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RETRATO DA DEFUNTA: POÉTICA E PEDAGOGIA DA DENÚNCIA EM TARDE LLEGA EL DESENGAÑO (1647), DE MARÍA DE ZAYAS 1

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RETRATO DA DEFUNTA: POÉTICA E PEDAGOGIA DA DENÚNCIA EM

“TARDE LLEGA EL DESENGAÑO” (1647), DE MARÍA DE ZAYAS

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Rosangela Schardong2

Resumo: María de Zayas é uma das raras escritoras do Século de Ouro Espanhol. Em seus contos

declara o propósito de defender a mulher. Uma de suas reconhecidas estratégias é a reescritura de obras canônicas, mas também resignifica as imagens poéticas, os dogmas cristãos e os princípios que regem o pensamento patriarcal de seu tempo a fim de questionar a superioridade masculina y promover a valorização da mulher. Em "Tarde llega el desengaño" María de Zayas recria a matéria erótica de um conto italiano com o intuito de indicar a fonte da desconfiança masculina sobre a mulher. Com sua engenhosa trama ilustra a enfermidade da alma do homem no corpo cruelmente castigado da mulher. Pedagogicamente ensina ao jovem varão a não cometer os mesmos excessos do marido que vê no corpo de sua defunta esposa o retrato de sua crueldade. Esta comunicação pretende por em destaque as estratégias poéticas e pedagógicas que a contista lança mão para denunciar os preconceitos que fundamentaram as muitas formas da violência contra a mulher espanhola do século XVII, bem como seu didático plano literário de levar os ânimos masculinos a reconhecer a gravidade do erro de não conceder a devida dignidade à mulher.

Palavras-chave: Violência. Retrato. Mulher. Persuasão.

María de Zayas é uma das raríssimas plumas femininas que desponta no cenário das letras espanholas do Século de Ouro Espanhol. No século XX foi considerada por M.V. de Lara como “la primera feminista teorizante que concientemente comenta la situación del sexo femenino en España”3

. Peter Cocozzella afirma que Zayas fundou sua arte no equilibrio entre ciência e

consciência. “Ciencia como resultado del profundo conocimiento de sus antecedentes literarios y de

su maestría artística, en combinación con la conciencia de una artista impelida por la dedicación a una causa: la defensa feminina” (apud. Olivares (ed.), 2000, p. 30).

Como Cristina de Pizán, em La ciudad de las damas (1405), as coletâneas de contos de Zayas advogam pela defesa da dignidade da mulher em várias frentes: reivindicando o reconhecimento de sua capacidade intelectual, o direito à educação e a liberdade para escolher o marido; replicando os muitos preconceitos misóginos vigentes em seu tempo; negando a superioridade masculina e a secundariedade da mulher. Zayas participa do produtivo diálogo entre as artes do Século de Ouro com uma singular inovação: utiliza temas, obras literárias, imagens,

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Este artigo apóia-se na pesquisa apresentada na tese de doutorado Exemplo e desengano: defesa da mulher na obra de Maria de Zayas, particularmente no conteúdo do capítulo 4. A mencionada tese foi desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, aprovada em 2008.

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Doutora. Professora Adjunta do Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas da Universidade Estadual de Ponta Grossa – PR, Brasil. E-mail: rschardong@uol.com.br.

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discursos religiosos e políticos bastante conhecidos como fonte inspiradora, recriando-os segundo seu propósito estético e político de dignificação da mulher4.

Na coletânea de contos Novelas amorosas y ejemplares (1637), Zayas revoga a moda das pícaras, celestinas e cortesãs que se destacavam como protagonistas em abundantes obras do início do século XVII. Para tanto, apresenta uma admirável galeria de protagonistas femininas que bilham por sua coragem, prudência e constância. A trama com frequência acompanha as donzelas da iniciação amorosa ao final feliz com casamento. Já na coletânea seguinte, Desengaños amorosos (1647), o enredo inicia com o casamento e termina com a mulher morta ou cruelmente maltratada pelo marido, pai ou irmãos. A fim de enfocar as debilidades do caráter dos homens e sua tirania com as mulheres, os contos passam a ter protagonistas masculinos.

Para compreender o propósito pedagógico observado nos contos de Zayas é preciso considerar que as artes espanholas do século XVII têm o compromisso ético de “adoctrinar sabiduría y virtud” (1973, Ep. 10ª), como prescreve López Pinciano, em Philosophía Antigua

Poética (1596)5. Em consequência, a arte deve elogiar a virtude e censurar o vício, para ensinar bons costumes “poniendo al bueno galardón, y, al malo, castigo” (1973, Ep. 8ª). Este princípio sugere que, didáticamente, o desenlace das personagens indica se suas ações são dignas de prêmio ou castigo. De acordo com esta lógica, as ações que alcançam o final feliz compõem um exemplo a ser seguido pelo espectador ou leitor. Por outro lado, as ações que levam ao final inglório trazem um exemplo ex contrario, isto é, um exemplo ao contrário, que deve ser evitado pelas pessoas prudentes. Como se pode notar, atribuía-se às artes um forte caráter sapiencial, das quais o sábio deveria mimetizar os bons exemplos e o prudente desenganar-se daquilo que, aparentando ser um bem, é um mal.

Neste contexto, os Desengaños amorosos de Zayas contêm ensino para homens e mulheres, defendendo que as mulheres também têm virtude e dignidade e, os homens, vícios. Neles repreende o vício de falar mal das mulheres e o de “juzgar a todas por una” (Zayas, 1983, p. 120). Às mulheres, adverte sobre a crueldade masculina. Vejamos como isto se dá em “Tarde llega el desengaño”.

Na viagem de regresso à Espanha, Dom Martim anseia pelo reencontro com sua amada, que irá desposar ao receber os prêmios pelo serviço militar prestado em Flandres. Porém, um naufrágio

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É preciso mencionar que esta estratégia de Zayas já foi observada por Lena E. V. Sylvania, em Doña María de Zayas y Sotomayor, a contribution to the study of her works (1922). New York: MAS Press, 1966.

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Este tratado de arte promove a reflexão teórica das doutrinas clássicas, sobre tudo das aristotélicas. Foi a mais importante e influente obra do gênero, cujos efeitos tiveram larga vigência.

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o leva à costa da Ilha Canária, onde ele e um companheiro são acolhidos por Dom Jaime de Aragão. Durante o jantar, o anfitrião tira do bolso a chave que abre uma pequena porta da sala, de onde sai uma belíssima mulher, embora estivesse “tan flaca y sin color, que parecía más muerta que viva”6. A bela figura traz nas mãos uma caveira e com ela vai para debaixo da mesa. Pela porta principal entra uma mulher horrenda, que “juzgó don Martín que si no era el demonio, que debía de ser retrato suyo”. Contudo, ela tem um belo vestido e muitas jóias. O anfitrião chama-a “señora mía”, acaricia-a e serve-lhe as melhores porções, enquanto a outra recebe ossos e restos. Acabada a refeição, as mulheres se retiram. A bela leva água no côncavo da caveira. Notando o assombro dos hóspedes, Dom Jaime decide contar-lhes sua história.

Informa sua origem nobre e que também esteve em Flandres, a serviço do rei. Alí, certa vez recebeu um bilhete convidando-o para um encontro secreto com uma dama. Com ela manteve uma incomum relação amorosa. De noite era conduzido de olhos vendados até sua casa e lá ficavam às escuras. A amante incógnita lhe dava muitos prazeres e presentes. Como acumulou substancial riquesa, despertou a suspeita dos amigos de que se dedicava ao furto. Impelido a justificar a origem dos bens, investigou a identidade da mulher. Tratava-se de madame Lucrécia, princesa de Erne. A revelação do segredo condenou o atrevido soldado, atacado em uma emboscada. Dom Jaime, então, regressou à Espanha, levando consigo a lembrança da amada.

Certa feita viu na igreja “un retrato de Lucrecia, tan parecido a ella”. Era Helena. Logo a desposou e a amou ternamente: “Elena era mi cielo, Elena era mi gloria, Elena era mi jardín, Elena mis holguras y Elena mi recreo”. Não obstante, diz que agora “es Elena mi asombro, mi horror, mi aborrecimiento; fue mujer Elena, y como mujer ocasionó sus desdichas y las mías”. A mudança ocorreu quando, ao regressar de uma viagem, a escrava da casa denunciou que Helena o havia traído com o primo que morava com eles. A delatora incitou-o a buscar vingança. Dom Jaime afirma que “al honor de un marido sólo que él lo sospeche basta, cuanto y más habiendo testigo de vista”. Para vingar-se queimou vivo o primo da esposa, reservando o crânio para que lhe servisse de copo. Helena quis desculpar-se, mas ele não lhe permitiu. Declara que não a matou porque a morte lhe pareceu um castigo muito breve para o grande mal que ela causou. Conclui:

En fin, de la suerte que veis, ha dos años que la tengo, no comiendo más de lo que hoy ha comido, ni bebido, ni teniendo más de unas pajas para cama, ni aquel rincón donde está es mayor que lo que cabe su cuerpo echado, que aun en pie no se puede poner; su compañía es la calavera de su traidor y amado primo. Y así ha de estar hasta que muera, viendo cada día la esclava que ella más aborrecía, adornada de sus galas y en el lugar que ella perdió en mi mesa y a mi lado (ZAYAS, 1983, p. 249).

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Todas as citações ao conto serão feitas a partir da edição crítica organizada por Alicia Yllera (Madrid: Cátedra, 1983, p. 227-255).

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Dando fim ao relato, Dam Jaime e os hóspedes se recolhem. Dom Martim suspeita que a acusação de adultério seja falsa. Durante a noite o caso se esclarece. A escrava sente fortes dores e grita, pedindo confissão. Ela sente “que me está amenazando el juicio de Dios”, então declara a Dom Jaime a inocência de Helena e seu primo. Afirma que quis vingar-se porque o primo se recusou a ser seu amante e a patroa a maltratou. Pede perdão a Dom Jaime. Num acesso de fúria, ele a mata a punhaladas.

Dom Martim vai tirar Helena do cativeiro, mas encontra-a morta. Compadecido, chora. Imagina que ela ouviu o marido contar sua história e que “el dolor de ver el crédito que daba a un engaño, [bastó] a acabarle la vida”. Sua morte faz Dom Jaime perder o juízo.

Os familiares providenciam o enterro de Helena, “que cada hora parecía estar más hermosa”, e médicos para Dom Jaime. Uma semana depois, Dom Martim parte para Toledo, sua cidade natal, onde se casa com sua amada, “con quien vive hoy contento y escarmentado en el sucesso que vio por sus ojos”.

A narradora diz que com este exemplo fica claramente provada a opinião de que “en lo que toca a crueldad son los hombres terribles, pues ella misma los arrastra, de manera que no aguardan a la segunda información”.

Podemos observar que o conto focaliza o amor, o casamento, a oposição entre os caracteres virtuosos e os viciosos, com particular atenção às deliberações e inclinações masculinas que levam ao trágico desenlace. A ação pauta-se nas inclinações das personagens, particularmente na disposição do protagonista para deixar-se arrastar pelas paixões. O início in media res garante o suspense da trama que, ao desenrolar-se, põe em destaque a relação de causalidade que a sustenta. Todas as incógnitas são desvendadas pouco a pouco, somente uma pergunta fica sem resposta, aquela que Dom Martim concebe após ouvir o relato de Dom Jaime: “cómo un caballero de tan noble sangre, cristiano y bien entendido, tenía ánimo para dilatar tanto tiempo tan cuel venganza en una miserable y triste mujer que tanto había querido”.

A resposta pode ser obtida através do exame dos movimentos da alma de Dom Jaime, descritos em seu relato autobiográfico. A análise apóia-se nas teorias aristotélicas sobre as paixões, os caracteres e a conduta, também nos preceitos do tratado sobre o amor de Ibn Hazm de Córdoba.

Segundo Aristóteles, as paixões compreendem aqueles sentimentos que perturbam o julgamento, fazendo variar a razão7. A paixão que dá origem à tragédia de Dom Jaime é a luxúria de Madame Lucrécia. Ela o seduz e ele não impõe resistência. A completa submissão com que Dom

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Cf. ARISTÓTELES. Retórica das paixões. Trad. introd. notas Isis Borges B. Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Esta obra estuda os capítulos dedicados às paixões no Livro II da Arte Retórica, de Aristóteles.

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Jaime se entrega à concupiscência é pictoricamente representada na descrição de seus secretos encontros noturnos: ele se deixa vendar e ser levado, passivamente, ao encontro da amante, montado em um cavalo.

A dama exige que sua identidade se mantenha em segredo. Quando o incauto soldado a desvenda, muda sua própria sorte. Sinal disso é a emboscada, realizada a mando de uma mulher, como declaram várias fontes. Aparentemente a dama que o estimava passou a desprezá-lo. O desprezo, explica Aristóteles, “é a atualização de uma opinião do que não parece digno de consideração” (2003, p. 13), que se dá em forma de desdém, difamação ou ultraje.

É possível afirmar que, com a emboscada, Dom Jaime teve uma demonstração do desprezo de sua amante. O ataque representa um ultraje, pois pressupõe que, para a mandante, sua vida já não tem nenhum valor. Seria lícito, então, que Dom Jaime se sentisse traído por sua amante. De acordo com as leis do amor, descritas por Ibn Hazm de Córdoba, em El collar de la paloma (1022)8, quando há traição o esquecimento é legítimo (2000, p. 259). No entanto, Dom Jaime volta à Espanha com a imagem da bela Lucrécia gravada na memória. Ele afirma que “aunque había sido causa de tanto mal como padecí, no la podía olvidar ni aborrecer”.

Segundo a doutrina de Hazm, pode-se afirmar que a persistência da lembrança e do afeto de Lucrécia indica a força com que o amor se apoderou do coração do soldado. Em sua alma o amor aparentemente subjuga a cólera, predominando a memória do prazer sobre a lembrança do sofrimento. Quando ele encontra Helena e reconhece nela “un retrato de Lucrecia, tan parecida a ella”, transfere para a dama espanhola a afeição que sentia pela flamenga, casam-se e vivem felizes por oito anos.

Podemos considerar plausível a transferência do amor de uma pessoa para outra, motivada pela semelhança física. Não obstante, quando Dom Jaime imagina haver sido ultrajado por Helena, após a acusação de adultério, transfere para ela também a cólera que possivelmente sentiu ao ser desprezado e vexado por Lucrécia. A crueldade na execução do primo e no castigo perpetrado à esposa põe de manifesto a dupla intensidade com que Dom Jaime experimenta o ultraje da traição.

Aristóteles ensina que a cólera e o ultraje são causas para o ódio e que, aquele que odeia, quer que “o objeto de seu ódio seja aniquilado” (Arte Retórica, s. d., p. 129).

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Esta obra hispano-árabe pinta o amor, seus aspectos, causas, acidentes e tudo quanto nele ou por ele acontece. Julgo legítimo utilizá-la como fundamentação teórica para a análise do conto devido à semelhança entre as lições do tratado e a pedagogia do amor manifesta nas narrativas de Zayas. Indiquei esta semelhança na tese de doutorado já mencionada (cap. 1).

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Pode-se supor que, por odiar aquele que o ultraja, Dom Jaime mata o primo de Helena. Seria coerente, de acordo com a lógica das paixões, que fizesse o mesmo com ela, porém prefere prolongar o prazer da execução da vingança. Como antes Dom Jaime esteve obcecado pelo prazer sexual que tinha com Lucrécia, agora está obcecado pelo gozo em ultrajar e causar grande sofrimento à esposa, sem sentir por ela nenhuma pena ou compaixão.

Aristóteles explica que o ultraje consiste em fazer ou dizer coisas que desrespeitam e trazem vergonha, com vistas à satisfação da vingança. Esclarece que “a causa do prazer para os que ultrajam é pensarem que, ao fazer o mal, aumenta sua superioridade sobre os ultrajados” (2003, p. 9).

A violência com que Dom Jaime impõe sua superioridade ante suas vítimas contrasta com a imagem do garboso jovem vendado, sobre um cavalo, deixando-se mansamente levar pelas ruas de Flandres. Como naquela ocasião, pode-se dizer que o erro de Dom Jaime ao castigar cruelmente sua esposa está em que sua pretensa superioridade não se funda na razão e na ponderação, mas se origina nos arroubos da paixão. Agora o ódio o cega e perturba-lhe a razão como antes fez o amor. Por causa do compromentimento do juízo, pode-se supor, ele não teve paciência para procurar provas e certificar-se da denúncia feita pela escrava. Portanto, na força imperiosa com que o ódio perturba a razão, muda o caráter e faz variar o julgamento de Dom Jaime está a resposta para a indagação de Dom Martim acerca da indigna conduta do cavalheiro canarino.

Quando a escrava revela a falsidade da acusação de adultério, o ódio de Dom Martim se volta para ela e a mata friamente, a punhaladas. Ao descobrir que Helena está morta, Dom Jaime é tragicamente levado a reconhecer a gravidade de seus erros. O consequente arrependimento, indicado pelas abundantes lágrimas e pelo teor das palavras dirigidas à esposa assinalam sua volta à razão.

Todos podem ver o erro de discernimento e a crueldade de Dom Jaime retratados no cadáver de sua esposa, excessivamente magra, mal tratada e humilhada pelo martírio que lhe foi imposto. Pode-se supor que o horror que sente ao ver no corpo da esposa morta a evidência de seus terríveis enganos leva-o a loucura.

Notadamente, a tragédia de Dom Jaime consiste em um exemplo ex contrario que deve ensinar o homem prudente a evitar os erros que ele cometeu. Erros de juízo que o levaram a escolhas esquivocadas. O mais grave foi não saber discernir o caráter vicioso de Lucrécia e da escrava do caráter virtuoso de Helena.

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Com diligência o expectador direto dos fatos, Dom Martim, põe em prática o proveitoso aprendizado que o leitor também deve imitar. Ao deixar a Ilha Canária, Dom Martim leva a lição de escarmento gravada na memória. Nela pauta sua conduta com a esposa e a ensina a outros homens:

Llegando a Toledo se casó con su amada prima, con quien vive hoy contento y escarmentado en el suceso que vio por sus ojos, para no engañarse de enredos de malas criadas y criados. Y en las partes que se hallaba contaba el suceso que habéis oído (ZAYAS, 1983, p. 254).

O comentário da narradora didaticamente enuncia os efeitos do trágico enredo sobre o ânimo e a ação de Dom Martim. Da observação atenta das estratégias utilizadas pela autora na composição do conto podemos notar como ela reune potentes recursos para provocar nos leitores e leitoras semelhantes resultados.

Inicialmente, percebe-se que Zayas faz alusão a obras e discursos bastante conhecidos. Porém, introduz-lhes alterações que atendem ao seu projeto ético e político de desenganar homens e mulheres.

O colorido relato das aventuras amorosas de Dom Jaime em Flandres contém erotismo, suspense, segredo, conflito de honra, reconhecimento e peripécia tem como fonte, de acordo com Roca Franquesa, a comédia La viuda valenciana (1599), de Lope de Vega. De fato, nota-se grande semelhança entre as memórias de Dom Jaime e os lances noturnos da peça de Lope, inspirados em uma das Novelle de Matteo Bandello, segundo Teresa Ferrer Valls (cf. 2001, p. 181).

Não há como saber se Zayas imita o conto erótico italiano ou diretamente a comédia de Lope. Porém, observa-se, que ela introduz o cavalo à cena, elemento que põe em destaque o conteúdo libidinoso da ação, pois o cavalo era símbolo do desejo sexual9. Zayas também substitui o final feliz da comédia pelo infortúnio do desdenhado galã.

A intrigante aventura possivelmente visa a atrair a atenção do leitor e adoçar a narrativa que contém uma amarga lição de escarmento. A pictórica descrição dos fatos, na voz do protagonista, confirma o clássico preceito ut pictura poesi e manifesta-se na eficaz evidentia, figura retórica que consiste em “una pintura de las cosas hecha con expresiones tan vivas que más parece que se percibe con los ojos que con los oídos”10. Assim como Dom Martim, que ouve atentamete o relato de Dom Jaime, o leitor pode imaginar a cena descrita, com suas cores e emoções, como se estivesse no teatro. A figura da evidentia era muito apreciada nas artes do século XVII pois, de acordo com López Pinciano, os olhos movem mais o ânimo que os ouvidos (cf. 1973, Ep. 5ª, p. 70).

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José María Micó, no estudo introdutório a Guzmán de Alfarache (1599), de Mateo Alemán, afirma que era conhecida a comparação entre “los apetitos de la mocedad y un caballo desbocado” ((ed.) 2006, v. 1, p. 116).

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Pode-se supor que se Zayas desperta o interesse do leitor utilizando a evidência dinâmica para descrever a trama erótica, ela o impacta com a evidência estática: o retrato do cadáver das mulheres. Quando Dom Martim entra no cativeiro de Helena para libertá-la, o narrador onisciente descreve em detalhes o que ele vê:

Vio a la desgraciada dama muerta estar echada sobre unas pobres pajas, los brazos en cruz sobre el pecho, la una mano tendida, que era la izquierda, y con la derecha hecha con sus hermosos dedos una bien formada cruz. El rostro, aunque flaco y macilento, tan hermoso, que parecía un ángel, y la calavera del desdichado y inocente primo junto a la cabecera (ZAYAS, 1983, p. 252).

Enquanto a inocente esposa se asemelha a um anjo, o cadáver da impiedosa escrava parece “un retrato de Lucifer”. Com os retratos a autora coloca diante dos olhos do leitor ícones consagrados para simbolizar o bem e o mal. Outro símbolo que compõe o significado do conto é a caveira, alegoria da morte, frequentemente utilizada nos púlpitos dos sermões destinados a levar os fiéis a uma meditação realista sobre a morte11.

Em “Tarde llega el desengaño”, o convite para a meditação da morte amplia-se por meio das palavras de Dom Martim, as quais simultaneamente anunciam e analizam a morte de Helena:

- Entrad, señor y ved de lo que ha sido causa vuestro cruel engaño. Entrad, os suplico, que para ahora son las lágrimas y los sentimientos, que ya Elena no tiene necesidad de que vos le deis el premio de su martirio, que ya Dios se le ha dado en el cielo (ZAYAS, 1983, p. 253).

Note-se que, ao designar o castigo imposto a Helena como martírio, o personagem compõe uma metáfora com a qual transfere os valores da hagiografia católica para a ação do conto. Nas vidas de santos católicos o martírio assinala o sacrifício injusto, assim como a beleza fúnebre deve ser entendida como o sinal visível da salvação da alma12. Portanto, a beleza do cadáver de Helena indica a Dom Martim e aos demais que a alma da esposa injustamente sacrificada teve um glorioso destino. Por conseguinte, o horrendo aspecto do féretro da escrava sugere a condenação ao inferno, evidenciado por sua semelhança com Lúcifer.

Pode-se imaginar que o mesmo fim ameça o marido que cruelmente martirizou a esposa inocente por longos anos. Para compreender o terror que essa hipótese poderia causar no ânimo de Dom Jaime é preciso considerar que a ameaça do inferno era o mais poderoso e frequente recurso da pedagogia da Contra Reforma para frear os vícios e mover os pecadores ao arrependimento13.

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Sánchez Lora explica que, de acordo com a doutrina católica do século XVII, a meditação sobre a morte deveria mover o devoto à atrição, isto é, ao arrependimento dos pecados (cf. 1988, p. 231).

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É o que declaram relatos como, por exemplo, o feito em 1607 pelo biógrafo de Santa María Magdalena de Pazzis, ao registrar que “su rostro quedó hermosísimo atestiguando la gloria de su santa alma” (apud SÁNCHEZ, 1988, p. 441).

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De acordo com o que foi exposto é certo dizer que María de Zayas habilmente manipula a imaginação de seu leitor, a partir do repertório cultural que compartilham. Transferindo os mesmos métodos e semelhantes fins da pedagodia do sermão e das artes sacras da Contra Reforma para a prosa de ficção a autora ensina a arte de viver através da arte de morrer. Porém, pauta a boa vida e a boa morte na ação justa voltada à mulher, não ao Estado ou à Igreja.

Por meio dos retratos dos cadáveres femininos Zayas elogia a virtude e faz o vitupério dos vícios. O homem prudente que os examina, como fez Dom Martim, deve temer repetir os erros de discernimento do cruel marido e sofrer idêntico infortúnio. Para alcançar a felicidade o leitor discreto deve imitar Dom Martim, estar atento aos enganos da deliberação deficiente, ser cauteloso com as acusações feitas contra as mulheres.

Para ampliar nossa compreensão do projeto político da autora é necessário considerar que, por meio das narradoras dos contos, Zayas denuncia a frequente detratação que a mulher vem sofrendo nas artes e nas letras espanholas. A moda das obras protagonizadas por pícaras, celestinas e cortesãs do início do século XVII fazia incidir sobre a mulher os males do mundo14, ao mesmo tempo em que revitalizava preconceitos misóginos que o Renascimento havia minimizado. As narradoras dos Desengaños amorosos se opõem, particulamente, à frequente generalização, acusando os homens do erro de “juzgar a todas por una” (Zayas, 1983, p. 120). Erro cometido por Dom Jaime, que o conduziu ao trágico fim. Escarmentado, Dom Martim aprende que para desviar-se do caminho do infortúnio é necessário ponderar e averiguar cuidadosamente desviar-se há verdade nas infâmias ditas contra as mulheres.

De acordo com os princípios pedagógicos desta coletânea, espera-se que a leitora prudente e discreta de “Tarde llega el desengaño” sinta compaixão pela bela e virtuosa esposa que recebeu uma desgraça quando merecia o bem. Para a leitora o humilhante castigo de Helena deve servir de lição para que se desengane acerca da propalada superioridade do marido para governar a esposa e ser o cabeça da família, como prescreviam os pregadores da moral católica15. Ante o longo e injusto martírio de Helena a leitora prudente deve por em dúvida a superioridade intelectual e moral dos homens. No retrato da imolação da esposa inocente as contemporâneas de María de Zayas podem ver a denúncia contra a tirana mutilação das potências femininas, contra a negação do direito à palavra e à dignidade.

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Jauralde Pou, explica que o êxito das “apicaradas historias” das cortesãs se debe a que veiculavam uma “visión desengañada de un injusto orden social” ((ed.), 1985, p. 21-22). Seriam, por tanto, uma manifestação da literatura dedicada à crítica de costumes.

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Veja-se, por exemplo, Formación de la mujer cristiana (1523), de Luis Vives; La perfecta casada (1538), de Frei Luis de León e Introducción a la vida devota (1608), de Francisco de Sales.

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Por fim, é certo dizer que, reunindo magistralmente ciência e consciência, Zayas resignifica a pedagogia da arte de morrer do sermão católico ao utilizá-la para a reflexão das relações de gênero na Espanha de seu tempo. Sua pluma feminina recria primorosamente obras consagradas e discursos canônicos a fim de persuadir o leitor a escolher um novo modo de pensar e agir. Com o retrato da morte Zayas sugere novas pautas para a arte de viver, na qual homens prudentes sabem estimar e honrar as mulheres.

Referências

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______. Arte Retórica. Arte Poética. Tradução A.P. Carvalho. Edição Jean Voilquin; Jean Capelle. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s.d. (Edições de Ouro).

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FERRER VALLS, Teresa. Edición, introducción y notas. In: LOPE DE VEGA. La viuda

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JAURALDE POU, Pablo. Edición, introducción y notas. In: CASTILLO SOLÓRZANO, Alonso de. Las harpías en Madrid. Madrid: Castalia, 1985.

LÓPEZ GRIGERA, Luisa. La Retórica en la España del Siglo de Oro. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1995.

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MICÓ, José María. Edición, introducción y notas. In: ALEMÁN, Mateo. Guzmán de Alfarache. 7. ed. Madrid: Cátedra, 2006, 2 v.

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SÁNCHEZ LORA, José L. Mujeres, conventos y formas de religiosidad del Barroco. Madrid: Fundación Universitaria Española, 1988.

ZAYAS Y SOTOMAYOR, María de. Novelas amorosas y ejemplares. Edición, introducción y notas Julián Olivares. Madrid: Cátedra, 2000.

_____. Desengaños amorosos. Edición, introducción y notas Alicia Yllera. Madrid: Cátedra, 1983.

Portrait of the Deceased: Poetics and Pedagogy of Denouncement in "Tarde Llega El Desengaño" (1647), by María de Zayas

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Abstract: María de Zayas is one of the few female writers of the Spanish Golden Age. In her

short-stories, she declares her intention to defend women. One of her well-known strategies is the rewriting of canonical works. However, she also gives other meanings to poetic images, to Christian dogmas, and to principles governing the patriarchal thinking of her time in order to question male superiority and to promote women’s empowerment. In "Tarde llega el desengaño," María de Zayas recreates the erotic subject of an Italian tale to point out the source of male distrust of women. With her ingenious plot, she illustrates the infirmity of man's soul in the body of the cruelly punished woman. Pedagogically, she teaches the young man not to commit the same excesses of the husband who sees, in the body of his deceased wife, a picture of his cruelty. This communication aims to highlight the poetic and pedagogical strategies that the storyteller embraces to denounce the prejudices that underlie the many forms of violence against Spanish women in the 17th Century as well as her didactical literary plan to make men recognize the seriousness of the mistake of not providing proper dignity to women.

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