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Compromisso, liberdade e conscientização: a libertação no pensamento de Paulo Freire

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

INSTITUTO DE FILOSOFIA – IFILO

ALÁDIO BRUNO NETO

COMPROMISSO, LIBERDADE E CONSCIENTIZAÇÃO: A LIBERTAÇÃO NO PENSAMENTO DE PAULO FREIRE

UBERLÂNDIA 2020

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ALÁDIO BRUNO NETO

COMPROMISSO, LIBERDADE E CONSCIENTIZAÇÃO: A LIBERTAÇÃO NO PENSAMENTO DE PAULO FREIRE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Filosofia pelo Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia, sob orientação do Prof. Dr. Rafael Cordeiro Silva

UBERLÂNDIA OUTUBRO DE 2020

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ALÁDIO BRUNO NETO

Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado pela banca abaixo discriminada

BANCA EXAMINADORA:

________________________________ Prof. Dr. Rafael Cordeiro Silva

Orientador (UFU)

_________________________________ Prof. Dr. José Benedito de Almeida Júnior

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AGRADECIMENTOS

Quero agradecer primeiramente à família que me acolheu fraternalmente quando, por dificuldades várias e somadas a crises depressivas, resolvi sair de casa. Obrigado família: dona Bete, Sara, Jheniffer, sêo Renato, Gabriel e Fernando, pelo acolhimento, pelas palavras, pela paciência, pelo carinho!

Agradeço também às minhas queridas irmãs, Francielle e Ladiane, verdadeiros anjos de guarda encarnados na Terra. Obrigado pelo apoio nessa caminhada de estudos, obrigado por se colocarem a disposição de me ajudar financeiramente quando os recursos me faltaram!

Agradeço ainda, e de maneira muito especial, a Onira Lustosa, pessoa magnífica que surgiu como um raio de luz na minha vida, puxou minha orelha (no bom sentido), incentivou-me, cativou-me, convenceu-me e me deu forças para finalizar o curso de filosofia. Muito obrigado, Onira, por existir em minha vida como fonte de inspiração!

Por fim, mas não menos importante, quero agradecer de coração ao meu Orientador – Prof. Dr. Rafael Cordeiro Silva – pelo apoio, pela dedicação, pelos apontamentos textuais, teóricos e acadêmicos, pela atenção! Muito obrigado professor, por tudo, mas muito obrigado mesmo pela amizade e pela paciência após o momento conturbado pelo qual passei!

Enfim, meu muito obrigado a todos, pois sem vocês creio que não seria possível concluir esta etapa da minha caminhada!

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho às minhas irmãs, Francielle e Ladiane. Mas, dedico também aos meus muitos irmãos e irmãs anônimos do mundo inteiro cuja humanidade encontra-se distorcida pela lógica recrudescedora que norteia os afazeres no atual momento histórico que vivemos. Dedico este trabalho especialmente a Onira Lustosa, essa pessoa batalhadora, com quem muito aprendi nos últimos meses.

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RESUMO

Intenta-se, na presente reflexão, abordar alguns aspectos da liberdade no pensamento de Paulo Freire. Num primeiro momento do texto, procura-se justificar e enquadrar Paulo Freire no rol de filósofos para na sequência abordarmos, no seu pensamento, alguns conceitos capitais como por exemplo: compromisso, liberdade, libertação e conscientização. Para Freire a liberdade não está dada para uns e retirada de outros, ela é algo que não-é-ainda, encontra-se como possibilidade a ser conquistada. Liberdade não se doa, se conquista através da libertação comunitária e comprometida de uns para com os outros. Para Freire liberdade é libertação, uma busca permanente, ato responsável que não admite aquele fazer o que quiser, onde quiser e quando quiser de maneira irresponsável. A liberdade não é algo atemporal, fora do tempo, mas sim libertação concreta, histórica, feita por pessoas inacabadas que se sabem inacabadas. Destarte, para que a libertação se estabeleça entre as pessoas, Freire desenvolve o conceito de comprometimento entre os seres humanos. Somente os seres humanos podem se comprometer, pois, possuidores de consciência, percebem o mundo a sua volta, e possuidores de autoconsciência percebem, além do mundo a sua volta, o outro ser humano, e também se reconhecem como seres inacabados que almejam ser mais do que aquilo que estão sendo; são capazes de pensar a si mesmos e de pensar o outro; ao fazerem isso, constatam que são seres de possibilidades, eles podem decidir entre isso e o melhor do que isso, são livres. É nessa escolha, por fazer o melhor, em ser mais, que se encontra a responsabilidade humana: a capacidade de comprometer-se com sua libertação e com a libertação dos outros através da solidariedade, o autêntico comprometer-se.

Palavras-chave: Paulo Freire. Compromisso. Conscientização. Liberdade. Libertação. Oprimido. Opressor. Ser mais. Ser Inacabado.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...08

1 – PAULO FREIRE E A FILOSOFIA...10

2 – FONTES FILOSÓFICAS DE PAULO FREIRE: HEGEL E MARX...15

3 – DETERMINISMO E CONDICIONAMENTO...22

4 – OPRESSOR/OPRIMIDO, SER MAIS/SER MENOS, CONSCIENTIZAÇÃO....24

5 – COMPROMISSO E LIBERTAÇÃO...29

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo, por um lado, ressaltar o teor filosófico do pensamento de Paulo Freire e, por outro lado, deslindar a tessitura de alguns conceitos – a saber, opressor, oprimido, ser mais, ser menos, compromisso, liberdade – os quais estão imbricados um no outro, sendo o conceito de libertação o eixo em torno do qual gravitam os demais conceitos.

O texto pode ser dividido em dois grandes momentos. Num primeiro momento, estabelecemos algumas digressões acerca do estatuto filosófico de Paulo Freire, buscando enquadrá-lo, não só na linhagem de grandes filósofos como Hegel e Marx, mas também como autêntico filósofo do terceiro mundo, cuja reflexão transgrediu as barreiras do momento histórico em que foi elaborada e hoje se faz tão atual e necessária como naqueles dias.

Nesse primeiro momento encontram-se as seções um e dois. Na seção um discutimos a atitude mais característica do filosofar, a saber, o questionamento, a problematização e buscamos também desvelar Freire das mistificações que se acumularam à sua volta, oriundas da ingenuidade do senso comum e da má-fé e falta de rigor do pensamento conservador. Na seção dois buscamos resgatar algumas fontes filosóficas de que Freire se nutriu. Nessa seção buscamos demarcar a postura dialética de Freire de aproximação e distanciamento dos filósofos dos quais se nutre, a saber, Hegel e Marx. Apesar dessa seção ter um foco na influência de Hegel e Marx e sua interpretação no decorrer da história, não deixamos de pontuar a influência da Fenomenologia e do Existencialismo sobre Freire.

Esse foi o primeiro momento do nosso trabalho. No segundo momento – que compreende as seções três, quatro e cinco – buscamos esclarecer mais de perto alguns conceitos importantes para nossa argumentação.

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Na seção três discutimos os conceitos determinismo e condicionamento, visando entender os seres humanos como seres condicionados pelo contexto histórico, mas não determinados. Para Freire os seres humanos estão inseridos na história como seres de possibilidades e a história é um tempo prenhe de possibilidades. E é nessa inserção de possibilidades que o ser humano pode, de um lado, se desumanizar pela prática de dominação de uns pelos outros, ou, por outro lado, pode se humanizar através do compromisso e da assunção da vocação ontológica de ser mais.

Na seção quatro discutimos os conceitos opressor, oprimido, ser mais, ser menos e conscientização. Para entendermos melhor esses conceitos nos valemos das influências de Hegel e Marx. Em Freire, os conceitos opressor/oprimido possuem duas dimensões, uma subjetiva – inspirada em Hegel – e outra social – inspirada em Marx. É a partir da elaboração desses dois conceitos de Freire que buscamos esclarecer seus outros dois conceitos, a saber, ser mais/ser menos e a relação com o processo de conscientização e libertação.

Na quinta e última seção trabalhamos os conceitos compromisso e libertação. Nessa seção buscamos explicitar a centralidade da libertação no pensamento freiriano. Se por um lado temos a libertação como eixo central, por outro lado temos a assunção do compromisso como motor e combustível para a real efetivação da libertação. Vale ressaltar que no interior desse compromisso – se autêntico – encontram-se outros conceitos de grande importância tais como, entre outros, a conscientização – ação-reflexão como dualidade dialética da práxis libertadora.

Retomar o pensamento de Paulo Freire tornou-se, mais do que nunca, uma necessidade premente, tendo em vista a assunção de concepções político educacionais conservadoras, que deram à luz uma interpretação distorcida e inverossímel do seu pensamento. Contra essa tendência, queremos mostrar a relevância de suas ideias.

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1 – PAULO FREIRE E A FILOSOFIA

Duas questões abrem nossas reflexões: de um lado ‘Paulo Freire1 é filósofo?’ Contudo, antes de enfrentarmos essa questão, impõe-se, por outro lado, algo bastante clássico e espinhoso: ‘O que é filosofia?’ Começaremos por este segundo questionamento.

O que é filosofia? É a contemplação das Ideias (Platão)? O conhecimento do ser enquanto tal (Aristóteles)? É a condução do pensamento, de maneira clara e segura, em direção à verdade (Descartes)? É a criação de conceitos (Deleuze)? O que, afinal, é a filosofia? Diante desses questionamentos percebemos que a definição de filosofia depende da perspectiva filosófica, de qual autor nós partimos, pois cada um, a sua maneira, nos dá uma definição. Assim, pois, fica claro que sempre partiremos de uma perspectiva já dada e nesse sentido perceberemos outro aspecto do problema que diz respeito à arbitrariedade da nossa escolha ao privilegiar um autor e não outro. Dessa maneira, sem querer privilegiar esse ou aquele autor, preferimos contornar essa questão tomando um outro caminho. E esse novo caminho consiste em observar a característica própria do ato de filosofar, da qual todos os filósofos se utilizaram, antes de eles elaborarem as suas concepções, a saber, a dúvida, o questionamento.

Schopenhauer nos fala de duas atitudes características do ato filosófico:

[...] primeiro, que se tenha a coragem de não reter nenhuma pergunta no coração e, segundo, que tudo aquilo que se toma por evidente,

1 Paulo Reglus Neves Freire nasceu em Recife, em 19 de setembro de 1921 e faleceu em São Paulo, em

2 de maio de 1997. Casou-se com Elza Maria Costa de Oliveira em 1944 e juntos tiveram cinco filhos: três meninas e dois meninos. Após o falecimento de Elza casou-se, em 1988, com Ana Maria Araújo. Paulo Freie cursou a escola primária em Jaboatão e completou os estudos secundários no Colégio Oswaldo Cruz, em Recife. Ingressou na Faculdade de Direito (Universidade do Recife) em 1943 e diplomou-se em 1946. Freire não chegou a exercer a advocacia preferindo dedicar-se a profissão de professor. Após o golpe de 64, Freire foi preso por 70 dias acusado como traidor da nação e depois foi exilado. No exílio passou por vários países: Bolívia, Chile, EUA, Suíça, Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau, entre outros. Muitos de seus livros foram traduzidos para vários idiomas. Sua obra mais conhecida, Pedagogia do Oprimido, por exemplo, já foi traduzida para mais de 20 idiomas. (Cf. GADOTTI, Moacir. Paulo Freire: uma biobibliografia. São Paulo: Cortez, 1996).

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seja trazido à clara consciência, para que se o considere como problema. 2

Vê-se, então, que a primeira atitude é a coragem do questionamento, é não silenciar e sim expor, exteriorizar a pergunta. E a segunda atitude é questionar, é problematizar até mesmo as coisas mais evidentes. É não deixar o pensamento medrar para o senso comum3. E se há um “senso comum filosófico”4, esse deve ser

problematizado. Será que é possível encontrar algum filósofo ou filósofa que tenha guardado para si algum questionamento? Que não tenha problematizado os conhecimentos, aparentemente, mais evidentes? Pelo que a história da filosofia nos indica, os grandes nomes da filosofia foram pessoas que tiveram a coragem de questionar o seu tempo, e até mesmo as suas próprias ideias. A atitude própria de alguém que se dedica à filosofia é uma atitude irrequieta diante do mundo, um desconforto com as respostas já dadas, é a suspeita diante do conforto e da segurança dos saberes instituídos. Estar numa postura filosófica é estar no mínimo sob o signo da crítica. Questionar, problematizar tudo, inclusive a si mesmo, pois aquele que não se permite criticar as próprias ideias e crenças torna-se delas um mero escravo.

Colocada assim a questão da atitude filosófica, tracemos agora algumas considerações sobre os diferentes pontos de vista acerca daquela primeira questão: ‘Paulo Freire é filósofo?’

A título de exposição didática, para a compreensão geral, podemos descrever uma espécie de tipologia da noção de quem é Paulo Freire em dois grandes grupos

2 Schopenhauer apud SANTOS, Robinson dos; ROSIN, Nilva (orgs). Filosofia e Política em Franz Rosenzweig. Passo Fundo: IFIBE. 2010, p. 125.

3 No verbete ‘senso comum’ do dicionário Houaiss encontramos, entre outras significações, essa que

nos atende: “Conjunto de opiniões, ideias e concepções que, prevalecendo em um determinado contexto social, se impõe como naturais e necessárias; consenso.” (HOUAISS; VILLAR, 2009).

4 A expressão “senso comum filosófico” é de Robinson dos Santos: “As duas exigências postuladas por

Schopenhauer valem como condições de possibilidade para a passagem do senso comum à consciência filosófica. Elas são válidas certamente para que se ultrapasse também o próprio ‘senso comum filosófico’, isto é, aquilo que é tomado como obviedade, aceito por todos os que fazem parte deste meio [filosófico]." (SANTOS, ROSIN [orgs], 2010, p. 126).

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principais. Não temos a pretensão de esgotar o assunto, mas traçar, no mínimo, um norte para nossas reflexões.

O primeiro grupo denominaremos senso comum. Para o senso comum, Paulo Freire foi um professor, um pedagogo, alguém com ideias inovadoras sobre a educação.

O segundo grupo pode ser denominado pensamento conservador. Para os conservadores, Freire é apenas mais um ideólogo marxista, um doutrinador comunista que tenta corromper as crianças, os jovens e os adultos com sua pedagogia. Dessa maneira, todo o discurso vindo da ala conservadora e referente a Freire é feito num sentido pejorativo e muitas vezes, para não dizer sempre, elaborado de modo mistificado e mistificador, raso e sem embasamento lógico-teórico. Raro poucas exceções, assenta-se em visões pouco elaboradas acerca dos problemas com os quais Freire se deparou e de onde partiu toda sua reflexão.

Destarte, nem um nem outro grupo consegue alcançar a profundidade teórica e filosófica de Freire – o primeiro grupo por ausência reflexiva típica do senso comum, o segundo por deficiência lógico-teórica. Para alcançá-la é preciso colocar-se em perspectiva e atitude filosófica. Para a filosofia se manter como atividade essencialmente viva e dinâmica – e não resvalar e decair naquilo que acima foi chamado de “senso comum filosófico” – deve-se adotar uma postura problematizadora, na qual a passividade de um possível consenso é posta de lado e no seu lugar adota-se um estado irrequieto e desconfortável, desnudo de qualquer saber prévio5. Doutro modo, se assim não for, se a problematização filosófica se fechar em respostas já dadas, buscando sempre a segurança e o conforto, ela tende a se tornar qualquer coisa, menos filosofia.

5 “Neste sentido, é prioridade filosófica a pergunta em lugar da resposta, a dúvida antes do que a

conclusão, enfim é preferível o estado irrequieto e desconfortável de não-posse do saber ao conforto e segurança proporcionados pelo estado de posse do mesmo.” (SANTOS, ROSIN [orgs], 2010, p. 127).

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Paulo Freire é o típico filósofo irrequieto, crítico, problematizador. Em sua obra de maior relevo e alcance mundial, Pedagogia do Oprimido, no capítulo em que elenca as diferenças entre a educação conservadora, “bancária” – cujo propósito é apenas depositar informações na cabeça dos educandos – e a educação crítico-humanizadora – que visa à conscientização, humanização e libertação dos educandos – ele nos diz que o ato de problematizar, a problematização é:

[...] uma atitude inerente à ‘essência do ser da consciência’, como condição ontológica que torna possível a ação intencional do sujeito e o leva a se posicionar de maneira ativa diante dos objetos e dos acontecimentos do mundo. Ou seja, o termo “problematização” tem, pelo menos, dois sentidos importantes: um epistemológico e outro antropológico, ou ontológico. 6

Assim, para Freire, a problematização, ao proporcionar a instauração do ser no mundo, um ser que tem consciência de si mesmo, dos outros e do mundo – sendo essa consciência a dimensão ontológica – também instaura o ser capaz de conhecer, aprender, transformar – sendo essa a dimensão gnosiológica/epistemológica. E é nessa dimensão gnosiológica da problematização que a consciência se abre para a relação dialógica e humanizadora. Para Freire, o objeto cognoscível não é o fim do ato cognoscente, mas é mediatizador entre os sujeitos cognoscentes. Em síntese, Freire assim nos fala: “uma das condições a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas.” 7 Sendo que “pensar certo” é um conceito freiriano com o mesmo

sentido de pensamento crítico e/ou dialético. Ou seja, um pensamento filosófico, sempre em movimento, dialético, dialógico, progressista, nunca estagnado em certezas, nem nunca de posse da verdade absolutizada dos conservadores, para os quais a verdade do mundo já está pronta e acabada. Dessa maneira, consciente ou

6 STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (orgs). Dicionário Paulo Freire. 2.

ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010, p. 328. Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 47. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, p. 77, 78.

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inconscientemente, Freire se coloca, se institui, se gesta na árvore genealógica da filosofia.

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2 – FONTES FILOSÓFICAS DE PAULO FREIRE: HEGEL E MARX

Mas, se Freire é filósofo em que tradição filosófica ele está inserido? Qual escola filosófica ele segue? Essas são perguntas corriqueiras para as quais a resposta que se apresenta é: Paulo Freire é marxista. Uma resposta bem apressada, mas não sem razão, visto que Freire utiliza bastante a terminologia marxista nas suas análises da sociedade. Vejamos o que o próprio Paulo Freire nos diz como resposta a uma entrevista concedia ao professor de filosofia Admardo Serafim de Oliveira sobre sua relação com o marxismo:

Essa é uma questão que de vez em quando e de maneira diferente me é posta. Afinal, sou ou não marxista? E minha resposta às vezes cria surpresas, e me chamam, então, de contraditório, o que afinal é também um direito que tenho. A minha resposta é a seguinte: confesso que o método de análise marxista até hoje é, de fato, o que melhor me satisfaz para eu poder compreender a dinâmica da realidade, sobretudo da nossa realidade. Além disso eu tenho uma profunda admiração pelo recado que encontro em Marx. Não por algumas tentativas impostas em prática desse recado.8

Nesta resposta, podemos perceber que a relação de Freire com Marx é uma relação dialética (contraditória), ou seja, há uma aproximação e ao mesmo tempo um distanciamento. A parte final do texto acima é bem explícita acerca da separação que Freire faz entre a filosofia de Marx e as ideologias marxistas ortodoxas e autoritárias, que tentam impor a todo custo o “recado” de Marx em prática. Aqui Freire entra na discussão entre marxistas ortodoxos de um lado – que tendem a interpretar o materialismo histórico com uma dialética muito rígida e praticamente mecanicista e fatalista – e do outro lado os marxistas heterodoxos – cuja interpretação do materialismo histórico é bastante dialética (chegando às vezes a serem rotulados pelos ortodoxos como marxistas hegelianizados). Assim, podemos dizer que Freire se

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encontra na ala heterodoxa e por isso é rotulado pelos ortodoxos de “contraditório”. Se Marx, ao seguir a dialética hegeliana, trabalha as contradições (tese e antítese) e na sequência apresenta uma síntese, Freire não adere à síntese das contradições.

Freire mostrou em seu trabalho que, embora aceitasse algumas premissas lógicas da dialética de Hegel, não poderia aceitar a noção de que a reconciliação ou a superação das contradições fosse um processo lógico. Nem poderia aceitar a noção hegeliana de que, após um período de estranhamento, surgisse um de reconciliação e síntese.9

Neste ponto podemos perceber a presença da Teoria Crítica em Freire. Muito se aproxima ele da concepção de dialética proposta por Adorno. Segundo o pensador frankfurtiano, a dialética – que ele posteriormente chamou dialética negativa – diferentemente de Hegel, não tem uma síntese. Na mesma esteira da Teoria Crítica, uma das fontes primárias do contato de Paulo Freire com o materialismo dialético, segundo Torres10, é o pensamento de Herbert Marcuse e Erich Fromm.

A influência de Marcuse aparece em Freire em suas análises sobre a razão negativa nas sociedades industrializadas e na análise do fenômeno da massificação. Fromm, em suas análises sobre a coisificação e a liberdade psicológica [...]11

Dessa influência, muito nítida de Marx em Freire, torna-se inevitável não perceber a influência de Hegel, visto que a filosofia de Marx é, em grande parte, influenciada por Hegel, a partir da dialética do senhor e do servo. Wohlfart, em obra densa, pelo conteúdo tratado, nos diz que: “[...] a mais intensa e ampla fundamentação de Pedagogia do Oprimido é a filosofia hegeliana [...]”12. Torres nessa mesma linha de

análise nos diz que: “Uma influência central no pensamento freiriano é a do filósofo

9 TORRES, Carlos Alberto. Pedagogia da luta. Campinas: Papirus, 1997, p. 33. 10 TORRES, 1997, p. 186.

11 TORRES, 1997, p. 187.

12 WOHLFART, João Alberto. Fundamentos dialéticos da Pedagogia do Oprimido. Passo Fundo:

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alemão G.W.F. Hegel”13. Desta maneira, fica explícita a relação entre os conceitos

senhor/servo em Hegel e opressor/oprimido14 em Freire, que reelaborando esses conceitos cria o par ser mais/ser menos15. Hegel, na sua obra Fenomenologia do Espírito, elabora “uma teoria filosófica da intersubjetividade e do reconhecimento”, em que o conjunto das proposições se tornaram não só uma confrontação ao subjetivismo solipsista, mas também uma crítica à lógica da dominação. Quando Freire, ao apontar que, na atual estrutura de dominação e alienação da subjetividade, os oprimidos trazem, interiorizados em si a consciência do opressor, essa é uma crítica diretamente inspirada em Hegel.16 Desse modo, um dos grandes desafios da filosofia freiriana, como prognóstico para acabar com a realidade da dominação é

[...] desfazer a consciência opressora interiorizada pelo oprimido para, numa segunda instância, edificar uma consciência de liberdade numa nova concepção de mundo e numa nova subjetividade/ intersubjetividade coletiva não manipulada pelo sistema capitalista.17

Hegel e Marx. Limitamo-nos a essas duas referências filosóficas na obra de Paulo Freire, visto que não é o propósito deste trabalho esmiuçar, apontar e analisar detidamente, até as últimas consequências, as várias influências filosóficas sobre o autor e também nos sentimos sem a devida bagagem teórica para tal empreitada. Ademais, Adorno, Marcuse e Fromm também beberam em águas hegeliano-marxistas, ressaltando-se, entretanto, o distinto contexto econômico-social de suas publicações em relação a Marx e Hegel. Contudo, cientes da intrincada amálgama filosófica – além

13 TORRES, 1997, p. 14.

14 No desenvolvimento do texto abordaremos esses conceitos.

15 Freire nos diz que “[...] o ser humano está em permanente procura, aventurando-se curiosamente no

conhecimento de si mesmo e do mundo, além de lutar pela afirmação/conquista de sua liberdade. Essa busca de ser mais, de humanização do mundo, revela que a natureza humana é programada para ser mais, mas não determinada por estruturas ou princípios inatos.” (STRECK; REDIN; ZITKOSKI. 2010. p. 369)

16 WOHLFART, 2013, p. 8. 17 WOHLFART, 2013, p. 142, 143.

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dos supracitados – que compõe o pensamento de Freire, citemos outras duas influências, a saber, o existencialismo e a fenomenologia. A seguir, passamos por uma descrição bem resumida, seguindo o breve estudo que Torres desenvolveu.

Existencialismo (o homem como ser em construção)18. Para a filosofia existencialista o ser humano ou o existente (Dasein) é um ser-no-mundo cuja estrutura fundamental é a temporalidade, e nessa temporalidade identificam-se três momentos principais. O primeiro é o ser/existente que se projeta no mundo como capacidade de antecipação do futuro e de transformação do futuro, menos da sua condição de ser-para-a-morte. O segundo momento do existente é a dependência do seu passado, ou seja, daquilo que não é possível modificar, transformar. Nessa tensão entre o primeiro momento e o segundo surge a imperiosidade de estar no aqui e agora do presente das coisas. Assumir-se como ser-no-mundo, ser inacabado que olha para o passado e para o futuro contudo seu agir está no presente. Como ser diante das coisas, o humano é um no-mundo, contudo sua percepção dos outros seres humanos o torna como ser-com-os-outros, um ser que se põe como abertura relacional.

Freire, ao aproveitar-se de parte do arcabouço filosófico existencial, busca se aprofundar na reflexão sobre a experiência humana como projeto por se realizar, sendo a humanização um processo de “inter-relação dialógica e intersubjetiva”19.

Fenomenologia: o homem constrói sua consciência como intencionalidade20. “A fenomenologia é, antes de mais nada, uma reflexão sobre o conhecimento”21, o

próprio fenômeno da consciência é um objeto a ser conhecido. Assim sendo, Torres descreve quatro possibilidades históricas de conhecimento da consciência. O primeiro é a intencionalidade, a consciência é sempre intencional, é sempre consciência de

18 TORRES, 1997, p. 175. 19 TORRES, 1997, p. 178. 20 TORRES, 1997, p. 175. 21 TORRES, 1997, p. 180.

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algo, de algum objeto. O segundo movimento é a objetividade, a consciência nesse estágio é descritiva, ela apenas transforma ‘a coisa em si’ em objeto de conhecimento. O terceiro movimento é a criticidade. Aqui a consciência já ultrapassou a mera constatação do objeto de conhecimento. Nesse estágio de criticidade, a consciência busca conhecer os componentes do objeto e suas contradições. O quarto e último movimento é o da transcendentalidade22. Nesse último estágio, qualitativamente bem superior aos anteriores, a consciência busca “as leis tendenciais do fenômeno” com o intuito de uma possível transformação viável.

Paulo Freire se vale desses conceitos fenomenológicos relacionando-os com a estrutura social de dominação e passa a refletir sobre os graus de consciência dos seres humanos presentes na sociedade.

Diante dessas reflexões percebemos que Freire vai alimentando seu pensamento com o pensamento de autores típicos da filosofia contemporânea e, ao nutrir-se com esses pensadores, vai metabolizando em si o seu próprio pensamento. Freire é, segundo Valdo Barcelos, um legítimo antropófago que pratica a “[...] devida devoração cultural do estranho [...] para a partir desta devoração criar e inventar [...]”23

aquilo que lhe interessa e diz respeito a sua cultura e origem. Freire devora diversas filosofias não para mimetizá-las, mas para, por meio delas, autotransformar-se e criar a própria filosofia a partir das necessidades da sua cultura de origem.

Em Freire temos um pensamento divergente dos glosadores do pensamento europeu24. Ele é um filósofo do terceiro mundo: “Meu ponto de vista é o dos

22 “Essa transcendentalidade não se assemelha em nada à transcendentalidade vertical [ou metafísica],

que direciona seu esforço explicativo para fora do universo material e concreto, em busca de um além infinito [...] essa transcendentalidade é eminentemente ‘finita’ [concreta, no interior da história]” (TORRES, 1997, p. 183).

23 BARCELOS, Valdo. Uma educação nos trópicos: contribuições da Antropofagia Cultural Brasileira.

Petrópolis: Vozes. 2013, p. 78.

24 A expressão ‘glosadores do pensamento europeu’, nós a tomamos de Cruz Costa, crítico da filosofia

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‘condenados da Terra’, dos excluídos” 25. Ou seja, Freire não concorda com aquela

concepção eurocêntrica de que a história universal se reduz à história da Europa, e, portanto, as outras localidades do planeta estão fora da história, não existem e se existem só o são para o usurpe europeu. Freire não coaduna de modo algum com essa concepção, a sua filosofia se põe desde a perspectiva do oprimido, do colonizado, do outro-mundo do mundo eurocêntrico com seu logocentrismo. O seu pensamento é um pensamento radical.

O radical, comprometido com a libertação dos homens, não se deixa prender em ‘círculos de segurança’, nos quais aprisione também a realidade. Tão mais radical, quanto mais se inscreve nesta realidade para, conhecendo-a melhor, melhor poder transformá-la.

Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não teme o encontro com o povo. Não teme o diálogo com ele, de que resulta o crescente saber de ambos. Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens, nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para com eles lutar.26

Para Freire, o mundo é esse devir inacabado em que nada está posto como definitivo e pronto. O mundo, assim como os seres que vivem nele, estão sendo. Freire, seguindo a esteira Hegel-Marx, diagnostica a realidade sob a lógica da dominação (senhor/servo). Contudo, Freire não se contenta com essa constatação, para ele é preciso lutar pela mudança de tal realidade, sendo que essa luta e essa

experiência filosófica brasileira. Observa que muitos daqueles que praticam a filosofia entre nós [brasileiros], alheios à realidade ambiente, foram ‘mais sensíveis ao filosofismo erudito e livresco que ao espírito da filosofia e ao que ele, ao nosso ver, realmente significa. Presos ao feitiço do transoceanismo que alude Capistrano de Abreu, revelaram-se apenas como glosadores do pensamento europeu’.” (SEVERINO, 2002, p. 26) A crítica de Cruz Costa permanece atual, pois o ‘feitiço’ a que se entregam os brasileiros, e nessa entrega os colonos se deixam conduzir pelo colonizador, os impedem de refletir a própria realidade brasileira. Refletem, não o factual ao seu redor senão a realidade do colonizador que lhe é repassada pela erudição da leitura rigorosa e atenta dos livros. A navegação pela história da filosofia é importantíssima, nos proporciona a experiência da navegação do pensamento. Contudo, nessa navegação é preciso o desenvolvimento da crítica (como a própria navegação nos mostra) para que, encantados com o alto-mar dos sistemas filosóficos, não naufraguemos em meros glosadores.

25 FREIRE, 1996, p. 14. 26 FREIRE, 2005, p. 28.

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transformação – de uma realidade de dominação para uma realidade de libertação – só é possível a partir da perspectiva dos excluídos. É nesse ponto que Freire se opõe às correntes marxistas dogmáticas e autoritárias que desejam “impor o recado de Marx” a qualquer custo, e até mesmo de maneira senhorial e salvacionista, como muitos intelectuais se imaginam como portadores da liberdade dos oprimidos. Para Freire, “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”. 27 Segundo Paulo Freire, para que a libertação se realize de maneira

autêntica é preciso ser radical e ser radical é ter essa percepção do inacabamento e ir à raiz das questões, é irmanar-se com os esfarrapados, descobrir-se com eles, tão opressor (deles) quanto oprimido (pela situação da realidade) e desde aí comprometer-se com a libertação, a sua e a dos outros, assumindo, assim, sua vocação ontológica28 de ser mais.

27 FREIRE, 2005, p. 58.

28 A vocação se realiza através do processo de libertação, ato contínuo de humanização. “Esse conceito

[vocação ontológica] é essencial para o desenvolvimento de todo o pensamento antropológico, filosófico e pedagógico de Paulo Freire [...] a riqueza da obra de Freire se encontra no fato de ter mostrado o que somos, mas principalmente em apontar nossas possibilidades, o que podemos transformar [...] o ser humano é um universo inesgotável de possibilidades; um projeto sempre aberto ao aperfeiçoamento [ser mais].” (STRECK; REDIN; ZITKOSKI. 2010, p. 416, 417).

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3 – DETERMINISMO E CONDICIONAMENTO

Segundo Freire, o ser humano, mais do que um ser no mundo, é um ser que se tornou Presença29 no mundo, com o mundo e com os outros. O ser humano, enquanto Presença, é capaz de pensar a si mesmo e ao fazer isso constata que é um ser de possibilidades, ele pode avaliar, valorar, decidir, ele é livre. E nesse domínio, da decisão e da liberdade instaura-se no ser humano a ética e se impõe a responsabilidade (FREIRE, 1996, p.18). O ser humano, por ser Presença no mundo e com o mundo, é um ser eminentemente ético. Freire, nos diz que, se o ser humano não fosse essa Presença no mundo, ele poderia mover-se no mundo sem a mínima responsabilidade ética, pois, sem essa autoconsciência, o ser humano seria como outros animais, mergulhados no determinismo da natureza, pura determinação do meio como os demais animais. Contudo, o ser humano, que não é determinado, é condicionado genética, cultural e socialmente.

A vida dos animais é determinada, e diferentemente dos seres humanos, os animais não possuem consciência de sua presença no mundo, vivem sob o fatalismo de sua espécie, não atuam sobre o mundo, apenas reagem de maneira determinada sob os estímulos da natureza. A vida do animal não possui dimensão ética, visto que o animal não decide de maneira autoconsciente sobre o bem e o mal e as consequências de seu agir, nem podem responder por suas ações, que não são livres, mas apenas se

29 Paulo Freire utiliza esse conceito em inicial maiúscula, assim mantemos a característica conceitual do

autor. Stefânie Loureiro, em ‘Educação Humanista e Diversidade: um diálogo possível entre Paulo Freire e Martin Heidegger’, nos diz que: “Em ‘Ser e Tempo’, Dasein é traduzido para as línguas neolatinas [...] como: ‘ser-aí’, em Português; être-là, em Francês e assim por diante. Entretanto, Heidegger explicita sua preferência pela tradução de Dasein, nas línguas neolatinas, por pre-sença.” (LOUREIRO, 2009, p. 98 e 99). Apesar de Freire usar o conceito Presença, não se sabe ao certo do contato de Freire com o pensamento heideggeriano. Loureiro desenvolve uma reflexão muito densa e extensa – seu estudo, em formato de livro, possui mais ou menos 390 páginas – para expor um “diálogo possível entre Paulo Freire e Martin Heidegger”. Sabe-se, entretanto, que Freire se nutriu bastante das escolas fenomenológicas e existencialistas, como explicitamos resumidamente alhures em nosso texto. Fugiria ao escopo do atual trabalho uma digressão pormenorizada da relação de Freire com tais escolas filosóficas.

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processam no esquema estímulo-resposta. Os animais, por não terem consciência de si nem do mundo, encontram-se em um processo atemporal, sem passado nem futuro, e, imersos acriticamente no presente, não “separam-se” de seu agir. (FREIRE, 2005, p. 102-04). O animal não pode se comprometer, diz-nos Freire. Contudo, somente os seres humanos são capazes de se comprometerem.

Somente em um ser que é capaz de sair de seu contexto, de 'distanciar-se' dele para ficar com ele; capaz de admirá-lo para, objetivando-o, transformá-lo e, transformando-o, saber-se transformado pela sua própria criação; um ser que é e está sendo no tempo que é o seu, um ser histórico, somente este é capaz, por tudo isto, de comprometer-se.30

Os seres humanos separam-se de si e do mundo, de modo que são capazes de refletir sobre si próprios e de refletirem sobre o mundo. Assim, a existência humana se faz no interior da História, que é um tempo de possibilidade, problemático, aberto e não um tempo de determinismos e fatalismos. O ser humano ao mesmo tempo em que é condicionado, e não determinado pela História, é também o agente da mesma. Ambos estão sendo, estão em devir e a mudança é uma possibilidade, tanto para a História como para os seres humanos. Desta maneira, reconhecendo-se como um ser de possibilidades em um tempo de possibilidade, o ser humano se reconhece como ser inacabado, inconcluso, ao mesmo tempo em que se projeta no mundo e com o mundo como ser mais. Ser que busca a superação de si mesmo, humaniza-se, tem sobre seus ombros o peso da responsabilidade ética31.

30 FREIRE, 1979, p. 17. 31 FREIRE, 1996, p. 56.

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4 – OPRESSOR / OPRIMIDO, SER MAIS / SER MENOS, CONSCIENTIZAÇÃO

Sendo a História esse tempo de possibilidades, nela, o ser humano, tanto pode trilhar um caminho que o leve para a assunção dessa responsabilidade ética, para a prática da justiça, da liberdade, da humanização como também pode encaminhar-se para a desumanização, para a injustiça, irresponsabilidade e prática da opressão, dominação32. E é nessa segunda trilha que Freire constata o caminhar da humanidade.

Ao olhar para a sociedade e constatar a desumanização como fato concreto na história, Freire nos diz que essa desumanização não é uma fatalidade irremediável, perante a qual devemos apenas nos resignar passivamente. Desumanização, tanto quanto humanização, são possibilidades no interior da história. Sendo a atual desumanização, uma distorção da vocação ontológica de ser mais, resultado das estruturas lógicas de exploração e dominação do capitalismo.

Ao falarmos da realidade histórica de dominação, opressão e constatarmos o binômio opressor-oprimido, no pensamento de Freire, devemos adentrar um pouco mais nos conceitos, opressor-oprimido, e destacar as duas dimensões que perpassam ambos.

Uma, a dimensão social, ou melhor, de classe social inspirada em Marx. Para Marx:

A história de toda sociedade que existiu até o momento é a história da luta de classes [...] toda a sociedade vai se dividindo cada vez mais [...] em duas grandes classes diretamente contraposta uma à outra: a burguesia e o proletariado.33

32 FREIRE, 2005, p. 32.

33 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Do Romantismo aos nossos dias. 6. ed.

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Freire, apesar da inspiração no pensamento de Marx, quase não usa os termos burguesia e proletariado por entender que a realidade terceiro-mundista apresentava características mais complexas devido ao avanço bem diferente em relação às sociedades analisadas por Marx. Entretanto, o conteúdo desses conceitos – burguesia e proletariado – é transferido para os termos opressores (burguesia) de um lado – a classe dominante, detentora dos meios de produção – e do outro os oprimidos (proletariados) – a classe dominada, explorada, oprimida pela classe dominante.

Contudo, Freire não se detém em Marx para falar da relação entre opressores e oprimidos, e para tornar esses conceitos mais densos e com maior profundidade, ele vai até Hegel e ali forja a outra dimensão conceitual desse binômio. Essa é a dimensão do sujeito ou dimensão da consciência. Hegel desenvolve um intrincado movimento do pensamento, ou da consciência para que a mesma se estabeleça como tal.

[...] de início, a consciência-de-si é para-si simples, igual a si mesma mediante o excluir de si todo o outro. Para ela, a essência e objeto absoluto é o Eu; e nessa imediatez ou nesse ser de seu ser-para-si é um singular.34

Nessas palavras de Hegel temos a constituição da consciência individual, do sujeito. A partir dessa constituição primeira, a consciência fará vários movimentos para sair de si e constatar o mundo exterior. Contudo, no primeiro momento, ela não reconhecerá outras consciências como consciências, mas como objetos, coisas entre outras coisas. Hegel desenvolverá minuciosamente o movimento da consciência até que ela reconheça outra consciência. Porém, esse reconhecimento da outra consciência fica na dependência de a outra consciência ser-para-outro. Em síntese, Hegel nos dirá que essa consciência-de-si para-si é a consciência senhoril e a outra consciência-para-outro é a consciência servil. Contudo, essa consciência-para-consciência-para-outro é falsa, no sentido

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de que é algo vindo de fora, da consciência-para-si que quer ser reconhecida sem reconhecer. Temos assim o embate das consciências pelo reconhecimento, a contradição das consciências opostas. “[...] a relação de ambas as consciências está constituída de tal forma que elas se submetem a um duelo de vida ou morte.”35 É a

partir desse duelo de consciência, descrito por Hegel, que Freire elabora a ‘dialética’ da consciência opressor-oprimido.

Fizemos essa ligeira exposição de Hegel e Marx, apenas para situarmos os conceitos de opressor e oprimido na obra de Paulo Freire, diante do contexto histórico marcado pela dominação e opressão entre os seres humanos e a consequente desumanização entre opressores e oprimidos. Para Freire a desumanização se instaura na sociedade a partir do momento em que há dominação de uns sobre os outros. Sendo que a humanização se dá na razão inversa, ou seja, os seres se humanizam no processo de libertação, que é luta contínua em ser mais. Para Freire,

A desumanização, que não se verifica, apenas, nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais. É distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é porém, destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos.36

Aqui Freire nos diz que, no atual contexto histórico de dominação, a desumanização está generalizada entre todos os homens. Tanto aquele que oprime quanto aquele que sofre a opressão tiveram sua humanidade ‘distorcida’, ‘roubada’. O

35 TORRES, 1997, p. 17, 18. 36 FREIRE, 2005, p. 32.

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opressor, ao impor a dominação sobre o oprimido – inibindo, embotando a vocação desse em ser mais – coisificando-o, tornando-o um ser menos, se torna ao mesmo tempo um ser menos. Ambos, opressor e oprimido, numa relação de dominação, estão sob a égide da distorção da vocação do ser mais, que é uma possibilidade na história, mas nunca uma vocação histórica. Para Freire a vocação autêntica dos seres humanos é uma vocação ontológica de ser mais: mais, humanos, mais livres, mais éticos, mais justos etc. De modo que, para romper com essa desumanização e ir em direção ao ser mais, é necessário a luta pela retomada da humanidade, na luta pela libertação.

E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores.37

O opressor, apesar de sua desumanidade, nunca irá realizar a tarefa de humanização dos seres humanos e do mundo. Ele se encontra numa posição mais abastada e confortada, usufruindo e gozando dos bens sociais produzidos justamente pelos oprimidos, que pouco, quase nada ou nada verdadeiramente usufruem desses bens. Fica para oprimidos a tarefa de realizar a libertação, a humanização de ambos.

Entretanto, Freire percebe que essa não é uma tarefa fácil de se realizar, pois os oprimidos “imersos na estrutura de dominação” trazem em si a “sombra” dos opressores, e isso lhes causa “medo da liberdade”38, preferindo adaptarem-se a sua “não-liberdade”. Se por um lado Freire constata que há oprimidos que temem a liberdade, por outro constata também que há aqueles que anseiam pela liberdade. Freire ressalta, ainda, que a libertação é um parto doloroso. Aqueles que já

37 FREIRE, 2005, p. 33.

38“Este medo da liberdade também se instala nos opressores, mas obviamente, de maneira diferente.

Nos oprimidos, o medo da liberdade é o medo de assumi-la. Nos opressores, é o medo de perder a ‘liberdade’ de oprimir.” (FREIRE, 2005, p. 36).

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reconhecem a realidade da opressão, da desumanização apenas constataram um fato, sendo esta constatação o reconhecimento no nível mais simples da consciência e que esse reconhecimento não significa a libertação.

Esta tomada de consciência não é ainda a conscientização – esta constitui um desenvolvimento crítico daquela. Logo, a conscientização implica que se passe da esfera espontânea de apreensão da realidade para uma esfera crítica, na qual a realidade se oferece como objeto cognoscível e na qual o homem assume um posicionamento epistemológico.39

Para que a libertação se efetive, ou seja, para que os oprimidos consigam superar a dominação, é necessário que eles desenvolvam a consciência crítica, ou seja, façam da realidade social opressora objeto do conhecimento, saber que tal realidade não é – mas está sendo. Mais do que isso, a realidade é passível de transformação. A consciência crítica ou conscientização é uma “maneira de ler como a sociedade funciona”40 e nesse sentido se torna consciência histórica com o imperativo de

engajamento histórico permanente sempre em busca de libertação e ser mais.

A conscientização, compreendida como processo de criticização das relações consciência-mundo, é condição para a assunção do comprometimento humano diante do contexto histórico-social. No processo de conhecimento, o homem ou a mulher tendem a se comprometer com a realidade, sendo esta uma possibilidade que está relacionada à práxis humana.41

Destarte, percebemos assim uma intrincada relação entre o conhecimento crítico da realidade histórica – ou seja, a conscientização – com a assunção do compromisso pela transformação do mundo, pela humanização, pela libertação.

39 FREIRE, Paulo. Conscientização. São Paulo: Cortez, 2016. p. 56. 40 TORRES, 1997, p. 13.

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5 – COMPROMISSO E LIBERTAÇÃO

Esta capacidade de comprometer-se, de assumir compromisso se dá a partir do agir e do refletir, ou seja, a autoconsciência humana de si e do mundo e seu atuar consciente no mundo e com o mundo. Esse atuar humano no mundo é uma projeção em ser mais. Conscientes de seu inacabamento, os seres atuam, agem, transformam a realidade, o mundo em que se encontram, no sentido de serem mais, mais humanos, mais éticos. Ou seja, ação e reflexão no interior da relação homem-mundo, e nisso a constatação das ‘situações limites’42 e assim o projetar-se a si mesmo a ser mais na superação dos limites. Sem isso não é possível um comprometimento autêntico. Pois, na inautenticidade do comprometimento, os seres humanos podem vir a se desumanizar novamente e serem menos. E o ser menos é visto como distorção do ser mais.

Sem a devida inserção crítica dos seres humanos no e com o mundo – e nesse sentido histórica – aquela busca do homem em ser mais fica profundamente prejudicada. Tanto os seres humanos ficam feridos em si mesmos e se desumanizam – tornam-se coisas – como também a humanização do mundo fica perturbada. “O verdadeiro compromisso é a solidariedade.” (FREIRE, 1979, p. 19). Chegamos aqui a um conceito fundamental do filósofo.

Freire nos diz que o compromisso é sempre solidário e jamais se reduz a falsa generosidade, ação unilateral do tipo colonizadora, portadora de uma falsa superioridade. O compromisso autêntico é encontro dinâmico de seres solidários, conscientes de seu inacabamento. Por isso, Freire nos diz, acerca da radicalidade, que aquele que se compromete com a libertação dos homens “não se sente dono do tempo,

42 “[...] as ‘situações limites’ não são ‘o contorno infranqueável onde terminam as possibilidades, mas a

margem onde começam todas as possibilidades’, não são ‘a fronteira entre o ser e o nada, mas a fronteira entre o ser e o ser mais.’” (FREIRE, 2005, p. 104).

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nem dos homens, nem libertador dos oprimidos” (FREIRE, 2005, p. 28), ou seja, sabendo-se inconcluso, põe-se ao lado deles (dos oprimidos), solidariza-se com eles e com eles busca a liberdade, a sua própria liberdade e a liberdade dos demais em comunhão solidária em busca de ser mais43.

A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Não é também a liberdade um ponto ideal, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. Não é ideia que se faça mito. É condição indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os homens como seres inconclusos.44

Vemos então, que em Freire a liberdade não é algo dado, pronto e acabado em que uma pessoa a pode tomar para si ou, então, uma outra pessoa vem e lhe doa. Liberdade é libertação, uma busca permanente, ato responsável que não admite a “liberdade para ser livre” como vemos na referência acima, ou seja, fazer o que quiser de maneira irresponsável. A liberdade não é algo atemporal, fora do tempo, mas sim libertação concreta, histórica, feita por pessoas inacabadas que se sabem inacabadas. E é por causa da consciência desse inacabamento que elas buscam, no mundo e com o mundo, através da libertação, a liberdade ausente. Mas, essa busca pelo ser mais só é autêntica a partir da assunção do compromisso, da comunhão solidária entre as pessoas em que a “ética se instaura e a responsabilidade se impõe” (FREIRE, 1996, p. 18).

Liberdade. Um tema que, apesar de sua, leveza traz consigo todo o peso da responsabilidade. Em Paulo Freire percebemos a nítida relação entre os conceitos chaves liberdade, responsabilidade, reflexão e ação. Da ação e reflexão surge não só o

43 “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.”

(FREIRE, 2005, p. 58).

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ser humano como Presença, mas também a capacidade de decidir entre o bem e o mau, ou seja, a liberdade em que se impõe a responsabilidade através do comprometimento.

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6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bibliografia Básica

FREIRE, Paulo. Conscientização. São Paulo: Cortez, 2016.

____________. Educação como prática da liberdade. 30. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.

____________. Educação e Mudança. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. ____________. Pedagogia da Autonomia. 37. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. ____________. Pedagogia do Oprimido. 47. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

Bibliografia Complementar

BARCELOS, Valdo. Uma educação nos trópicos: contribuições da Antropofagia Cultural Brasileira. Petrópolis: Vozes, 2013.

DUMÉIL, Gérard; LÖWY, Michael; RENAULT, Emmanuel. Ler Marx. São Paulo: Ed. Unesp, 2011.

GADOTTI, Moacir. Paulo Freire: uma biobibliografia. São Paulo: Cortez, 1996. GILBERT, Paul P. Introdução ao pensamento filosófico. 8. ed. São Paulo: Loyola. 2005.

HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa: com a nova ortografia da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

LOUREIRO, Stefânie Arca Garrido. Educação Humanista e Diversidade: um diálogo possível entre Paulo Freire e Martin Heidegger. Belo Horizonte: Nandyala, 2009. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Do Romantismo aos nossos dias. 6. ed. v. 03. São Paulo: Ed. Paulus. 2003.

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SANTOS, Robinson dos; ROSIN, Nilva (orgs). Filosofia e Política em Franz Rosenzweig. Passo Fundo: IFIBE, 2010.

SEVERINO, Antônio Joaquim. A filosofia contemporânea no Brasil. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (orgs). Dicionário Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

TIMMERMANS, Benoît. Hegel. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. TORRES, Carlos Alberto. Pedagogia da luta. Campinas: Papirus, 1997.

WOHLFART, João Alberto. Fundamentos dialéticos da Pedagogia do Oprimido. Passo Fundo: IFIBE, 2013.

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