido socialista revolucionário, organizava um atentado a bomba contra o grão-duque Serge, tio do tzar. Este atentado e as circunstâncias que o precederam e se seguiram foram o objeto de Os Justos. Por mais extraordinárias que possam parecer, com efeito, algumas das situações desta peça, são, entretanto, históricas. Isso não quer dizer, veremos mais adiante, que Os Justos, seja uma peça histórica. Mas todas as personagens realmente existiram e se comportaram como eu as descrevi. Assim, para mim, restou a tarefa de tornar verossimilhante o que já era a verdade.

Eu mantive ao herói de Os Justos, kaliayev, o seu verdadeiro nome. E não o mantive por preguiça criativa, mas por respeito aos homens e mulheres que, na mais implacável das tarefas, não puderam aplacar seus corações. Fez-se progresso, é verdade, e o ódio que pesava sobre essas almas excepcionais como também um intolerável sofrimento se tornou um sistema confortável. Mais uma razão para levantar suas grandes sombras, sua justa revolta, sua fraternidade difícil, os esforços desmesurados que eles fizeram para entrarem em acordo com o assassinato – e por assim dizer onde reside nossa fidelidade.

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O love! O life! Not life but love in death ROMÉO ET JULIETTE Acte IV, Scène 5.

Os Justos foi apresentada pela primeira vez em 15 de dezembro de 1949, no Teatro Hébertot (dirigido por Jacques Hébertot), sob a direção de Paul Oettly, com cenografia e figurinos de De Rosnay.

ELENCO4

DORA BOULEBOV Maria Casarès

A GRÃ-DUQUESA Michèle Lahaye

IVAN KALIAYEV Serge Reggiani

STEPAN FEDOROV Michel Bouquet

BORIS ANNENKOV Yves Brainville

ALEXIS VOINOV Jean Pommier

SKOURATOV Paul Oettly

FOKA Moncorbier

O GUARDA Louis Perdoux

4 N. do T. Optei por manter os nomes tais quais encontrei no texto em francês. Também preferi não entrar nas

discussões sobre a tradução de mais de uma língua em um mesmo texto. A escolha mencionada se deu pela presença de nomes que remetem a fatos históricos e por isso, com intuito de reportar a tais fatos, mantive todos os nomes. Fatos esses, mencionados na apresentação desta peça feita por Albert Camus.

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PRIMEIRO ATO

Apartamento dos terroristas. Manhã. A cortina se levanta. Silêncio. Dora e Annekov estão na cena, imóveis. Escuta-se o som da campainha uma vez. Annekov faz um gesto para Dora esperar, ela parece querer falar algo. A campainha toca duas vezes sucessivamente.

ANNENKOV

É ele. Ele sai. Dora espera ainda imóvel. Annenkov retorna com Stepan com os seus braços envolto sobre seus ombros.

ANNENKOV

É ele! Aí está Stepan. Dora vai em direção a Stepan e toma-lhe a mão. Que alegria, Stepan!

STEPAN Bom dia, Dora.

DORA, ela olha-o. Três anos, já!

STEPAN

Sim, três anos. No dia em que eles me prenderam, eu estava indo te encontrar.

DORA

Nós estávamos esperando por você. O tempo passava e meu coração ficava cada vez mais apertado. Não tínhamos nem coragem para olharmos uns aos outros.

ANNEKOV Foi preciso mudar de apartamento, mais uma vez.

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STEPAN Eu sei. DORA E lá, Stepan? STEPAN Lá? DORA A prisão? STEPAN Temos que escapar dela.

ANNEKOV

Sim. Ficamos felizes quando descobrimos que você conseguiu chegar à Suíça.

ESTEPAN A Suíça é outra prisão, Boria.

ANNEKOV O que está dizendo? Eles são livres, ao menos.

STEPAN

A liberdade também é uma prisão enquanto um só homem estiver subjugado sobre a terra. Eu era livre e não parava de pensar na Rússia e em seus escravos. Silêncio.

ANNENKOV Eu estou feliz, Stepan, que o partido tenha te enviado pra cá.

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STEPAN

Foi preciso. Eu estava asfixiado. Ação, ação finalmente. Ele olha para Annekov. Mataremos ele, não é verdade?

ANNENKOV Estou certo quanto a isso.

STEPAN

Mataremos este carrasco. Você é o líder Boria, e eu te obedecerei.

ANNEKOV

Eu não preciso de tua promessa, Stepan. Somos todos irmãos.

STEPAN

Mas é necessário disciplina. Isso eu aprendi na prisão. O partido socialista revolucionário necessita de disciplina. Disciplinados, mataremos o Grão-Duque e derrubaremos a tirania.

DORA, indo até ele.

Sente-se, Stepan. Você deve estar cansado, após essa longa viagem.

STEPAN Jamais me canso. Silêncio. Dora se senta.

STEPAN Tudo está pronto, Boria?

ANNENKOV, mudando de tom.

Faz um mês que dois dos nossos estudam os movimentos do Grão-Duque. Dora está com todo material reunido.

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A proclamação está redigida?

ANNENKOV

Sim. Toda a Rússia saberá que o Grão-Duque Serge, foi executado por uma bomba lançada pelo grupo de combate do partido socialista revolucionário para acelerar a libertação do povo russo. A corte imperial saberá enfim que decidimos praticar o terror até que toda terra seja entregue ao povo. Sim, Stepan, sim, Tudo está pronto! O momento se aproxima.

STEPAN O que devo fazer?

ANNENKOV

Para começar, você ajudará Dora. Substituirá Schweitzer, que trabalhava com ela.

STEPAN Ele foi morto?

ANNEKOV Sim.

STEPAN Como?

DORA Um acidente. Stepan olha Dora. Ela desvia os olhos.

STEPAN E depois?

ANNEKOV

Depois, veremos. Você deve estar pronto a nos substituir, se for o caso, e manter a ligação com o Comitê Central.

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STEPAN Quem são nossos camaradas?

ANNEKOV

Você conheceu Voinov na Suíça. Confio nele, apesar de sua juventude. E Yanek que ainda não conhece.

STEPAN Yanek?

ANNENKOV Kaliayev. Nós o chamamos de o Poeta.

STEPAN Não é um bom nome para um terrorista.

ANNEKOV, risonho Yanek pensa o contrário. Ele diz que a poesia é revolucionária.

STEPAN

Somente a bomba é revolucionária. Silêncio. Dora, você acha que eu poderei te ajudar?

DORA

Claro. É preciso somente tomar cuidado ao manusear a bomba.

STEPAN E se acaso ele quebrar?

DORA

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STEPAN Eu sorri?

DORA Sim.

STEPAN

Isso me acontece às vezes. Um tempo. Stepan parece refletir. Dora, uma bomba somente seria suficiente para fazer lançar pelos ares esta casa?

DORA Uma só, não. Mas ela ficaria destruída.

STEPAN Quanto seria necessário para fazer voar Moscou?

ANNENKOV Você é louco! O que quer dizer?

STEPAN

Nada. A campainha toca uma vez. Eles escutam e esperam. A campainha soa mais duas vezes. Annenkov passa pela antessala e retorna com Voinov.

VOINOV Stepan!

STEPAN

Bom dia. Eles apertam as mãos. Voinov olha Dora e a abraça.

(33)

Tudo correu bem, Alexis?

VOINOV Sim.

ANNEKOV Você estudou com detalhes o trajeto do palácio ao teatro?

VOINOV

Eu posso até desenhá-lo. Olhe. Mostra o desenho. As rotas, as vias estreitas, os obstáculos... A carruagem passará embaixo das nossas janelas.

ANNENKOV O que significam estas duas cruzes?

VOINOV

Uma pequena praça onde os cavalos descansarão e o teatro onde eles irão parar. Para mim, são os melhores lugares. ANNENKOV Pronto! STEPAN E os guardas? VOINOV, Hesitante. Há muitos. STEPAN Eles te assustam?

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VOINOV Só não me sinto à vontade.

ANNENKOV Ninguém se sente bem diante deles. Não se incomode.

VOINOV Eu não receio nada. Só não me habituo a mentir, é só isso.

STEPAN Todo mundo mente. Mentir bem, isso é necessário.

VOINOV

Isto não é tão fácil. Quando eu era estudante meus camaradas zombavam de mim porque eu não sabia fingir. Eu dizia o que pensava. E finalmente, eu saí da Universidade.

STEPAN Por quê?

VOINOV

Durante o curso de história, o professor me perguntou como Pierre, o Grande, construiu São Petersburgo.

STEPAN Ótima questão.

VOINOV Com o sangue e o chicote, respondi. Me expulsaram.

STEPAN E depois…

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VOINOV

Eu compreendi que isso não era o suficiente para denunciar a injustiça. Era preciso dar a vida para combatê-la. Agora, eu me sinto feliz.

STEPAN E, entretanto, ainda mente?

VOINOV

Eu minto. Mas eu não mentirei mais no dia em que lançar a bomba. Toca a campainha. Dois toques, depois mais um. Dora se apressa.

ANNENKOV É Yanek.

STEPAN Não é o mesmo sinal.

ANNENKOV

Yanek se diverte em mudar. Ele tem seu sinal pessoal. Stepan dá de ombros. Ouve-se Dora falar na antessala. Entram Dora e Kaliayev, de braços dados, Kaliayev ri.

DORA Yanek. Aqui está Stepan que substituirá Schweitzer.

KALIAYEV Seja bem-vindo, irmão.

STEPAN

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ANNENKOV Yanek, você está seguro que pode reconhecer a carruagem?

KALIAYEV

Sim, eu a vi duas vezes, por algum tempo. Quando ela aparecer no horizonte eu a reconhecerei entre mil! Eu prestei atenção em todos os detalhes. Por exemplo, um dos vidros da lanterna esquerda está rachada.

VOINOV E os informantes?

KALIAYEV

Aos bandos. Mas nós somos velhos amigos. Eles me compram cigarros. Ele ri.

ANNENKOV Pavel, ele te confirmou a informação?

KALIAYEV

O Grão-Duque irá esta semana ao teatro. Em algum momento, Pavel saberá o dia exato e entregará uma mensagem ao porteiro. Ele se vira até Dora e ri. Estamos com sorte, Dora.

DORA, olhando-o.

Você não é mais um ambulante? Vejam só, é um grande senhor. Que bonito está. Não sente falta de tua pele de cordeiro5?

KALIAYEV, ri.

É verdade, eu era tão confiante. Voltando-se para Stepan e Annenkov. Eu passei dois meses observando os ambulantes, mais de um mês praticando num quartinho. Meus colegas jamais suspeitaram. "Um sujeito famoso, diziam. Ele vendeu até mesmo os cavalos do Tzar". E por isso tentaram me imitar.

5 N. do T. Diante da inexistência de um item lexical para traduzir a palavra francesa “touloupe” – vestimenta feita

de pele de cordeiro e comumente utilizada por camponeses –, optei por me aproveitar do jogo de cena e transformar a peça do vestuário numa metáfora – não sente falta de tua pele de cordeiro? Assim, essa opção, ainda que não explicite se tratar de uma peça de roupa, ao menos, esclarece toda mudança no comportamento da personagem.

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DORA. Naturalmente, você ria.

KALIAYEV

Você bem sabe que eu não posso me conter diante disso. Esse disfarce, essa nova vida... Tudo me divertia.

DORA

Eu, eu não gosto dos disfarces. Ela mostra seu vestido. Ainda mais, essa antiguidade luxuosa!6 Boria poderia encontrar outra coisa para mim. Uma atriz! Meu coração é simples.

KALIAYEV ri. Você fica tão bonita com este vestido.

DORA

Bonita! Ficaria contente de estar. Mas o que importa pensar sobre isso.

KALIAYEV

Por quê? Teus olhos estão sempre tristes, Dora. Eles precisam estar alegres, orgulhosos. A beleza existe, a alegria existe! "Nos lugares tranquilos onde meu coração te desejava...”

DORA Sorrindo. Eu respirava um eterno verão ..."

KALIAYEV

Oh! Dora, você se recorda destes versos. Você sorriu? Como fico feliz...

6 N. do T. No texto em francês encontramos “Et puis, cette défroque luxueuse!”. Optamos por omitir a palavra

“défroque” que significa entre outras coisas: “vestimenta antiga, fora de moda, usada em momentos especiais, inclusive religiosos, ou ainda, “conjunto de antiguidades” (sempre, no sentido de algo antigo e formal, não ocasional). Resolvi omitir a palavra em favor do gesto cênico, pois a personagem “mostra o seu vestido”, fazendo a ele alusão com a frase que segue.

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STEPAN Interrompendo-o.

Estamos perdendo tempo. Boria, eu suponho que seja necessário avisar ao porteiro? Kaliayev olha-o com espanto.

ANNENKOV

Sim. Dora, você quer descer? Não esqueça a gorjeta. Voinov te ajudará depois a reunir o material no quarto. Eles saem cada um para um lado. Stepan anda até Annenkov com um passo vacilante.

STEPAN Eu quero lançar a bomba.

ANNENKOV Não, Stepan. Os lançadores já foram escolhidos.

STEPAN Eu te imploro. Você sabe o que isso significa para mim.

ANNENKOV

Não. A regra é a regra. Um silêncio. Eu não lanço e vou esperar aqui. A regra é dura.

STEPAN Quem lançará a primeira bomba?

KALIAYEV Eu. Voinov lançará a segunda.

STEPAN Você?

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Isto te surpreende? Você não confia em mim!

STEPAN É preciso experiência.

KALIAYEV

Experiência? Você sabe muito bem que nós não lançaremos mais de uma vez, pois, depois... Pessoa nenhuma jamais lançou duas vezes.

STEPAN É preciso ter uma mão firme.

KALIAYEV, Mostrando sua mão. Olhe. Você acredita que ela tremerá? Stepan se vira.

KALIAYEV

Ela não tremerá. Se eu tiver o tirano diante de mim hesitarei? Como você pode crer nisso? E mesmo se meus braços tremerem, eu sei um meio de matar o Grão-Duque com um golpe certeiro.

ANNENKOV Qual?

KALIAYEV

Atirar-se sob os pés dos cavalos. Stepan dá de ombros e vai sentar ao fundo.

ANNENKOV

Não, isso não é necessário. Terá que tentar fugir. A Organização precisa de você, deve se salvar.

KALIAYEV

(40)

ANNENKOV

Stepan, você ficará na rua, enquanto Yanek e Alexis vigiam a carruagem. Você passará regularmente diante das nossas janelas e então daremos um sinal na hora exata. Dora e eu ficaremos aqui no momento de lançar a proclamação. Se tivermos um pouco de sorte o Grão-Duque será morto.

KALIAYEV Exaltado.

Sim, eu o matarei! Se tudo der certo, será um grande momento! O Grão-Duque não é nada. É necessário atacar ainda mais acima!

ANNENKOV Primeiro o Grão-Duque.

KALIAYEV

E se for um fracasso, Boria? Seria necessário imitar os japoneses.

ANNENKOV O que quer dizer?

KALIAYEV

Durante a guerra os japoneses não se rendiam. Eles se suicidavam.

ANNENKOV Não. Não pense em suicídio.

KALIAYEV No que devo pensar então?

ANNENKOV No terror, novamente.

(41)

STEPAN, falando ao fundo.

Para se suicidar é necessário muito amor próprio. Um verdadeiro revolucionário não pode ter tanto amor a si mesmo.

KALIAYEV se vira vivamente.

Um verdadeiro revolucionário? Por qual motivo me trata assim? O que eu te fiz?

STEPAN

Eu não gosto daqueles que entram na revolução porque estão entediados.

ANNENKOV Stepan!

STEPAN se levanta e vai até eles.

Sim, eu sou cruel. Mas para mim, o ódio não é um jogo. Nós não estamos aqui para nos admirarmos. Estamos aqui para termos êxito.

KALIAYEV, suavemente. Por que você me ofende? Quem te disse que estou entediado?

STEPAN

Eu não sei. Você muda os sinais, adora fazer o papel de ambulante, você diz versos, quer se lançar aos pés dos cavalos, e agora, o suicídio... Ele o olha. Eu não confio em você.

KALIAYEV se contendo.

Você não me conhece, irmão. Eu amo a vida e não estou entediado. Eu entrei para a revolução porque amo a vida.

STEPAN Eu não amo a vida, mas a justiça que está acima da vida.

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Cada um serve a justiça como pode. É preciso aceitar que nós somos diferentes. É necessário nos amar, se pudermos.

STEPAN Não podemos.

KALIAYEV gritando. Então, o que você faz entre nós?

STEPAN

Eu vim para matar um homem, não para amar ou para saudar a diferença.

KALIAYEV, violentamente.

Você não matará sozinho ou em nome de coisa alguma. Você o matará conosco e em nome do povo russo. Esta é tua justificação7.

STEPAN, com o mesmo tom.

Eu não tenho necessidade da nada disso. Eu fui justificado em uma noite e para sempre, faz três anos, nos campos de trabalhos forçados. E não suportarei...

ANNENKOV

Basta! Então, enlouqueceram? Vocês ao menos se lembram de quem nós somos? Irmãos, se unam, voltem-se para a execução do tirano, para a libertação do nosso país! Mataremos unidos, e nada pode nos separar. Silêncio. Ele os olha. Venha, Stepan, devemos acertar os sinais... Stepan Sai.

ANNENKOV, à Kaliayev. Não é nada. Stepan tem sofrido. Eu falarei com ele.

7 N. do T. A palavra “justificação” é mencionada no texto em francês por, “justification”, ao menos três vezes. É

preciso perceber que não se trata de uma “justificativa” pois, na peça, há uma relação das ações do homem com o conceito de “justiça” e mais, de justiça divina. Assim, a palavra faz referência ao conceito teológico da condição do homem perante a Deus e ao dia em que a sua justiça será feita. Mais adiante, a personagem Dora se referirá “ao dia da justificação”. Ação de fazer justiça. Que na peça, Os Justos, ganhará outros contornos.

(43)

KALIAYEV muito pálido. Ele me ofendeu, Boria. Entra Dora.

DORA, percebendo Kaliayev. O que aconteceu aqui?

ANNENKOV Nada. Ele sai.

DORA, à Kaliayev. O que aconteceu aqui?

KALIAYEV

Nós nos desentendemos, há pouco. Ele não gosta de mim. Dora vai se sentar, em silêncio. Um tempo.

DORA

Eu acho que ele não ama ninguém. Quando tudo estiver terminado, ele estará mais feliz. Não fique triste.

KALIAYEV

Sinto-me entristecido. Tenho necessidade de ser amado por todos vocês. Deixei tudo pela Organização. Como suportar que meus irmãos se afastem de mim? Às vezes, tenho a impressão que eles não me compreendem. É minha culpa? Eu sou esquisito, eu sei...

DORA Eles te amam e te compreendem. Stepan é diferente.

KALIAYEV

Eu sei o que ele pensa. Schweitzer já dizia: “Demais extraordinário para ser revolucionário”. Eu gostaria de lhe explicar que eu não sou extraordinário. Eles me acham um pouco louco, espontâneo em excesso. Ainda assim, eu acredito como eles, na ideia. Como eles, eu quero me sacrificar. Eu também posso ser hábil, taciturno, dissimulado, eficaz. Só que a vida continua a

Referências

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