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1 - A articulação entre o direito e os dispositivos de normalização

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PRISCILA PIAZENTINI VIEIRA∗

No curso Nascimento da Biopolítica (FOUCAULT, 2008a), dado entre 1978 e 1979, Foucault reflete sobre a figura do “sujeito de direito”, que emerge entre os séculos XVIII e XIX. Se, de um lado, ele possuía direitos naturais, por outro lado, essa garantia implicava, ao mesmo tempo, uma renúncia. Sobre essa “mecânica do sujeito de direito”, Foucault comenta:

(...) o sujeito de direito é por definição um sujeito que aceita a negatividade, que aceita a renúncia a si mesmo, que aceita, de certo modo, cindir-se e ser, num certo nível, aquele que aceita o princípio de renunciar a eles e vai com isso se constituir como um outro sujeito de direito superposto ao primeiro. A divisão do sujeito, a existência de uma transcendência do segundo sujeito em relação ao primeiro, uma relação de negatividade, de renúncia, de limitação entre um e outro, é isso que vai caracterizar a dialética ou a mecânica do sujeito de direito, e é aí, nesse movimento, que emergem a lei e a proibição (FOUCAULT, 2008a: 374).

Foucault trata desse tema quando estuda a especificidade de uma outra figura, não mais produzida pelos filósofos do direito, mas pelo liberalismo: a do “sujeito de interesse”. Sobre este último, ele participa de uma mecânica que nunca defenderá a renúncia aos seus interesses. Diferentemente do que ocorre com o sujeito de direito, não há a produção de uma transcendência e “a vontade de cada um vai se harmonizar espontaneamente e como que involuntariamente à vontade e ao interesse dos outros” (FOUCAULT, 2008a: 375). A problemática do homem econômico, do sujeito de interesse, então, coloca ao exercício do poder uma questão completamente diversa da elaborada pelo homem jurídico, pela figura do sujeito de direito.

1 - A articulação entre o direito e os dispositivos de normalização

Outra diferença em relação à teoria do contrato e ao sujeito de direito já havia sido detectada por Foucault em 1975. Para entender como o poder se exercia na modernidade, Vigiar e Punir (FOUCAULT, 2005a) indicava as “disciplinas” como a contrapartida aos códigos jurídicos, que asseguravam os direitos fundamentais aos indivíduos:

É pós-doutoranda em História Cultural pelo Departamento de História, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da

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O sonho de uma sociedade perfeita é facilmente atribuído pelos historiadores aos filósofos e juristas do século XVIII; mas há também um sonho militar da sociedade; sua referência fundamental era não ao estado da natureza, mas às engrenagens cuidadosamente subordinadas de uma máquina, não ao contrato primitivo, mas às coerções permanentes, não aos direitos fundamentais, mas aos treinamentos indefinidamente progressivos, não à vontade geral, mas à docilidade automática (FOUCAULT, 2005a: 142).

O sonho militar de uma sociedade perfeita, portanto, não recorria ao estado da natureza, ao contrato primitivo e à vontade geral, os quais os iluministas defendiam, mas à metáfora da máquina, às coerções permanentes e à docilidade automática. Foucault demarca essas diferenças, pois, o seu objetivo é combater uma determinada concepção de poder sobre a modernidade que se pauta inteiramente pelo problema da soberania jurídica. Não é somente em Vigiar e Punir que essas oposições aparecem, mas também no curso Em Defesa da Sociedade (FOUCAULT, 2005b) e em A Vontade de Saber (FOUCAULT, 2007a). Márcio Alves da Fonseca, em Michel Foucault e o Direito, denomina essa oposição entre o direito e a normalização como a primeira imagem do direito que aparece em Foucault:

(...) o que estaria em jogo nos textos aqui referidos seria a pesquisa em torno de uma concepção clássica de poder e a necessidade de sua superação enquanto modelo explicativo das relações entre os campos de saber, os tipos de normatividade e as formas de subjetividade que caracterizam o presente (...) Trata-se da imagem do direito como “legalidade”, imagem que servirá ao autor para pensar a diferença entre o modelo explicativo do poder representado pela soberania e pelo modelo da normalização (FONSECA, 2002: 29).

Ao tratar dos castigos legais e da prisão, Foucault defende que a tecnologia corretiva opera uma “requalificação do sujeito de direito” (FOUCAULT, 2005a: 184) e “o contradireito se torna o conteúdo efetivo e institucionalizado das formas jurídicas” (FOUCAULT, 2005a: 184). Nesse sentido, a teoria do contrato opõe-se tanto às disciplinas quanto aos dispositivos de segurança que caracterizam o sujeito de interesse do liberalismo. Apesar dessa primeira oposição, Fonseca lembra que não há incompatibilidade ou contradição entre a soberania e as disciplinas. O seguinte trecho de Foucault alerta para a dupla referência que funda a modernidade: “As ‘Luzes’ que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas” (FOUCAULT, 2005a: 195). Entre norma e direito, portanto, não há somente oposição, mas também

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articulações, implicações e colonizações de um pelo outro. Constitui-se aí, ainda segundo Fonseca (FONSECA, 2002: 154), uma segunda imagem do direito em Foucault.

Oswaldo Giacoia (GIACOIA JUNIOR, 2008: 267-268) também reflete sobre essa dupla formação da modernidade. Apoiando-se em Foucault, ele mostra como é importante não contrapor de forma simplista o direito de soberania às disciplinas, ao biopoder e à regulamentação previdenciária: “Trata-se antes de superar essa oposição pelo reconhecimento da função bio-política do próprio direito de soberania (formal, liberal e burguês)” (GIACOIA JUNIOR, 2008: 287). Ele alerta, ainda, que as tentativas realizadas na atualidade para a reconstrução dos direitos humanos não atentam para essa relação. Para tratar dessa discussão fundamental, ele cita uma passagem de Homo Sacer (AGAMBEN, 2002: 127), de Giorgio Agamben:

Tudo se passa, portanto, como se, “a partir de um certo ponto, todo evento político decisivo tivesse sempre uma dupla face: os espaços, as liberdades e os direitos que os indivíduos adquirem no seu conflito com os poderes centrais simultaneamente preparam, a cada vez, uma tácita porém crescente inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e mais terrível instância ao poder soberano, do qual desejariam liberar-se” (GIACOIA JUNIOR, 2008: 287).

É, dessa forma, que Giacoia, seguindo Foucault e Agamben, aponta para a contrapartida dos direitos individuais promulgados pelas Declarações dos Direitos do homem e do cidadão: “ao lado da função emancipatória das declarações de direitos fundamentais, seria também indispensável perceber que elas integram o dispositivo do abandono da vida nua à violência dos mecanismos de poder” (GIACOIA JUNIOR, 2008: 284). Por isso o grande destaque reservado à filosofia de Agamben, já que ela representa “uma retomada da crítica à concepção jusnaturalista dos direitos humanos (...) em sua versão talvez mais radical” (GIACOIA JUNIOR, 2008: 181).

É o próprio Agamben (AGAMBEN, 2000: 170), ainda, que sublinha como pensamentos que tomam a vida como tema de reflexão, como o de Foucault, compartilham sempre com o poder o mesmo objeto, e confrontam-se com suas estratégias. Os estudos de Foucault sobre o biopoder nunca deixaram dúvidas sobre essa dimensão. Para o francês, em A Vontade de Saber, contra esse poder ainda novo no século XIX, forças que resistem se apoiaram exatamente naquilo sobre o que ele investe – na vida e no homem enquanto ser vivo. As grandes lutas que questionam o sistema geral de poder, então, já não se fazem mais em nome de um retorno aos antigos direitos. O que foi reivindicado e serve de objetivo é a vida. Desse modo, a vida como

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objeto político foi tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que tentava controlá-la. Ele complementa:

Foi a vida, muito mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas políticas, ainda que estas últimas se formulem através de afirmações de direito. O “direito” à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o “direito”, acima de todas as opressões e “alienações”, de encontrar o que se é e tudo o que se pode ser, esse “direito” tão incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica política a todos esses novos procedimentos de poder que, por sua vez, também não fazem parte do direito tradicional da soberania (FOUCAULT, 2007a: 136).

2 - Por um “direito novo”

Essa réplica política aos procedimentos do biopoder, assim, não está também no campo do direito tradicional da soberania. No curso Em Defesa da Sociedade, Foucault afirma que não se trata de recorrer à soberania para limitar os efeitos do poder disciplinar, mas de propor um “direito novo”:

De fato, soberania e disciplina, legislação, direito da soberania e mecânicas disciplinares são duas peças absolutamente constitutivas dos mecanismos gerais de poder em nossa sociedade. Para dizer a verdade, para lutar contra as disciplinas, ou melhor, contra o poder disciplinar, na busca de um poder não disciplinar, não é na direção do antigo direito de soberania que se deveria ir; seria antes na direção de um direito novo, que seria antidisciplinar, mas que estaria ao mesmo tempo liberto do princípio de soberania (FOUCAULT, 2005b: 47).

Fonseca entende essa proposta de um direito novo como a terceira imagem do direito em Foucault (FONSECA, 2002: 241), ou seja, aquela em que reaparece a oposição entre a normalização e o direito, mas para colocar como condição um direito que se liberte dos mecanismos de normalização e do princípio da soberania:

A expressão “direito novo” remete aqui a uma imagem em que o direito aparece como liberado dos mecanismos de normalização e, desse modo, como um direito que se constitui como resistência às disciplinas e aos dispositivos de segurança (FONSECA, 2002: 242).

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No texto “Face aux gouvernements, les droits de l’homme” (FOUCAULT, 1994a: 707-708), escrito em 1981, Foucault fala da situação complicada pela qual os imigrantes ilegais na Europa passavam, principalmente nos traslados feitos em embarcações marítimas clandestinas, e critica a falta de atitude dos governos internacionais para solucionar esse problema grave. Foucault escreve:

Existe uma cidadania internacional que tem seus direitos, que tem seus deveres e que se compromete a se levantar contra todo abuso de poder, qualquer que seja o autor, quaisquer que sejam as vítimas. Antes de tudo, somos todos governados e, como tal, solidários (FOUCAULT, 1994a: 708).

Sobre esse texto, Fonseca (FONSECA, 2002: 290) atenta para o elo que, segundo Foucault, uniria todos os indivíduos: o fato de todos serem governados. Nessa condição, seria um dever da cidadania internacional denunciar o infortúnio dos homens, assim como seria responsabilidade de todo indivíduo se inquietar. Foucault acrescenta:

Deve-se recusar a partilha de tarefas que, muito frequentemente nos propõe: aos indivíduos indignar-se e falar; aos governos refletir e agir (...) A experiência mostra que se deve recusar o papel teatral da pura e simples indignação que nos é proposto (FOUCAULT, 1994a: 708).

É nessa mesma ocasião que ele cita algumas organizações não governamentais que ousaram intervir na ordem das políticas e das estratégias internacionais, e acabaram criando um direito novo, como explica a seguir:

Anistia Internacional, Terra dos homens, Médicos do mundo são iniciativas que criaram esse direito novo: aquele dos indivíduos proibidos de intervir efetivamente na ordem das políticas e das estratégias internacionais. A vontade dos indivíduos deve se inscrever em uma realidade na qual os governos reservaram-se o monopólio, esse monopólio que deve ser arrancado pouco a pouco e a cada dia (FOUCAULT, 1994a: 708).

Para Fonseca, há uma grande dificuldade para se discutir o tema dos Direitos do Homem em Foucault, exatamente pelos pressupostos característicos de sua filosofia, tais como o fim do universal e a morte do

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homem (FONSECA, 2002: 287). Por isso o texto “Face aux gouvernements, les droits de l’homme” é tão importante, pois:

(...) a imagem de um direito novo, em Foucault, deve ser procurada em práticas que expressem atitudes que se constituam numa forma de oposição à submissão dos indivíduos e dos grupos às artes de governar apoiadas nos mecanismos de normalização (FONSECA, 2002: 268).

Além de Fonseca, Mathieu Potte-Boneville (POTTE-BONEVILLE, 2003) e Philippe Chevallier (CHEVALLIER, 2013) também destacam esse texto para a compreensão de um direito novo em Foucault. Em um quadro no qual as racionalidades jurídica e normativa se encontram e se defrontam, Potte-Boneville alerta para o grande valor que a militância política de Foucault possui para discutir esse tema. Nessa reflexão sobre “os novos direitos do homem”, Foucault recusa qualquer referência a um direito fundador sem, entretanto, renunciar à retórica do direito como instrumento de luta. Ou seja, mesmo que Foucault denuncie as implicações do direito com os mecanismos de saber-poder modernos, ele, ao mesmo tempo, não o recusa totalmente, pois pensa em um direito que virá ou que ainda nos falta construir (POTTE-BONEVILLE, 2003: 28-29).

Ao cruzar os textos de combate de Foucault com os seus cursos, tais como O Poder Psiquiátrico (FOUCAULT, 2006a) e Nascimento da Biopolítica, Chevallier lida com um aparente paradoxo entre um pensamento que recusaria a resistência somente pela conquista de direitos e uma militância política que lutaria pelos direitos dos indivíduos:

(...) segundo certas perspectivas sobre o pensamento de Foucault, a resistência ao poder só poderia ser pensada em termos de relações de forças, não em termos de direitos, o que parece contradizer seus próprios engajamentos de militante pelo direito dos indivíduos e contra a violência do Estado (CHEVALLIER, 2013: 01).

É, também, na direção de um direito novo e antidisciplinar que Chevallier destaca o “uso circunstancial dos direitos” por Foucault, o que o faria lutar ativamente dentro dessa estratégia e não ficar esperando pela invenção de um novo código (CHEVALLIER, 2013: 07). Trata-se, portanto, de um “uso estratégico” (CHEVALLIER, 2013: 08) do direito. Giacoia discute esse uso, lembrando que se as declarações de direitos são a outra face do racismo biopolítico, “justamente (...) um combate no campo das

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conquistas representadas pelos direitos humanos justifica-se como um tipo de ação estratégica” (GIACOIA JUNIOR, 2008: 296).

Potte-Bonneville não encontra na obra de Foucault nenhuma forma teórica acabada sobre essa nova figura do direito, já que ele ultrapassa todo programa ou quadro conceitual prévio. Giacoia encontra o desenvolvimento mais detalhado desse “novo direito” na filosofia de Agamben, em uma crítica que pretende liberar a política do paradigma do biopoder e separá-la de sua vinculação com o Estado e com o Direito (GIACOIA JUNIOR, 2008: 288). Ele termina sua “Aula Inaugural” com um convite: aceitar o desafio de continuar a pensar nessa linha de um novo direito (GIACOIA JUNIOR, 2008: 304).

Chevallier e Fonseca avançam essa discussão, principalmente quando abordam a presença da subjetividade na revolta dos indivíduos governados por esse direito. Chevallier conclui o seu texto mostrando como a expressão de Foucault “não ser governado” engloba “uma forma refletida de subjetividade, uma relação consigo” (CHEVALLIER, 2013: 13), e que a reflexão sobre um direito novo está no “cruzamento de uma transformação do mundo e uma transformação de si” (CHEVALLIER, 2013: 13). Ao modo de Chevallier, Fonseca relata como os exemplos da imagem de um direito novo em Foucault podem ser encontrados em suas práticas de militância política, as quais “se reportam ao domínio (...) da ‘ética’” (FONSECA, 2002: 268). Mesmo que não tenha a pretensão de discutir detalhadamente o tema da ética, Fonseca sugere a sua importância para compreender a imagem de um direito novo: “a imagem de um ‘direito novo’ presente em Foucault corresponderia, para o autor, a uma forma ‘ética’ do direito” (FONSECA, 2002: 278).

Os autores citados anteriormente mostraram a relevância da imagem de um direito novo presente no pensamento de Foucault, que não se associa à soberania jurídica, e nem às disciplinas, ao biopoder ou aos mecanismos de segurança. Se o domínio da ética é fundamental para compreender as transformações produzidas no pensamento de Foucault, ele também pode contribuir para as reflexões sobre a figura do “sujeito de direito” e a imagem de um “direito novo”. Essa proposta torna-se possível pela publicação recente dos últimos cursos de Foucault dados no Collège de France, entre 1979 e 1984, tais como A Hermenêutica do Sujeito (FOUCAULT, 2006b), O Governo de Si e dos Outros (FOUCAULT, 2008c), A Coragem da Verdade (FOUCAULT, 2009), Do Governo dos Vivos (FOUCAULT, 2012a), Subjetividade e Verdade (FOUCAULT, 2014), já que nesses cursos as estéticas da existência, o cuidado de si e a coragem da verdade ganham atenção principal, possibilitando-nos compreender de forma mais detalhada os temas trabalhados por Foucault nos estudos sobre a ética.

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3 – O domínio da ética

É importante considerar os estudos sobre a ética pelos seguintes motivos. A reflexão sobre a figura do sujeito de direito pode avançar bastante se for incorporada a outra discussão fundamental dentro do pensamento de Foucault, a do sujeito, principalmente do modo como ela é realizada no domínio da ética (FOUCAULT, 2006c). O sujeito, para Foucault, não é um dado, mas algo que é constituído. Por isso, Fonseca diz que Foucault “realiza, ou promove, a desconstituição da noção de sujeito como um dado preexistente, como uma essência perene e portadora de um sentido, presente indefinidamente na história” (FONSECA, 1995: 14).

O sujeito moderno é constituído pelas disciplinas, pelo biopoder e pelos mecanismos de segurança. No domínio do poder, como destaca Diogo Sardinha (SARDINHA, 2011: 195), as tecnologias que formam o indivíduo e a produção do sujeito são exteriores a ele. Desse modo, o “sujeito ético” não pode ser confundido com aquele que o poder e o saber produzem. Percebo aí uma diferença de nomenclatura entre Sardinha e Fonseca. Enquanto o último não utiliza o termo sujeito para tratar da Antiguidade, período histórico no qual Foucault desenvolve seus estudos sobre a ética, afirmando que: “Não se fala em constituição de um sujeito na Antiguidade Clássica” (FONSECA, 1995: 26), Sardinha mostra que contra uma impotência radical de ação reservada ao sujeito moderno, “o estudo da ética abrirá um espaço plenamente ocupado pela livre escolha de um novo sujeito” (SARDINHA, 2011: 177).

Apesar dessas divergências, ambos concordam que a constituição do sujeito pela ética não depende dos códigos. Isso porque, aponta Sardinha (SARDINHA, 2011: 187-188), no quadro do poder os sujeitos dependiam das tecnologias de uma micropolítica, que davam conta ao mesmo tempo do modo de ser do sujeito e das suas liberdades. Já a ética garante um afastamento em relação ao poder, pois se trata de “uma estilística da existência pela qual o sujeito aplica sobre si mesmo suas forças e suas capacidades criativas” (SARDINHA, 2011: 198). Por isso a importância da ética no pensamento de Foucault, pois ela permite “repensar, sob sua perspectiva específica, os problemas da inclusão e da exclusão, da individualidade e da coletividade, da constituição e da dissolução do sujeito” (SARDINHA, 2011: 225).

E quais seriam as contribuições que essa “nova dissolução do sujeito” em Foucault (SARDINHA, 2011: 193), provocada pelo domínio da ética, trouxeram para discutir a problemática do sujeito de direito? Sardinha diferencia os sujeitos de direito do sujeito ético: “os sujeitos reclamam e às vezes adquirem os direitos já conferidos a alguns ou inventam novas liberdades. Ao contrário, na ética, eles se impõem

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obrigações que não são comuns a todos” (SARDINHA, 2011: 196). Construir uma nova ética na atualidade torna-se fundamental.

Foucault defende, ao comentar sobre Kant e o problema da atualidade em “O que são as Luzes?” (FOUCAULT, 2005c), que a produção de um novo modo de vida também deve ser entendida como uma atitude crítica em relação ao presente, para imaginá-lo de forma diferente, apontando os seus limites e sublinhando o que já não é mais indispensável para a constituição de nós mesmos como seres autônomos. Trata-se, assim, de uma “ontologia histórica de nós mesmos”, que questiona o que é dado como universal, necessário e obrigatório, revelando como o presente é contingente e fruto de imposições arbitrárias. Ele destaca o caráter de transformação dessa atitude crítica: “Trata-se, em suma, de transformar a crítica exercida sob a forma de limitação necessária em uma crítica prática sob a forma de uma ultrapassagem possível” (FOUCAULT, 2005c: 347).

Essa proposta de criar uma nova ética na atualidade liga-se diretamente àquela da construção de um direito novo, pois, em ambas as discussões, Foucault pretende escapar tanto do modelo da soberania quanto da norma, do bipoder e dos dispositivos de segurança. Daí a importância, como aponta Foucault em 1984, de se “criarem as regras de direito, as técnicas de gestão e também a moral, o êthos, a prática de si” (FOUCAULT, 1994b: 727). A seguinte passagem sugere duas problematizações fundamentais: primeiro, entender como as reflexões sobre a governamentalidade e a ética escapam de uma concepção jurídica do sujeito e, em segundo lugar, discutir como a ética propõe produzir um novo tipo de sujeito que, ao mesmo tempo, tem de lidar com a autonomia de si e a relação com os outros1:

(...) se você tenta analisar o poder (...) a partir da instituição política, você só pode considerar o sujeito como sujeito de direito. Temos um sujeito que é dotado de direitos ou que não é, e que, pela instituição da sociedade política, recebeu ou perdeu seus direitos: nós voltamos aí a uma concepção jurídica do sujeito. Ao contrário, a noção de governamentalidade permite, creio eu, fazer valer a liberdade do sujeito e a relação com os outros, ou seja, o que constitui a própria matéria da ética (FOUCAULT, 1995b: 729).

1 Entender a constituição do indivíduo na relação consigo e com os outros é um dos objetivos principais de Foucault no

curso O governo de si e dos outros: “Gostaria (...) de tentar ver como o dizer verdadeiro, a obrigação e a possibilidade de dizer a verdade nos procedimentos de governo podem mostrar como o indivíduo se constitui como sujeito na relação consigo e na relação com os outros” (FOUCAULT, 2008c: 42).

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No texto “O Sujeito e o Poder” (FOUCAULT, 1995), de 1982, Foucault fala sobre a especificidade dos novos movimentos sociais que emergiram entre as décadas de 1960 e 1980. Ele nomeia essas práticas de contestações políticas como batalhas contra o “governo da individualização”. O intuito fundamental dessas lutas é livrar-se da individualização e da totalização ligadas às estruturas do poder moderno. Ele, então, ressalta novamente o problema crucial de sua atualidade e que ainda permanece urgente para o século XXI – o de promover novas formas de subjetividade pela recusa da individualidade moderna:

A conclusão seria que o problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não consiste em tentar liberar o indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga. Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há vários séculos (FOUCAULT, 1995: 239).

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