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A escritura que se faz com o outro: diálogo e transferências culturais de Machado de Assis com a obra de Madame de Staël

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA

A ESCRITURA QUE SE FAZ COM O OUTRO:

Diálogo e Transferências Culturais de Machado de Assis com a obra de Madame de Staël

FRANCISCO GESIVAL GURGEL DE SALES

NATAL/RN JULHO, 2020

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FRANCISCO GESIVAL GURGEL DE SALES

A ESCRITURA QUE SE FAZ COM O OUTRO:

Diálogo e Transferências Culturais de Machado de Assis com a obra de Madame de Staël

Trabalho apresentado como requisito para titulação no Mestrado Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Área de Concentração: Literatura Comparada Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural

Orientadora: Profa. Dra. Wiebke Röben de Alencar Xavier

NATAL/RN JULHO, 2020

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Sales, Francisco Gesival Gurgel de.

A escritura que se faz com o outro: diálogo e transferências culturais de Machado de Assis com a obra de Madame de Staël /

Francisco Gesival Gurgel de Sales. - Natal, 2020. 111f.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020. Orientadora: Profa. Dra. Wiebke Röben de Alencar Xavier.

1. Madame de Staël - Dissertação. 2. Machado de Assis - Dissertação. 3. Transferências Culturais e Diálogo - Dissertação.

I. Xavier, Wiebke Röben de Alencar. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.091

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FRANCISCO GESIVAL GURGEL DE SALES

A ESCRITURA QUE SE FAZ COM O OUTRO:

Diálogo e Transferências Culturais de Machado de Assis com a obra de Madame de Staël

Trabalho apresentado como requisito para qualificação no Mestrado Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Área de Concentração: Literatura Comparada Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural

Data da defesa: ______/______/___________

Banca Examinadora:

___________________________________________________________ Profa. Dra. Wiebke Röben de Alencar Xavier – PRESIDENTE

___________________________________________________________ Profa. Dra. Rosanne Bezerra de Araújo – MEMBRO INTERNO

___________________________________________________________ Profa. Dra. Marta Pragana Dantas – MEMBRO EXTERNO (UFPB)

NATAL/RN JULHO, 202

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos (as) que contribuíram para a realização deste trabalho até aqui. Sou grato a:

Minha família, que entendeu todas as minhas ausências e compartilhou comigo dos meus desânimos e dos meus entusiasmos;

Os amigos e colegas de curso, que muito me ensinaram e me ajudaram a administrar minhas angústias e minhas vontades;

Ao estimado professor Alexandre Alves (UERN) que me abriu os olhos para esta possibilidade me levando à UFRN numa tarde de setembro de 2017 e me ajudando na leitura dos textos requeridos para a prova escrita;

Ao motorista Cid e aos meus amigos Samax e Kelsen, que sempre me ajudaram no transporte à Natal;

Aos professores do PPGEL, todos com quem aprendi. Meus mestres.

À coordenação e aos secretários (as) do PPGEL, que sempre responderam minhas mensagens e me orientaram.

À minha orientadora, a professora Wiebke, que desde o momento que a conheci, tem se dedicado a me orientar e me ajudar; ela, que me apresentou um novo método, ou mais que isso, uma nova visão das coisas, muito obrigado!

À CAPES, por conceder-me bolsa, apoiando minha pesquisa.

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L’idéal de l’art est que, dans le plus grand désespoir, l’âme conserve toujours son pouvoir sur le malheur. Madame de Staël, Corinne ou l’Ialie (1807).

[…] car, dans une société où l'on manque tout à la fois d'intérêt pour les sciences, la littérature, les tableaux et la musique, où l'imagination enfin n'occupe personne, ce sont les petits faits, les critiques minutieuses, qui font nécessairement le sujet des entretiens; et les esprits étrangers à l'activité comme à la méditation ont quelque chose d'étroit, de susceptible et de contraint, qui rend les rapports de la société tout à la fois pénibles et fades. Madame de Staël, Corinne ou l’Ialie (1807).

Diz Stäel que os primeiros amores não são os mais fortes porque nascem simplesmente da necessidade de amar. Assim é comigo; mas, além dessa, há uma razão capital, e é que tu não te pareces nada com as mulheres vulgares que tenho conhecido. Machado de Assis, Carta a Carolina (1869).

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RESUMO

Esta pesquisa, inserida na perspectiva metodológica das transferências culturais, a partir de Michel Espagne (2017), visa verificar a recepção machadiana das ideias de Madame de Staël (1766-1817) em trânsito no século XIX. A partir das noções de cruzamento, assimilação e ressemantização e debruçando-nos sobre os recentes resultados do projeto sobre a circulação transatlântica de impressos [(ABREU, 2016), (GRANJA; LUCA, 2018) e (PONCIONI; LEVIN, 2018)], e as pesquisas do Dossiê “Trânsitos, trocas e transferências culturais” (XAVIER; AUGUSTI & MOLLIER, 2019), analisamos as menções (SENNA, 2008) a Madame de Staël em escritos de Machado de Assis, na tentativa de delinearmos o cruzamento de ideias entre os dois autores. Para tanto, recorremos a fontes como periódicos, catálogos de livreiros, catalogação da biblioteca de Machado de Assis (MASSA, 1961), anúncios de venda de livros e leilões de obras e escritos gerais de intelectuais cariocas do oitocentos, de onde confirmamos a presença de obras e ideias de Mme. de Staël em circulação no Brasil. A pesquisa mostrou a afinidade literária entre a escritora franco-suíça e o autor brasileiro, dada a presença comprovada de alusões à baronesa de Staël em diversos segmentos da escritura machadiana: na ficção, nos textos críticos e em cartas.

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ABSTRACT

This research, inserted in the methodological perspective of cultural transfers, from Michel Espagne (2017), aims to verify the Machadian reception of the ideas of Madame de Staël (1766-1817) in transit in the 19th century. Based on the notions of crossing, assimilation and re-assertion and focusing on the recent results of the project on the transatlantic circulation of printed matter (ABREU, 2016-2020), (GRANJA; LUCA, 2018) and (PONCIONI; LEVIN, 2018), and the research of the Dossier "Transits, exchanges and cultural transfers" (XAVIER; AUGUSTI & MOLLIER, 2019), we analyzed the mentions (SENNA, 2008) to Madame de Staël in the writings of Machado de Assis in an attempt to outline the crossing of ideas between the two authors. To this end, we have used sources such as periodicals, catalogues of booksellers, catalogues of the Machado de Assis library (MASSA, 1961), book sales announcements and auctions of works and general writings of Rio de Janeiro intellectuals of the eighteen hundred, from which we have confirmed the presence of works and ideas of Mme. de Staël in circulation in Brazil. The research showed the literary affinity between the Franco-Swiss writer and the Brazilian author, given the proven presence of allusions to Staël's baroness in various segments of machadian writing: in fiction, critical texts and letters.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 08

1 ORIENTAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS... 19

1.1 As transferências culturais... 19

1.2 A alusão como estigma de leitura e vértice no processo de transferência de saberes 21 2 A CIRCULAÇÃO DE OBRAS DE MADAME DE STAËL NO RIO DE JANEIRO DURANTE O SÉCULO XIX: PRESENÇA E RECEPÇÃO... 28

2.1 B. L. Garnier no Brasil... 32

2.2 Ideias em trânsito e as páginas do Jornal do Commercio: a circulação de obras de Madame de Staël no Rio de Janeiro do século XIX... 40

2.3 As obras de Madame de Staël em catálogos de livrarias cariocas... 53

2.4 A presença de Madame de Staël nos escritos dos intelectuais do oitocentos: um breve passeio pelo acervo digital da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin... 55

2.5 Reflexos da recepção da obra de Madame de Staël no contexto da conduta moral das mulheres no oitocentos... 60

3 O LUGAR DE MME. DE STAËL NOS ESCRITOS DE MACHADO DE ASSIS: (FICÇÃO, CARTAS E CRÔNICAS)... 66

3.1 Madame de Staël em duas narrativas do Jornal das Famílias... 66

3.1.1 “Sério para o jogo, frívolo para o negócio”: uma referência staeliana à correção moral pela literatura... 68

3.1.2 Corina e a “Felicidade pelo casamento”... 71

3.2 Madame de Staël em uma epígrafe de Crisálidas: um registro... 74

3.3 Os “Fragments des Pensées de Corine”... 77

3.4 Entre retratos e semblantes: a imagem de Staël na memória machadiana... 81

4 MADAME DE STAËL NA CRÍTICA MACHADIANA: DIÁLOGO, EVIDÊNCIAS E APROXIMAÇÕES... 85

4.1 Madame de Staël na estante machadiana... 85

4.2 A crítica em diálogo: o exemplo de uma mulher nas “Semanas” machadianas... 88

4.3 Um prólogo quase esquecido... 93

4.4 Uma consulta a Mme. de Staël: a educação e a moral da obra literária... 95

4.5 O sonho de J. Paul Richter e o Delírio de Brás Cubas... 97

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 101

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INTRODUÇÃO1

Fazer um levantamento dos inúmeros trabalhos que versam sobre a intertextualidade presente nos escritos de Machado de Assis (1839-1908) é uma tarefa extremamente enfadonha que levaria o pesquisador, fatalmente, a uma série de questões seletivas e demarcadoras. A diversidade de temáticas, o estilo, a forma de sua escritura, a numerosa produção literária e as suas escolhas pessoais e diversificadas de leitura problematizam, fechando e abrindo portas, uma interpretação dialógica de tal obra. De um modo geral, poderíamos falar numa verdadeira obsessão de estudos comparatistas em torno da produção literária e crítica do escritor brasileiro. Os caminhos de investigação são vários e os pontos de partida, muitas vezes, incertos. Porém, para o entendimento de uma obra que se faz constantemente e de variados modos (paródia, menções explícitas, intertextualidade implícita, movimentos alegóricos, etc.) num acentuado diálogo com outras obras da cultura ocidental, é sempre válido buscar e analisar essas relações intertextuais a fim de explicitarem-se novos pontos de vista sobre a natureza do fazer estético machadiano.

Na busca por uma mais ampla compreensão da literatura machadiana em suas relações com o estrangeiro, esta pesquisa objetiva, mediante o registro e a identificação de alusões a Madame de Staël (1766-1817) em textos de Machado de Assis, apresentar uma análise da recepção do pensamento da escritora franco-suíça na escrita do autor brasileiro. O estudo insere-se, de um modo geral, no contexto das pesquisas sobre as transferências culturais entre a França e o Brasil no século XIX. O nosso principal objetivo é verificar a presença de ideias da baronesa de Staël nos escritos do Bruxo, no intuito de vislumbrarmos como o escritor carioca se apropria dessas ideias e as ressemantiza nos seus textos.

Anne Louise Germaine Necker, conhecida como Madame de Staël (1766-1817), figura, sem dúvidas, central para o pensamento romântico francês, concentrou em sua volta, mais especificamente no Castelo de Coppet, na Suíça, onde mantivera-se exilada durante parte do regime napoleônico, grandes nomes da transformação da arte romântica da Europa; dentre eles, F. R. Chateaubriand, A. W. Schlegel e F. Schiller. Madame de Staël tornou-se figura central nas discussões e divulgação do romantismo na França, produzindo obras fundamentais na configuração de uma literatura nova e moderna, capaz de transpor os limites de um país e dialogar com outras culturas a fim de mostrar-se mais crítica e mais humana.

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

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9 As constantes viagens pela Europa, resultantes da situação de exílio da pensadora e do conhecimento de línguas diferentes, bem como o contato direto com intelectuais de grande ascendência, possibilitaram-lhe a observação e análise das diferentes culturas (a relação entre aa literatura alemã e francesa, por exemplo) e motivaram-na a produção de obras cabais para o romantismo francês, a crítica e a tradução de muitas outras de igual relevância. Entretanto, as ideias cultivadas e propagadas por Staël, baseadas na liberdade popular e na democracia, bem como o ciclo de amizades que ela reúne em Coppet a tornam

vítima da importância crescente que vinham adquirindo as reuniões sociais do seu salon parisiense, digna herdeira do salon mantido por sua mãe, Suzane Curchod, também ela de origem romana protestante, no cultivo das relações sociais, culturais e políticas internacionais marcantes na época. É precisamente essa herança parisiense, na qual fora criada e que ela própria continuará a cultivar após o seu casamento com o ministro da Suécia em Paris, o barão de Staël, que transfigura o universo de Coppet, onde, numa atmosfera de bem-estar e de tranquilidade espiritual reúne vultos de renome no panorama intelectual contemporâneo. É também esta herança que se afigura politicamente incômoda a Napoleão (LAUREL, 2004, p. 281).

Nesse contexto, a formação de Anne Louise Necker, fundida das várias experiências de exílio, será ensejada do sentimento e do apelo cosmopolita e dialogante de suas ideias. As principais obras de Staël serão encrustadas da visão de abertura ao estrangeiro como meio de evolução social, política e cultural. Desse modo, a estadia em países como Inglaterra, Itália e Alemanha lhe inspiraram a elaboração de verdadeiras teorias culturais, filosóficas e literárias, sempre vestidas do cosmopolitismo e da defesa do diálogo transnacional.

Conforme Narceli Piucco (2010),

As obras de Madame de Staël são ligadas às circunstâncias políticas e às circunstâncias de sua vida e divulgam um conceito de literatura amplo, uma mistura entre o político e o literário. Os acontecimentos históricos também foram imprescindíveis para a biografia de Staël, como a Revolução Francesa, que acabou provocando seu exílio, a condição feminina da época, que a limitavam de se expressar como gostaria e a censura de seus livros por Napoleão I, conferiram à Madame de Staël o status de “estrangeira” na França (PIUCCO, 2010, p. 68-69).

A sua obra, portanto, reflete temáticas fundamentais ao seu pensamento libertário e transcultural: o progresso das ideias através do diálogo com a cultura estrangeira, o intercâmbio entre a literatura, a religião e os assuntos da sociedade, a independência

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10 intelectual da mulher, a natureza moral e educativa da obra literária e a relevância da tradução como acesso ao universo estrangeiro. Além de tudo, Staël surge como uma importante divulgadora da cultura e da filosofia alemã na França, por exemplo.

Da sua numerosa e profícua obra, destacamos livros como De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales (1800), onde a autora propõe o estudo literário a partir de suas ligações com as instituições sociais, expondo “as bases do que haveria de se impor, ao longo do século, como a postura ideal da crítica em relação às obras de que se ocupa” (SOUZA, 2006, p. 204); Corinne ou l’Italie (1807), romance que interpela o caso amoroso e trágico entre Corinne e o inglês lord Oswald à descrição analítica dos costumes, das artes e da cultura italiana e De l’Allemagne (1810), em que ela elabora um revelador quadro dos mais diversos aspectos do povo alemão, com destaque para a literatura, apresentando trechos traduzidos de importantes poetas românticos alemães com comentários críticos. Ali, ela apresenta nomes como Wieland, Klopstock, Lessing, Winckelmann, Goethe e Schiller, além de um trecho de Jean Paul Richter, ao analisar o romance alemão. Dentre os textos de grande relevância na obra, está o ensaio sobre a poesia clássica e a poesia romântica. Como veremos, na primeira parte deste trabalho, as obras mencionadas, juntamente com muitos outros textos da autora, circulam durante todo o século XIX no Brasil, como atestam as consultas às páginas do Jornal do Commercio.

Como também constataremos, será Corinne ou l’Italie, por meio de sua personagem central, a quem Machado mais aludirá em seus textos. O romance engloba temáticas como a liberdade da mulher e sua independência intelectual através da arte, aspecto também compartilhado por Machado de Assis em textos críticos, tal como abordaremos.

Simone Balayé (1905-2002), importante estudiosa e biógrafa de Madame de Staël, relata a grande impressão produzida pelo romance à ocasião de seu aparecimento em 1807. Ao verificar as cartas dos “amigos de Madame de Staël”, a estudiosa constata a peculiaridade dessas impressões dado o caráter particular das correspondências, o que o diferencia das ponderações críticas levadas ao público leitor. Ademais, a “categoria de leitores privilegiados de Corinne” engloba nomes como os “amigos íntimos” Montmorency, Sismondi e Bonstetten, admiradores, “que são mais que admiradores”, como Prosper de Barante e escritores, “que são também amigos”, a saber, Meister, Chateaubriand, Suard, Lemercier. (BALAYÉ, 1966, p. 139, tradução nossa)2. A estudiosa ainda pontua o cosmopolitismo do romance, ao convocar

2 Do original: Or Mme de Staël reçut pour Corinne un grand nombre de lettres de tous pays, dont il s'est conservé

une quarantaine, éditées ou non 1. Il y a là des amis très intimes comme Montmorency, Sismondi, Bonstetten, des admirateurs — qui sont plus que des admirateurs — comme Prosper de Barante ; des écrivains qui sont aussi

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11 “o encontro de três povos”, assim como o do círculo de Coppet, onde reuniam-se diversos intelectuais com culturas e nacionalidades distintas. Este aspecto universalista, a propósito, será o elo de investigação na pesquisa de Dayane Mussullini (2020), A biblioteca de Machado de Assis na elaboração de sua crítica literária: os casos de Pelletan, Sainte-Beuve e Staël, onde será frisado no terceiro capítulo de sua tese, o cosmopolitismo e a subjetividade em Madame de Staël e Machado de Assis. No que tange ao lado machadiano, convém ler os artigos Machado de Assis e o nacionalismo: o caso das Americanas (2008) e Quem deve ser brasileiro: as opiniões de Taunay e Machado de Assis sobre a nacionalização (2005), ambos de autoria de José Luiz Jobim. Além disso, a ideia está exposta no conhecido ensaio Noticia da Actual Litteratura Brazileira: instincto de nacionalidade, do próprio Machado, publicado em 1873.

Grande parte da obra de Madame de Staël ainda não foi traduzida para o português e alguns títulos ganharam a versão portuguesa bem recentemente. Talvez isso explique, em parte, o número relativamente baixo de pesquisas e um certo desconhecimento de sua obra no Brasil. Vale também frisar que a maioria das histórias literárias que fundamentaram durante muito tempo o gosto leitor e os sistemas de ensino brasileiros, quando mencionam a escritora, o fazem de modo muito breve e superficial. De fato, Madame de Staël ainda não ocupa o seu devido lugar na história da formação da literatura e da crítica nem na memória dos leitores brasileiros.

No entanto, os esforços de alguns profissionais, professores, tradutores, editores amantes de sua obra e de instituições como editoras e universidades, através de seus programas de pós-graduação, têm contribuído para o resgate do real lugar da autora para a história dos livros e das letras brasileiras. O aparato teórico e metodológico das transferências culturais e o espaço dado às teorias da tradução têm apoiado esses profissionais, motivando a produção tanto de novas pesquisas quando de novas traduções da obra staeliana.

Neste interim, vale mencionar as pesquisas de Narceli Piucco (2008, 2010 e 2014) que nos beneficia com a proposta de retradução comentada de Corinne ou l’Italie, enfatizando que “os comentários do processo de tradução nos permitem uma frutífera troca literária e cultural e a tradução, o estudo e conhecimento da obra de Madame de Staël, por consequência, enriquecem o cânone da literatura francesa traduzida no Brasil (PIUCCO, 2014, p. 7). Além disso, seus estudos buscam divulgar também as ideias sobre tradução defendidas pela autora franco-suíça. Piucco faz um balanço das traduções de Corinne ou l’Italie e verifica versões do des amis, Meister, Chateaubriand, Suard, Lemercier. On accède ainsi à une catégorie de lecteurs privilégiés de

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12 romance em italiano, inglês, espanhol, alemão, grego, norueguês, sueco, japonês e duas versões em português de Portugal.

Em dissertação de mestrado intitulada Biografia e tradução: Madame de Staël - A Study of her Life and Times, de 2008, Silvânia Carvalho “apresenta a tradução comentada dos três primeiros capítulos da biografia Madame de Staël. A study of her Life and Times, escrita por Abel Stevens” (CARVALHO, 2008, p. 5). O estudo é de grande importância já que versa sobre um aspecto bastante atrativo para muitos críticos da autora: a sua biografia.

Janaina Ravagnani (2013), refletindo sobre Madame de Staël e o romantismo, oferece-nos uma mescla de textos traduzidos disponíveis na sua dissertação de mestrado. Dentre eles, destacamos a tradução de “De l’Esprit des Traductions”, texto de natureza crítica que versa sobre o processo de tradução:

Da obra De l’Allemagne (vol. 1 e 2), serão traduzidos “De la Poésie” (vol.1); “De la contemplation de la Nature”, (vol. 2); “De l’Enthusiasme”, (vol. 2); “De l’influence de l’enthusiasme sur les lumières” (vol. 2) e “De la disposition religieuse appellée mysticité”, (vol. 2). Em seguida, da obra De la Littérature considérée dans ses rapports avec les Institutions, será traduzido o texto “Des Ouvrages d’Imagination”. Do XVII volume das Obras Completas, selecionamos “De l’Esprit des Traductions” (RAVAGNANI, 2013, p. 52).

Luiza Duarte Caetano (2018), por sua vez, dedica-se à tradução comentada do Essai sur les fictions e das Trois Nouvelles, destacando como objetivo a investigação sobre a importância desse conjunto de textos “pouco discutido e frequentemente tido como obra ‘de juventude’ da autora — na compreensão do pensamento staëliano, bem como sua contribuição para o papel de Staël na passagem do paradigma beletrista para a literatura em sua acepção moderna” (CAETANO, 2018, p. 5).

O artigo de Marie-Hélène Catherine Torres nos orienta sobre o aspecto comparatista de De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales, além de refletir em “como a interculturalidade e a visão de perfectibilidade da escritora envolvem a tradução de forma a contribuir ao desenvolvimento das Letras pelo conhecimento de outras literaculturas” (TORRES, 2015, p. 75).

Outros estudos que merecem ser destacados são os de Edmir Míssio (1997, 2016). Já em 1997, Míssio nos presenteava com a tradução de trechos escolhidos da obra De l’Allemagne. Em 2016, lança pela editora Unesp, a tradução do importante volume completo

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13 da obra. Nesta empreitada, o tradutor revela ter tomado como base a edição de John Murray, a original de 1813, recorrendo às traduções inglesa e italiana (MÍSSIO, 2016).

Sobre os vários e fundamentais eventos sobre tradução disseminados no Brasil nos últimos tempos, destacamos o Simpósio: A TRADUÇÃO DE OBRAS FRANCESAS NO BRASIL (2013), realizado pela Associação Brasileira de Pesquisadores em Tradução – ABRAPT e coordenado pela professora Marta Pragana Dantas (PPGL/UFPB) e por Ana Cláudia Romano Ribeiro. O evento acolheu 16 trabalhos sobre tradução de obras francesas, incluindo a pesquisa de Narceli Piucco sobre a retradução comentada de Corinne ou l’1Italie, como consta em sua página na internet.3

Verificando a presença dessas ideias de Madame de Staël em circulação no cenário carioca oitocentista, esta pesquisa contribuirá para os estudos sobre as relações intertextuais nos escritos de Machado de Assis. Tais contribuições justificam a necessidade de um trabalho desta natureza, que vislumbra auxiliar nas abordagens sobre: a) a circulação de obras de Mme. de Staël no Rio de Janeiro oitocentista; b) a recepção de ideias no meio intelectual carioca; c) o delineamento de hipóteses sobre o diálogo entre as ideias de Staël e a constituição identitária nacional por meio da literatura; d) a apropriação e ressemantização de ideias na escrita machadiana mediante conexões com o pensamento de Mme. de Staël; e) relevância do estudo de fontes materiais para a compreensão da intertextualidade na escritura de Machado de Assis via leitura de obras de Staël.

Os estudos de Jean-Michel Massa (1961) sobre a biblioteca de Machado de Assis e sobre a vida intelectual do escritor, bem como o papel dessas duas questões no tocante ao engendramento de uma biografia intelectual do escritor fluminense, aparecem como uma fonte de questionamentos de uma relevância ímpar, tanto pelo fôlego do trabalho, quanto pelo método escolhido. Publicado inicialmente em 1961, La bibliothèque de Machado de Assis deu um passo inicial às pesquisas sobre o acervo da biblioteca do Bruxo do Cosme Velho. Seguindo essa proposta de Massa, aperfeiçoando-a e atualizando-a, seguem-se trabalhos como o de Glória Vianna (1989), que propôs uma atualização na catalogação do acervo bibliográfico que pertencera a Machado de Assis contribuindo para o delineamento de reflexões fundamentais acerca da biografia intelectual machadiana.

Dialogando com estas pesquisas, surgem abordagens relacionais tais como a de Gilberto Pinheiro Passos em Machado de Assis: a poética do legado (1996) ou Cintilações Francesas (2006), ou o recente trabalho de Marcos Túlio Fernandes (2020) que aborda a

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14 recepção do fantástico hoffmanniano em Machado de Assis, dada a relação existente entre o escritor e o seu editor B. L. Garnier, só para citar essas três, que trazem à tona discussões atuais sobre influxos e diálogos com a cultura e literatura francesas e alemã na obra de Machado de Assis.

A necessidade de se revisitar a obra de Machado de Assis, tentando explicá-la e esclarecer pontos conflituosos da crítica é perceptível quando se observa o número de publicações e eventos que surgem todos os anos em revistas especializadas, nas universidades e nos programas de pós-graduação do Brasil e do exterior.

Porém, se trouxermos esse dado para confrontar com a nossa escolha, abstraímos o seguinte: não se percebe a existência de muitas pesquisas que tratem de um Machado de Assis como uma espécie de “re-inventor” de um tipo de romantismo na literatura brasileira, romantismo este que se nutre do diálogo com Madame de Staël. Quase sempre, e baseados numa crítica mais contextual ao período romântico no Brasil, grande parte da crítica o coloca como um oposto ao Romantismo, inclusive utilizando-se de argumentos que se referem aos textos publicados na chamada fase madura ou segunda fase. Não compartilhamos dessas ideias tão limitadoras, pois cremos no aspecto “metamórfico” do fazer poético machadiano como resultado de um vasto campo de leituras e trocas literárias. Machado soube ler, absorver e transformar, tudo isso tendo à disposição um ambiente editorial em crescimento, um ciclo de amizades privilegiado e uma capacidade de visão crítica, cujas atividades iam da crítica de jornal aos espetáculos teatrais, sendo estes inclusive, intermediários importantes entre tendências e ideias.

O papel de Madame de Staël na literatura de Machado de Assis, a despeito de ser um campo profícuo para pesquisas relevantes, ainda não foi amplamente estudado. Os estudos comparatistas entre o brasileiro e a tradição francesa (esses já dispõem de alguns estudos importantes) quando não acabam apenas mencionando as referências feitas por Machado, em cartas ou nos textos literários, à escritora francesa, tratam a relação de modo rápido, sem trazer uma discussão mais centralizada. A obra de Madame de Staël, especialmente os romances, são quase desconhecidos no Brasil, com poucas traduções para o português. Os estudos de Narceli Piucco (2014) sobre a tradução e retradução de Corinne ou l’Italie, por exemplo, atestam a escassez de traduções da autora no nosso país (uma ironia, pois a temática da tradução é algo presente nos escritos de Madame de Staël, para quem “favorece o comércio de ideias, a troca e o diálogo com o estrangeiro”, (PIUCCO, 2014, p 31).

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15 Este trabalho enfatizará a transculturalidade do espaço nacional e a memória cultural estrangeira e/ou a configuração do sistema literário nacional, numa perspectiva do transnacional, como bem souberam percorrer dentro desse âmbito Machado de Assis e Madame de Staël. O termo transnacional, segundo visão de Espagne (2017, 2018) se refere a uma concepção de história transnacional que (na França) “integra uma parte importante das transferências culturais e se desenvolve junto a projetos ligados a áreas culturais diferentes ou, ainda que permaneçamos na mesma cultura, a disciplinas diferentes”. Trata-se, portanto, da dinâmica de passagem de um objeto cultural de um espaço geográfico e cultural específico para outro. Neste ínterim, as noções de importação e exportação, partida e chegada e os vetores de transmissão desempenham papel fundamental, antes mesmo de tratarmos das modificações ocorridas no objeto (ressemantização) sob ação do contexto de recepção. É de acordo com esse raciocínio que o termo “transnacional” será aqui utilizado.

Como orientação teórico-metodológica, nos basearemos no conceito de Transferências Culturais (ESPAGNE, 2017), conceito que relativiza a reflexão tradicional de historiografia diante das relações intertextuais e das trocas culturais. Dando enfoque à circularidade dos objetos culturais e atentando para os caminhos históricos, percursos e trajetos, este método possibilita o alargamento do nosso campo de visão para um movimento transnacional dentro de um espaço cultural, também nacional.

Utilizando como base esse conceito teórico e método, a partir de Michel Espagne, nos orientaremos ainda nos resultados do projeto temático “Circulação Transatlântica dos Impressos: a globalização da cultura no século XIX (1789-1914)” que foi realizado entre 2010 e 2016 sob responsabilidade de Márcia Abreu (UNICAMP) e Jean-Yves Mollier (Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines). Os resultados deste importante projeto foram publicados em três volumes, pela editora da UNICAMP. O primeiro, de 2016, organizado por Márcia Abreu, Romances em movimento, reúne estudos dedicados à compreensão da circulação de romances no século XIX no Brasil recorrendo a fontes primárias, impressos de toda a natureza (anúncios, contratos, catálogos de livreiros, correspondências, pareceres de censura, dentre outros). O enfoque é dado ao questionamento de três pilares das histórias literárias convencionais: “o fechamento sobre um território nacional, a concentração sobre a produção dos textos e a busca de explicações para a criação literária em grandes questões político-econômicas” (ABREU, 2016, p. 15). O segundo volume, Suportes e mediadores (2018), organizado por Lúcia Granja e Tânia Regina de Luca, traz estudos que englobam a circulação de periódicos oitocentistas no Brasil, salientando o papel dos mediadores culturais.

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16 Tendo como um dos objetivos “aprofundar a visada interdisciplinar da pesquisa acadêmica, ampliando também a discussão sobre as ‘culturas em contato’ e sobre as trocas e circulação de bens culturais no século XIX” (GRANJA; LUCA, 2018, p. 16), as pesquisas ali reunidas levam em conta o trabalho de editores, livreiros, tipógrafos, editores de revistas, tradutores, ilustradores, escritores, jornalistas, atores e atrizes, empresários teatrais, dentre muitos outros. O terceiro volume, Deslocamentos e mediações (2018), de responsabilidade de Cláudia Poncioni e Orna Levin, orientado pela perspectiva das transferências culturais, analisa “o circuito das trocas culturais no eixo Europa-Brasil” e discute a “difusão das referências europeias no Brasil e a construção de imagens do Brasil na Europa, chamando a atenção para ações individuais empreendidas particularmente por viajantes, letrados, editores, jornalistas e artistas” (PONCIONI; LEVIN, 2018, p. 20).

Uma fonte essencial de pesquisa à qual também recorremos foi o “Dossiê: Trânsitos, trocas e transferências culturais”4 (2019), publicado em edição especial da Revista Letras Raras, da Universidade Federal de Campina Grande, PB. Lá, foram reunidos doze trabalhos, sob coordenação dos professores Wiebke Röben de Alencar Xavier (UFRN), Valéria Augusti (Universidade Federal do Pará) e Jean-Yves Mollier (Université de Versailles Saint-Quentin-em-Yvelines – França). Todos os trabalhos seguem a linha das publicações do projeto Circulação Transatlântica dos Impressos, congregando importantes concepções sobre a circulação de impressos, o trânsito de ideias, a tradução e o papel dos mediadores culturais. A noção de Transferência Cultural surge a partir dos estudos de Michel Espagne e Michael Werner que, com Transferts. Les Relations Interculturelles dans l’Espace Franco-allemand (XVIIIe-XIXe) (1988) abordam as relações culturais entre Alemanha e França do século XIX. Um princípio das Transferências Culturais (ESPAGNE, 2017) que muito nos foi útil é o da dinâmica existente entre o contexto de produção ou de origem de um texto e sua chegada em um outro contexto, o de recepção. Desse modo, essa metodologia compreende que

Toda passagem de um objeto cultural de um contexto para outro tem por consequência uma transformação de seu sentido, uma dinâmica de ressemantização, que só se pode reconhecer plenamente se levarmos em conta os vetores históricos da passagem. Logo, pode-se dizer que a pesquisa sobre as transferências culturais diz respeito à maioria das ciências humanas, mesmo se ela se desenvolveu a partir de uma série de

4 Disponível na página da revista em: http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/issue/view/78. Acesso em 22

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17 pontos de ancoragem específicos. O estudo das transferências culturais leva a relativizar a importância da comparação e, acima de tudo, a noção de centro (ESPAGNE, 2017, p. 136).

Portanto, o que nos possibilita uma visão mais consciente do objeto de que tratamos é o aspecto da “ressemantização”, da apropriação e da manipulação de ideias; os movimentos semânticos do trânsito dos objetos culturais. Outrossim, precisamos ter em mente que “Transferência, não é transportar, mas sim metamorfosear, e o termo não se reduz de modo algum à questão mal circunscrita e bastante banal dos intercâmbios culturais. É menos a circulação de bens culturais que sua reinterpretação que está em jogo” (ESPAGNE, 2017, p. 137). Deste ínterim, é emergente a necessidade de uma categoria de estudos e de um método que alerte e problematize sobre as visões tradicionais dos estudos comparatistas, muitas vezes comprometidos em identificar traços semelhantes entre um produto cultural, como um texto modelo, uma fonte e, portanto, original e um produto modelado a partir do texto fonte, considerado como de valor secundário, carente de trabalho criativo. Sendo assim, “[a] pesquisa sobre a transferência cultural deveria admitir que se pode apropriar de um objeto cultural e emancipá-lo do modelo que o constitui, ou seja, uma transposição, por mais distante que ela seja, tem tanta legitimidade quanto o original” (ESPAGNE, 2017, p. 137).

Inicialmente, ao consultarmos os arquivos da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, suporte que nos deu condição de expor as análises basilares à primeira parte da pesquisa, verificamos a numerosa presença de obras de Staël em circulação no Rio de Janeiro em praticamente todo o século XIX. O momento ao qual mais nos dedicamos corresponde à época da produção machadiana, percorrendo desde suas leituras da juventude até o romance Esaú e Jacó, de 1904, em que registramos referência à autora franco-suíça, daí o recorte temporal em certo caso evidente. A partir daí, pudemos rastrear menções em textos dos intelectuais brasileiros da época com objetivo de compreendermos o modo como as ideias de Germane de Staël eram recebidas nesse meio. Ali constatamos uma tendência de leitura da autora baseada na condição da mulher bem como nos assuntos da moral social; em alguns momentos, deparamo-nos também com interpretações mais depreciativas e até com a proibição da circulação de um ou outro texto staeliano.

Abordamos, mais, o papel decisivo de mediadores culturais, dando atenção especial ao trabalho de B. L. Garnier pela sua proximidade com Machado. Desse modo, foram fundamentais para este tópico as abordagens de Lúcia Granja (2013), o artigo de Jean-Yves Mollier (2019), traduzido por Marta Pragana Dantas (UFPB) e Kátia Aily (UFRN), e o de

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18 Marcos Túlio Fernandes (2019). Os textos abordam o papel de Garnier no Brasil e sua relação com a produção escrita de Machado de Assis.

Na segunda parte da pesquisa, voltamo-nos parta o registro e análise da presença de Staël em textos de Machado de Assis percorrendo o caminho das alusões como estigmas de leitura e vértice no processo de transferências de saberes, adentrando as páginas do Jornal das Famílias onde encontramos referências a Staël feitas pelo Bruxo do Cosme Velho. Ali, identificamos os princípios da correção moral e dos bons costumes familiares como elo do diálogo com Madame de Staël. Na análise do poema “Os Arlequins”, a recorrência à pensadora demonstrou a capacidade de assimilação e adaptação machadianas no decurso da composição de sua sátira, além de revelar-nos a modificação feita nos vocábulos do excerto francês indicando o manejo, às vezes, subversivo, da intertextualidade em Machado de Assis. Verificamos, ainda mais, a presença de Staël, através da citação do excerto do romance Corinne ou l’Italie em uma carta à sua esposa Carolina Novaes. Corinne também surge através do retrato que evoca a memória machadiana em Esaú e Jacó, onde o belo entra em comunhão com os assuntos políticos pertinentes aos irmãos Pedro e Paulo.

No último capítulo do trabalho, procuramos evidenciar o diálogo de Machado com a obra de Staël a partir dos textos críticos. Assim, voltamo-nos aos trabalhos que versam sobre a biblioteca de Machado de Assis, diante o estudo pioneiro de Jean-Michel Massa (1961). Os resultados aos quais chegamos é que, dados os percalços do manejo com o acervo machadiano, percebemos que o autor possuía, comprovadamente, duas obras de Madame de Staël em idioma original, que, acreditamos terem sido fonte de leitura e pesquisa do nosso crítico. Ao nos dedicar, por sua vez, a duas colunas jornalísticas de responsabilidade de Machado, a “Semana Litteraria”, do jornal Diario do Rio de Janeiro e “A Semana”, da Gazeta de Notícias, publicadas e mantidas em momentos históricos diversos, captamos a leitura de Machado sob a ótica do exemplo de Madame de Staël para as letras brasileiras, em especial, na defesa da inserção das mulheres no meio intelectual; em 4.3 resgatamos um prólogo que passou despercebido por coletâneas importantes da obra crítica de Machado. Ali, a temática da viagem em Staël fecunda a apreciação do romance de Ernesto Cibrão.

Nos últimos tópicos do nosso trabalho, procuramos apontar indícios do contato de Machado de Assis com a obra De l’Allemagne (1813), de Mme. de Staël. Verificamos a importação de um excerto do capítulo “Dos romances” em uma crítica ao drama de E. de Girardin e Dumas Filho, “Suplício de uma mulher” e o recurso da citação como espécie de

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19 argumento de autoridade no assunto. Para finalizar, apresentamos algumas importantes pesquisas que se dedicam à tradução de obras da autora de Coppet.

1 ORIENTAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

As orientações de caráter teórico e metodológico que dão norte investigativo às nossas análises referem-se à metodologia das transferências culturais (ESPAGNE, 2017) e da abordagem sobre as alusões, a partir de Marta de Senna (2008).

1.1 As transferências culturais

A escolha do método de investigação a ser utilizado em uma pesquisa deve nutrir-se, todas as vezes, das necessidades de resposta da própria pesquisa. Isso significa que tal escolha não pode prescindir de uma revisão acurada das perguntas e dos problemas estabelecidos para o trabalho, bem como das possíveis respostas a serem buscadas. Assim, obviamente, a definição das orientações teórico-metodológicas resulta da adequação destas à natureza e aos objetivos da pesquisa, tendo em vista a certeza de que o método selecionado viabilizará resultados novos que contribuirão para o alargamento das concepções do objeto que se quer estudar.

Conscientes dessa atitude investigativa, o presente trabalho orienta-se nos estudos das “transferências culturais” desenvolvidos a partir de Michel Espagne e Michaël Werner na década de 1980. Em Transferts. Les Relations Interculturelles dans l'Espace Franco-allemand (XVIIIe-XIXe siècles) (1988), os estudiosos analisam o movimento intercultural entre Alemanha e França enfatizando a figura de Heinrich Heine (1797-1856) como “mediador intelectual” (RODRIGUES, 2010, p. 218). De acordo com Espagne (2018), o fato de Heine tentar implantar na França a filosofia clássica alemã recorrendo a “construções ideológicas e vocabulários – como o saint-simonismo” que são, por sua vez, empréstimos da história intelectual francesa, o torna personalidade emblemática para o conceito de transferência cultural. Segundo Espagne, “todo o enquadramento das transferências culturais se encontra neste exemplo” (ESPAGNE, 2018, p. 6).

Os estudos orientados pelas “transferências culturais” lançam observação a diversos aspectos pouco explorados e quase sempre esquecidos pelas abordagens históricas e teóricas tradicionais. Eles evidenciam o estabelecimento de conexões culturais entre grupos e nações

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20 mediante o trânsito de objetos culturais, pessoas e ideias e, para tanto, recorrem a elementos como o exílio de intelectuais, o comércio transatlântico de mercadorias, a circulação de livros e textos diversos, os mecanismos de importação e exportação de modelos teóricos, o fluxo de artistas, livreiros, editores, companhias de teatro, exilados políticos, entre outros, salientando, ainda, o papel centralizado da tradução. Desse modo,

o estudo das imbricações interculturais abriu espaço ao enfoque do transnacional, do transversal e do cruzamento cultural. Permitindo ultrapassar o quadro nacional do pensamento, as “transferências culturais” acentuaram as inter-relações e suas mestiçagens, rompendo, desse modo, com os limitados estudos sobre as relações ou as influências culturais (RODRIGUES, 2010, p. 205).

Ancoradas nas noções de cruzamento, trocas e imbricações, as pesquisas em transferências culturais enfatizam a função crucial do contexto de recepção em relação à importação que lhe chega. Convém ressaltar que o que está em jogo é o trabalho de “ressemantização” via contexto de recepção. Assim sendo, “alguém recebe alguma coisa e a transforma, como se estivesse tomado de originalidade. E esta originalidade não está naquilo que foi recebido, mas no trabalho e no que é construído, ou seja, ela é elaborada” (ESPAGNE, 2018, p. 8). A partir dessa proposta de recepção, nos agarramos ao viés transformador e ressignificador do contexto cultural que importa determinada ideia, noção, conceito, procedimento.

O nosso trabalho realça essa proposta e a ela recorre ao demonstrar como se configura a recepção de Madame de Staël em textos de Machado de Assis, dada a dinâmica da circulação de textos e ideias da autora no contexto machadiano e o efetivo trabalho de reinterpretação destes elementos simbólicos pelas mãos do escritor carioca.

No intuito de esboçarmos um caminho de compreensão do lugar de Madame de Staël nos escritos de Machado de Assis mediante o que nos oferece o método das transferências culturais, nos detivemos em alusões à pensadora francesa presentes no texto machadiano. No selecionamento ou no que pudemos identificar dessas alusões, levamos em consideração as eventuais menções realizadas por meio de citação explícita de textos ou ideias da autora, menção direta ao nome da mesma ou de suas obras, intercaladas no texto de nosso escritor.

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1.2 A alusão como estigma de leitura e vértice no processo de transferência de saberes

Qual ou quais seriam as funções das inumeráveis alusões na escritura machadiana? Como situar esse procedimento nos estudos de transferência tendo em vista a especificidade de tal escritura? No caso de Machado de Assis, de que modo a pesquisa em transferências culturais pode valer-se das alusões como estigmas de leitura e cruzamento cultural para, a partir daí, contribuir para uma revisão, no plano de um redesenho, da historiografia e estética machadianas? No nosso caso, trata-se do problema de identificar a presença de Madame de Staël na escrita de Machado de Assis, o que sinalizaria o intercâmbio de ideias, mas tendo em mente os empréstimos, o aproveitamento dessas ideias no texto machadiano, sua “reinterpretação” (ESPAGNE, 2017, p. 137), o que configurará o diálogo entre textos, entre culturas diversas. Esse processo se nos mostra como um fio transatlântico de sentidos em trânsito por meio da circulação de objetos culturais. A alusão, assim sendo, a princípio, nos serviria como sinal do diálogo mediante o deslocamento material de livros e outros objetos, tidos como vetores de passagem de uma nação para outra.

De tal maneira, se “os objetos de análise são os mais distintos possíveis” e se é de competência do investigador “a interrogação das condições de possibilidades de utilização desse método” [o método das transferências culturais] (RODRIGUES, 2010, P. 208), é preciso recorrer aos prováveis sinais de conexão entre os dois autores aqui referidos. E a alusão, materializada de diferentes tipos no texto machadiano, constituindo-se quase em um verdadeiro “vício” de nosso escritor, poderá servir-nos como portal ao universo dos objetivos de nossa pesquisa, à conexão de ideias e sentidos existente entre alguns escritos de Machado de Assis e de Madame de Staël.

A produção escrita de Machado de Assis está repleta de menções diretas aos mais diferentes autores e textos, das mais diversas épocas e lugares e campos intelectuais, formando um verdadeiro mosaico de ligações que recai sobre as noções de leitura, apropriação, tradução e “ressemantização” de ideias, saberes e procedimentos estéticos (ESPAGNE, 2010).

A natureza dos “deslocamentos semânticos (RODRIGUES, 2010) sinalizada pelas alusões é multifacetada, ou como define Schwarz (2000, p. 209), “o uso machadiano das citações, sempre especioso, merece um estudo particular”. A fala de Schwarz, em vista disso, aponta duas peculiaridades no tratamento das citações presentes na obra de Machado: de um lado, o crítico alerta para o caráter ilusório e enganoso das mesmas, o que, de acordo com essa

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22 visão, já descarta o mero ato de mencionar. Disto, entendemos que, ao citar Madame de Staël, Machado estaria tramando uma problemática intertextual e transcultural no texto por meio do diálogo com a autora romântica franco-suíça de tal modo que a alusão feita configura-se como uma espécie de vértice na dinâmica de transferência. Em segundo lugar, Roberto Schwarz (2000) reconhece a necessidade de uma análise sistêmica das citações machadianas, justificando, pois, o lugar de relevância das mesmas na obra do Bruxo, o que salienta a necessidade de nossa pesquisa.

Marta de Senna (2008) vem se dedicando às relações intertextuais na obra machadiana há alguns anos e, fruto dessas análises, vem construindo uma base de dados eletrônica, de caráter virtual, em que consta um número impressionante de menções e citações em contos e romances de Machado de Assis, cerca de “mais de dois mil registros”, segundo Senna (2008, p. 270). No site5, é possível localizar alusões de cunho diverso, como explica a nota de abertura da página:

Nela, o estudioso interessado em tais citações e alusões encontrará um instrumento de pesquisa que lhe possibilitará localizar autores citados, assim como obras mencionadas, fatos históricos, personagens (ficcionais ou históricas) e lugares (desde que tenham conotação alusiva ou simbólica) nomeados ou a que se faz alusão. Poderá, ainda, identificar referências de fontes anônimas, como provérbios, ditados e adágios, e criações coletivas, como a Bíblia, a Mitologia Clássica, ou a História. (Site Machado de Assis.Net, 2008)

O trabalho minucioso de Marta de Senna, convém ressaltar, oferece-nos uma visão macro “da variedade do universo de autores, gêneros e estilos convocados para o interior da ficção machadiana” (SENNA, 2008, p. 270). O fato de essa grande quantidade, de acordo com a estudiosa, ser “convocada” para dentro do universo literário machadiano já anula o caráter meramente quantitativo de seu trabalho, o que tornaria este um “exercício estéril”. De outro modo, a enumeração elaborada por Senna provoca-nos a pensar sobre o passeio cultural feito por Machado no interior de seus textos, pois, como enfatiza a estudiosa, são “pelo menos, vinte e oito séculos de cultura, pelos quais o nosso autor transita com desenvoltura e elegância, quase sempre com humor, não raro com ironia” (SENNA, 2008, p. 269 grifo nosso).

5 Ver http://www.machadodeassis.net.

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23 Quando, a propósito, Senna se utiliza do verbo transitar, sinaliza uma dada conformidade de sua metodologia de pesquisa com as transferências culturais. De fato, Machado transita por uma imensidão de obras culturais enquanto estas circulam em sua produção escrita. Se trânsito e circulação se materializam aqui mediante o processo de leitura e escrita não deixam de pressupor a ideia de deslocamento geográfico na medida em que tais obras chegam nas mãos de nosso escritor, à sua biblioteca ou às prateleiras das livrarias e gabinetes de leitura e bibliotecas cariocas frequentadas por ele. É preciso ressaltar aqui que a lista de alusões machadianas vai muito além do número expressado por Marta de Senna, dado o fato de que a estudiosa rastreou apenas menções nos contos e romances, deixando de fora o abrangente universo de crônicas, textos críticos, poemas e cartas, e, até prólogos. Esse panorama torna óbvio o frequente movimento de trocas e diálogos interculturais na obra machadiana, sua conectividade entre a mesma e toda uma tradição literária estrangeira.

A questão do trânsito de ideias em Machado de Assis por meio da escrita, pressupõe o itinerário social de nosso escritor, as amizades, os encontros pessoais, passeios, visitas e contatos diversos. Assim, de acordo com Barreto Filho (1980, p. 66), “dos 21 aos 25 anos Machado trabalha, frequenta os cafés, as rodas, os teatros” e lembra que “esse intercâmbio literário se fazia ainda em outros lugares, particularmente nos salões”, apontando que “o teatro foi, ainda, um grande benefício para ele, pela soma de contatos e experiência que lhe proporcionou”. (FILHO, 1980, p. 38-43). A propósito, veremos mais adiante, será, em grande parte, esse convívio com o teatro que moldará sua visão crítica em dado momento, sempre acolhendo-se do diálogo transcultural, tal como se dará, no caso de Madame de Staël, com as ideias sobre o papel educador e moralizador da obra literária.

Machado, como já apontamos, manteve-se sempre em contato com as novidades europeias, especialmente as francesas, cuja presença está espalhada em toda a sua obra. A dinâmica de circulação cultural da sociedade que Machado presenciou e da qual fez parte chega a quase anular o fato de Machado não costumar deixar a sua cidade, o Rio de Janeiro. Mas, as modas e os produtos europeus, os viajantes estrangeiros e as instalações francesas disseminavam modos de agir, ideias fazendo da capital do império uma Paris latino-americana. Então se o próprio Machado nunca viajou à Europa, têm papel importante para a sua intelectualidade, amigos de além-mar através de suas cartas e presentes enviados, editores e tradutores, revistas e periódicos diversos, bibliotecas, teatros, entre outros.

O jovem rapaz frequenta muitos ambientes nos quais tem acesso a livros, retratos, e outros impressos: “é Francisco Ramos Paz quem o leva a frequentar a Biblioteca Nacional, a

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24 Biblioteca Fluminense, o Gabinete Português de Leitura e o Retiro Literário Português” (FILHO, 1980, p. 59). As muitas leituras de literatura portuguesa serviram-lhe, notadamente, conforme Barreto Filho, ao “manejo do vernáculo”, ao passo que outras, e acrescentamos aqui as de Madame de Staël, “terão uma repercussão maior relativamente ao campo das ideias”. Levando em conta as observações do estudioso, entendemos que as citações no texto machadiano nos dão mostra das “correntes de pensamento que formam o lastro de seu patrimônio intelectual”, enquanto “leitor arguto e assíduo daqueles maravilhosos escritores europeus” (SANTOS, 2008, p. 32).

Quando nos propusemos a refletir sobre o intercâmbio de ideias na obra de Machado de Assis, nos atendo nas alusões explícitas e em sinalizações imprescindíveis para um dimensionamento de sua condição literária, verificamos o minúsculo espaço dedicado ao diálogo de sua obra com Madame de Staël. Obviamente, esta autora não está no rol dos nomes mais mencionados por Machado, de modo que o caráter quantitativo não justificaria jamais a necessidade dessa pesquisa. Portanto, são preocupações de ordem qualitativa que dão molde às nossas investigações.

Algumas questões são cruciais ao delineamento deste trabalho: primeiro: ao rastrearmos as menções à autora franco-suíça, notificamos a presença destas em diferentes momentos da atividade escrita machadiana, momentos estes, que compreendem desde a sua juventude até à idade madura. É interessante perceber, assim, como se configura a recepção das ideias de Germane de Staël nos diferentes momentos da produção escrita e da vida de nosso autor. Por que as referências a Staël, mesmo que de modo pouco numeroso, espalham-se diacronicamente na escrita de Machado de Assis, tendo em conta a enorme diferença entre as principais fases do escritor brasileiro? O pensamento e as ideias de Staël o acompanham na juventude e na maturidade, além de penetrarem no recôndito espaço de seus sentimentos: na intimidade do marido apaixonado, em suas cartas à amadíssima esposa Carolina Xavier.

Em segundo lugar, é com Marta de Senna que corroboramos a dimensão qualitativa da presença staeliana em textos de Machado de Assis:

As citações na ficção machadiana, sobretudo nos romances e contos da maturidade, não são jamais gratuitas. Na obra da juventude, até poderiam ser consideradas como artifício de um escritor que precisa afirmar-se perante o leitor e perante os seus pares, um diploma de cultura, uma carta de legitimação de alguém que vai abrindo o seu caminho no mundo das letras, tendo partido de uma origem socialmente humilde e obscura. Na obra madura (e, muitas vezes, mesmo na juventude), não. Aí a citação e a alusão são absolutamente funcionais, servindo ora

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25 à caracterização de uma personagem, ora à estratégia do narrador, ora à própria estruturação da obra, ora a um propósito extratextual, ora à sugestão de uma atmosfera. (SENNA, 2008, p. 271)

Senna parece salientar as alusões da maturidade machadiana, cuja serventia estaria no seu fazer estético ao passo que as menções da juventude lhe serviriam como afirmação no mundo das letras. Em ambos os sentidos, reconhece-se a grande importância de Madame de Staël para Machado de Assis, seja enquanto ficcionista, jornalista, crítico literário, homem do seu tempo.

Ao observarmos as menções, logo mais adiante, poderemos inferir em que direcionamento elas apontam, como Machado se utiliza delas, pois, como propõe Senna (2008, p. 270), “o interessante, é uma vez identificadas as referências, tentar compreender o uso que delas faz o autor, de que maneira as faz render este ou aquele resultado, com que habilidade as põe a serviço de sua própria obra”. Entretanto, para que “este ou aquele resultado” obtenha real significação no campo da história literária, a manifestação simbólica ficcional pressupõe fatores contextuais porquanto “torna-se relevante também a análise do campo em que se produziu a experiência literária, e o contexto de recepção da obra é tratado com a mesma importância do de produção” COUTINHO, 2008, p. 130).

A alusão, portanto, sinaliza o encontro de ideias, de textos e de pensamentos engendrados para além do procedimento estético. Ela vai indicar escolhas do autor perante o seu momento histórico, a sua responsabilidade social, os objetivos políticos, ideológicos e morais dos periódicos nos quais colaborou, como também imprimir a sua personalidade, a sua crítica e a sua subjetividade diante dos assuntos tratados. O procedimento alusivo configura-se, enfim, como vértice onde

são lançadas em conflito duas instâncias temporais e espaciais distintas, e é na dialética estabelecida entre estas instâncias de produção e recepção de textos que se tece o discurso da história literária, não mais como um relato pretensamente objetivo de fatos, mas como discurso, construção (COUTINHO, 2008, p. 131)

Neste âmbito, os estudos de transferências têm aberto muitas frestas pelas quais o olhar curioso e cuidadoso do pesquisador deve penetrar no intuito dessa construção, com o entendimento de que é preciso sempre revisitar a história na busca de novos caminhos. Quando, pois, encerramos os nossos olhares somente à extensão do texto, ignoramos a amplitude do mesmo, deixamos de lado os motivos da escrita, as escolhas do autor, as

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26 implicações da publicação e o leitor situado numa época; anulamos o acontecimento cultural realizado no texto e, no nosso caso, no encontro de textos.

Para os intuitos desta pesquisa, recorremos aos arquivos digitais da Biblioteca Nacional, disponíveis no site www.bndigital.bn.gov.br. O rico acervo da Hemeroteca Digital, composto de vários jornais e periódicos, organizados por décadas, favoreceu a pesquisa sistemática dos registros de menções e alusões através da consulta direta ao material. De igual relevância foi também o acervo de catálogos de livreiros oitocentistas disponível no site http://www.circulacaodosimpressos.iel.unicamp.br/ do projeto de cooperação internacional “Circulação Transatlântica dos Impressos” O acesso aos arquivos da BN Digital e aos do projeto mencionado serviu-nos como base de constatação da presença de obras de Madame de Staël em circulação no contexto estudado.

A escolha do Jornal do Commercio (RJ) como principal fonte de consulta a referências ao nome de Madame de Satël se justifica por fatores como a sua longevidade durante todo o século XIX e o seu caráter mercadológico, de onde poderíamos extrair informações sobre a circulação dos livros, tidos como mercadorias e, principalmente, onde certamente mais cedo, se divulgavam as novidades vindas da Europa.

Outro sítio consultado foi a página da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (disponível em www.bbm.usp.br). O acervo, reunido por mais de 80 anos pelo bibliófilo José Mindlin e sua esposa Guita, dispõe de um vasto acúmulo de obras das quais nos utilizamos para rastrear e identificar a presença de Madame de Staël na escrita dos intelectuais cariocas do Século XIX. Destacamos os escritos que, em dada medida, fazem referência às ideias da autora franco-suíça. Buscamos, com isso, compreender certos aspectos importantes sobre a recepção das ideias staelianas, mediante menções e comentários sobre a leitura de sua obra pelos intelectuais brasileiros da época. Somando esses resultados com os registros da BN Digital, pudemos captar a natureza crítica e temática da recepção das ideias de Staël no quadro histórico em que esteve inserido o escritor Machado de Assis.

O uso dos arquivos no nosso trabalho demonstra a abrangência das análises mediante as transferências culturais. Um ponto central nas nossas observações é a íntima relação entre imprensa e literatura no século XIX. Ao permitir ao pesquisador o manejo e a exploração dos gêneros veiculados nos jornais, a metodologia das transferências culturais nos põe diante de encontros decisivos para a formação da literatura machadiana e brasileira. A partir daí é preciso reconhecer o papel fundamental da circulação dos impressos para o estabelecimento de uma cultura letrada e para o delineamento de um projeto literário nacional.

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27 No caso específico das circulações entre Europa e América Latina, destacamos aqui, o processo de transferências culturais no eixo transatlântico França-Brasil com foco na recepção de obras francesas no Rio de Janeiro nos meados do século XIX. No decorrer do trabalho, orientaremos esta reflexão para a presença de obras de Madame de Staël circulando no ambiente carioca de meados para o final do oitocentos, período que compreende a vida e a produção escrita de Machado de Assis, cuja recepção da obra de Staël constitui centro desta pesquisa.

As observações e análises desta pesquisa tomaram como base direcional, dada a sua dimensão metodológica, os resultados do projeto “Circulação Transatlântica dos Impressos: a globalização da cultura no século XIX (1789-1914)” coordenado por Márcia Abreu (UNICAMP) de Jean-Yves Mollier (Université de Versailles Saint-Quentin-em-Yvelines) O projeto agrupa um numeroso rol de pesquisadores de diversas partes do globo na tentativa de “identificar e analisar os processos culturais, políticos e econômicos colocados em movimento pela circulação dos impressos e ideias em escala transnacional, analisando as apropriações dessas ideias”6. Pesquisadores estes conectados no eixo Inglaterra, França, Portugal e Brasil. Somados aos resultados destes estudos, exploramos os trabalhos publicados na edição especial de 2019 da Revista Letras Raras (UFCG/PB), o “Dossiê: Trânsito, trocas e transferências culturais” organizado por Wiebke Röben de Alencar Xavier (UFRN), Valéria Augusti (Universidade Federal do Pará) e Jean-Yves Mollier (Université de Versailles Saint-Quentin-em-Yvelines – França), cujos resultados se referem ao trânsito e trocas culturais e à circulação de impressos no Brasil.

Ao nosso ver, a principal particularidade dessa proposta (e o ponto que mais nos interessa) é o fato de a mesma evidenciar o intenso movimento de trocas culturais mediante a análise detalhada da circulação de objetos e agentes culturais difusores e produtores de ideias entre essas nações durante o século XIX. Neste sentido, o projeto tem desenvolvido e publicado diversos estudos, agrupados em três eixos principais, (agentes do intercâmbio entre países, instituições e lugares, formas materiais e gêneros textuais), no intuito de perscrutar os fios de conexão estendidos entre esses povos e seus intelectuais por meio da cultura impressa e do movimento transatlântico de bagagens culturais e pessoas, compreendidos estes, como vetores culturais por onde a cultura se desloca, caminha e transforma-se.

Portanto, o aparato metodológico das transferências culturais nos permite alargar as possibilidades de pesquisa ao reconhecer, em variados campos, objetos e espaços, novas

6 Disponível em http://www.circulacaodosimpressos.iel.unicamp.br/index.php?cd=1&lang=pt. Acesso em 19 de agosto de 2018.

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28 fontes de investigação. Dessa maneira, cabe a nós adentrarmos o detalhado mundo dessas fontes, como, por exemplo, os catálogos dos livreiros, para elucidarmos caminhos pelos quais os estudos literários pouco lançaram suas observações.

2 A CIRCULAÇÃO DE OBRAS DE MADAME DE STAËL NO RIO DE JANEIRO DURANTE O SÉCULO XIX: PRESENÇA E RECEPÇÃO

A condição recente de ex-colônia portuguesa, ainda muito intimamente ligada aos desígnios da metrópole, não impediu que as demandas de um público leitor em formação no Brasil provocassem formas de contato intenso com livros franceses. Nos séculos XVIII e XIX, graças a essa condição de metrópole colonial, “Portugal espalhava livros por suas possessões na América, na África e na Ásia” (ABREU, 2011, p. 119), e devido à expressividade numérica do leitorado brasileiro, em relação ao lusitano, livreiros e editores portugueses, ao mesmo tempo que investiam na importação e comercialização de livros para o Brasil, mantinham vigilância contínua quanto à ação de comerciantes franceses neste lado do atlântico. Porém, é muito curioso o fato de que, já na segunda metade do século XVIII, de acordo com Márcia Abreu (ABREU,2011, p. 119), “ao menos catorze dos dezessete livreiros de Lisboa são franceses; no Porto, eles são seis e em Coimbra, cinco”, o que atesta o fato de que “alguns dos maiores profissionais do livro [...] eram de origem francesa”. Outrossim, “a presença das Gazettes no Rio de Janeiro demonstra a inserção do Brasil em um espaço midiático que não é restrito às fronteiras políticas e rompe, inclusive, com a barreira colonial” (GUIMARÃES, 2016, p. 17). Neste sentido, a importância desses profissionais – livreiros-editores-comerciantes – deve ser reconhecida e considerada no contexto da amplitude das relações culturais exercidas pela França e o Brasil de tal época, uma vez que aquela nação “não se contentava apenas em vender fora do país os livros que produzia; ela exportava também seus livreiros e editores” (ABREU,2011, p. 119). O esforço português no tocante ao impedimento da comercialização de livros por parte dos profissionais franceses no Rio de Janeiro é atestado pelo estabelecimento de diversos órgãos de censura e controle no trânsito de livros. Contudo, Paulo Martin, um dos principais livreiros franceses que atuavam em Portugal, envia seu filho ao Rio de Janeiro, o qual já no começo do século XIX, acaba por tornar-se “o mais expressivo livreiro” e “primeiro editor” em terras cariocas.

Esses desdobramentos contribuem para um rápido crescimento de leitores interessados em obras francesas, num momento em que Paris assume uma “centralidade cultural ímpar” na

Referências

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